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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.1 São Paulo jan./mar. 2018

 

OUTRAS PALAVRAS

 

O tempo, uma ilusão?1

 

Time: an illusion?

 

El tiempo: ¿una ilusión?

 

Le temps: une illusion?

 

 

Adalberto A. Goulart

Membro efetivo e didata da Sociedade Psicanalítica do Recife (SPRPE) e do Núcleo Psicanalítico de Aracaju (NPA)

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor questiona-se acerca do tempo e faz uma revisão do tema desde a Idade Média, com a alquimia, passando pela filosofia e pela física, até a psicanálise e os dias atuais, numa articulação de conceitos. Baseado numa vinheta clínica, conclui sobre a atemporalidade do inconsciente e sua importância para os fenômenos transferenciais.

Palavras-chave: atemporalidade, alquimia, filosofia, física, psicanálise


ABSTRACT

In this article, the author wonders about time. His study starts from alchemy in Middle Ages, it continues through philosophy, physics, neurobiology, and it finally reaches psychoanalysis and the current times. Throughout his examination, the author connects concepts. The unconscious is timeless, he concludes. The author shows the importance of this timelessness to transferential phenomena by bringing a clinical vignette.

Keywords: timelessness, alchemy, philosophy, physics, psychoanalysis


RESUMEN

El autor cuestiona sobre el tiempo, hace una revisión sobre el tema, desde la Edad Media, pasando por la alquimia, la filosofía, la física y llegando al psicoanálisis, hasta la actualidad, con una articulación de conceptos. Concluye sobre la atemporalidad del inconsciente y su importancia para los fenómenos de transferencia, citando un caso clínico.

Palabras clave: atemporalidad, la alquimia, la filosofía, la física, el psicoanálisis


RÉSUMÉ

L'acteur questionne sur le temps, en faisant une révision à partir du Moyen Age, y compris l'alchimie, en passant par la philosophie, la physique et arrive à la psychanalyse et à l'actualité, dans une articulation de concepts. Il conclut à l'atemporalité de l'inconscient et son importance pour les phénomènes transférentiels au moyen d'une vignette clinique.

Mots-clés: atemporalité , alchimie, philosophie, physique, psychanalyse


 

 

Quando, Lídia, vier o nosso outono Com o inverno que há nele, reservemos Um pensamento, não para a futura Primavera, que é de outrem, Nem para o estio, de quem somos mortos, Senão para o que fica do que passa - O amarelo atual que as folhas vivem E as torna diferentes. (Ricardo Reis/Fernando Pessoa, Odes)

O tempo, tal qual o conhecemos, está intrínsecamente associado à cultura e sempre ocupou o interesse de navegadores, pastores, agricultores, religiosos, alquimistas, matemáticos, físicos e filósofos. Trata-se de um evento sobretudo psicológico, relativo à percepção que cada indivíduo tem, através dos órgãos dos sentidos, sobre a sensação proporcionada pela transição de um movimento.

A alquimia, que teve o seu apogeu entre os séculos XIV e XVI, foi praticada no Egito antigo, na Mesopotâmia, na Grécia clássica, na Coreia, na China, na América Latina pré-histórica, no mundo islâmico, em Kiev e em outras regiões da Europa e entre os aborígines, e combinava elementos de química, antropologia, astrologia, filosofia, matemática e metalurgia.

Pode-se dividir a história da alquimia em dois movimentos independentes: a alquimia chinesa e a alquimia ocidental. A alquimia chinesa, que estaria associada ao budismo, parece ter evoluído quase ao mesmo tempo que em Alexandria ou na Grécia. Na China, a alquimia podia ser dividida em waidanshu, a alquimia externa, que busca o elixir da longa vida por meio da manipulação de certos elementos, e neidanshu, a alquimia interna ou espiritual, que procura gerar esse elixir no próprio alquimista. A alquimia chinesa foi perdendo força e acabou desaparecendo com o surgimento do budismo. A medicina tradicional chinesa herdou da waidanshu as bases da farmacologia tradicional e da neidanshu as partes relativas ao Qi (energia primordial que dá origem à matéria).

A alquimia, como a filosofia védica, considera que há um vínculo entre a imortalidade e o ouro. Essa ideia provavelmente foi adquirida dos persas durante as invasões de Alexandre, o Grande, o qual teria procurado a fonte da juventude. Foi graças às campanhas de Alexandre que a alquimia se disseminou em toda a Península Ibérica.

