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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.4 São Paulo  2009

 

TEMÁTICOS

 

Algumas questões sobre a instituição e a psicanálise

 

Algunas Cuestiones Sobre la Institución y el Psicoanálisis

 

Some questions about the institution and the psychoanalysis

 

 

Wilson Amendoeira1

Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor contrapõe a visão da Psicanálise como um corpo de ideias vivo e poderoso com a precariedade dos laços que unem os psicanalistas com suas instituições, focalizando a Associação Psicanalítica Internacional. Apoiado em reflexão sobre o que um ambiente institucional estimulante deve oferecer aos psicanalistas e fazendo contraponto com a tradição de centralização e monopólio de poder, o autor desenvolve um breve histórico sobre as raízes desta tradição e como ela se perpetuou na API e apresenta os pilares que permitem a retomada de sua função de geradora de desenvolvimento científico e clínico, com o estímulo ao pensar livre e criativo.

Palavras-chave:psicanálise; tradição; desenvolvimento científico; democratização institucional.


RESUMEN

El autor opone la visión del psicoanálisis como un cuerpo de las ideas vivo y fuerte con la precariedad de los lazos que unen a los psicoanalistas a sus instituciones, enfocando la Asociación Psicoanalítica Internacional. Apoyando-se en la reflexión sobre lo que una atmósfera de estímulo institucional debe ofrecer a los psicoanalistas y haciendo el contrapunto con la tradición de centralización y de monopolio del poder, desarrolla un breve histórico de las raíces de esta tradición y de la misma manera que ella fue perpetuada en API y presenta los pilares que admiten el volver a tomar su función de generar el desarrollo científico y clínico, con el incentivo al pensar libre y creativo.

Palabras clave: psicoanálisis; tradición; desenvolvimiento científico; democratización institucional.


ABSTRACT

The author opposes the vision of the Psychoanalysis as a living and powerful body of ideas with the precariousness of the links that unite the psychoanalysts with their institutions, focusing the International Psychoanalytical Association. Leaning on the reflection about what a stimulant institutional environment must offer to the psychoanalysts and as a counterpoint to the centralization tradition and monopoly of power, the author develops a short historical about the roots of this tradition and how it was perpetuated in IPA and presents the pillars that allow the retaking of its function as generator of scientific and clinical development, with the incentive for free and creative thinking.

Keywords: psychoanalysis; tradition; scientific development; institutional democratization.


 

 

Constatamos, quando falamos de Psicanálise, que estamos diante de um corpo de ideias vivo e poderoso. Entretanto, quando voltamos nossos olhos para as nossas instituições, percebemos que estamos às voltas com certa precariedade dos laços que nos unem a elas. Estes laços deveriam fazer com que o pertencimento de cada um de nós fosse natural e reconhecido por todos. Vamos examinar, focalizando a Associação Psicanalítica Internacional, a nossa IPA (International PsychoAnalytical Association), alguns dos fatores que podem ser destacados na origem deste quadro.

Como sabemos, Freud, em 1910, promoveu a fundação da Associação Psicanalítica Internacional, doravante API, que hoje conta com mais de 11.000 psicanalistas filiados, espalhados por 35 países; já chegamos à China e estabelecemos contatos preliminares com os africanos de língua portuguesa. Aqui, no Brasil, a federação que reúne as Sociedades brasileiras filiadas à API – a Febrapsi (Federação Brasileira de Psicanálise) – tem cerca de 1.200 membros, que cobrem 15 estados. Os nossos Institutos, ainda no Brasil, mantêm cerca de novecentos psicanalistas em formação.

Entre os múltiplos vértices que uma reflexão crítica a respeito da API pode abordar, vou me cingir a dois. Como fio condutor, estabeleci uma premissa que balizasse um caminho a ser percorrido, nesta reflexão sobre a função de uma instituição como a API para o movimento psicanalítico: somos psicanalistas e como tais necessitamos de um ambiente institucional estimulante para a nossa criatividade e que possibilite a eclosão do novo, facilitando as relações de troca e apoio, integrando nossos pensadores num processo de reflexão contínua, para que recuperemos o espírito criativo e inovador que é a alma da psicanálise. Ao mesmo tempo, somos herdeiros de uma tradição articulada em torno de centralização e monopólio de poder, grupos secretos e decisões tomadas sob o manto do sigilo.

