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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.42 n.4 São Paulo dez. 2008

 

INTERCÂMBIO

 

O mito da maternidade glorificada1: “Maternidade pervertida” ou “A perversão do instinto maternal”

 

El mito de la maternidad glorificada

 

The myth of glorified maternity

 

 

Estela V. Welldon2

Founder and Honorary President for life of the International Association for Foresic Psychotherapy

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

De acordo com a tradição psicanalítica a perversão é exclusivamente masculina. Partindo de sua vasta experiência clínica a autora descreve e teoriza as perversões femininas. Diferente das perversões masculinas nas quais o ataque perverso se dirige ao exterior; na mulher se dirigem com todo seu corpo contra si mesma, seu corpo ou seu bebê. Assim as auto lesões, a anorexia, a bulimia poderiam ser consideradas frequentemente como sintomas das perversões femininas. Entre estas a perversão da maternidade ocupa um lugar central. Imbuídas do poder extraordinário que lhes confere o fato de se tornarem mães, as mulheres podem manifestar sua perversão não somente contra si mesmas mas contra seus filhos que são considerados uma extensão de seus próprios corpos. Assim se definem as diferenças fundamentais entre as perversões femininas e masculinas em um quadro.

Palavras-chave: Perversões; Maternidade; Psicopatologia feminina; Trauma; Poder doméstico; Corpo.


RESUMEN

De acuerdo a la tradición psicoanalítica, la perversión es exclusivamente masculina. La autora, partiendo de su vasta experiencia clínica, describe y teoriza las perversiones femeninas. A diferencia de las perversiones masculinas en donde el ataque perverso esta dirigido hacia fuera; en la mujer esta dirigido con tdo su cuerpo, en contra de ella misma, su cuerpo o su bebe. Así, las autolesiones, la anorexia y la bulimia podrían considerarse a menudo como síntomas de las perversiones femeninas. Dentro de éstas, la perversión de la maternidad ocupa un lugar central. Imbuidas del poder extraordinario que les confiere el hecho de convertirse en madres, las mujeres pueden manifestar su perversión ya no sólo contra sí mismas sino hacia sus hijos que son considerados como una extensión de sus propios cuerpos. Se definen así en un cuadro con las diferencias fundamentales entre las perversiones femeninas y masculinas.

Palabras clave: Perversiones; Maternidad; Sicopatología femenina; Trauma; Poder domestico; Cuerpo.


ABSTRACT

According to traditional psychoanalytical theories perversion is an exclusive male psychopathology. The author challenges this view and argues that women express their perverse attitudes not only through but also towards their bodies, very often in a self-destructive way, such as syndromes of self-injury associated with biological or hormonal disorders affecting the reproductive functioning. In other words, perversion in women is not so clearly and exclusively connected with the expression of hostility and release of anxiety through just one organ as it is with men. Motherhood as perversion is conceptualized using her clinical material collected over 2 decades from the Tavistock-Portman clinics. She observes that the main difference between male and female perverse action lies in the aim. Where as in men the act is aimed at an external part-object, in women it is against themselves: either against their bodies or against objects of their own creation – that is, their babies. In both respects, bodies and babies are treated as part-objects. Motherhood as perversion is the result of at least a three generational trauma. There are basic differences between male and female perversions which are clearly classified.

Keywords: Perversions; Motherhood; Female psychopathology; Trauma; Domestic power; Body.


 

 

O mito do instinto maternal

Os estudos da perversão e da criminalidade nos oferecem a melhor oportunidade para observar importantes diferenças entre homens e mulheres. Ao contrário do que acontece em outras áreas da prática psiquiátrica/terapêutica, uma porcentagem maior de homens do que de mulheres apresenta problemas relacionados à perversão e à criminalidade. A razão pela qual as psicopatologias são tão diferentes poderia obedecer às diferenças básicas quanto ao desenvolvimento sexual normal de meninos e meninas.

