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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: CORPO

 

Cuequinha de homem-aranha

 

Spiderman underpants

 

Calzoncillo de hombre-araña

 

 

Sandra Moreira de Souza Freitas

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e da diretoria do Cetec (Centro de Estudo da Teoria dos Campos)

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste relato, que privilegia as últimas sessões de um menino de quatro anos, em vias de interromper sua análise, a analista exercita os três tempos analíticos preconizados por Fabio Herrmann. No tempo longo, "A história do paciente cai como uma sombra sobre o campo transferencial" (Herrmann, 2004), condensando tal interrupção outras impossibilidades de sua curta vida, vivida intensamente. O tempo médio: jogo da transferência, da relação viva. É o tempo dos dramas transferenciais. "Você não é boa para os meus medos de cinco anos, só os de quatro", conclui o pequeno paciente, tentando entender mais uma separação na sua vida. Tempo curto "é o tempo da palavra analítica, da sessão enquanto acontecimento em si". É também o tempo da técnica - aqui, o trabalho com crianças talvez mereça uma diferenciação. A palavra analítica: poderíamos pensar em gesto justo. Nesse tempo curto, surge "a cuequinha do homem-aranha".

Palavras-chave: tempo longo; tempo médio; tempo curto; campo transferencial; gesto justo.


ABSTRACT

In this report, which focuses on the final sessions of a four year-old boy about to interrupt his analysis, the analyst employs the three analytical periods advocated by Fabio Herrmann. In the long-term, “The patient’s history falls like a shadow on the field of transference” (Herrmann, 2004), condensing within this interruption other impossibilities of his short, intensively lived life. The medium-term: the game of transference, in the living relationship. This is the period in which the dramas of transference are played out. “You are no good for my five year-old fears, only my four year old-ones”, the young patient concludes, trying to understand yet another separation in his life. Short-term “is the period of the analytical word, of the session as an event in itself ”. It is also a period for technique – here, working with children may deserve some differentiation. The analytical word: we can think of the appropriate gesture. It is in this short term that Spiderman underpants appear.

Keywords: long-term; medium-term; short-term; field of transference; appropriate gesture.


RESUMEN

En este relato, que privilegia las últimas sesiones de un niño de cuatro años, a punto de interrumpir su análisis, el analista ejercita los tres campos analíticos propuestos por Fabio Herrmann. A largo tiempo, “La historia del paciente cae como una sombra sobre el campo transferencial” (Herrmann, 2004), condensando tal interrupción otras imposibilidades de su corta vida, vivida intensamente. A medio tiempo: juego de transferencia, de la relación viva. Es el tiempo de los dramas transferenciales: “Usted no es buena para los mis miedos de cinco años, sólo para los de cuatro”, concluye el pequeño paciente, intentando entender otra separación en su vida. En corto tiempo “es el tiempo de la palabra analítica, de la sesión como un acontecimiento en sí”. Es también el tiempo de la técnica- aquí, el trabajo con niños tal vez merezca una diferenciación. La palabra analítica: podríamos pensar en gesto justo. En ese tiempo corto surge “el calzoncillo del hombre araña”.

Palabras clave: tiempo largo; tiempo medio; tiempo corto; campo transferencial; gesto justo.


 

 

 

 

Para a Teoria dos Campos,1 um processo analítico pode ser descrito pelos três tempos que ele comporta: longo, médio e curto. Três formas distintas e simultâneas, portanto, se apresentam em uma análise. Como ondas de diferentes comprimentos.

Penso que seriam como fotografias em variados ângulos e aberturas do mesmo objeto. Pode-se olhar, em perspectiva, uma panorâmica daquele caso: o tempo longo. O tempo da história da vida do paciente, projetada e condensada sobre a própria análise em forma de neurose de transferência. É o olhar para o diagnóstico transferencial, para os prognósticos, para a psicopatologia, como é entendida pela Teoria dos Campos, "...em que descreve um processo de cura e a neurose de que se está a curar, ou seja a cuidar" (Herrmann, 2002a, 2006).