Com esta premissa em mãos, irromperam as seguintes questões: como se estabeleceu e como se desenvolveu essa tradição, alcançando a fundação e a história de várias sociedades e grupos de estudo, espalhados pelo mundo, que reúnem os membros da API? Como criar o ambiente institucional estimulante, que favoreça o desenvolvimento da Psicanálise, mantendo seu potencial crítico e aumentando sua capacidade criativa, numa quadra em que impera certa vertigem, ditada pela rapidez das transformações?

Sem a pretensão de uma exposição e apreciação aprofundadas sobre os fatos históricos, faço um breve relato que comporá a tessitura de apoio para a reflexão sobre algumas ideias acerca de nossa instituição. Ressalto que dou alto valor ao fato de que, quando falamos de Psicanálise e suas instituições, as respostas encontradas no passado precisam ser renovadas e reconstruídas a cada momento histórico e em cada espaço geográfico, para que possam estar afinadas com os ditames requeridos pela realidade presente.

Voltemos às origens. Em 1902, dois anos após a publicação de A interpretação dos sonhos, Stekel propôs a Freud que reunisse alguns interessados em suas descobertas, para que formassem um grupo de discussão. Freud convidou três interessados e esse grupo deu origem à Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras; cinco anos depois, o grupo já contava com cerca de 15 participantes, mas as picuinhas e os desentendimentos entre eles já minavam a pequena Sociedade.

Esse quadro não era propriamente o que Freud esperava do convívio entre os integrantes de seu grupo. Imbuído da importância de suas descobertas revolucionárias e considerando os ataques que suportou na defesa de suas novas concepções durante o período do isolamento heroico, ele via a Psicanálise como um movimento, uma causa que requeria combatentes, verdadeiros cruzados, para promover sua defesa e expansão. Como era o autor das descobertas, seu único defensor durante anos, cercado de uma aura quase heroica, era natural que sua postura facilitasse a idealização e uma atitude de dependência em seus seguidores. Nesse quadro, esperava que sua presença no grupo estimulasse a criação de laços de amizade e cooperação entre os participantes, irmanados na admiração comum a todos, e que sobrepujassem as rivalidades naturais assim como as disputas pelas prioridades e pela busca da unção como"o sucessor escolhido".

Freud, descontente com os rumos que estavam sendo tomados e ciente das suas próprias dificuldades para lidar com grupos, dissolve a sociedade em abril de 1908 e forma outra, a Sociedade Psicanalítica de Viena, e começa a pensar em ampliar o movimento psicanalítico para além de sua cidade.

É dessa época sua aproximação com Jung – psiquiatra já com algum destaque – que foi precedida por uma carta, na qual este transmitia enorme entusiasmo pelos trabalhos de Freud. Entretanto, essa aproximação apresentou dificuldades desde seu início, sobrepujadas pelo deslumbramento de Freud com o ânimo e com o ímpeto de Jung em adotar sua causa, a Psicanálise. Outro fator determinante nessa aproximação era a ideia de encontrar alguém que pudesse liderar o movimento psicanalítico, com a criação de uma associação internacional de psicanálise, e Jung pareceu a Freud talhado para esta função. O fato de Jung não ser judeu como era a enorme maioria – senão a totalidade – de seus primeiros discípulos também teria sido importante para Freud, tentando evitar por antecipação o estigma de"ciência judaica" que futuramente o nazismo colocaria sobre a Psicanálise.

Em 1910, no Congresso Internacional em Nuremberg, Ferenczi foi incumbido de propor a criação da associação internacional e de indicar Jung como seu presidente permanente. O grupo vienense se sentiu afrontado e reagiu asperamente, mas acabou cedendo ao apelo de Freud, embora impondo a troca de uma presidência permanente por mandatos de dois anos, ficando Jung como o primeiro presidente.

A Associação Psicanalítica Internacional foi então fundada e teve como primeira sede a cidade de Zurique, local da residência de Jung.