Em outros tempos, ficávamos exclusivamente preocupados em comparar não só o desenvolvimento normal da libido em meninos e meninas – tendo como norma a libido dos meninos –, mas também a psicopatologia em homens e mulheres, baseados no que é normal ou anormal para os homens. Essa insuficiência de comparações poderia explicar a aparentemente excepcional ocorrência da perversão sexual na mulher. Conhecemos muito pouco sobre a perversão sexual nas mulheres, devido ao fato de que não a esperamos e, consequentemente, não a procuramos. Além disso, a perversão nas mulheres não acontece, com muita frequência, do modo como nos indica a teoria tradicional e isso torna difícil o diagnóstico correto dessa estrutura clínica.

Nesses últimos anos, houve um repentino incremento da produção de trabalhos na literatura dedicada à sexualidade feminina, mas, mesmo assim, muito pouco foi escrito sobre a perversão sexual feminina.

O modo como hoje se define a perversão poderia ser aplicado no caso da mulher? Em primeiro lugar, devemos determinar a definição de “perversão”. O conceito, ou mais exatamente, a palavra, refere-se a uma “aberração habitual” em que uma pulsão parcial polariza toda a conduta sexual e fica sobreposta à primazia sexual genital. O indivíduo perverso não realiza uma escolha, a sua sexualidade é fundamentalmente de caráter compulsivo e ele está aprisionado a uma sexualidade que tem uma única forma de vivenciar uma descarga sexual e libidinal total.

A aparente escassez de diagnósticos de perversões nas mulheres parece ter a sua origem nos rígidos conceitos que sempre foram aplicados para a psicopatologia masculina. O presente trabalho pretende examinar as diversas características psicopatológicas que constituem as perversões tanto em homens quanto em mulheres. Com essa finalidade, utilizamos uma perspectiva evolutiva baseada na evidência clínica para propor um novo modelo teórico da perversão feminina.

A perversão é uma condição em que a pessoa não se sente capaz de obter gratificação sexual genital mediante o contato íntimo com uma outra pessoa. Esse sujeito sente-se “dominado” por uma atividade compulsiva que é vivenciada subjetivamente como sendo inexplicável e “estranha”, mas que lhe permite liberar uma angústia sexual que cresce até se tornar insuportável. Essa atividade, frequentemente, envolve um desejo inconsciente de lesar os outros ou a própria pessoa. Podemos afirmar que o resultado disso seria não fazer amor e, em vez disso, fazer ódio.

O traço fundamental da perversão consiste em que, de modo simbólico, a pessoa tenta vencer o terrível medo de perder a mãe mediante sua ação perversa. Quando essa pessoa era uma menina nunca chegou a se sentir salva pela mãe, mas exatamente o contrário; ela considerava sua mãe uma pessoa muito perigosa que produzia uma sensação de muita vulnerabilidade na criança. Portanto, a motivação subjacente à perversão é de tipo hostil e sádico. Trata-se de um característico mecanismo inconsciente, ou seja, a pessoa atingida pela perversão não está ciente de tudo isso que acontece no seu mundo interno.

As fantasias a respeito de um agir estranho ou perverso não são consideradas perversões porque a verdadeira perversão sexual sempre consiste no uso real do corpo. Em alguns casos, as perversões podem estar encapsuladas, isoladas do restante da personalidade, de tal modo que, na sua superfície, a pessoa possa parecer totalmente normal. Tudo isso acontece porque a perversão envolve uma profunda cisão (clivagem) entre a sexualidade genital como uma forma de vida ou de amor e aquilo que parece ser sexual, mas na realidade corresponde a etapas evolutivas mais primitivas, dominadas pela pré-genitalidade.

 

