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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.4 São Paulo  2009

 

ARTIGOS

 

Notas sobre o conceito de splitting (Spaltung) à luz de questões de tradução1

 

Notas sobre el concepto de splitting (Spaltung) en razón de problemas de traducción

 

Notes on the concept of splitting (Spaltung) under the light of problems coming from translation

 

 

Elsa Vera Kunze Post Susemihl2

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Departamento de Psicanálise da Criança, Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir da observação da dificuldade existente na discussão clínica e teórica em torno da ideia de splitting (Spaltung), também atribuída a uma imprecisão nas diferentes traduções (alemão, inglês, português), a autora faz um rastreamento resumido da origem e do desenvolvimento do conceito de splitting (Spaltung) em Freud, Klein e Bion, tentando destacar sua continuidade e descontinuidade nas concepções desses autores à luz de comentários sobre algumas traduções.

Palavras-chave: splitting; cisão; divisão; dissociação; clivagem; renegação; recalque.


RESUMEN

A partir de la observación de la dificultad en la discusión clínica y teórica alrededor de la idea de splitting (Spaltung), también atribuída a una falta de precisión en las diferentes traducciones (alemán, ingles, portugues), la autora hace un rastreamiento resumido del origen y del desenvolvimiento del concepto de splitting (Spaltung) en Freud, Klein y Bion, intentando destacar su continuidade y descontinuidade en las concepciones de los autores, baseandose en observaciones sobre algunas traducciones.

Palabras clave: splitting; escision; dissociación; clivagen; renegación; repression.


ABSTRACT

Basing on the observation of the persistent difficulty in the clinical and theoretical discussion regarding the idea of splitting (Spaltung), which is here also attributed to imprecision noticed in the translations (German, English and Portuguese), the author attempts to trace briefly the origins and the development of the concept of splitting in Freud, Klein and Bion, trying to highlight the continuity and discontinuity of this concept in the work of these authors in the light of commentaries on some translations.

Keywords: splitting; dissociation; cleavage; denial; repression.


 

 

Spaltung, Dissoziation, Zerlegung, scotomization, dissociation, splitting, cleavage, to split up, divisão, separação, cisão, dissociação, clivagem, escotomização etc…

O tema deste trabalho origina-se da dificuldade que observo na discussão teórica do nosso trabalho clínico, dificuldade intrínseca ao nosso objeto de conhecimento, por coincidir com o sujeito do conhecimento, também a mente. Objeto de conhecimento vivo que pouco se adequa a padrões científicos mais rigorosamente definidos para as ciências naturais. Estas questões epistemológicas são muito complexas e vão além do escopo deste trabalho. Acresce-se a elas ainda o problema da imprecisão nas diferentes traduções de certos conceitos levando a uma confusão de nomes e fenômenos clínicos a eles associados. Penso ser uma situação de pouca ajuda ao desenvolvimento do nosso campo de investigação e da nossa clínica. Neste sentido, procuro contribuir com alguns elementos que possam elucidar essa situação em relação ao conceito de splitting (Spaltung). Faço um rastreamento da origem do conceito em Freud, seguindo o seu desenvolvimento em Klein e Bion, acompanhando neste percurso algumas traduções para o inglês e português. Não se trata de uma pesquisa exaustiva, mas antes, de um trabalho indicativo de alguns problemas nesta área e de eventuais elucidações pontuais.

 

1. Freud – die Spaltung

Já nos "Estudos sobre a histeria", Freud (1893/1996) observa um fenômeno clínico sobre o qual nunca mais deixará de refletir. Tentarei trilhar por algumas elaborações sobre este splitting, em alemão Spaltung, que foi inicialmente apresentado no texto "Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar":

… a recordação de um trauma psíquico que produza efeitos [histéricos] não é encontrada na memória normal do paciente, mas sim na memória que se presta à hipnose. Quanto mais nos debruçávamos sobre estes fenômenos, mais nos convencíamos de que esta divisão da consciência (Bewusstseinsspaltung), tão marcante nos casos clássicos e conhecida como "double conscience", existe de forma rudimentar em qualquer histeria, e de que a tendência para esta dissociação (Dissoziation) e assim para o aparecimento de estados anormais de consciência, resumidos por nós sob o nome de estados "hipnoides", é um fenômeno básico deste tipo de neurose. (p. 47-48)3