Basicamente, os alquimistas teriam quatro objetivos principais em seu trabalho: transmutar metais inferiores em ouro; obter o elixir da longa vida, um remédio que curaria todas as doenças e evitaria a morte (relacionado à pedra filosofal); criar vida humana artificial; e fazer com que a realeza conseguisse enriquecer mais rapidamente (garantia de patrocínio para o seu trabalho).

Acredita-se que a ideia da transformação de metais em ouro seria, na realidade, uma metáfora da mudança de consciência: a pedra seria a mente selvagem, que é transformada em ouro, ou seja, em sabedoria.

Alguns estudiosos da alquimia admitem que o elixir da longa vida e a pedra filosofal são temas simbólicos, relativos à purificação espiritual, à busca de sabedoria. Um importante alquimista francês que viveu entre os séculos XIV e XV, Nicolas Flamel, em seu Livro das figuras hieroglíficas (1399/1984), escreve que os termos bronze, titânio, mercúrio, iodo e ouro são metáforas para confundir perseguidores ligados à Inquisição, que fizeram muitos alquimistas serem julgados e condenados à fogueira sob a acusação de pacto com o diabo. Vem daí a associação do enxofre, material usado pelos alquimistas, ao demônio.

Há pesquisadores que identificam o elixir da longa vida como um metal produzido pelo próprio corpo humano, que teria a propriedade de prolongar indefinidamente a vida, ideia também presente na tradição do tai chi chuan.

"O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem me fizer a pergunta, já não sei" (Agostinho, 2011, p. 274).

Não há como falar sobre o tempo, ou pelo menos sobre como a nossa cultura apreende o tempo, sem nos referirmos a Santo Agostinho, um dos grandes pensadores dessa questão, que viveu entre os séculos IV e V d.C. Destaca-se o rigor filosófico contido no livro 11 de suas Confissões.

Ele afirma que não há como defender que passado e futuro existam de fato: o passado já não existe mais e o futuro ainda não existe. Questiona como é possível medir o tempo, se no momento em que o fazemos ele não existe mais ou ainda não existe. O presente, por sua vez, existe de fato, mas se resume a um instante sem duração, pois a duração já se refere ao passado. Assim, o presente nada mais seria do que um contínuo deixar de ser.

Santo Agostinho aponta uma compreensão psicológica do tempo, baseada na lembrança, na atenção e na projeção, tendo portanto um caráter de consciência, memória no presente, expectativa no presente e presente no instante presente. Ele considera que procurar a realidade objetiva do tempo contribui para aclarar sua subjetividade, com o voltar da consciência sobre si mesma. O problema psicológico do tempo condiciona sua solução à questão metafísica.

Blaise Pascal, filósofo e matemático francês do século XVII, escreve em seu livro Pensamentos:

Nunca nos detemos no momento presente. Antecipamos o futuro que nos tarda, como para lhe apressar o curso; ou evocamos o passado que nos foge, como para o deter: tão imprudentes, que andamos errando nos tempos que não são nossos, e não pensamos no único que nos pertence; e tão vãos, que pensamos naqueles que não são nada, e deixamos escapar sem reflexão o único que subsiste. É que o presente, em geral, fere-nos. Escondemo-lo à nossa vista porque nos aflige; e, se nos é agradável, lamentamos vê-lo fugir. Tentamos segurá-lo pelo futuro, e pensamos em dispor as coisas que não estão na nossa mão, para um tempo a que não temos garantia alguma de chegar. Nunca o presente é o nosso fim: o passado e o presente são meios, o fim é o futuro. Assim, nunca vivemos, mas esperamos viver; e, preparando-nos sempre para ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos. (1670/2002)

No século XVIII, Immanuel Kant publica a Crítica da razão pura (1781/2006), em que apresenta o tempo como uma das categorias pelas quais acessamos os fenômenos, com o auxílio da sensibilidade, do entendimento e da razão, estruturando e transformando o conteúdo que recebemos. Propõe que as determinações universais e necessárias dos objetos não estão nos próprios objetos, mas, ao contrário, são impostas pelo sujeito que os conhece.

As intuições puras, isto é, espaço e tempo, embora se mostrem com os objetos, não estão neles, e sim na mente do sujeito que os percebe. Quer dizer, espaço e tempo são determinações presentes no objeto, mas que provêm do sujeito, e não do mundo em si. É a sensibilidade do sujeito que dispõe e estrutura as intuições num pano de fundo espaçotemporal. A essas intuições já organizadas em forma espaçotemporal Kant chama fenômenos.