Mecanismos mentais na perversão

Na perversão sexual, a angústia aparece como resultante de um conflito entre o Id e o Supereu, no qual o Id excita o Eu por meio de uma fantasia estranha e bizarra. Portanto, o Id pressiona o Eu para que este último permita ser corrompido de maneira parcial ou total pelas crescentes necessidades. O Eu, estando apoiado pelo Supereu, luta contra o acting out da fantasia porque sente que ela é incompatível com sua noção de integridade. Desse modo, a angústia aumenta e torna-se necessário realizar uma ação imediatamente. Por último, perante a pressão cada vez mais elevada do Id, fica corrompido o Eu e sucumbe para um acting out. A ação converteu-se, temporariamente, em sintônica com o eu, permitindo que se produza a perversão e que se atinja o objetivo procurado, por meio da liberação da angústia sexual hostil. A hostilidade está relacionada com a revanche por um trauma precoce que está associado com a humilhação ao gênero e/ou com um intenso temor de não conseguir manter o controle perante a perda imaginária do objeto primário ou da pessoa mais importante. No entanto, a sensação de bem-estar que se obtém é efêmera porque, imediatamente após isso, é substituída pelo sentimento de culpa, pelo descontentamento dirigido contra o próprio sujeito, pela vergonha e pela depressão. O acting out é vivenciado, novamente, como distônico com o Eu, e assim se reinicia o movimento circular. Os outros objetivos que estão envolvidos nos atos perversos são: a regulação da auto-estima (Rosen, 1979) e assumir riscos (Stoller, 1975), nos quais pode existir tanto o êxito quanto o fracasso. O êxito acontece pela resposta atemorizada que dá a vítima para reafirmar a periculosidade do pervertido. O fracasso surge pela repetição da humilhação precoce.

Para esclarecer as diferenças existentes entre as perversões nos homens e nas mulheres, ofereço a seguinte vinheta clínica, que demonstrará claramente algumas das diferenças mencionadas anteriormente.

Um exemplo de perversão masculina

Homem de 34 anos, que marca consulta e apresenta a queixa de ter impulsos intensos e irresistíveis por tocar e acariciar os seios de mulheres desconhecidas. Manifesta ter-se permitido esse comportamento em lugares públicos, lotados de pessoas, geralmente enquanto viajava no metrô, nas horas de pico. Ele ficava parado bem perto das portas de acesso do trem e, furtivamente, acariciava os seios de alguma mulher desconhecida, mas sempre estava pronto para fugir, se ela fosse protestar. Nunca tinha sido detido pela polícia, mas sentia vergonha e estava desgostoso consigo mesmo após esses episódios, muito embora se sentisse incapaz de poder resistir a esse tipo de impulso. Sentia-se excitado em todos os momentos de seu acionar, incluindo aí a antecipação, o planejamento da ação, a escolha da vítima e a possível reação da mulher. A razão pela qual tinha solicitado a consulta clínica era estranha, mas revelava a natureza da sua perversão. Umas semanas antes, ele tinha se aproximado de uma mulher e começado a tocar os seios dela, sem obter nenhuma resposta da sua vítima. Foi então que ele começou a acariciar os seios da mulher de um modo muito mais atrevido. Ele sentiu-se muito confuso, quando percebeu que a mulher continuava a não apresentar nenhuma resposta. Nesse momento, outros passageiros do metrô começaram a olhar para a mulher, que finalmente percebeu a ignomínia, mas, em vez de indignar-se com o que estava acontecendo, colocou a mão do homem sobre o seio e começou a apertar para demonstrar que o paciente tinha acariciado uma prótese, um seio falso. Ela, de modo sarcástico, lhe disse: “Se isto é o que você quer, então pode levar”, e começou a rir. O paciente sentiu-se inundado por uma intensa vergonha. Disse nunca ter vivenciado tanta humilhação. Lembrou-se de que, quando tinha três anos de idade, sua mãe transferiu toda a atenção para a irmã, que tinha acabado de nascer, e ficou ridicularizando o paciente porque ele desejava continuar mamando no peito.

 

Conceituação da perversão feminina

Para a perversão, usam-se as funções reprodutoras e os órgãos reprodutivos, acontecendo tanto no caso dos homens quanto no das mulheres. O homem usa o pênis para realizar as atividades perversas, enquanto a mulher usa o corpo todo, pois seus órgãos reprodutores-sexuais estão mais distribuídos. Na psicopatologia da perversão, a diferença entre o homem e a mulher reside no corpo feminino e em seus atributos psíquicos, biológicos próprios, incluindo aí a fecundidade com todo o leque de representações mentais (Welldon, 1991). A experiência profissional na Clínica Portman tem demonstrado, dentre outras coisas, que essa é uma importante distinção entre as perversões sexuais de homens e mulheres. Acredito ser fundamental o fato de me deter em um fator que até hoje não mereceu a devida atenção: o papel que exercem os órgãos reprodutivos femininos (a característica sexual distintiva) ao longo do ciclo de vida. Acredito que a mulher não só passe por um desenvolvimento libidinal diferente, como também vivencie uma sensação de pressão, derivada de um sentido inexorável do tempo, que é exclusivo do gênero feminino e está intimamente relacionado com sua função reprodutora.