A crônica da evolução das relações de Jung com Freud, com o movimento psicanalítico e com a Psicanálise, é de amplo conhecimento de todos os interessados em nossa história. Evoluíram de mal a pior numa velocidade inimaginável, transformando prenúncios e pequenas divergências em dificuldades incontornáveis, pois houve praticamente uma declaração de guerra de Jung contra Freud, que se sobrepôs às divergências científicas, também cada vez maiores. As dissensões de Adler e Stekel, próximas no tempo, seguem trilhas assemelhadas, prenunciando sucessivas cizânias que foram confirmadas com o passar do tempo.

Em meados de 1912, Ernest Jones propõe a criação de um comitê secreto, que originalmente tinha sido esboçado por Ferenczi, para enfrentar as delicadas condições do movimento. A finalidade era proteger Freud, sua obra teórica e a Psicanálise, que eram vistos como uma só cidadela, pois não se conseguia separar o amálgama formado entre o criador e sua obra. Além disso, era evidente que o desenvolvimento da Psicanálise estava apoiado no embate em duas frentes: com a oposição externa, o establishment, principalmente o médico, que resistia a aceitar a verdade psicanalítica; e internamente, contra os que eram considerados traidores e infiéis, no bojo do próprio movimento.

Freud se mostrou entusiasmado com a ideia de reunir um grupo seleto, selecionado entre os melhores e mais confiáveis envolvidos com a causa, para cuidar de seu desenvolvimento e de sua defesa. Propôs que o Comitê fosse formado, inicialmente, por Jones, Ferenczi, Hans Sachs e Karl Abraham. Logo após se dá a inclusão de Rank e de Anton von Freund e, em 1919, a de Eitingon. Para selar e validar a união do grupo, Freud deu de presente, a cada um deles, um pequeno entalhe grego, posteriormente encravados em anéis, dando origem à denominação de Comitê dos Anéis.

O Comitê deveria ser secreto e não oficial, mas com estreito contato com Freud, ocupante do lugar de fonte única e legítima de tudo que pertencesse ao campo psicanalítico em formação.

A API estava sob o comando de Jung e a existência do Comitê criava um fosso entre este e as atividades oficiais da entidade, sob a liderança de Jung, o que certamente contribuiu para acelerar o seu desgaste e culminou com a sua renúncia.

Após a saída de Jung e com a eclosão da 1ª Grande Guerra, há um interregno, gerado pelas dificuldades de movimentação e pelas tarefas assumidas por alguns dos componentes do Comitê, em função do conflito armado.

No congresso de 1920, em Haia, Freud propôs que os componentes trocassem cartas circulares, semanalmente, e esta iniciativa foi a primeira formalização do trabalho do grupo secreto, permitindo a Freud maior segurança sobre a condução dos trabalhos da API. Segundo Grosskurth (1992), na primeira delas, escrita por Ferenczi, este propôs que"todas as sociedades tivessem um conjunto comum de critérios de admissão e que todos os membros fossem consultados quando um novo membro tivesse de ser apresentado". Jones reagiu, objetando a dificuldade de se implantar tal prática, além de não querer, assim como Abraham, interferências na autonomia de suas sociedades, a Britânica e a de Berlim, que estavam em franco progresso.

Durante vários anos, após a criação do Comitê, foram crescentes as dificuldades na relação de Rank com os outros componentes, fazendo com que ele deixasse o grupo em 1925. Foi substituído por Anna Freud, mas o Comitê acabou se dissolvendo em 1927.Os conflitos daqueles anos não se restringiram a Rank, pois envolviam os de Viena contra os de Berlim, Jones e Ferenczi, Freud e Ferenczi, entre os que eram a favor da expansão para os Estados Unidos da América e os defensores de um fechamento na velha Europa.

O que mais nos interessa, nesta evolução, é o estabelecimento de um grupo secreto, uma oligarquia de cruzados ao redor de Freud, um poder paralelo e centralizador, determinante das várias diretrizes que poderiam emanar da API, pois vários membros do Comitê a presidiram após a saída de Jung (Jones no período 1918/1925, Abraham em 1925/1926, Eitingon em 1926/ 1934, Jones de 1934 a 1949).