O tempo médio "é ocupado pelo drama passional - não simplesmente amoroso - e seu tratamento transferencial" (Herrmann, 2001, cap. 15, p. 175). É uma foto mais próxima do paciente com seu analista, sua expressão, seus sentimentos, suas relações.

Por fim, o tempo curto, em que teríamos um zoom sobre um detalhe, uma sessão, um momento analítico.

São três relatos, três dimensões - três ondas ou andamentos diferentes da mesma análise - do processo psicanalítico.

Da mesma forma que podemos não saber que as três fotos tratam do mesmo objeto, tais os relatos de uma análise por escolas psicanalíticas diferentes. Parecem falar de outra coisa, de outro objeto. Cada escola privilegia uma forma de pensar/fotografar ou relatar o processo. Ao falar da dificuldade de encontrar um common ground entre os analistas, Fabio Herrmann assinala que sua teoria serviria no mínimo para uma aproximação nos relatos clínicos. "Os freudianos contam caso em tempo longo, os kleinianos, e muitos outros, em tempo médio, os lacanianos e, até certo ponto, os bionianos, em tempo curto. Cada qual acredita ser o seu o tempo certo da narrativa. Como se entenderão?" (Herrmann, 2002 a 2006).

No relato do processo analítico que trago a seguir, busco um exercício nesses três tempos.

 

Se eu morrer

Francisco entra para "sua última sessão".

Descobri por acaso que esta seria a última. Telefonara para a mãe do paciente para tratar de um assunto de recibo e fui disso informada: Francisco não continuaria sua análise.

A violência de tal decisão me deixou atordoada.

Sabia que com a mãe as coisas não estavam muito bem; não esperava que chegasse a tanto.

"Pelo menos ficara sabendo com antecedência", consolei-me. Dessa forma, consegui me acalmar, pensar e me recuperar para aquela "última sessão".

Nesse entremeio, faço um rápido retrospecto desses nove meses em que ele esteve comigo em análise.

Havia chegado com apenas quatro anos, mas muito vividos.

Quando Francisco tinha dois anos e oito meses, um câncer foi nele detectado, o que o levou a uma cirurgia, seguida de um ano de quimioterapia e radioterapia.

Quando me procuraram, os pais estavam mais propensos a contar de um menino muito valente, corajoso, que, para se curar, fazia tudo o que lhe mandavam.

Evitavam falar do sofrimento, da doença, da possibilidade da morte. Apressados em deixar o ruim para trás, não se referiam à doença ou mais especificamente ao câncer: diziam "o tratamento de Francisco".

Contam que, durante o tratamento, Francisco fazia muita questão de saber todos os passos de sua doença e quantas vezes submetera-se a determinados tratamentos, o que o levou a adquirir um raciocínio matemático impressionante para sua idade.

A partir daí, alguns comportamentos obsessivos e medos foram desenvolvidos. Tinha, sobretudo, medo de dormir sozinho.

Quando teve alta do tratamento médico, veio para a análise buscando tirar o medo de os bichinhos voltarem.

Esse é o medo de todos.

Se a criança não encontra ninguém capaz de ir ter com ela, se só se depara com o silêncio ou a mentira, também ela se cala. (Raumbault, 1979, p. 19)

Viera para "fazer livros sobre os bichinhos e os monstros da doença". Não queria ir embora da sessão. Seu desejo era vir mais e mais. Todos os dias, se possível.

Chegava mais cedo e invadia a sala. Ficara contentíssimo com a caixa e contou para todo mundo que tinha uma analista e sabia dos seus horários. Começamos uma análise que até então tem sido um grande caso de amor.

No começo, Francisco tinha a ideia de que teria determinado número de vezes para comparecer às sessões, tal como acontecia com as sessões de radioterapia. O tempo marcado o angustia muito.