A seguir, Freud apresenta uma descrição muito precisa desse fenômeno, que ocorre em um estado mental chamado de "hipnoide": Por mais diferentes que possam parecer, estes estados hipnoides têm um ponto em comum entre si e com a hipnose, a saber, que as representações que neles surgem são muito intensas, mas permanecem isoladas, impedidas de um trânsito associativo com o restante dos conteúdos da consciência. (idem) A seguir, em "As neuropsicoses de defesa", Freud (1894/1996) retoma a questão da Spaltung da consciência nos estados hipnoides. Mostra que a Spaltung do conteúdo da consciência na histeria é um ato de vontade do doente, que deseja afastar determinados conteúdos desagradáveis da consciência, tendo como resultado desta defesa a Spaltung da consciência (p. 54). Freud comenta que esse mecanismo de defesa entra em ação quando a pessoa se vê incapaz de resolver, por meio de uma atividade do pensar, a contradição que se estabelece entre uma representação insuportável e o seu Eu. Ele já descreve com bastante minúcia o mecanismo da conversão e do recalque, mostrando como a representação é separada da sua quantidade de afeto e os diferentes caminhos que seguem. Refere-se a uma Spaltung na consciência (Bewusstseinsspaltung), no caso do recalque, mas lhe dá um novo sentido. Existe agora a possibilidade de acesso a esta parte que se encontra separada pela Spaltung, em função do processo de deslocamento do afeto para uma outra representação ligada à original por uma cadeia associativa. Houve um deslizamento no sentido da Spaltung anterior, no qual não havia trânsito possível, e a menção ao fato de que a Spaltung pode ser de graus variados.

Vale ressaltar que a Spaltung é da consciência e não do Eu. Ainda é importante que o que caracteriza a histeria é a tendência à conversão e não à Spaltung, que é uma decorrência desta e se dá por fenômenos econômicos.

No final deste texto, Freud comenta a psicose, descrevendo uma forma de defesa bem mais "enérgica e bem-sucedida", que consiste não mais em uma simples separação entre a representação insuportável e o seu afeto, mas em uma rejeição (verwirft) tanto da representação quanto do afeto, levando o Eu a se comportar como se a representação nunca tivesse aparecido no Eu (p. 64). Essa observação estimula Freud até o fim, sendo que ele procura incessantemente dar-lhe contornos metapsicológicos mais precisos, sempre se manifestando insatisfeito com o resultado alcançado e deixando claro até os últimos escritos que muito ainda precisava ser elucidado sobre essa questão. Interessante notar que Freud não menciona a Spaltung no contexto da psicose.

Resumo os seguintes pontos iniciais:

Spaltung é examinada inicialmente na histeria;

Spaltung e dissociação são usadas indiscriminadamente como sinônimos;

• deslizamento de sentido de uma Spaltung em partes sem trânsito associativo possível entre elas para uma Spaltung em que existe uma possibilidade de alcançar uma parte a partir de outra por meio de uma cadeia associativa;

• desde o início a Spaltung é o resultado de um mecanismo de defesa: o recalque;

• estamos aqui falando da Spaltung da consciência e não do Eu.

Em "Cinco lições de psicanálise", Freud (1909/1996) resume os seus achados à luz de uma teoria metapsicológica mais elaborada. Usa dissociação histérica e Spaltung da consciência histérica (hysterische Dissoziation, hysterische Bewusstseinsspaltung) ainda como sinônimos e sustenta que esta Spaltung decorre do conflito dinâmico de forças psíquicas em oposição. Freud esclarece que, nos neuróticos, o recalque da ideia ligada a um desejo insuportável fracassou, malogrou. O impulso do desejo permanece atuante no inconsciente e procura por uma oportunidade para ser ativado, o que será possível por meio de uma formação substituta para a representação recalcada, na qual o recalcado não mais pode ser reconhecido e assim é aceito na consciência. Esta formação substituta será o sintoma (p. 42). Agora um acesso ao inconsciente recalcado é possível, pois o sintoma guarda uma relação associativa com esse material. Um resumo dessas ideias também se encontra no texto "A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão" (1910/1996):

Se um grupo de representações permanece no inconsciente, isto não é atribuído a uma incapacidade constitucional para a síntese [Janet] que se revela por meio desta dissociação (Dissoziation). Ao contrário, a psicanálise sustenta que é a oposição ativa advinda de outro grupo de representações que terá originado o isolamento e a inconsciência daquele primeiro grupo. Chama-se de recalque o processo que leva um grupo a ter tal destino, sendo que este recalque é análogo àquilo que no campo do pensamento lógico seria uma condenação por juízo. A psicanálise mostra que estes recalques desempenham um papel extremamente importante na nossa vida psíquica, e mais, que eles frequentemente podem fracassar, e que o fracasso do recalque será uma precondição para a formação do sintoma. (p. 222-223)