Este poder se cristalizou no Congresso de Bad Homburg, no qual se programou uma conferência preliminar para discutir a formação de analistas e a proposta de uma organização internacional visando estabelecer padrões uniformes para essa formação. Eitingon apresentou uma série de princípios normatizadores: a formação não deveria ser encargo de iniciativas de indivíduos e, para este fim, os diferentes países deveriam criar institutos de formação que seguiriam o modelo definido pela API. A formação incluiria a análise didática (inicialmente instructional analysis, depois training analysis) e a análise de pacientes sob supervisão. Cada sociedade deveria eleger uma Comissão de Ensino e estas comissões deveriam se associar para formar um International Training Board (ITB – depois renomeado para"Commission" – ITC).

Em 1932, Eintingon informou que existiam sete institutos de formação e os mais novos seguiam os métodos aplicados em Berlim, Viena e Londres. Reconhecia-se a suprema autoridade das Comissões de Ensino, proibia-se que alguém pudesse proclamar ser um psicanalista qualificado até que sua formação estivesse completa, recebendo o aval da Comissão de Ensino. A formação deveria durar, no mínimo, três anos e deveria incluir dois anos de estudos teóricos, estar em análise didática com um analista aprovado pela Comissão de Ensino e prática de duas análises de controle (supervisionadas) de, ao menos, um ano cada.

Estava estabelecido o modelo de funcionamento e de controle da formação de analistas e, consequentemente, os parâmetros da constituição das novas sociedades, apesar da mudança, a partir de 1937,

… com a declaração de independência dos Institutos americanos, que não se submeteram às exigências de obediência e respeito filial, que não desejavam permanecer demasiado tempo"in statu pupilari". A insubmissão dos Institutos americanos teve como efeito deslocar o controle do ensino para as sociedades nacionais ou locais, e estas passaram a desfrutar o prestígio e autoridade que anteriormente se quis atribuir à ITC. (Oliveira, 1965)

Após 1948, não existiu mais menção à International Training Commission.

O espírito do Comitê Secreto (dos Anéis), como uma oligarquia de notáveis, de paladinos na defesa da psicanálise e de sua pureza, tinha encontrado uma estrutura, a Comissão de Ensino, moldada para preservá-lo e levar adiante a busca desta pureza e da excelsa formação. O modelo cunhado por Eitington, apoiado na sua admiração incondicional por Freud e suas ideias, replicava-se na constituição das Comissões de Ensino, nas quais os notáveis de cada novo grupo – os didatas – tornavam-se os portadores da verdade e os arautos da defesa da boa psicanálise, revivendo e atualizando o papel de Freud e dos cruzados do Comitê Secreto.

A Comissão de Ensino, formada pelos analistas didatas, ou por um número deles, com seus ritos secretos de avaliação e com seu poder decisório, definia a progressão dos membros e alunos em cada sociedade. Ela cuidava da evolução dos membros pelas várias categorias societárias (associado, efetivo e didata). A evolução dos alunos dependia de sua recomendação, sendo que, em vários institutos, esta era emitida após consulta ao didata responsável pela condução da análise. O que importa é que se criou uma casta dominante que, embora pudesse estar agindo na defesa do que considerava os bons princípios da"boa psicanálise" e na defesa de seu melhor desenvolvimento (e este nem sempre foi o caso) retinha um poder absoluto sobre a vida de cada sociedade reconhecida pela API.

Estavam criadas as condições para a repetição compulsiva dos embates que ocorreram na Sociedade Psicanalítica das Quartas-feiras e, posteriormente, no seio do Comitê Secreto: as lutas no interior dos grupos evidenciavam o trabalho de forças que, de dentro de cada um desses grupos, pressionavam contra a esperada integração de seus componentes e contribuíam para esgarçar as relações de companheirismo que poderiam se estabelecer entre eles. O que muitas vezes predominava era a rivalidade, ao lado de uma gana incoercível por poder, permeadas por uma turbulência emocional que os fazia reféns dos sentimentos mais primitivos despertados no convívio societário.