Uma vez, quando chegou muito mais cedo, teve que esperar outro menino sair da sala para começar sua sessão. Isso o deprimiu. Ficou fazendo conjecturas de como esse outro era melhor, muito mais alto e forte que ele (o outro, na verdade, é mirradinho e menor que ele), mesmo tendo a mesma idade (ele pesquisa com a mãe do outro menino).

Francisco não brincava em serviço. Trabalhávamos muito nas sessões: fazíamos livros, costuras e bordados.

Já tínhamos uma biblioteca. Ele desenhava os livros e eu escrevia as histórias por ele ditadas sempre de polícia e monstro, depois colocávamos uma capa bem elaborada e pesquisada e em geral, costurada por mim.

Quando brincava com os brinquedos da caixa - o que no começo da análise era muito raro -, fazia umas fazendas com os bichinhos.

Ultimamente, estávamos em uma situação delicada. Francisco tornara-se muito exigente, mandão. Passava tarefas e me deixava fazê-las sozinha. "Costura": ordenava, e ia fazer outra coisa ou coisa nenhuma.

A mãe estava grávida e ele não quisera me contar, dizendo que era um assunto de mulheres. Não iria, por isso, falar nada.

No entanto, queria muito que eu fizesse uma roupa de tricô para o nenê.

Lembrando desse nosso trabalho, de todo o nosso acervo, preparo-me assim para a "última sessão".

Só se pode viver perto de outra e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. (Guimarães Rosa, 1979, p. 236)

Ao entrar, Francisco mostra um olhar decidido e, ao mesmo tempo, de pesquisador. Ao me ver, as coisas já acontecem. Francisco não está para brincadeira, mas também não está para brigas - e isso ele também encontra no meu olhar.

A sala está como sempre (incluindo os dois panos que ele havia pedido), ele examina tudo e diz, em voz baixa, mas firme:

- Vim buscar os meus livros.

Começa a examinar os livros. Um por um. Eu vou dizendo da "nossa produção". Ele enaltece seu trabalho: "Como é que um menininho fez tudo aquilo".

Vai separando, experimentando a ideia de repartir comigo, de deixar alguma coisa (dois livros são iguais: foram feitos com papel-carbono).

Em algum momento, diz que eu posso ficar com parte do material de papelaria. Um estoque:

- Quando precisar, eu venho pegar.

A ideia de ir mesmo embora está muito difícil - e fica maior à medida que o tempo da sessão vai passando. Vamos sentir saudades. Deixa coisas para eu me lembrar dele, tem medo de que eu esqueça, limpe da minha vida, como se ele nunca tivesse passado por ali. O medo do seu desaparecimento é muito forte. Ao mesmo tempo, tem medo de esquecer, de sentir saudades. Cheira uma vela perfumada que tenho no consultório.

- Na verdade, eu vou embora porque você não é boa para os meus medos de cinco anos, só os de quatro anos.

Depois da divisão dos bens, me pede para fazermos com elástico (um elástico de costura que nos acompanha esses meses) um avental: presente para o aniversário da mãe, que vai ser daqui alguns meses. Deve ser de elástico porque ela, que está grávida, vai estar com uma barriga grande. O tempo.

Quando a sessão começa chegar ao final, informa que é ele quem decidirá se volta ou não na quinta-feira, a mãe o deixara resolver.

 

Quanto dói uma saudade

Antes de ir embora, me pede mais alguns minutos.

Abre a caixa e monta uma brincadeira. Constrói um carrinho no qual coloca, em lugar de destaque no "alto", um bonequinho, além de outras pessoas, caminhões, animais abrindo um caminho para o boneco passar.

- É um príncipe? - pergunto.

Ele concorda e leva o bonequinho para um "altar" (a cadeira) e todos ficam embaixo rendendo homenagem ao príncipe.

Um príncipe que todos homenageiam, abrindo caminhos para ele passar. Penso que é um horizonte perdido. Sua majestade, o bebê - soberano e imortal -, foi destronado. Gaba-se de que pode escolher e ficar até o final do mês em análise. Mas ele não pode ficar mais. Os pais já haviam resolvido. O príncipe perde o lugar, a mãe está grávida. À medida que o campo da morte/doença foi rompido, como se representar num novo campo? Francisco, mesmo curado, tem a marca da mortalidade. Uma criança nova aponta e mantém a crença da imortalidade.