Anos mais tarde (1916/2006), Freud descreverá na melancolia um Eu dividido, partido em dois pedaços, um em luta contra o outro. Uma das partes do Eu foi modificada pela introjeção, que incluiu o objeto perdido no seu interior, e a outra parte, que se comporta de maneira cruel, contém a consciência moral – uma instância crítica do Eu (p. 99-122). A seguir, no texto "O Eu e o Id" (1923/2007) detalha o desenvolvimento do aparelho psíquico e a diferenciação da instância psíquica do Superego. A questão da Spaltung será então revisitada nesta nova configuração do aparelho psíquico nos anos seguintes.

Em "Neurose e psicose", Freud (1924/2007) apresenta sua compreensão dinâmica do que acontece nesses dois casos a partir da reformulação do modelo de funcionamento psíquico. N este, supõe três instâncias psíquicas com limites entre si, em certas áreas bastante nítidos e, em outras, nem tanto. N o caso do adoecimento psíquico, a diferenciação é sempre mais acentuada. Apresenta uma fórmula simples sobre a diferença genética entre a neurose e a psicose, a primeira seria o resultado de um conflito entre o Eu e o Id, já a psicose seria o resultado de uma perturbação nas relações que o Eu mantém com o mundo externo (p. 95). Ao final do texto Freud comenta que o conflito entre essas instâncias psíquicas sempre está presente e que se abre aqui um campo para investigar em que condições o Eu muitas vezes não consegue escapar a esses conflitos e adoece. Segue então:

Penso que este é um campo de pesquisa ainda novo e que, seguramente, os mais diferentes fatores terão de ser considerados. Dois deles já podem ser destacados de imediato. Primeiro, o resultado depende, sem dúvida, da configuração da economia psíquica, isto é, das proporções relativas entre os diversos esforços e empenhos (Strebungen) que estão em conflito entre si. E, segundo, o Eu pode evitar a ruptura de qualquer um dos lados deformando-se. Eventualmente, até o ponto em que abra mão de sua unidade e se fragmente ou cinda (zerkluft oder zerteilt). Assim, do mesmo modo como, através da adoção de perversões sexuais, as pessoas puderam prescindir do recalque, também por meio dessas deformações as inconsequências, as excentricidades e as loucuras das pessoas vêm à luz. (p. 98)

Após algumas décadas, Freud se volta novamente para o problema Spaltung, agora do Eu e de sua alteração. A clínica se transformou diante de toda a experiência acumulada, assim como a teorização alcançou abstração e complexidade profundas. Freud retoma o fio da meada no texto "O fetichismo" (1927/2007), no qual apresenta uma observação interessante quando descreve uma situação na vida mental, em que:

… duas atitudes, uma que se ajustava ao desejo, e outra que se ajustava à realidade, coexistiam lado a lado, em um desses meus dois casos [mencionados anteriormente] essa divisão (Spaltung) chegou a causar uma neurose obsessiva moderada. (p. 165)

Supõe que, caso se tratasse de uma psicose, uma destas correntes – aquela que estaria ajustada à realidade – estaria ausente. O que estaria em jogo aqui seria a renegação (Verleugnung) de uma percepção da realidade, no caso do fetichismo a ausência do pênis na mulher. Freud sublinha que a renegação pressupõe uma percepção inicial, que é renegada a seguir por ser insuportável, dando origem a duas correntes psíquicas coexistentes, aquela que percebe e aquela que renega, que tem no fetiche seu compromisso.

O tema volta em "Uma cisão do Eu no processo de defesa" (1937[1940]/2007). Freud mostra ali como, diante de um conflito entre as demandas do Id e as exigências da realidade externa, o Eu desenvolve uma solução bastante engenhosa. Por um lado, rechaça a realidade e rejeita qualquer proibição e, por outro, reconhece o perigo que emana da realidade, acata dentro de si esse medo como um sintoma e, mais adiante, tenta lidar com ele.