O fato de ser a mente que impõe aos objetos uma moldura espaçotemporal explicaria por que todos os fenômenos que percebemos estão sempre e necessariamente dispostos no espaço e no tempo, as coisas como aparecem para o sujeito, e não como são em si mesmas, o que jamais poderiamos saber, ao menos com os recursos de que dispomos até agora.

Kant diferencia fenômeno, a coisa já estruturada e transformada pelo aparato perceptivo e cognitivo do sujeito, de coisa em si, a coisa como ela é no mundo, fora da mente, antes da intervenção de nosso conhecimento.

Em outras palavras, nossa percepção recebe a informação e impõe a ela um formato espaçotemporal. O resultado é não mais a coisa em si, mas o fenômeno observado. Em seguida é possivel organizar e conectar os fenômenos em conceitos e categorias, o que poderá nos levar a admitir a existência de algo absoluto, criado pela nossa percepção e cognição, e não relativo. O problema, diz o autor, é que o conhecimento só poderá ser conquistado através da experiência, jamais da razão.

Para Isaac Newton, fisico, matemático, astrônomo, alquimista, filósofo e teólogo inglês que viveu entre os séculos XVII e XVIII, "o tempo absoluto, verdadeiro e matemático flui sempre igual por si mesmo e por sua própria natureza, sem relação com qualquer coisa externa" (1687/1983, p. 8). No entanto, hoje sabemos que o tempo depende da velocidade do movimento, bem como das dimensões do corpo que se movimenta, o que modificou consideravelmente os conceitos de tempo e espaço.

Albert Einstein, já no século XX, afirma que os instantes nos quais um evento acontece e sua duração estão subordinados ao referencial inercial do observador, dependem da coordenada paralela à velocidade em que o evento ocorre.

O tempo flui num sentido bem definido e claro, a flecha do tempo, como nos mostra o nosso envelhecimento biológico. No entanto, incluir esse dado de realidade na fisica teórica moderna constitui um grande desafio. Einstein chega a dizer que a distinção entre passado, presente e futuro não passa de uma persistente ilusão.

As equações da teoria da relatividade geral de Albert Einstein podem ser aplicadas ao universo como um todo. Essa teoria nos mostra que espaço-tempo é o tecido do qual o universo se constitui. Daí se conclui que espaço é matéria, e não o que contém a matéria.

Esse universo, proposto como algo dinâmico, parte de um estado inicial, concentrado em um ponto, e expande-se vertiginosamente. Tal expansão diminui aos poucos, e chega um momento em que se interrompe; então, o universo passa a se contrair, até retornar ao ponto inicial. Quando uma grande estrela, por exemplo, consome todo o seu combustível (o hidrogênio), ela se apaga; sem o calor da combustão, o que resta dela não mais se mantém, de modo que ela desaba e se esmaga sob o próprio peso; pela ação da força da gravidade, ela afunda sob si mesma, o que cria os buracos negros. Estes, sob a pressão da matéria/energia hiperconcentrada (lembrando que a própria luz é constituída de partículas, os fótons), poderão voltar a explodir e se expandir (estrela de Planck).

Assim, o tempo se inicia com a expansão e termina quando se conclui a contração. Fora disso, não existe universo, espaço ou tempo. O tempo é interno ao mundo, nasce no próprio mundo, a partir de relações entre eventos quânticos, que são o mundo e são também a nascente do tempo (Rovelli, 2014/2016). O nosso universo, então, poderia ter nascido de um universo que o precedeu.

Uma conclusão bastante curiosa dessas investigações e descobertas é que o que diferencia o passado do futuro é o calor, que vai da matéria mais quente para a mais fria. Por exemplo, se não houvesse atrito e produção de calor, um pêndulo oscilaria para sempre; porque há atrito e calor, o pêndulo, pouco a pouco, perde energia/calor e desacelera, o que nos dá a noção de futuro (em direção ao qual o pêndulo se retarda) e de passado (quando havia maior aceleração).

O espaço, portanto, não contém o mundo: ele é o mundo, tanto quanto o tempo. Espaço e tempo são o próprio mundo!