Essa constelação emocional e esse modelo de relação entre os membros estão presentes em muitas sociedades e grupos de estudo. E é natural que degenere em sociedades e grupos nos quais, ao invés de estimular a formação, o desenvolvimento científico, a pesquisa e a criatividade de seus membros, os mantenham nas malhas estreitas da progressão institucional, cevando a intolerância e buscando enquadrá-los numa forma opressiva. O analista didata, após sua titulação como tal, não estava submetido a nenhum controle e possuía um poder autocrático.

Estas questões ganham vulto quando voltamos nosso olhar para a formação analítica, como expusemos, em coautoria (1985) com Luiz Fernando Gallego, ainda candidatos, no X Congresso Brasileiro de Psicanálise:

"tanto o candidato quanto a instituição podem estabelecer um jogo perverso de formação/ deformação favorecedor do desenvolvimento de um"falso-self-para-a-instituição", já que ambos, o candidato e a instituição, possuem fortes tendências a usar o poder – que a instituição tem de submeter o candidato e ao qual o candidato se submeta (…) Já se os agentes institucionais são usados como espelhos que escravizam uma imagem virtual do candidato, em vez de espelharem a própria imagem real do candidato em busca de expansão, poderá ser estabelecida uma forma (/ô/) deformante ("per via di porre"), tornando-se a instituição o superego intrusivo e proibitivo ao qual o candidato se submeterá por medo, com o risco do estabelecimento de um falso self, protetor do self verdadeiro (suposto como não aceitável)".

Ora, o candidato, quando exposto a esta deturpação dos objetivos da formação, sente- se pressionado a uma exacerbação dos sentimentos de dependência e da regressão aos padrões infantis de submissão à figura entronizada no lugar da paterna, que são predominantes durante a formação.

Walderedo Oliveira (1965), no trabalho citado anteriormente, destaca:

A"iniciação" (do candidato) implica na renúncia a muitas experiências e valores de sua vida, e num esforço para se identificar com o bom que ele projeta no objeto idealizado (o grupo analítico) (…) a submissão sem restrições ao autoritarismo implica numa defesa que consiste na aceitação sem elaboração suficiente da própria maldade, numa desconfiança quanto ao amor que recebe do objeto, e numa contaminação consequente de suas próprias fontes de amor (….) Se as divergências pessoais, as rivalidades e as aspirações do analista didata não estiverem bem conscientes, poderá ele envolver o candidato em tais problemas, passando este a atuar inconscientemente como um reflexo do próprio analista, ou a ser usado para exibição do seu brilho, de suas ambições ou da qualidade do seu trabalho (…) nestes moldes, a introjeção do analista só será benéfica quando sejam elaborados os conflitos com os objetos primitivos. Do contrário a introjeção resultará apenas numa substituição da dependência original dos pais, por uma dependência nova do analista, o que prejudicará o processo de desenvolvimento e amadurecimento. A perturbação que daí resulta é clara, e as repercussões sobre a vida do grupo são as mais indesejáveis.

Como vimos, são variados os descaminhos quando nos debruçamos sobre a análise didática, o poder dos que a exercem em nossas instituições, a formação de redes transferenciais e suas consequências para as sociedades e para a Psicanálise.

A formação analítica se configura como um ofício. O psicanalista aprende e ganha qualificação em oficinas – os institutos de formação – onde, artesanalmente, no contato com outros analistas, desenvolve sua análise pessoal, realiza seus seminários para o aprendizado teórico e técnico e tem o seu trabalho supervisionado (Amendoeira, 2001). Na análise pessoal, considerada a principal atividade formativa, a transmissão artesanal se efetiva ao se submeter a uma análise com um analista mais experiente, pois foi a maneira encontrada para o se observar fazendo, característico desta forma de aprendizado. E, apesar dos problemas que pode criar, não se conhece nenhum modelo alternativo que justifique sua abolição, o que fez com que, ao longo do tempo, várias medidas fossem adotadas, por sociedades de todas as latitudes, para enfrentar esses desvios.

Uma medida importante, já adotada na maioria das Sociedades, foi o analista didata não mais opinar sobre os seus candidatos e se eximir de participar de avaliações sobre o seu desenvolvimento.