Ambas as partes em disputa recebem seu quinhão: permite-se à pulsão obter a satisfação almejada e, ao mesmo tempo, tributa-se à realidade o respeito necessário. (p. 174)

 

E adiante:

Esse resultado tão bem-sucedido só foi alcançado ao preço de um rompimento na tessitura do Eu, o qual não mais cicatriza, ao contrário, só aumenta à medida que o tempo passa. Assim, as duas reações opostas com as quais o Eu respondeu ao conflito passam a subsistir como núcleo de uma cisão (Spaltung) no Eu. (idem)

O mecanismo de defesa psíquico em andamento é o da renegação (Verleugnung), cuja descrição supõe uma percepção da realidade e uma imediata renegação da mesma, dando origem, desta forma, a uma alteração do Eu que seria a cisão-Spaltung. A formação do fetiche seria um compromisso que condensaria no próprio fetiche as duas atitudes do Eu cindido. No fetiche existe um reconhecimento da ausência do pênis, logo renegado com ajuda do fetiche, que é colocado no lugar da falta. Poderíamos pensar que na psicose talvez se alucinasse um pênis, isto é, se reconstruiria uma realidade a partir do desejo interno. No fetiche a realidade é tolerada o bastante para não psicotizar, mas ela é sim renegada e, por um deslocamento de significados, a falta é preenchida por um fetiche e assim é satisfeita a necessidade de se acreditar na presença do pênis, ali onde sabe-se que ele não se encontra. Em resumo, é destacado aqui como diante de um mecanismo de defesa – como o da renegação de uma percepção da realidade – ocorre uma alteração no Eu, no caso, uma Spaltung-cisão. E, ainda, que uma cisão comporta diferentes relações com a realidade simultaneamente, e diferentes arranjos intrapsíquicos com relação às diferentes tendências.

Porém, em um texto publicado postumamente, em um último grande esforço de Freud de sistematizar suas descobertas, em "Esboço de psicanálise" (1938[1940]/1996), Freud retoma esse grande e inconcluso assunto, estendendo sua abrangência e relativizando sua especificidade. Afirma que a cisão do Eu não é algo que ocorre especificamente no fetichismo, mas também nos processos psicóticos e nos neuróticos. Apresenta uma observação clínica muito fina, quando refere que ouviu de certos pacientes psicóticos o relato, após a crise que mesmo quando estavam em plena crise: "em algum canto de sua mente existe uma pessoa normal escondida" (p. 215) que observava passivamente o transcorrer de todo tumulto da doença, ideia desenvolvida por Bion (1967) mais tarde. Na psicose o desprendimento da realidade por parte do Eu não é total, levando à ideia que estaria ocorrendo uma Spaltung-cisão no Eu.

Freud mostra então que a Spaltung do Eu não pode ser considerada um mecanismo próprio unicamente da psicose, pelo contrário, está presente no fetichismo e na neurose. A cisão no Eu é decorrência da renegação (Verleugnung) de uma percepção da realidade, cujo complemento é o seu reconhecimento, levando a duas atitudes opostas e independentes que constituem a base da cisão do Eu. Diante destas duas possibilidades, o recalque e a renegação, Freud, ao final, afirma que em ambas existem duas atitudes diferentes no mundo mental convivendo lado a lado. N a neurose, uma delas faz parte do Eu e a outra, em sua oposição, está recalcada no Id. Ressalta então que a diferença essencial da cisão no Eu em ambos os casos, recalque e renegação, encontra-se em uma questão tópica ou estrutural, isto é, se o Eu vai recalcar uma parte do seu mundo pulsional interno, ou se vai renegar uma parte da sua percepção do mundo externo, sendo que nunca o resultado será completo, acabado, perfeito, sempre resultarão duas atitudes psíquicas contrárias, sendo que mesmo a subjacente e mais fraca sempre terá extensões psíquicas, ou seja, sempre haverá alguma Spaltung-cisão no Eu.

Temos então agora:

• o Eu dividido na melancolia;

• o Eu fragmentado e cindido na sua unidade diante dos conflitos econômicos psíquicos;

• a Spaltung na perversão – duas atitudes psíquicas diferentes em relação à realidade coexistindo;

• a Spaltung – uma alteração no Eu resultante de um processo de defesa, a renegação;

• ampliando a ideia da Spaltung no fetichismo agora para a psicose e a neurose – a diferença na Spaltung do Eu nestes diferentes casos seria estrutural ou tópica.