Isso significa o óbvio, tantas vezes difícil de ver: quem não perde tempo e energia não chega a lugar nenhum. Perdendo tempo e energia, vivemos a experiência da vida e chegamos um dia ao nosso destino inexorável, tal qual o das estrelas.

Esses estudos apontam algo ainda mais interessante em relação ao presente, o que de fato parecemos ter. Rovelli (2014/2016), do Instituto Universitário da França e da Academia Internacional de Filosofia das Ciências, além de professor da Universidade de Pittsburgh, nos diz que em física não há nada que corresponda à noção de agora. Ele confronta o agora com o aqui. Ninguém poderia pensar que as coisas que estão aqui existem e as que não estão aqui não existem. Então, questiona o autor, por que pensar que as coisas que estão agora existem e as que não estão agora não existem? A física e a filosofia modernas nos mostram que a noção de tempo presente é tão subjetiva quanto a noção de espaço; a ideia de um presente comum a todo o universo não passa de uma ilusão, o que já ensinava Einstein.

Se levantássemos a hipótese de uma visão que enxergasse absolutamente tudo, o universo seria um bloco indistinto de passado, presente e futuro. É a imprecisão da nossa consciência e a necessidade de organização cognitiva que nos dão a sensação de que habitamos o tempo. Rovelli conclui dizendo que o imanifesto é muito mais vasto do que o manifesto. Somos observadores e integrantes, feitos dos mesmos elementos que as árvores, as montanhas, os rios, os mares, as estrelas, as borboletas... - todos, nossos ancestrais.

Outra questão sobre o tempo é trazida pela biologia. O relógio circadiano funciona independentemente de estímulos externos diretos e é determinado pelo próprio corpo. Mesmo em espécimes mantidos em ambientes sob iluminação constante ou na ausência de iluminação, sua imprecisão geralmente não passa de 1%. Também não há uma região específica responsável pela contagem do tempo. Cada órgão, cada parte do corpo, tem geralmente a capacidade de se autossincronizar em ciclos periódicos de 24 horas, embora a troca de informações entre estes possa via de regra ocorrer, a fim de manter todo o organismo em compasso uníssono. Sabe-se hoje que o relógio circadiano, encontrado disperso em cada órgão ou sistema, tem relação direta com a herança genética, e que seus mecanismos de funcionamento estão codificados no dna dos seres vivos. "Esses relógios genéticos expressam-se em todo o corpo, em todos os tecidos" (Vitaterna, Takahashi & Turek, 2001).

Muito bem: o que tem a ver com psicanálise e clínica psicanalítica o que foi considerado até aqui? Tudo, acredito. Os alquimistas, na realidade, buscavam decifrar enigmas, compreender o tempo, encontrar sabedoria e tornar as pessoas melhores, assim como o budismo e o taoismo, baseados nas leis da natureza, da qual somos parte, e em conceitos como compaixão, moderação e humildade, sem os quais não há sabedoria possível.

Santo Agostinho aborda o tempo como um valor psicológico e fala da importância de voltar a consciência sobre si mesma. Pascal discorre sobre o aqui e agora como única possibilidade. Kant, inspiração para tantas ideias de Bion, mostra que o conhecimento só pode ser conquistado através da experiência, jamais da razão.

Einstein afirma que a distinção entre passado, presente e futuro é uma ilusão, o mesmo que diz Freud sobre o funcionamento inconsciente. A física moderna ensina ainda que, para chegar a algo ou a algum lugar, é necessário dispor de tempo e energia; quando perdemos tempo e energia, vivemos a experiência da vida e chegamos um dia ao nosso destino. O físico Rovelli observa que o imanifesto é muito mais vasto do que o manifesto, o que recorda o nosso labor psicanalítico de todos os dias.

Os cientistas Vitaterna, Takahashi e Turek assinalam a precisão dos relógios circadianos, inscritos no dna dos seres vivos e que se expressam em todo o corpo, em todos os tecidos, em sincronia, lembrando o ego corporal, do qual também nos fala Freud.

Em 1915, no artigo "O inconsciente", Freud comenta:

Os processos do sistema inconsciente são atemporais; isto é, não são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo; não têm absolutamente qualquer referência ao tempo. A referência ao tempo vincula-se ao trabalho do sistema consciente. (1987b, p. 214)

Além da atemporalidade, Freud destaca a ausência de contradição e o caráter de realidade psíquica.