Francisco fica no ar, na expectativa de trânsito2 (Herrmann, 2008) de novas representações, novos lugares. Naquele momento, com a analista, ele pode ter um tempo a mais e, brincando, exercitar a arte de perder. Agora acompanhado.

 

Derradeiras sessões

Passamos a viver no reino da pressa. Francisco descobre que não vai dar tempo de fazer tanto em uma sessão. Resolve assim com sua mãe, que ficará até o final do mês. Quer fazer uns livros, quer que eu lhe conte uma história do esconderijo (que acabamos por descobrir ser do Ali Babá e os quarenta ladrões).

Nossa tarefa é ler algumas histórias no meu livro e depois desenharmos e escrevermos a nossa própria história.

Quer muitas coisas, temos muitas tarefas, isso o deixa angustiado. O Ali Babá já nos diz muitas coisas. Um prato cheio: casamentos, esconderijos, roubos e, especialmente, a palavra mágica: Abre-te-Sézamo.

Por que será que Francisco quer pular da janela no meu consultório, no seu último mês de análise? Estávamos nas derradeiras sessões.

- Se eu morrer, e daí? - diz Francisco, correndo de um lado para o outro da sala.

Com o coração na mão, corro atrás dele. Segurando-o pelas mãos, pelos braços, pela camiseta, por onde dá. Seguro seu corpinho de cinco anos, ágil e leve.

Primeiramente, pula em direção à janela:

- Quero ver se tem trânsito, me diz.

A mãe ainda não chegou "devido ao trânsito".

Agarro-o pela roupa. Ele ri, marotamente, e pede para abrir a persiana.

Ficamos nós dois, de joelhos no divã, olhando pela janela.

Falamos sobre os fundos dos prédios vizinhos, do nosso prédio e da entrada do shopping.

- Podia dar para entrar por trás no seu prédio.

- Podia voltar, me encontrar clandestinamente? Quando você quisesse.

Falamos das manobras e caminhos; dos playgrounds, do estacionamento e da possibilidade de voar. Olhar tudo por cima, como um avião.

Quer avançar, mas eu o estou segurando e ele não se rebela. Falo que eu sou o seu anjo da guarda.

- Então vamos, já que você sabe voar - diz Francisco, me deixando sem resposta.

- Não, senhor, sou um anjo da terra - respondo, e ele ri, entre aliviado e divertido -cuido aqui para você não sair da terra.

Saímos da janela, fecho as persianas.

Quando quer voltar, eu o seguro:

- Por que será que você quer experimentar fazer isso aqui?

Responde prontamente:

- Aqui é mais fácil abrir as suas janelas.

Falo, quase pensando alto:

- E por que, se você já sabe o que é correr o perigo de morrer daquela sua doença, daqueles bichinhos todos dos quais você sarou? Agora ainda não tá bom, não? Quer testar, ver se consegue ser mais do que o papai?

(Seu pai, quando criança, passara por uma situação de vida e morte. Situação que Francisco já havia me contado e que voltava na análise, numa espécie de competição: quem vence a morte?)

Continuo, com firmeza:

- Mas aqui você sabe que eu não vou deixar isso acontecer. Eu te quero vivo.

Nesse instante, ele avança rumo à janela. Ao segurá-lo, digo:

- Vou te amarrar com o elástico.

(Refiro-me ao elástico que temos e usamos algumas vezes.)

- Oba, bem melhor, aí eu vou e volto.

Investe novamente. Dessa vez, ao contê-lo suas calças se baixam, mostrando sua cuequinha de homem-aranha.

- Uau! Então é isso, você é o homem-aranha disfarçado de Francisco.

Dá muita risada e parece se deliciar com essa descoberta e com esse jogo - enquanto eu o segurava, para que ele não caísse e não fosse embora da vida e da análise.