Trata-se do caso do primeiro período menstrual, a menarca, que é um indicador de que a menina-mulher já está biologicamente preparada para exercer a função de reprodutora.

Daí para frente, ela terá as menstruações a cada quatro semanas, como um sinal constante da sua esperança-temor feminino, das suas funções, não só como mulher, mas também como futura mãe. A fecundidade, ou a esperança-temor de que isso venha a acontecer, estarão presentes a partir desse momento e limitados a um período fixo. Portanto, a ambivalência sobre a possibilidade de se converter em mãe estimulará, em alguns casos, uma enorme carga de ansiedade, à medida que passam os anos. Essa situação pode provocar efeitos colaterais, como o “mini-luto” que acompanha o aparecimento de cada período menstrual, quando a mulher se sente privada da experiência de uma gravidez. Esse processo acontece mesmo nos casos em que a mulher tenha decidido não ficar grávida nesse preciso momento. Em outros casos, para algumas mulheres, a gravidez passa a ser a única prova irrefutável de que pertencem à identidade feminina, como acontece com muita freqüência entre adolescentes sexualmente promíscuas. Por outro lado, tenho visto acontecer a mesma coisa com colegas, na Europa, onde a mulher não pode participar simultaneamente da maternidade e da sua profissão. Trata-se de um grupo de mulheres que dedicaram exclusivamente suas vidas ao trabalho profissional, que quando começaram a vida adulta decidiram não ter filhos para poderem se dedicar a progredir na carreira profissional. Quando essas mulheres atingiram uma determinada idade, procuram terapia devido ao fato de sofrerem de uma crescente ansiedade e por sentirem ambivalência a respeito das suas anteriores convicções, que determinavam com força a decisão de não terem filhos. Elas se sentem perseguidas pelo tempo e pela inexorável menopausa que se aproxima. Mais uma vez, a mulher está profundamente influenciada não só pelos fatos psicológicos, mas também pelo ritmo biológico que governa sua vida. A mesma coisa acontece no caso da gravidez, que tem um período fixo de nove meses, durante o qual acontecerão mudanças psicológicas, físicas, hormonais, tanto no seu mundo interno quanto no externo. Essa diferença assinalada, profunda e espetacular, que acontece no sentido da temporalidade entre homens e mulheres, funciona como um “relógio biológico” que está presente desde o momento do nascimento e é possível que essa diferença possa afetar de modo diferente mulheres e homens. Poderíamos especular que mediante essas diferenças, as mulheres estão predispostas de um modo mais intenso ao princípio de realidade. Acredito ser essencial que reflitamos sobre a função reprodutora na mulher, com as suas múltiplas fases. Para isso, vou levar em conta meus pacientes homens adultos, que falam das experiências que tiveram com suas mães na época da primeira infância, como também darei atenção para o que acontece na situação transferencial, quando eles revivem o tipo de fusão e dependência que vivenciaram e que tentam reatuar nas suas terapias. Conhecemos bem os trabalhos de Mahler sobre os estudos de “simbioses” que aparecem com mães de futuros perversos e a falta de separação e individuação, que são processos normativos durante a época da infância e que ficaram impedidos por essas mães. Além disso, também vou levar em conta o material clínico que nos oferecem as mulheres que sofrem de perversões, quando falam sobre seus relacionamentos com seus filhos, mencionando como elas abusam do poder e de seu posicionamento de controle a respeito deles. Vários anos atrás, observando essas pacientes, cogitei não ser estranho escolher – para algumas mulheres que estavam sob o ditado ou a pressão de se converterem em mães – o caminho da perversão como sendo o único no qual elas teriam alguém (um infante totalmente dependente) à sua mercê, completamente sob seu controle, não só psicológico como biológico, e assim recriariam aquelas características que se aplicam para os relacionamentos perversos.