Em 1933, nas Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, ele reafirma:

No id, não existe nada que corresponda à ideia de tempo; não há reconhecimento da passagem do tempo, e - coisa muito notável e merecedora de estudo no pensamento filosófico - nenhuma alteração em seus processos mentais é produzida pela passagem do tempo. Impulsos plenos de desejos, que jamais passaram além do id, e também impressões, que foram mergulhadas no id pelas repressões, são virtualmente imortais; depois de se passarem décadas, comportam-se como se tivessem ocorrido há pouco. (1987a, p. 95)

Eu complementaria que, de fato, estão ocorrendo neste exato momento.

A psicanálise observa que os indícios das formações inconscientes - a saber, os atos falhos, os sonhos, os devaneios, os sintomas - nos mostram, a cada ocorrência, a presença atemporal do desejo indestrutível mencionado por Freud, seja do ponto de vista de sua inscrição inconsciente, seja do ponto de vista do suprimido, do recalque ou repressão.

Poderiamos conjecturar que uma experiência de análise deveria contribuir para o sujeito ter outro tipo de vivência em relação ao tempo que passa, mas sobretudo em relação aos aspectos atemporais que constituem o substrato do seu funcionamento mental, entendendo como substrato a natureza íntima, a essência que serve de base a um fenômeno.

No "Projeto para uma psicologia científica" (1950[1895]/1987c), Freud propõe a ideia de que o sistema psi estaria exposto a quantidades de excitação provenientes do interior do corpo (os estímulos endógenos) e nisso se encontraria a mola pulsional (Triebfeder) do mecanismo psíquico. O desejo indestrutível seria o derivado das pulsões.

A pulsão nunca poderá ser objeto da consciência, e mesmo no inconsciente só poderá ser representada por uma ideia ou por um representante, diz Freud. Ela tem o papel de ser a chama propulsora da vida em todos os seres vivos, um estímulo sobre a mente, papel resultante de uma necessidade que a obriga a trabalhar para cessar ou diminuir a excitação mediante uma ação organizada sobre o mundo externo. Não seria, portanto, apenas uma descarga fisiológica. É observada no ser humano por meio de suas representações psíquicas. O núcleo da mente seria, então, formado pelos representantes da pulsão, que darão origem ao afeto e ao pensamento.

Assim, a pulsão, sendo endossomática, começa a fundar o psiquismo através do registro de suas representações, que podemos chamar de quotas de afeto. O afeto, por sua vez, corresponde à descarga dessa excitação, como uma tradução subjetiva da quantidade de energia pulsional. O registro mnêmico dessa descarga afetiva relaciona-se à série prazer/desprazer e dá origem à representação, que poderá desenvolver-se em fantasia e pensamento.

A matriz afetiva tem origem na descarga somática por meio da qual se desenvolverão as estruturas ideativas. É a etapa corporal do psiquismo, que corresponde ao que Freud denominou ego corporal. A estrutura afetiva da mente humana seria formada pelos registros mnêmicos de percepção de vivências afetivas dos primórdios da vida, quando as sensações de prazer e desprazer ocupavam todo o psiquismo, correspondendo à fase de ego corporal (quando o papel de ego psíquico é desempenhado pelo objeto na preservação da vida), com a mente regida por sensações de prazer e desprazer, num mecanismo de biorregulação presente em todos os seres vivos. Com o amadurecimento do organismo, as quotas de afeto primitivo proliferam em traços mnêmicos ou representações, criando circuitos associativos (chamados de colaterais por Freud no "Projeto") e desenvolvendo as estruturas ideativas. Aos poucos, as estruturas ideativas prevalecem sobre as afetivas, desenvolvendo o ego psíquico e, com ele, o processo secundário, no qual, se tudo correr bem, predominará o princípio da realidade, que dará origem ao pensamento. Ao final, o pensamento nada mais seria do que uma descarga pulsional atenuada e provisória, que diminui a necessidade de descarga da energia pulsional.

Como a pulsão inclui necessariamente um objeto, e como a quota de afeto é um componente da pulsão, a percepção da descarga somática/afeto é indissociável da percepção do objeto. Daí o ego corporal estar também indissociado do objeto, o que faz o sujeito perceber o objeto como seu próprio corpo, do qual vai diferenciar-se à medida que as estruturas ideativas se desenvolverem. Por outro lado, como as estruturas afetivas nunca se extinguem, haverá sempre um objeto interno representado com o sujeito.

