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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.55 no.2 São Paulo abr./jun. 2021
TEMAS LIVRES
Quando olhaste bem nos olhos meus, e o teu olhar era de adeus1
When you looked right into my eyes, with a farewell gaze
Cuando me miraste directamente a los ojos, y tu mirada fue de adiós
Quand tu m'as bien regardé dans les yeux, et tu avais un regard d'adieu
Cassandra Pereira França
Docente e orientadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte / cassandrapfranca@gmail.com
RESUMO
A experiência coletiva diante do horror da finitude, reapresentada na pandemia atual, impôs o isolamento social e a mudança nas práticas clínicas. Com isso, a clínica psicanalítica enfrenta o desafio da reinstalação dos canais de comunicação psíquica dentro de um novo setting, virtual. Este artigo descreve as particularidades do atendimento online de um paciente melancólico em risco de suicídio, caso ficcionalizado para fins de discrição. O objetivo é mostrar, sob a luz das ideias de Freud em "Luto e melancolia" e de Sándor Ferenczi sobre o manejo da transferência, a possibilidade de transformação da dor psíquica em uma experiência estruturante a partir da migração das imagens para o campo da palavra.
Palavras-chave: pandemia, melancolia, suicídio, atendimento online
ABSTRACT
The current pandemic has forced people to face the horror of finitude, imposed social isolation, and required a change in psychotherapy practices. Psychoanalytic treatment faces the challenge of reinstalling the channels of psychic communication within a new, virtual setting. This article describes particular aspects of the online care of a melancholic patient at risk of suicide and has been fictionalized for the sake of discretion. It reflects Freud's ideas in "Mourning and melancholy" and Sandor Ferenczi's approach to the management of transference in order to show the possibility of transforming psychic pain into a structuring experience through the migration of images into the world of language.
Keywords: pandemic, melancholy, suicide, online treatment
RESUMEN
La pandemia actual ha obligado a las personas a enfrentar el horror de la finitud, ha impuesto el aislamiento social y ha requerido un cambio en las prácticas de psicoterapia. El tratamiento psicoanalítico se enfrenta al desafío de reinstalar los canales de comunicación psíquica en un nuevo escenario virtual. Este artículo describe aspectos particulares de la atención online de un paciente melancólico en riesgo de suicidio y se ha convertido en ficción por motivos de discreción. Refleja las ideas de Freud en "Duelo y melancolía" y el enfoque de Sandor Ferenczi sobre la gestión de la transferencia para mostrar la posibilidad de transformar el dolor psíquico en una experiencia estructurante a través de la migración de imágenes al mundo del lenguaje.
Palabras clave: pandemia, melancolía, suicidio, psicoterapia online
RÉSUMÉ
La pandémie actuelle a contraint les gens à affronter l'horreur de la finitude, imposé l'isolement social et le changement des pratiques de psychothérapie. C'est pourquoi la clinique psychanalytique est confrontée au défi de réinstaller les canaux de communication psychique dans un nouveau cadre virtuel. Cet article décrit des aspects particuliers des soins en ligne d'un patient mélancolique à risque de suicide et a été romancé par souci de discrétion. Son objectif est de montrer, à la lumière des idées de Freud dans « Deuil et mélancolie » et celles de Sandor Ferenczi concernant la gestion du transfert, la possibilité de transformer la douleur psychique en une expérience structurante vers le monde du langage, au moyen de la migration des images.
Mots-clés: pandémie, mélancolie, suicide, psychothérapie en ligne
Quem, como eu, invoca os mais maléficos e mal domados demônios que habitam o peito humano, com eles travando combate, deve estar preparado para não sair ileso dessa luta.
SIGMUND FREUD
A epifania da imagem requer o silêncio do discurso.
JEAN-CLAUDE ROLLAND
"A condição prévia para a imagem é a visão", dizia Janouch a Kafka. E Kafka sorria e respondia: "Fotografam-se coisas para expulsá-las do espírito. Minhas histórias são uma maneira de fechar os olhos".
ROLAND BARTHES
Sem escolha, fomos tragados pela tela. A um palmo de distância, o seu olhar, antes fugidio, agora penetrava em meus olhos. A conexão online evocava o olhar da górgona impaciente e traiçoeira, recém-acordada do pântano onde a vulnerabilidade humana se debatia naquele momento.
Não sirvo para nada. Sequer consigo cuidar do meu corpo. Não tomo mais banho. Durmo de dia para não estar com ninguém. De madrugada vago pela Internet, tentando encontrar alguma coisa que faça sentido. Nada mais pode me segurar aqui. Eu me sinto um fantasma. Chego nos lugares e ninguém percebe. Tenho olhado muito pela janela, lá para baixo. Olho por essa janela aqui, a do meu quarto, e também olho pela da sala. Sei que vai ser rápido, é só soltar o corpo. Mas na janela da sala, lá embaixo tem um toldo que vai atrapalhar. Esta aqui não tem.