A capacidade que a mulher tem de procriar, ficar grávida e levar o bebê dentro do seu próprio corpo, tudo isso a dota com algumas características emocionais no seu relacionamento de objeto, as quais não somente são exageradas, mas também distorcidas nos casos de relacionamentos perversos, em que se acrescenta a necessidade de dominar totalmente a outra pessoa, de desumanizar o objeto, de se intrometer, invadir, ter o controle total da situação, de se fusionar com o outro. A principal diferença que há entre a ação perversa de um homem e de uma mulher está no objeto. No caso dos homens, o ato é direcionado contra um objeto parcial externo, como no exemplo que mencionei há pouco. No caso das mulheres, o ato geralmente é dirigido contra si mesmas, seja contra seus corpos ou contra os objetos que elas entendem como sendo suas próprias criações, ou seja, seus bebês. Em ambos os casos, corpos e bebês são tratados como sendo objetos parciais desumanizados (Welldon, 1988).

As psicopatologias que são associadas com mais frequência às mulheres são as síndromes de lesões autoinfligidas, relacionadas com desordens que afetam a função reprodutora. Exemplos disso são: a anorexia nervosa, a bulimia e as formas de automutilação, em que a ausência ou a presença da menstruação bem pode ser um indicador da gravidade da condição, o abuso autoinfligido, algumas formas de prostituição e abuso sexual e físico de crianças, incluindo aí o incesto com crianças de ambos os sexos. As vítimas podem vivenciar uma adição ao trauma que as induz para a autodestruição. Essa característica particular é descrita com muita precisão por Milton (1994), quando aborda o vínculo existente entre o abuso físico severo, na infância, e a perversão nas mulheres. A autora sugere que um aspecto grave da situação da vítima é a corrupção que ela sofreu nos primeiros anos de vida, mediante uma estimulação externa de seu próprio ódio e destrutividade, que passaram a ser erotizados em sua identificação com o agressor, novamente como um mecanismo de sobrevivência psíquica.

As mulheres estão conscientes não só do sofrimento provocado aos outros, mas também daquele que infligiram a si mesmas. As suas histórias estão caracterizadas pela exposição a incidentes traumáticos precoces, repetidos e sérios, de abuso emocional e físico perpetrado por seus progenitores ou por seus substitutos.

Uma paciente, de 26 anos, relatava a maneira em que fantasiava esquartejando os corpos de homens que ela nem conhecia; contava como se aproximaria e atrairia as vítimas potenciais (homens) mediante subterfúgios para obter a cooperação deles para atividades inexistentes e falsas, enquanto o tempo todo ela estaria tendo desígnios homicidas. Ela se gabava de ser “extremamente perigosa” e afirmava ter assassinado algumas pessoas, mas era impossível saber se eram meras fantasias. Qual era seu problema real? Ela comia para atingir uma obesidade mórbida. Cortava se e queimava-se em todas as partes do seu corpo. Algumas dessas feridas foram feitas nas suas partes sexuais e a dor lhe provocava um grande alívio sexual. Outras feridas foram infligidas em áreas expostas do corpo, portanto eram visíveis para todo mundo. No começo, a paciente tentou racionalizar esse comportamento, afirmando que, desse modo, protegia os outros de seus próprios desejos homicidas. No entanto, quando começou a explorar um nível mais profundo, admitiu, com hesitações, que quando as pessoas olhavam fixamente para suas feridas autoinfligidas, algumas estando abertas e em carne viva, a paciente sentia uma intensa sensação de gratificação e prazer por ter provocado perturbação e por ter incomodado os outros. Manifestava estar castigando todo mundo mediante as feridas realizadas no seu próprio corpo. No entanto, fica claro que ela deixava de lado o dano que provocava em si mesma. Esse é um traço psicopatológico típico das perversões femininas, que são sádicas e masoquistas nas suas ações perversas. Em uma outra oportunidade, enquanto a mesma paciente dirigia seu carro, um motoqueiro reagiu furiosamente por se sentir ameaçado pela maneira como ela dirigia. De repente, e com muita dificuldade, ela conseguiu sair do seu pequeno carro. O motoqueiro se deteve, olhou-a com inquietação, e disse-lhe com total desprezo: “O seu corpo é um espetáculo desagradável, especialmente levando em conta que, nos países do Terceiro Mundo, as pessoas morrem de fome. Você é uma obscenidade”. Inesperadamente, a ira da paciente converteu-se em um amargo pranto. Ela estava furiosa, mas sentia-se capturada porque, imediatamente, percebeu que a forma como tratava seu próprio corpo era vista, de modo tão óbvio, como uma ação iracunda contra si mesma, mas também contra todo mundo. Era tão fácil perceber, no seu interior, “o seu espírito homicida” que, a partir daí, foi impossível para ela continuar com sua velha ladainha: “Se alguém me disser que é errado me queimar e me cortar, eu lhe respondo que não vejo nada errado nisso. O meu corpo me pertence e está exclusivamente sob meu controle”.