 

2. Klein – splitting e cleavage

No meu rastreamento da obra de Klein, achei a primeira referência a splitting up no texto "Personification in the play of children" (1929, p. 205), originalmente escrito em alemão. A palavra ali utilizada foi Zerlegung que poderia ser traduzida de maneira mais geral por "decomposição, análise, desmontar", mas que se insere facilmente na série "dissociação, separação, cisão, fissão" com conotações mais ou menos particulares para os diferentes contextos. Na tradução consultada para o português a palavra usada foi dissociação (p. 277). Petot (1979/1991) sublinha que Zerlegung implica uma noção de desarticulação não destrutiva do todo, que se efetua segundo as linhas naturais de separação das partes, deixando a possibilidade de se reconstituir o conjunto – por recomposição, síntese ou remontagem. Klein descreve as etapas intermediárias de desenvolvimento do Superego, desde identificações ameaçadoras e distantes da realidade até aquelas mais próximas à realidade. O Eu exerce sua função de síntese, buscando integrar as diferentes identificações, as imagens ou os objetos que surgem na etapa pré-genital, e que são ambivalentes e contraditórios entre si. Quanto mais ambivalentes, mais difícil será para o Eu promover esta síntese, o que, por sua vez, se expressa por angústia, instabilidade e relacionamento prejudicado com a realidade, conforme se encontra nas crianças neuróticas. A decomposição nas identificações originais, pré-genitais, e sua projeção são fatores básicos para colocar em movimento o jogo de personificação de papéis.

Mais adiante, Klein analisa o jogo da criança normal, neurótica e psicótica. A leitora atenta de Freud (1924) cita o compromisso alcançado pela criança neurótica na sua relação com a realidade, que é em parte reconhecida, ainda que de uma maneira bastante restrita e distorcida, e é em parte renegada (verleugnet, denied, negada). Já a criança psicótica apresenta um isolamento e uma negação (Negierung, negação) da realidade associada a uma inibição da fantasia e uma dificuldade de brincar propriamente (p. 279).

Entendo, assim, que esse mecanismo de decomposição, split-up, descrito aqui por Klein, é próprio do desenvolvimento e mostra como um Eu sedento por síntese lida com um mundo interno em tensão. Não se trata de uma defesa psicótica, que aqui é pensada em torno da relação da criança com a realidade. Penso que a tradução de Zerlegung no alemão por splitting up no inglês e dissociação no português pode levar a uma ideia falsa de que o mecanismo psíquico presente na personificação, descrito aqui por Klein, tenha implicações psicopatológicas, ideia que não vejo implícita ali.

Resumindo temos:

splitting up se opõe aos processos de integração ou síntese do Eu, desta forma decompondo partes;

• a psicose é examinada por meio da relação estabelecida com a realidade, ou seja, da sua renegação.

Em "Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos" Klein (1934/1981) cita a "escotomização"4 (p. 356) como uma das defesas mais primitivas contra a ameaça de perseguição interna ou externa, sendo esta, nas suas palavras, a renegação da realidade psíquica que pode resultar em uma considerável restrição dos mecanismos de introjeção e projeção e na renegação da realidade externa, formando a base para as mais severas psicoses.

Klein mostra também a necessidade de se manter os objeto bons e amados separados dos maus e perseguidores e em uma nota de rodapé (p. 363) explica que, pelo processo de unificação e separação (splitting up – cisão na tradução) dos objetos bom e o mau, fantasiado e real, externo e interno, o Eu busca seu caminho em direção a uma concepção mais realista tanto dos objetos internos quanto dos externos, obtendo assim uma relação mais satisfatória com ambos. Essa mesma ideia é expressa também explicitamente em um dos parágrafos finais do texto (p. 387), mostrando que a cada síntese ou unificação se segue outro splitting, que aqui é traduzido por divisão.

Apesar da mesma ideia agora ter sido apresentada com a palavra splitting, penso que Klein ainda lida com o mesmo campo de fenômenos psíquicos apresentados anteriormente no texto sobre a personificação, mesmo que com uma elaboração teórica mais refinada. Ela apresenta divisões ou decomposições que fazem parte do processo natural de desenvolvimento, mesmo que se configurem como mecanismo de defesa que o Eu tem à disposição e dos quais faz uso intensamente para se defender de angústia e medo avassalador. Penso que a autora ressalta, desta forma, o ambiente altamente dinâmico do mundo interno, de composições e decomposições, no seu caminho de desenvolvimento. A esfera do patológico neste momento está sendo examinada pela relação do Eu com a realidade. Neste sentido pode haver uma aproximação sucessiva dessas divisões e integrações na direção de objetos mais próximos ou mais de acordo com a realidade, por um lado, ou esse processo se opõe à realidade, interna ou externa, que dessa forma precisa ser renegada (denied).

Em "As relações entre a neurose obsessiva com os estágios iniciais do superego" (1932/1997, p. 173) Klein explicita a ideia de que o splitting em uma imagem de mãe má e outra de mãe boa permite à criança se voltar aos objetos, dominando sua ansiedade. Segue dizendo que esse tipo de ambivalência, mãe boa-mãe má, indica um passo no desenvolvimento das relações objetais e ajuda a criança a modificar seu medo do Superego.