Ser o afeto vivenciado com o objeto é da mais alta importância na compreensão do fenômeno da transferência em uma análise. A transferência nada mais é do que o tempo do inconsciente atemporal; não a atuação de algo que ocorreu e não pode ser lembrado, mas de algo que ocorre sempre no instante presente, o manifesto com seu substrato imanifesto. Caper (1999/2002) menciona uma espécie de biópsia mental, o retrato de um padrão de funcionamento inconsciente em tempo real. Sempre.

Bion (1962/1991) aponta um aspecto fugidio defensivo do psiquismo, com rotas de fuga para o passado ou para o futuro, a fim de se desviar do único tempo em que se pode sofrer a experiência de viver, o instante presente. O autor recomenda que o analista evite essas rotas de fuga, tanto quanto a compreensão racional, para permitir aflorar sua sensorialidade e sua capacidade intuitiva. Da mesma forma, Ferrari (1995) observa a importância de que a mente esteja onde o corpo está.

O inconsciente dinâmico é produzido ininterruptamente, durante todo o tempo, a partir das demandas corporais pulsionais, criando marcas, representações mentais, em seu caminho para a descarga, para a satisfação, acionando o aparelho anímico na sua função de contenção e registro.

Dessa maneira, podemos fazer uso de um sistema perceptivo sensível, em que o próprio corpo nos informa sobre os estímulos internos e externos, e da memória, que nos ajuda a organizar e dar significado ao que passou, mas sempre em relação ao presente orgânico ou ao inconsciente atemporal.

No trabalho com pacientes terminais, Ferrari (2004) propõe fracionar o tempo em unidades cada vez menores para torná-lo visível plenamente em cada instante. Segundo ele, tal concepção ganha o estatuto de técnica quando se lida com situações em que não se pode contar com um amanhã, mas sim com um ainda não é amanhã. São circunstâncias em que o tempo, escasso, deixa de ser relativo, é tornado absoluto, cada momento contendo em si todo o tempo de vida. Considerando o que vimos até aqui, penso na utilidade desse estatuto de técnica para todo e qualquer paciente, uma vez que não podemos de fato saber se nossa estrela continuará a brilhar amanhã.

De acordo com os conhecimentos filosófico-científicos que apresentamos, e amparados pela experiência psicanalítica, compreendemos que o nosso tempo não é o de Cronos, linear, mas o de Kairós, não linear e que não pode ser medido. Na mitologia grega, Kairós era o deus do tempo oportuno. Podemos entender essa ideia de tempo oportuno como o tempo que temos, no instante fugaz do presente atemporal.

Recebo um paciente que tem por volta de 65 anos. Ele chega bastante angustiado e me diz já haver procurado ajuda com psiquiatras e psicoterapeutas. Conta-me que há cerca de 20 anos, após cometer um pequeno erro no trabalho, passou a ser perseguido pelo chefe, que constantemente o caluniava. Mudou de emprego e foi trabalhar em outra cidade. Ocorre que, desde então, a tal pessoa jamais deixou de persegui-lo.

Em certo momento, ele observa que isso pode parecer loucura, que às vezes pensa ser loucura mesmo, mas logo em seguida afirma ter absoluta certeza do que diz. Faz uso de medicação antipsicótica em baixa dosagem, prescrita por um psiquiatra, e menciona que o ajuda a dormir.

Prossegue dizendo que acabou por se afastar dos amigos, dos familiares, acreditando ter sido caluniado pelo antigo chefe de trabalho, o que teria mudado o comportamento dessas pessoas em relação a ele. Afirma que, de alguma maneira que não sabe como, esse antigo chefe consegue invadir o seu computador, observá-lo no elevador do edifício em que mora, caluniá-lo inclusive em outras cidades e em outros estados. Não sabe mais o que fazer para recuperar a paz.

Na segunda entrevista, conta-me que sua mãe falecera quando ele estava com 7 meses de idade, de forma súbita, de modo que foi criado por uma tia, pois seu pai se casou novamente e um bebê poderia atrapalhar o novo relacionamento. Relata ainda ter sido abusado sexualmente, por volta dos 5 anos de idade, por um adolescente conhecido da família. Acredita que esses dois acontecimentos, a perda precoce da mãe e o abuso sexual na infância, foram superados e que não lhe trazem problemas. Não sente nada em relação a eles. Casado, bastante religioso, diz ainda que mantém um relacionamento extraconjugal homossexual e eventual.