Essas expressões representam a voz dissidente de uma mulher que teme não poder ser escutada de uma outra maneira que não implique infligir lesões físicas no seu próprio corpo. O seu sofrimento é um exemplo a mais das mulheres que ferem seus próprios corpos como sendo parte de uma luta pelo controle e pelo poder, não importando o amargo que possa resultar isso.

Muitos colegas psicanalistas, nas suas obras, mencionam o papel que cumpre o processo dos cuidados maternos na produção dos futuros perversos. A maioria deles concorda que a relação mãe-criança tem uma importância fundamental para compreender a gênese da perversão. No entanto, o reconhecimento da perversão da própria maternidade está ausente. Os trabalhos de Greenacre, Mahler, Winnicott, Bowlby e outros, introduzem o conceito de facilitação materna da separação e individuação, no infante normal e saudável. A inexistência desse conceito fundamental pode resultar em uma simbiose e no desenvolvimento de perversões.

Hermann (1936), observando os fenômenos sadomasoquistas na relação mãe-criança, fez referência pela primeira vez a uma “mãe pré-genital”. Posteriormente, psicodinâmicas similares na etiologia das perversões foram discutidas por Glasser (1979); Socarides (1988); Stoller (1991), Greif e Montgomery (1991) e Cooper (1991).

Na comparação das diferenças eróticas entre homens e mulheres, Stoller (1991) sugere que a propensão do homem para o fetichismo contrasta com o desejo contrário nas mulheres de se relacionar, de intimidade e constância. O problema consistiria em que, se as mulheres não obtiverem essas maravilhosas qualidades “femininas” em seus relacionamentos, então poderiam cair em um comportamento perverso. As fantasias de revanche contra seus parceiros poderiam se materializar na maternidade, quando usariam suas crianças como objetos fetichistas, desumanizados, sobre quem exercem um controle total.

Se excetuarmos os trabalhos de Rascovsky, A. e Rascovsky, M. (1968), então muito pouco se menciona na literatura psicanalítica sobre a patologia real dessas mães. Ficamos com a sensação de incerteza a respeito da questão que eles levantam da mãe “cruel” e “sádica” ser uma fantasia dos seus pacientes ou uma avaliação precisa.

O modelo que propõem Fonagy et al. para o ambiente precoce no desenvolvimento de indivíduos borderline ou fronteiriços permite a compreensão da etiologia da maternidade “defeituosa” (real) (Fonagy, 1989, 1991; Fonagy e Higgit, 1990; Fonagy e Moran, 1991; Fonagy e Higgit, 1992). Esses autores mencionados, seguindo uma estrutura kleiniana, enfatizam o estado de déficit, que surge como uma adaptação para a deprivação e o conflito psíquico precoces, mas diferentemente de outros autores kleinianos, consideram “a raiz da perturbação fronteiriça (perversa) na percepção, geralmente exata, que tem a criança a respeito de que a figura materna alberga pensamentos hostis, e, em última instância, destrutivos, direcionados para a criança”. Geralmente, o infante que tem entre dois e quatro anos, se protege da violência e da negligência do “progenitor primário” (a mãe) retirando-se e negando-se a pensar porque há dor real em demasia. Fica claro que isso prejudica sua capacidade para desenvolver uma sensação de confiança ou para estabelecer as relações íntimas. Portanto, reconhece-se a existência de uma maternidade pervertida, quando o processo de individuação/separação não só está prejudicado ativamente, mas também quando origina gratificações libidinais perversas, do lado da mãe. Masterson e Rinsley (1975) descrevem essa característica dos cuidados maternos, como uma alternância entre a proximidade sedutora e o distanciamento que acontece no momento da separação/individuação. O infans fica à mercê da mãe, sendo incapaz de se separar, de se individuar ou de conseguir passar por uma evolução libidinal genital. Alguns dos princípios psicodinâmicos que operam na perversão poderiam aparecer nas mulheres, quando elas se convertem em mães. A capacidade de uma mulher ficar grávida e de conter seu bebê dentro do seu próprio corpo lhe oferece algumas características emocionais, nas suas relações objetais, semelhantes àquelas que se encontram nas formas exageradas e tremendamente distorcidas de relacionamentos perversos. Esses incluem o desejo e a intenção de engolir o outro, de desumanizar o objeto, de se introduzir, invadir e ter o controle total do outro e também de se fusionar com ele.