- Assim, com o elástico, com as teias da aranha, você pode entrar e voltar aqui, quando você quiser... de todas as formas, com ou sem senha.

Pede para voltar à janela:

- Agora com você.

Assim, nessa análise, foi possível partilhar com o paciente a sua história. Uma evocação da história compartilhada, comemorada, como Fabio Herrmann gostava de dizer.

Agora com você, pede Francisco, vamos enfrentar os perigos e as tentações da vida.

Como bom filho - menino que tirara de letra seu tratamento -, tal como o pai, vencera a morte. Por que, então, não sossegava?

Porque não vencera completamente a morte: esta, na forma congelada, a questão recorrente. Na "companhia viva" da analista, no entanto, abre-se a mesma ao espaço dos possíveis.

O caminho da cura passa pelo reviver, pelo recordar com o coração.

Apesar de essa análise ter sido escrita nos três tempos, e de sabermos que eles se dão ao mesmo tempo como "um fenômeno ondulatório", ondas de comprimentos diferentes, ao falar do processo de cura o tempo longo se impõe.

A história do paciente cai como uma sombra sobre o campo transferencial ... a presença de sua história na história da análise que está sendo realizada. (Herrmann, 2004, p. 176)

Uma sombra agora animada, encarnada.

A análise ganha forma do destino do analisando, situação difícil de ser percebida tanto pelo paciente como pelo analista. Ou melhor, só percebida quando o analista pode diagnosticar ou ter em perspectiva um olhar sobre a paisagem.

O tempo longo é o tempo do diagnóstico, do prognóstico. O diagnóstico transferencial. É hora de, colhendo o desenho do desejo, montar o quebra-cabeça da prototeoria, a teoria sob medida para aquele paciente.

Sonia Azambuja (2009), em entrevista para o Jornal de Psicanálise, ao retomar a questão freudiana "do corpo biológico é o destino", cita Bollas, que diferencia destino de fados.

Para Bollas, os decretos, demanda familiar, integram o que ele chama de fados. Somos sujeitos a fados que podem tanto ser os nossos pais, a nossa cultura, como o próprio corpo com o qual nascemos. Isso tanto em seu todo florescer quanto em relação às doenças que fatidicamente estamos sujeitos no decorrer da vida. O destino é a maneira com a qual lidaremos com os nossos fados.3

Aproximando tal concepção ao pensamento de Herrmann, pensei que tudo isso seria uma dimensão do tempo longo e da ideia de cura. Cura que poderia ser entendida como o desfazer dos nós tecido com os fados. Seria a cura o destino dado aos fados, com o uso das possibilidades e um deslizar dos fios da própria vida.

Para Francisco, seus quatro anos de vida foram intensos em acontecimentos. Sua majestade, o bebê: esse campo fora seriamente rompido. Rompera o campo da onipotência e da imortalidade. Sua sorte, força e vitória - vencer o câncer -, tornara presente a sua doença, sua morte, e seu fracasso.

Ficar doente, seriamente ameaçado de morte, é um campo traumático, que foi fixado, um nó que volta e impede o correr dos fios que se repetem neste fim abrupto da análise. Brincadeiras perigosas, com risco de vida.

Repete-se nos feitos incomuns para um menininho (sai em uma revista como um menino muito corajoso, que enfrentou o tratamento com valentia, escreve livros, já tem uma biblioteca). Ora o vemos como um Ali Babá, que vence com perspicácia quarenta ladrões, ou então como um super-herói.

O tempo da análise se esgotando, Francisco tenta manobras radicais. Pela janela, pelo ar, pelos fundos do prédio para driblar a separação.

Ao mesmo tempo, também produz, constrói livros, livros de história e livros da nossa história (dentro dos livros, teríamos uma história da nossa sessão e assim por diante, sem fim).

Agora, o tempo médio: jogo da transferência, da relação viva. É o tempo dos dramas transferenciais. "Você não é boa para os meus medos de cinco anos, só os de quatro".