Outra foi restringir o poder de cada um dos didatas por meio do estímulo ao aumento progressivo do número de qualificados para as funções didáticas, permitindo a não concentração de candidatos em análise com o mesmo analista e ampliando as opções dos candidatos à formação. Essa dispersão diminui a formação dos clãs transferenciais e suas consequências na vida societária, embora desperte reações apaixonadas e requeira um amadurecimento institucional para que se possa efetivar esta mudança.

A progressão do analista, entre as várias categorias existentes em cada Sociedade, costuma estar apoiada na qualidade do trabalho clínico desenvolvido, no conhecimento das teorias psicanalíticas a ser demonstrado pela capacidade de formular e comunicar ideias teóricas e no interesse pela prática da Psicanálise, geralmente baseado no tempo dedicado a essa atividade na vida profissional. Este processo se desenvolve, comumente, pela defesa de um trabalho e de um statement pessoal frente a uma banca de analistas qualificados para esta função. Aqui a deturpação pode se manifestar na apresentação dos trabalhos, exigidos para a progressão, quando eles se submetem ao pensamento dominante entre os didatas ou na Comissão de Ensino, o que acarreta o fomento do dogmatismo e inibição do pensar livre e independente. É importante ressaltar que quanto mais ampla for a Comissão de Ensino, ou o grupo equivalente, e quanto menos dirigida for a escolha dos membros da banca, mais próximos estaremos de critérios de dispersão de poder e de maior equanimidade nas avaliações.

Experiência original foi desenvolvida na Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), a Brasileira do Rio 2, também conhecida como Rio . Possuindo um corpo societário experiente e vivendo os problemas já abordados anteriormente, com a concentração de poder e uma sucessão de conflitos dentro da Comissão de Ensino, promoveu, inicialmente, uma reestruturação dessa Comissão, em 1979, com a outorga de função didática a 11 novos membros, com um prazo de um ano para que apresentassem o trabalho requerido para essa qualificação. Em 1982, foi feita uma reforma estatutária com a adoção de categoria única para os membros qualificados e a concessão da função didática, após cinco anos de qualificação como membro da Sociedade, sustentada pela indicação de dois membros e pela demonstração de participação em suas atividades científicas.

Os alunos do Instituto passaram a ser filiados como Membros Provisórios da Sociedade, o que permitiu que participassem com representantes nos vários Conselhos e em Assembleias, com algumas restrições em situações específicas. Na continuidade deste processo, em 1987, foram integrados no seu próprio processo de avaliação e tiveram a possibilidade de escolha de cursos, seminários e avaliadores, que compunham os Grupos de Acompanhamento e Avaliação Contínuos (GAACs), que tinham reuniões mensais para uma participação efetiva no acompanhamento da evolução dos alunos.

A partir de dissensões internas houve, por parte de um grupo de membros da Sociedade, pressões no sentido da API intervir para o restabelecimento de procedimentos proscritos no novo estatuto, como: o exame de trabalho de qualificação para os didatas, a separação estrita Sociedade e Instituto, a restrição da participação dos alunos às atividades científicas. Foi nomeado pela API um Comitê de Assessoramento, que teve suas funções ancoradas numa observação estreita dos parâmetros então existentes, apesar de não seguidos por todas as filiadas2, e sem atentar para a seriedade do trabalho realizado naquela sociedade para fazer frente aos problemas que estamos focalizando. Após um processo extenso e doloroso, a SBPRJ, em 1994, atendeu as recomendações da API e restabeleceu o quadro existente antes da reforma dos estatutos de 1982: restabelecimento das categorias de membros e a reinstituição de sua progressão, através de trabalho com caráter promocional, avaliado por três analistas didatas; restabelecimento das funções de avaliação, promoção, liberação para início dos casos de supervisão e término da formação analítica por um Comitê de Formação, também composto por sete didatas, e com a composição dos GAACs, no que se refere à participação dos analistas, alterada para dois didatas e um membro efetivo.