Em outro texto "Estágios iniciais do conflito edipiano e da formação do superego" (1932/1997), em nota de rodapé (p. 148), Klein menciona um split do Id (aqui traduzido por cisão), levantando a hipótese de que poderia se tratar do recalque primário citado por Freud em "Inibição, sintoma e angústia" (1926/1996). Esse processo seria uma maneira que o Eu teria para lidar com os impulsos destrutivos restantes no organismo, neste caso mobilizando uma parte desses impulsos para se defender de outra parte deles. Assim, o Id sofre um split que é considerado pela autora um primeiro passo na inibição pulsional e na formação do Superego. Parece que Klein não retoma explicitamente este assunto, mas penso que de alguma forma pode estar relacionado com aquilo que inicialmente ela descrevia como deflexão das pulsões, separando amor de ódio, eventualmente aqui de uma forma mais ativa como uma defesa.

Em "Notas sobre alguns mecanismos esquizoides" (1946/1978), Klein sistematiza suas ideias e estabelece a posição esquizoparanoide, vinculando os processos de splitting, renegação onipotente (denial) e idealização em uma configuração psíquica. N sse texto, Klein vai além da ideia de splitting como uma defesa do Eu contra as ansiedades provindas do sadismo e dos impulsos destrutivos e que têm uma função no desenvolvimento. Enumera uma série de situações em que o splitting assume características relacionadas a perturbações e patologias. Observa, ainda, que parte da pulsão destrutiva, que não foi defletida para fora, permanece na mente e pode levar à ansiedade de vir a ser destruído por dentro, fazendo o Eu perder sua coesão, fragmentando-se. Pergunta-se se esse resultado não se deve a um splitting ativo que, além de incidir sobre o objeto e a relação com o objeto, também incide sobre o Eu. De qualquer forma, acredita que este processo esteja na base dos processos psicóticos. Assim, em momentos de grande ansiedade, o bebê pode fantasiar que colocou o seio em pedaços para dentro de si e, neste caso, além da separação entre seio bom e seio mau, o seio frustrante é sentido como se estivesse em pedaços, colocando em risco o próprio seio bom. Ainda, se a ansiedade for muito grande, a separação entre seio bom e seio mau pode ser muito acentuada, o splitting pode se tornar excessivo, criando um seio ideal e um seio altamente persecutório; a esta situação chama de cleavage ou clivagem, traduzido por cisão (p. 321). A idealização pode ser tão grande que leva a uma renegação onipotente tanto do seio persecutório quanto da realidade interna e externa. E aqui Klein menciona algo muito importante e esclarecedor:

… nesta fase primitiva, splitting, onipotência e renegação têm um papel semelhante ao que o recalque tem em um momento posterior do desenvolvimento do Eu. (p. 321)

Klein segue no texto mostrando as particularidades das diferentes constelações quando o splitting excessivo leva a perturbações no desenvolvimento.

Caso os estados de splitting e logo de desintegração, que o Eu não consegue superar, ocorrerem com frequência alta demais e permanecerem por tempo demais, eles então, do meu ponto de vista, devem ser compreendidos como sinal de esquizofrenia na criança… (p. 324)

Klein ainda menciona um splitting excessivo que está na base do mecanismo de identificação projetiva. Em resumo, apresenta um splitting com uma ampla extensão e variedade: como splitting dos objetos internos, externos, das emoções e do próprio Eu, como mecanismo próprio do desenvolvimento normal, mas que ao mesmo tempo também está na base dos processos psicóticos. E, sobretudo, apresenta a ideia de splitting ativo, já não mais o resultado de um mecanismo de defesa, mas ele sim uma defesa.

De acordo com as notas explanatórias do vol. III das obras completas de Klein (1975/1993), ela ainda acrescenta duas coisas a esses achados. Descreve então um splitting característico da fase depressiva, onde o splitting se dá como defesa contra ansiedade depressiva, isto é, quando o Eu faz um split entre objetos vivos e não estragados e objetos mortos e estragados (cap. 6, Algumas conclusões teóricas relativas à vida emocional do bebê, de 1952). Ainda no cap. 11 (em Sobre o desenvolvimento do funcionamento mental, de1958), apresenta uma mudança no seu enfoque acrescentando ao splitting entre Eu e Superego um novo splitting estrutural na mente, uma área splitt-off no profundo inconsciente que contém as figuras mais primitivas e aterrorizadoras.