Às vezes, se escolhe ser mãe devido a razões perversas de caráter inconsciente. “A mulher saberia que, ao atingir a maternidade, ela estaria adquirindo, de modo automático, o papel de amo, daquele que está no comando, que tem o controle total do outro ser que tem que se submeter não só emocionalmente como biologicamente às exigências da mãe, não importando o quanto inapropriadas possam chegar a ser” (Welldon, 1988).

Uma mulher foi encaminhada para consulta pelo serviço social por apresentar “desejo sexual pelo seu filho”. Ela é a mais nova de seis irmãos. Quando a paciente tinha seis anos, seu pai foi embora definitivamente do lar, deixando a mãe da paciente sozinha e sem capacidade para enfrentar a situação. Pouco tempo depois, um dos irmãos começou a abusar sexualmente dela, que se sentiu incapaz de se proteger das contínuas ameaças e intimidações que fazia seu irmão para que não contasse o acontecido, além de estar temerosa dos acessos de violência da sua mãe contra ela. Como consequência disso, incrementou-se o abuso sexual até chegar a uma relação sexual completa. Essa situação se protelou até ela abandonar o lar, pouco depois de perceber que estava grávida. Após ter vivido uma “aventura de uma noite só” com um jovem, a paciente não tinha certeza de quem seria o responsável pela sua gravidez, mas pensava que existiam grandes probabilidades de que fosse seu irmão. Ela nunca se sentiu capaz o suficiente para falar com alguém a respeito do abuso sexual padecido e manteve para si mesma as devastadoras dúvidas sobre a origem de sua gravidez. Decidiu dar o seu bebê em adoção, mas logo depois do nascimento do filho, mudou de idéia e resolveu ficar com ele. A paciente disse: “Não podia rejeitar alguém que tinha estado dentro do meu corpo durante nove meses; eu me teria sentido tão rejeitada que não deu para continuar com os planos de adoção”. Simultaneamente, ela começou a vivenciar os tremendos impulsos de abusar física ou sexualmente do bebê. Tentou resistir, com muito esforço, a esses impulsos, mas só pôde reagir enfurecida com todo o mundo até o ponto em que se converteu em uma pessoa solitária. Foi nesse momento que ela adotou um outro sistema em que continuamente repetia a si mesma: “Ele é meu. Ele é meu”. Essa frase permitiu que se abstivesse de realizar seus impulsos, mas não de senti-los. A paciente estava consciente de que havia um forte nexo entre o acionar do seu irmão contra ela, acontecido no passado, e seus atuais desejos sádicos contra seu filho. Foi assim que a paciente demonstrou um inusual grau de percepção da situação. Ela estava consciente de sentir uma forte sensação de desforra e queria ferir seu filho tanto quanto seu irmão a tinha machucado. Um tempo depois, teve um outro filho, que recebeu sentimentos positivos, muito embora ela estivesse preocupada com a possibilidade de que, quando o caçula crescesse, o filho mais velho pudesse perceber a grande diferença que havia na maneira como ela tratava ambos os filhos.

