SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45 número2SonhosSonhos índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo abr./jun. 2011

 

47º CONGRESSO DA IPA - MÉXICO PAINÉIS PRINCIPAIS

 

Sonhos

 

 

Luis J. Martin CabréI; Tradução de Claudia Berliner

IAnalista didata da Associação Psicanalítica de Madri APM

Correspondência

 

 

Qual a sua concepção sobre a função dos sonhos? Você distingue sonhos que resultam de traumas de outros tipos de sonhos?

Desde que Freud definiu o sonho, primeiro no "Projeto" (1895) e depois em "A interpretação dos sonhos" (1899), como a realização alucinatória de um desejo inconsciente recalcado, até as contribuições mais recentes das neurociências sobre a memória implícita e o denominado inconsciente não recalcado, podemos dizer que a teoria psicanalítica sobre o sonho percorreu um longo caminho cheio de transformações e desenvolvimentos.

No tocante à primeira pergunta, minha concepção da função do sonho, considero que, de um ponto de vista clínico, o sonho oferece ao analista uma dupla potencialidade. Por um lado, o sonho tem a capacidade de fornecer uma informação incomparável sobre os afetos predominantes no espaço analítico, de ser o veículo preferencial para enfrentar analiticamente o hic et nunc da relação transferencial por meio da interpretação e de ser, além disso, um auxiliar imprescindível no trabalho de construção. Por outro lado, o sonho reativa e é capaz de simbolizar emoções e traços mnêmicos antigos e "ingovernáveis", derivados de experiências, ocasionalmente traumáticas, que remontam aos primeiríssimos períodos da vida relacional e a uma fase do funcionamento mental pré-simbólico e pré-verbal, que ficam depositados na memória implícita (Coderch, 2006; Sandler, 1987; Mancia, 2004; Marucco, 2006). Nesse sentido, o sonho possibilita também um trabalho de reconstrução.

Centrando-me na segunda pergunta, diria que é claro que estabeleço uma distinção fundamental entre os sonhos que derivam de emoções e vivências traumáticas de outros tipos de sonhos. Minha contribuição vai consistir em estabelecer uma conexão teórica entre a denominada função traumatolítica do sonho proposta por Ferenczi (1931), que acompanhava toda a sua genial contribuição sobre a teoria psicanalítica do trauma, e a concepção e os desenvolvimentos atuais sobre o inconsciente não recalcado.

Em 26 de março de 1931, Ferenczi escreveu um curto trabalho intitulado "Revisão da interpretação dos sonhos",1 propondo duas questões interessantes. Em primeiro lugar, a possibilidade de atribuir ao sonho uma segunda função relacionada com as vivências traumáticas e, em segundo lugar, uma ampliação metapsicológica que incluísse os mecanismos subjacentes à patologia psicótica e ao trauma, especialmente a fragmentação e atomização da personalidade, antecipando suas conhecidas hipóteses sobre a "confusão de línguas".

Com efeito, na sua experiência analítica com pacientes muito graves, Ferenczi tinha descoberto que as divisões do eu produzidas por experiências traumáticas precoces eram mecanismos de defesa anteriores ao recalcamento e que, portanto, os pacientes que tinham sido objeto de tais vivências não ofereciam ao analista um material inconsciente das mesmas passível de ser interpretado, já que em muitos casos nunca tinham sido conscientes.

Nesse sentido, Ferenczi propunha que uma definição mais completa da função do sonho deveria incluir, além da indiscutível função de satisfação de desejos, uma segunda função, a função traumatolítica, que seria a de dissolver e desfazer as experiências e vivências traumáticas. Na opinião dele, muitos sonhos, desprovidos de representações inconscientes, não apresentariam conteúdos psíquicos ou imagens oníricas passíveis de ser interpretados e produziriam exclusivamente sensações dolorosas ou experiências de sofrimento corporal ou psíquico. O sonho, de seu ponto de vista, além de sua função de realização de desejos, teria o papel de recuperar, por meio dessas vivências sensoriais e corporais, as marcas mnêmicas de uma linguagem emudecida. Foi essa possibilidade elaborativa que Ferenczi denominou de função traumatolítica do sonho, que antecipava em alguns anos o conceito de "sonhos curativos" cunhado por Winnicott em seu conhecido texto sobre "O ódio na contratransferência"(1947/2000).

O que é realmente surpreendente é o fato de Freud já ter antecipado em parte as intuições de seu fiel discípulo em "Lembranças encobridoras (1899), "Recordar, repetir e elaborar"2 (1914) e, sobretudo, em "Além do principio do prazer"3 (1920), mas Ferenczi insistiu na necessidade de aprofundar essa hipótese, distinguindo dois momentos na função do sonho: o primário e o secundário. Enquanto o sonho secundário consiste numa tentativa de superar o trauma, introduzindo uma distorção da experiência traumática por meio de uma cisão narcísica que permita recuperar conscientemente a experiência traumática, o sonho primário, pelo contrário, inexoravelmente submetido à lei da repetição, estaria constituído por impressões sensoriais violentas, inalteráveis, inacessíveis à memória, à consciência e à lembrança e acontecidas em momentos de inconsciência e que, portanto, nunca foram objeto de recalcamento. Tratar-se-ia de uma relação direta, embora inacessível, com a cena traumática.

Muitos anos depois, os avanços das neurociências e muitas formulações psicanalíticas atuais vieram confirmar as intuições de Ferenczi, que encontraram eco em alguns dos últimos escritos de Freud, especialmente em "Construções em análise" (1937). De fato, as neurociências desenvolveram a ideia da memória como construção e não como arquivo e confirmaram as formulações de muitos autores contemporâneos de que não só existe uma memória de longo prazo, autobiográfica, explícita, acessível à consciência e à lembrança e derivada do mecanismo psíquico do recalque, mas também uma memória implícita, não recalcável, não passível de ser recordada e não verbalizável.