Embora se trate de experiência de uma só Sociedade, cabe ressaltar que se desperdiçou uma bela oportunidade para uma avaliação séria e consistente das mudanças introduzidas, pois o Comitê de Assessoramento não levou em consideração os vários documentos produzidos, que demonstravam os resultados e as benéficas repercussões dessas modificações para a vida societária. O questionamento de parte dos membros, que levou à nomeação do Comitê de Assessoramento, também deveria ter sido submetido ao crivo de um exame crítico que considerasse a história e a evolução da Sociedade.

Até aqui está a tradição: como se estabeleceu, como se transmitiu até os nossos dias, algumas consequências e como este percurso apoia a percepção de muitos membros sobre a API.

Em nosso meio, quando falamos da API, surgem dois grupos de ideias principais entre nossos colegas: por um lado é vista como ausente, no que diz respeito às dificuldades e necessidades de seus membros; por outro, é uma presença forte quando se ressalta sua face fiscalizadora, com uma tradição de intervenções na vida das filiadas, falhando, ao longo de sua história, no que seria sua função maior – gerar desenvolvimento científico e clínico, por meio do estímulo ao pensar livre e criativo.

A API é uma das últimas Internacionais ainda vivas, preocupada em preservar a Psicanálise e sua prática, um comprometimento de psicanalistas para psicanalistas, com gestão em franco processo de democratização, o que se constitui na correção mais precisa e pertinente para grande parte dos problemas que vislumbramos nas considerações feitas neste texto.

Por manter uma postura universalista, ao ser a única a acolher as várias escolas que surgiram com a evolução da Psicanálise, torna-se fundamental para preservar a continuidade deste desenvolvimento, pois como a formação do psicanalista não pode ter lugar na estrutura universitária, ela sustenta a condição de possibilitar a preservação e transmissão do patrimônio da Psicanálise. E isto não é pouco!

Quanto ao processo de democratização: a API era, então, exclusivamente uma associação de membros, o que implicava no fato de que as sociedades não tinham representação, nem voz. O poder conferido, pela natural dispersão das forças políticas, se concretizava no poder absoluto sobre as sociedades e seus institutos, na definição dos padrões de formação a serem seguidos.

Deste modo, grupos se formavam, independentemente de suas sociedades de origem, e apresentavam candidaturas, que tinham compromisso apenas com os grupos que os apoiassem. Um primeiro passo foi ampliar, de fato, o número de membros votantes, com a instituição do voto por correspondência, permitindo que a totalidade dos membros tomasse parte no processo de escolha (independentemente de estarem presentes ou não nos Congressos), ampliando desta forma a representatividade da direção da API.

Ao se fazer mais representativa em nível global, regional, nacional e junto a seus membros, passou a dar a eles a noção da importância e do valor de ser um de seus componentes.

Nesse processo evolutivo, o passo seguinte foi a criação da Conferência e, logo após, da Assembleia de Presidentes, como uma forma das sociedades poderem ser ouvidas por meio de seus presidentes. Como era grande o número de participantes nessas reuniões, foi criada a Casa de Delegados, na qual cada região (Europa, América Latina e América do Norte), escolheria nove presidentes como representantes dos demais.

No aprimoramento e na busca de uma nova estrutura mais ágil, chegamos ao modelo atual com a substituição do Comitê Executivo e da Casa dos Delegados por um Diretório de Representantes e por um Comitê Executivo composto pelo presidente, secretário, tesoureiro e três representantes regionais escolhidos entre os componentes do Diretório. O Diretório é composto por 21 representantes, com sete eleitos por cada uma das três regiões. Os 21 representantes, acrescidos do presidente, secretário e tesoureiro, além do representante do corpo administrativo, constituem o Board, que funciona como poder legislativo e encaminha alterações e decisões à votação pelo Business Meeting ou por voto pelo sistema de ballots, correio. Os representantes serão os porta-vozes dos anseios e necessidades das sociedades e seus membros junto a API e os emissários da API no retorno e correspondência destes anseios.

Esta estrutura é fruto de anos de reflexões, mas não nos esqueçamos de que a estabilidade e o desenvolvimento de uma instituição estão na dependência direta do grau de participação e consequente representatividade de seus membros nas várias esferas decisórias.