Inicia-se um processo analítico e, nas sessões, invariavelmente sustenta o mesmo discurso: perseguições de toda ordem praticadas pelo chefe de 20 anos atrás. Não compreende como isso é possível, mas tem absoluta certeza de que acontece.

Em determinada sessão, pergunta-me insistentemente o que ele poderia fazer com tais perseguições, já insuportáveis. Intervenho dizendo apenas que algo nele fez com que procurasse um psicanalista. Por um momento, o paciente parece compreender o que digo: "Realmente, deve ser loucura minha, fantasias... Acho que confundo minhas fantasias com a realidade...". Logo em seguida, porém, retoma o discurso anterior e fala de sua absoluta certeza em relação às perseguições. Apenas não sabe como seu perseguidor é capaz de tudo isso, mas que ele deve ter alguma maneira muito eficiente para fazê-lo.

O que teria ocorrido com a mente desse senhor? O que quer ele me dizer com seu discurso persecutório e deliroide, às vezes com alguma crítica de realidade sobre o que diz, na maioria das vezes parecendo não ter juízo crítico nenhum? Qual seria o tempo do discurso?

Por meio de Freud, Klein, Winnicott, Bion, Ferrari, sobretudo daqueles que se dedicaram a observar, investigar e trabalhar com crianças pequenas, sabemos da incapacidade do ego imaturo em lidar com a quantidade de estímulos a que está exposto - estímulos externos, a partir do contato do novo ser com o mundo, mas também estímulos internos, causados pelo impacto dos movimentos pulsionais; entendemos como a realidade é apreendida sensorialmente por cada corpo, o que a torna específica e única; conhecemos o surgimento do aparelho mental, com sua fUnção de continência e notação; compreendemos a fundamental presença da mãe/cuidador em sua função de reverie, de facilitador ou catalisador do encontro da criança consigo mesma, auxiliando ainda no desenvolvimento da capacidade simbólica.

Uma grave perturbação nesse desenvolvimento, com falha ou ausência da função catalisadora materna, poderá deixar o bebê num profundo estado de desamparo, tendo que lidar, com seus próprios e limitados recursos, com a realidade de excitações que atingem seu aparelho. Na tentativa de reduzir essa quantidade de excitação, a criança tenderá, em fantasia, a atacar e a projetar para fora do seu sistema sua angústia, seus perseguidores internos, o que tornará o mundo cada vez mais inseguro, instável e persecutório.

Outra situação traumática dessa magnitude - o abuso sexual por volta dos 5 anos de idade, por exemplo -, atingindo um ego imaturo, tanto quanto todo o sistema, reforçará, na melhor das hipóteses, a estrutura e os mecanismos de defesa primitivos, levando a uma hipertrofia dos mecanismos de cisão, projeção, identificação projetiva e negação, como busca de sobrevivência. Qualquer indício de emoção, reconhecido como ameaçador, deverá ser atacado e destruído, descarregado para fora do sistema. O resultado disso será a incapacidade de aprender com a experiência das vivências emocionais e o comprometimento do desenvolvimento de todo o aparelho anímico, especialmente da capacidade para pensar.

De acordo com todas as referências que vimos, os diversos ramos da ciência parecem convergir em relação à noção de tempo, e com a psicanálise não é diferente.

Tendo o instante presente como o tempo possível de viver e considerando a atemporalidade do inconsciente, compreendemos que uma situação traumática, não elaborada e não superada, como mostra o relato do paciente, permanece sendo vivida e repetida no presente do tempo, como se estivesse ocorrendo agora, o que aciona os mesmos mecanismos de defesa primitivos na mesma tentativa de manutenção da sobrevivência, que se repete em tempo real e sempre atual, que surgirá, inevitavelmente, através dos fenômenos transferenciais, nas relações humanas.

Se a atemporalidade se apresenta como um grande problema, ela própria, pela mesma razão, nos dá a possibilidade de intervir, de ir em auxílio aos nossos pacientes, de oferecer a oportunidade de uma nova e desconhecida experiência emocional.

 

Referências

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Correspondência:
Adalberto A. Goulart
Avenida Anísio Azevedo, 675, sala 304
49020-235 Aracaju, se
Tel.: 79 3246-3070
adalbertogoulart@uol.com.br

Recebido em 26.04.2017
Aceito em 17.11.2017

 

 

1 Trabalho apresentado na 15.ª Jornada de Psicanálise de Aracaju, em abril de 2017.

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