Desse ponto de vista, o sonho pode, por um lado, constituir uma representação de suma importância para poder captar as fantasias e as emoções que se manifestam na transferência e, por outro, oferecer elementos reconstrutivos de experiências pré-verbais e pré-simbólicas características da memória implícita depositada no inconsciente não recalcado. Em consequência, além da função tradicional do sonho de realização de desejos, a outra função do sonho seria, corroborando a hipótese de Ferenczi, criar imagens que pudessem preencher o vazio da não representação e representar simbolicamente experiências de origem pré-simbólica e de caráter traumático. A possibilidade de interpretar essas imagens e representações simbólicas favoreceria o processo reconstrutivo de que o psiquismo necessita para melhorar as próprias capacidades de mentalização e transformar em pensáveis, embora não recordáveis, experiências inicialmente nem pensáveis nem representáveis.

E esse seria o ponto de conexão entre as contribuições de Ferenczi e os desenvolvimentos atuais sobre o inconsciente não recalcado. Embora Freud tenha sido o primeiro a intuir a dimensão não recalcada do inconsciente, foram as contribuições de autores posteriores como Bleger (1998), P. Aulagnier (1975), Bollas (1987), Mancia (2004), Coderch (2006) e Marucco (2006), entre muitos outros, que desenvolveram uma profunda reflexão psicanalítica na qual a vida psíquica se configura como uma contínua transformação entre a não representação e a figurabilidade e entre o traço da memória sem lembrança e o sonho que tenta simbolizá-lo; esses autores e, de maneira particular, Cesar e Sara Botella (2001), aproximam-se da postura de Ferenczi, destacando que uma das funções mais importantes do trabalho do analista é a capacidade de "figurabilidade", instrumento de indiscutível valor para ter acesso à memória sem lembrança ou ao "inconsciente não recalcado".

 

Referências

Aulagnier, P. (1975). El proceso originario y el pictograma. In P. Aulagnier, La violencia de la interpretación. Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Bleger, J. (1998). Simbiosis y ambigüedad: estudio psicoanalítico. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

Bollas, C. (1987). La sombra del objeto. Psicoanálisis de lo sabido no pensado. Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Botella, C & Botella, S. (2001). La figurabilidad psíquica. Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Coderch, J. (2006). Pluralidad y diálogo en psicoanálisis. Barcelona: Herder.         [ Links ]

Ferenczi S. (1931). Sobre la revisión de la interpretación de los suenos. In S. Freud, Reflexiones sobre el traumatismo. Obras Completas, Tomo IV, Editorial Espasa-Calpe p. 156.         [ Links ]

Ferenczi, S. (1992). Reflexões sobre o trauma. In S. Ferenczi, Obras completas - Psicanálise. (Álvaro Cabral, trad., Claudia Berliner, rev. técnica, Vol. 4, pp. 111-115). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Ferenczi, S. (1932). Confusión de lenguas entre los adultos y el niño. In S. Ferenczi, Obras Completas, (Tomo 4) Madrid: Espasa-Calpe.         [ Links ]

Freud, S. (1895). Proyecto de psicología. In S. Freud, Obras Completas (Vol. 1). Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Freud, S. (1899). La interpretación de los suenos. In S. Freud, Obras Completas (Vol. 4). Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Freud,. (1899). Sobre los recuerdos encubridores. In S. Freud, Obras Completas (Vol. 3). Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Freud, S. (1914). Recordar, repetir y reelaborar. In S. Freud, Obras Completas (Vol. 12). Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Freud, S. (1920). Más allá del principio de placer. In S. Freud, Obras Completas (Vol. 18). Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Freud, S. (1937). Construcciones en el análisis. In S. Freud, Obras Completas (Vol. 23). Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Mancia, M. (2004). Sentire le parole. Torino: Bollati Boringhieri.         [ Links ]

Marucco, N. (2006). Actualización del concepto de trauma en la clínica psicoanalítica. Revista de Psicoanálisis, 63,9-19.         [ Links ]

Sandler, J. & Sandler, A.M. (1987). The past unconscius, the Present Unconscius and The Vicissitudes of Guilt, Int. J. Psycho-Anal., 68,331-41.         [ Links ]

Winnicott, W.D. (1947). El odio en la contratransferencia. In Escritos de pediatría y psicoanálisis. Barcelona: Laia.         [ Links ]

Winnicott, W.D. (2000). Da pediatria à psicanálise (Davy Bogomoletz, trad., pp. 277-287). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1947)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Luis J. Martín Cabré
[Associação Psicanalítica de Madri APM]
Calle de Joaquin Bau, 7, 9º andar
Madrid 28036 Espanha
Tel: 34 91 350-6620
ljmartin@telefonica.net

 

 

1 Esta reflexão faz parte do texto intitulado "Reflexões sobre o trauma" (Ferenczi, 1992). (N.T)
2 "Um tipo particular de situações que ocorreram numa época muito remota da infância não pode ser recuperado através da lembrança, mas só através do sonho..." (vol. 12, p. 149)
3 "Parece ter chegado o momento de admitir pela primeira vez uma exceção à regra de que o sonho é a realização de um desejo. Os sonhos tidos durante o tratamento psicanalítico e que reproduzem os traumas psíquicos da infância não podem ser entendidos como realização de desejos. Dessa maneira, pareceria que a função do sonho, que consiste em eliminar as causas que poderiam interromper o sono realizando os desejos das pulsões perturbadoras, não é sua função primária e originária."