Não sabemos direito o que seriam esses medos, principalmente os de cinco anos. Sabemos, no entanto que ele me tem em boa conta. Igualmente me diz que eu seria uma espécie de estoque. "Quando eu precisar de alguma coisa eu volto para pegar". Uma referência viva, um anjo da guarda que o acompanharia.

O campo transferencial amplia-se, no tempo médio. Os arredores do consultório ficam imantados: o shopping, os prédios vizinhos, o playground.

E é no tempo médio que me pede ajuda para acompanhar o tempo da gravidez da mãe. Quer ajuda para fazer um presente com elástico, para dar conta do crescimento do rival/amigo. Da criança viva, fruto da potência sexual dos seus pais, mas da qual deve se apartar para poder crescer nos seus cinco anos.

É a vida que continua.

Tempo curto "é o tempo da palavra analítica, da sessão enquanto acontecimento em si". É também o tempo da técnica, e, aqui, penso que o trabalho com crianças merece uma diferenciação. A palavra analítica: poderíamos pensar em gesto justo. Quando a analista, desesperada, puxa a calça do paciente e vê surgir uma cueca de homem-aranha. Faz-se uma ruptura de campo, abrem-se sentidos. Desvelamentos. Um ato-falho a dois, criador de possibilidades e sentidos.

É o tempo curto, o tempo da comédia (comédia de erros, diria Herrmann). E isso é tão do infantil, o humor. A graça. Sabemos quão doente é a criança que não brinca e não ri.

Francisco se diverte nesse momento, e também quando me pega no pulo e no meu ato falho: "anjo da guarda?"

No tempo curto - o tempo do ato-falho a dois - a brincadeira rola, abrindo para múltiplos papéis.

É no riso que, juntos, comemoramos esse tempo que nos foi dado.

Abrem-se as janelas da alma.

 

Referências

Azambuja, S. C. (2009). Masculino/feminino: uma questão intrigante. Jornal de Psicanálise, 42(76)13-29.         [ Links ]

Guimarães Rosa, J. (1979). Grande Sertão Veredas. (13a ed., p. 236). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Herrmann, F. (1991). Clínica psicanalítica. A arte da interpretação. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Herrmann, F. (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Herrmann, F. (2002 a 2006). Quarta meditação, "Intimidade da clínica". Os três tempo da análise. Curso "Da clínica extensa à alta teoria. Meditação clínica" ministrado por Fabio Herrmann no Instituto de Psicanálise da SBPSP e na pós-graduação da PUC-SP.         [ Links ]

Herrmann, L. (2008). Os tempos na análise - um ponto de vista psicopatológico. Trabalho apresentado em reunião científica na SBPSP.         [ Links ]

Raimbault, G. (1979). A criança e a morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Sandra Regina Moreira de Souza Freitas
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Maranhão, 598/73 | Higienópolis
01240-000 São Paulo, SP
Tel: 11 3661-7426
sandrasouzafreitas@gmail.com

Recebido em 4.7.2011
Aceito em 21.10.2011

 

 

1 Segundo Fabio Herrmann (1944-2006) - autor de pensamento original da Psicanálise brasileira -, a Teoria dos Campos "procura resolver a questão das doutrinas teóricas, pondo em evidência o método psicanalítico de investigação e cura, que é o essencial, e usa o método para o estudo de todas as manifestações do psiquismo, não apenas da situação analítica. Numa palavra, para a Teoria dos Campos, a Psicanálise é a ciência geral da psique".
2 Um dos quatro conceitos (campo, ruptura de campo, expectativa de transito e vórtice) que Fabio Herrmann usa para explicar o funcionamento da análise. O estado em que o paciente está privado de um campo eficiente para suas representações, corresponde à origem da angústia que a situação analítica - de ruptura de campo - provoca.
3 Entrei em contato pela primeira vez com esses conceitos de Christopher Bollas, tão fecundos para o meu trabalho, por meio dessa entrevista. Sonia Azambuja, analista, amiga, já me acenara com o destino para tantos fados que eu trazia na algibeira.