Resumindo:

• escotomização – renegação da realidade psíquica – defesa

• primitiva contra ameaça de perseguição interna ou externa;

splitting entre objetos bons e maus, ainda ligado ao desenvolvimento psíquico e um recurso do Eu para lidar com seus impulsos destrutivos;

splitting como mecanismo de defesa integrante da fase esquizoparanoide;

• investigação das situações em que o splitting pode levar a perturbações e patologias – por exemplo, o splitting excessivo levando a uma cleavage ou a fragmentação.

Encerro aqui este rápido percurso por Klein, na certeza de que muito haveria para ser destacado, mas penso que pude esclarecer que o splitting é uma palavra que tem uma ampla conotação. Por um lado, aponta para processos maturacionais próprios do desenvolvimento e, por outro, indica processos que desde cedo trazem sua tendência para um funcionamento psicótico que, caso não possa ser revertido, acaba se instalando como funcionamento preponderante da mente.

 

3. Bion – ainda splittings

No seu livro Second thoughts (1967) Bion reúne em alguns capítulos ideias muito elucidativas para o tema aqui discutido. Comentarei algumas delas.

A partir de sua clínica com psicóticos, Bion mostra como o mecanismo de splitting pode se dar na comunicação e na relação analítica, quando a linguagem é utilizada como um modo de ação. As palavras são usadas como coisas ou partes "split-off" de sua personalidade. O objeto também pode ser cindido (split), identificando o analista com o objeto persecutório ou, ainda, tentando cindir (split) o próprio analista evocando nele simultaneamente demandas opostas e contraditórias. Bion demonstra como um splitting excessivo, tal como descrito por Klein, pode incidir sobre a aquisição da linguagem simbólica, impossibilitando a simbolização e a abstração. O paciente sente então que o splitting destrói a capacidade de pensar. Referindo-se à posição esquizoparanoide de Klein, e às fantasias de ataques sádicos ao seio, Bion apresenta a ideia de que ataques, similares àqueles, são perpetrados pelo psicótico agora contra o aparelho de percepção desde o início da vida. Descreve que essa parte da personalidade é então cindida (split) em diminutos fragmentos e expelida por meio de identificação projetiva, levando o paciente a atingir um estado no qual sente nem estar vivo nem morto. Seria o splitting excessivo incidindo sobre o aparelho perceptivo, criando uma situação em que o paciente se vê aprisionado em um mundo rodeado de objetos bizarros. A situação presente é descrita como uma incapacidade de introjeção.

Bion retoma Freud, propondo duas modificações com relação ao seu texto de 1924 "Neurose e psicose". Sustenta que o Eu nunca se desvia totalmente da realidade, nem na psicose, ao contrário:

Diria que o contato com a realidade é mascarado pelo domínio, na mente e no comportamento do paciente, de uma fantasia onipotente que tem a intenção de destruir tanto a realidade quanto a capacidade de estar consciente dela, e assim atingir um estado que não é nem vida nem morte. (p. 46)

Acrescenta a essa modificação mais uma, sustentando que o afastamento da realidade na verdade é uma ilusão, e não um fato, que surge do emprego da identificação projetiva contra o aparelho mental. O paciente então se comporta como se o seu aparelho perceptivo tivesse sido split em fragmentos diminutos e projetado nos seus objetos. A ênfase de Bion é aqui colocada continuamente no split que o psicótico faz nos seus objetos e simultaneamente em toda aquela parte de sua personalidade que o faria ter que dar atenção à realidade por ele odiada, fragmentando tudo em partículas mínimas.

Como resultado desses ataques e splittings, todas aquelas partes da personalidade que um dia deveriam prover o fundamento para o pensamento intuitivo a respeito de si e dos outros ficam comprometidas logo de partida. Todas as funções que Freud descreveu como sendo, em um estágio posterior do desenvolvimento, uma resposta desenvolvida ao princípio da realidade, isto é, consciência das impressões sensoriais, atenção, memória, julgamento, pensamento, tornam-se alvo, ainda em sua forma mais incipiente que chegam a ter no início da vida, de ataques sádicos de splitting que os levam a se tornarem minimamente fragmentados e depois expelidos da personalidade para penetrar e se enquistar nos objetos. (p. 47)

Adiante lembra mais uma vez Freud, apontando que este não discrimina entre splitting e dissociação, e esclarece que usará splitting em uma concepção mais próxima à de Klein, reservando o termo dissociação para uma atividade mais benigna. Dissociação será então uma atividade da parte não psicótica da personalidade, um processo benigno, mais suave, que considera a estrutura psíquica e sua função, que possibilita a passagem para a posição depressiva, em suma, está ligada aos processos de desenvolvimento e amadurecimento da mente. Já o splitting é violento, intenciona provocar fragmentos diminutos e efetuar separações que vão diretamente contra qualquer linha natural de demarcação entre duas partes da mente ou entre duas funções (p. 69). Estas observações de Bion me parecem extremamente elucidativas para a apreensão clínica do splitting e para sua reflexão teórica.