É natural, neste quadro de possibilidades, que ao delegarmos maiores poderes às sociedades e à organização mais ágil e democrática das federações regionais, estas possam manter, consistente e continuamente, a defesa dos interesses e dos pleitos que são caros a cada região.

A troca permanente entre a API e as regiões é necessária, incluindo um contato mais direto com as Sociedades e seus membros. O movimento de democratização pressupõe descentralização, com novas possibilidades científicas, pela facilidade de empreender novas atividades e aproximar pensadores, convergindo para trocas mais amplas, em nível inter-regional.

O complemento natural destas ações é a ampliação da inserção e a efetiva participação da API nas questões de nosso tempo, rompendo o seu tradicional isolamento. Necessitamos de posturas mais ativas que levem nossas opiniões fundamentadas aos fóruns de discussões qualificados.

Na esfera do desenvolvimento científico, vivemos uma era de pluralismo teórico e não podemos mais acreditar que exista uma única versão de verdade psicanalítica. Não podemos manter nossas práticas em isolamento esplêndido do restante do mundo psicanalítico. Precisamos de um esforço conjunto para estimular e fazer realizar as trocas com os colegas de culturas diferentes. Neste contexto é de fundamental importância o programa CAPSA (The Analytic Practice and Scientific Activities Committee) da API, que tem proporcionado às filiadas o contato com colegas de outros países, outras regiões e outras escolas de pensamento psicanalítico; não se trata de um programa de troca de excelências, embora também as ofereça, mas de uma tentativa de fazer circular o que de plural, em termos teóricos e clínicos, faz parte do acervo dos analistas filiados à nossa API.

Essa tarefa é complementada pelas publicações disponibilizadas e pela realização de nossos Congressos, que têm reunido um número significativo de colegas interessados no desenvolvimento da Psicanálise que praticamos.

Para finalizar, é importante frisar que, mais do que nunca, a API somos nós – psicanalistas filiados –, pois agora podemos fazer nossas vozes serem ouvidas e, desta forma, interagir nas questões que nos dizem respeito.

Nossa identidade como psicanalistas demanda um trabalho contínuo, a partir de nossas escolhas e de nosso envolvimento num processo interminável, que teve início com nossa análise pessoal, nossos estudos e nossas supervisões, e nos inseriu num universo novo que, no mais comum das vezes, nos enriqueceu como seres humanos e ampliou nossa capacidade de compreender e perceber o mundo que nos cerca. Ela exige que cada um de nós preserve o encantamento e a paixão que nos guiaram quando fizemos a escolha deste caminho.

 

 

Referências

Amendoeira, W. (2001). O futuro da psicanálise em questão. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, Primeiro Caderno, 10/4/2001, p. 7         [ Links ]

Amendoeira, W. & Gallego Soares, L. F. (1985). Formação: Forma ou Forma (/ô/), X Congresso Brasileiro de Psicanálise, 1985.         [ Links ]

Grosskurth, Phyllis (1992). O círculo secreto. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Oliveira, Walderedo (1965). Relações entre analistas. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 14(3), p. 180 e 185, 1965.         [ Links ]

 

Material de Referência

The Origin and Development of the IPA, Adapted from an article by William H. Gillespie, 1982. Disponível em: www.ipa.org.uk. Acesso em 22/09/09.

Requirements for the Appointment of Training Analysts and Interim Training Analysts, International Psychoanalytical Association. Disponível em: www.ipa.org.uk. Acesso em 22/09/09.

D'Abreu, Aloysio. A nova estrutura administrativa da IPA, documento de trabalho apresentado no Board da API.

 

 

Endereço para correspondência
Wilson Amendoeira
[Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ]
Rua Ataulfo de Paiva, 135/1213 – Leblon
22440-030 Rio de Janeiro, RJ
e-mail: amendoeira@globo.com

 

Recebido em 20.11.2009,
aceito em 4.12.2009

 

 

1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ. Representante no Board da International PsychoAnalytical Association, um dos eleitos da América Latina.
2 No modelo francês de formação, não existe a distinção"análise didática" e"analista didata", pois a análise, dos alunos do Instituto, pode ser conduzida por qualquer analista que seja membro da API (International Psychoanalytical Association – Requirements For Qualification And Admission To Membership)

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