Uma outra paciente solicitou consulta pelos seus incontroláveis e “horríveis” impulsos de abusar sexualmente de seus filhos e de outras crianças. Ela sempre tentava, com muita decisão, se deter perante seu impulso, mas nem sempre conseguia. Descobriu que a maneira mais efetiva para combater e controlar esses impulsos era através de lesões severas autoinfligidas. Por isso, amarrava-se com cordas e correntes, como uma tentativa de ficar imobilizada, para logo começar a se masturbar, conseguindo, assim, um certo alívio da sua angústia agressiva, hostil e sexual. A paciente tinha três filhos e quando ficou grávida pela primeira vez manifestava sentir ódio dessa situação. Tinha todo tipo de fantasias a respeito de gerar um bebê monstruoso. Começou a se amarrar com cordas e se pendurar nas escadas, com a esperança de que assim o feto sairia do seu corpo e aconteceria o aborto. A própria paciente tinha sido vítima de abuso sexual e psíquico, de modo sádico, realizado pela mãe, que costumava introduzir pedaços de metal cortante e vidros na vagina e no ânus da filha. A partir dessa época, a paciente foi vítima de abuso sexual realizado por muitas pessoas, especialmente por pessoas em que ela confiava, como seres integrantes do clero, professores e outros adultos “responsáveis”.

 

Diferenças entre perversões de homens e de mulheres

A maternidade perversa é produto da instabilidade emocional e da inadequada individuação, processo que se alastrou pelo menos durante três gerações. Trata-se do produto final de um abuso em série ou de uma deprivação infantil crônica.

As importantes diferenças existentes entre homens e mulheres podem ajudar na predição, avaliação e na forma de proceder ante a periculosidade feminina, promovendo um melhor entendimento, um tratamento apropriado e a prevenção dessas condições.

Diferentemente dos homens, as mulheres estão envolvidas física e emocionalmente (de maneira positiva ou negativa) com os “objetos” do seu abuso, ou seja, com seus próprios corpos ou seus bebês.

As mulheres parecem sofrer mais com o fato de suas próprias ações de abuso estarem mais conscientes das profundas feridas psicológicas e das consequências que produzem a longo prazo, como também parecem assumir uma maior responsabilidade por elas mesmas e solicitar ajuda profissional que, infelizmente, não é de fácil acesso para elas.

Agora, apresentamos algumas das características fenomenológicas das perversões nos homens e nas mulheres:

 

 

As características diferenciadoras nas mulheres, ou seja, um grau de responsabilidade, a experiência da dor psíquica, a flexibilidade a respeito da sua “escolha” da perversão e o apego mostrado nas perversões femininas e que estão ausentes na perversão masculina, podem servir para explicar uma melhor prognose para o caso das mulheres.

É muito raro que a polícia detenha uma mulher, exceto nos casos específicos em que se afirma que a mulher está colaborando com o abuso sexual que realiza o pai e/ou que está instigando esse acionar. No caso das mães solteiras, as instâncias externas, às vezes, não fazem a menor idéia do grau de sofrimento envolvido. Em outros casos, as mulheres são impedidas de informar seu problema, por algumas entidades legais que desejam que a criança fique em casa, sem levar em conta os custos emocionais e psíquicos. A perversão está inter-relacionada, evidentemente, com a política de poder. As mulheres têm acesso ao poder doméstico, enquanto os homens têm acesso ao poder público, mas devido a razões de espaço, não poderemos aprofundar o assunto neste texto.

A nova consciência e a mais profunda compreensão das psicopatologias das mulheres devem ser usadas de um modo positivo para impulsionar uma melhor compreensão e prevenção destas situações específicas. Deveríamos contar com melhores recursos para atender adequadamente tanto as mães quanto seus bebês. O objetivo consiste em evitar maiores abusos do poder doméstico que provoquem, a curto prazo, muita dor, sofrimento e incômodos tanto nas mães quanto nos bebês e, a longo prazo, na sociedade em geral.

 

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Endereço para correspondência
Estela V. Welldon, MD
DSc (Hon) F.R.C.Psych
44, Harley Street
W1G 9PT London, England
Tel.: 0207 722-2826
E-mail: estela@evwelldon.com
Site:www.estelawelldon.org

Recebido em: 19.9.2008
Aceito em: 12.10.2008

 

 

1 Tradução de Cláudio César Montoto.
2 DSc (Hon) F.R.C.Psych.
*All copyrights belong to: Estela V. Welldon, MD DSc (Hon) F.R.C.Psych

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