Bion (1962) ainda contribui com a observação de uma nova classe de splitting chamado de splitting forçado. Consiste na separação da realidade material e da realidade psíquica, inicialmente no bebê, quando este por ódio, inveja e medo, todos muito violentos, destrói a sua capacidade de contato com sentimentos em geral, e com a realidade psíquica em última instância. Neste sentido, o bebê consegue usufruir do leite recebido pela mãe para sua sobrevivência física, mas renega nesta experiência a parte que sofreu o splitting e que se refere às emoções nela contidas, incluindo o amor da mãe. Poderíamos supor aqui mais um passo dado por Bion na direção apontada por Klein no splitting entre o objeto em animado-vivo e inanimado-morto. Sandler (2005) esclarece que este splitting difere daqueles apresentados por Klein que tinham como fim prevenir a depressão ou eram impelidos por impulsos sádicos.

Para finalizar, gostaria de mencionar o conceito de cesura de Bion, desenvolvido a partir de uma curta observação de Freud (1926/1996) em "Inibição, sintoma e angústia" quando se referia à continuidade existente entre a vida intrauterina e vida posterior, disfarçada pela cesura do ato de nascimento. Já na formulação de Freud está presente o paradoxo destacado por Sandler (2005, p. 97f) na cesura, o fato de este conceito realçar o corte e a continuidade em termos de um paradoxo insuperável como aquilo que define a cesura. A cesura se apresenta nos mais diferentes contextos da psicanálise e da vida, em termos de cortes e continuidades insuperáveis, trazendo paradoxos. Penso que talvez o splitting esteja vinculado a esta conceituação à medida que força uma separação, tenta manter polos opostos rigidamente separados, renegando o paradoxo.

Resumindo:

splitting atuando na capacidade de pensar e simbolizar, no aparelho de percepção, splitting ativo que leva à fragmentação;

• dissociação – funcionamento da personalidade não psicótica (mais benigno), splitting – funcionamento da personalidade psicótica provocando fragmentação;

splitting forçado entra a realidade psíquica e a realidade material.

 

4. Conclusão

Gostaria de enfatizar como conclusão deste trabalho o cuidado que necessitamos ter com os nomes que usamos em psicanálise. Pudemos observar, a partir deste rastreamento, que estes autores ao longo de suas obras e de sua clínica foram transformando o sentido daquilo que nomeavam, sendo que, como grandes autores psicanalistas que eram, puderam acompanhar com cuidado a clínica e, com mais ou menos sucesso, foram capazes de abstrair e comunicar as sucessivas experiências. N este sentido, cada um à sua maneira foi acomodando o conceito inicial nas suas elaborações e abstrações teóricas e metapsicológicas. Penso que se tivermos em mente este percurso e estas diferenças, isso pode contribuir bastante na nossa comunicação atual.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Elsa Vera Kunze Post Susemihl
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
R. Gomes de Carvalho, 892, cj. 111
04547-003 São Paulo, SP
Tel: 11 3044-6763
e-mail: esusemihl@gmail.com

 

Recebido em 5.6.2009,
aceito em 1.9.2009

 

 

1 Trabalho apresentado em reunião científica na SBPSP em março de 2009.
2
Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Membro do Departamento de Psicanálise da Criança, Instituto Sedes Sapientiae.
3
Tradução livre do texto em alemão, quando a referência em português é ESB. Apresento entre parêntese o termo em alemão e mantenho a tradução para o português da ESB da palavra Spaltung e Dissoziation.
4 De escotoma – mancha cinzenta ou escura que se estende por parte visual, por enfermidade da retina, Novo Dicionário Aurélio. Freud (1927) no texto "O fetichismo" (p.164) também se refere a uma escotomização de um fato da Realidade externa, usando-a como sinônimo de renegação da Realidade nesse texto, pertencendo a uma das correntes psíquicas no caso do fetichismo, que se opõe à outra corrente que reconhece a Realidade; sendo assim o Eu abarcaria ambas simultaneamente por meio do fetiche. A escotomização é, então, precisamente o processo de renegar ou "denial" da realidade como o diz Klein nesse texto.

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