Ouvindo essas palavras, interrompidas por longos períodos de silêncio, meu desejo era passar tela adentro, envolvê-lo em meus braços e agarrar o fio que ainda o prendia à vida. Não havia mais essa opção, ao contrário do que acontecera um ano antes, quando, ao ler suas mensagens angustiadas, dei-me conta de que ele estava se despedindo de mim. No meu desespero para não deixá-lo partir, enquanto trocava mensagens para ganhar tempo, eu me dirigi ao seu apartamento. Ele mal notou que eu havia transposto um espaço geográfico para entrar no seu quarto/caverna, e apenas continuou o que vinha me falando. Depois de muito chorar, retirou, do "tapete atrás da porta", com uma certa alegria, livros, fotografias e brinquedos que apareciam nas memórias relatadas nas sessões. Esperei que ele adormecesse na cama que o engolia por dias inteiros, bem ao lado da janela baixa e escancarada. Naquela madrugada, depois de outra crise, foi preciso interná-lo para evitar o que vinha pensando fazer.
A análise prosseguiu, mas, um ano depois, outra crise exigiu que a minha entrega afetiva se desse em outro plano. Agora, a tela de cristal líquido emoldurava seus olhos rodeados pelas bordas de metal da mesma janela sinistra. Imobilizada, eu ouvia a sua voz triste contar as cenas do filme de uma vida narrada em câmara lenta: as injustiças sofridas na infância por ser um "estranho" na escola, as maldições proferidas pela mãe porque ele não gostava de estudar, o socorro do pai sempre atrasado para protegê-lo. Eu conhecia essas ruminações, que obscureciam o fato de ter sido amado pelos pais e irmãs e impediam a percepção de que, se tivesse tido outra postura que não a do silêncio e da apatia, talvez o ambiente tivesse reagido de outro modo. O rumo desses conteúdos era da desvalia de si mesmo, somada à acusação de cegueira tanto da mãe, que não percebeu o seu sofrimento na infância, quanto da analista, que tivera a chance de atendê-lo no início da puberdade e fora incapaz de prever que ele desmoronaria na vida adulta. As acusações eram constantes no "segundo tempo do jogo", principalmente quando o "primeiro tempo" da sessão tinha sido muito produtivo. Conteúdos amargos ditos com arrogância evocavam a letra da música "Atrás da porta" (1972), escrita por Chico Buarque: "Dei pra maldizer o nosso lar/ Pra sujar teu nome, te humilhar/ E me vingar a qualquer preço/ Te adorando pelo avesso/ Pra mostrar que inda sou tua"; como para mostrar que eu era "tua cria", não deixando dúvida de que a sombra do objeto perdido recaíra sobre o meu eu.
Em silêncio, observei novamente a desproporção entre os agravos que dizia ter sofrido na infância e os rombos em seu psiquismo. Surpreendi-me com a pergunta que quebrou a repetição estéril das acusações contra a mãe/analista: "Você deve estar sabendo que, por causa da pandemia, poucas pessoas podem ir aos velórios. Umas nove ou dez, no máximo. Quem você acha que vai no meu velório?".
Diante da dor contida naquela pergunta, balbuciei o nome das pessoas que mais o amavam. Ele concordou, dizendo que, para se despedirem dele, iriam se arriscar a ser contaminadas no velório. Retomando o nome de cada uma, relembrou por que ele tinha se tornado importante para aquela pessoa a ponto de ela ainda gostar dele, mesmo ele sendo tão "desinteressante". Era como assistir à passagem de um cortejo fúnebre, as palavras dele ressoando as de Guillaume Apollinaire (citado por Riviere, 1969, p. 57):
O cortejo passava e nele procurava o meu corpo
Todos os que sobrevinham e não eram eu próprio
Traziam um por um os pedaços de eu próprio
Construíam-me pouco a pouco como se ergue uma torre.
Suspirávamos juntos, diante da cena do seu velório emoldurado pela janela aberta atrás dele e que só servia para me deixar alarmada. Internamente, "Me debrucei/ Sobre teu corpo e duvidei/ E me arrastei e te arranhei/ E me agarrei nos teus cabelos", tentando prendê-lo à vida.
"E a minha mãe? O que vai ser dela?"
"Ela vai junto!" - respondi.
"Como Romeu e Julieta?"
Surpresa com a resposta, fui arremessada do enigma proposto pela Esfinge de Tebas ("Decifra-me ou devoro-te") para a paixão incestuosa entre Édipo e Jocasta. Ele interrompeu o meu silêncio dizendo em tom triste:
"Será que o Dr. Y [psiquiatra] vai? E você? Você vai? Vocês devem estar acostumados a perder pacientes. Com certeza não vou ser o primeiro."
Exaurida, depois de duas horas de uma sessão muito tensa, ciente de que nós, analistas, "precisamos tolerar o intolerável, para só depois disso [encontrarmos] o que dizer" (Carvalho, 2019, p. 104), e acreditando no caráter terapêutico da psicanálise, afirmei:
Você tem a resposta, se eu vou ou não. Não preciso lhe dizer, pois você já se contradisse, reconhecendo como serviu para que essas dez pessoas o amassem tanto. Sei que, por causa dessa certeza, por causa dessas pessoas e porque você sabe que pode ser útil, você não vai fazer o que não quer mais.
Mesmo sabendo que "o efeito (nunca antecipável) [de] uma interpretação é, idealmente, uma abertura de sentido, e não um fechamento em uma captura totalizante de significados", apostei que a minha continência, expressa por aquelas palavras, serviria para "reconectar elos que foram desfeitos pela ação dos processos defensivos internos" ou, ainda, para desfazer "elos que estavam atados de modo muito rígido" (Carvalho, 2006, p. 19).
Juro que não acreditei
Diante da tela apagada, eu tentava entender o que se passara naquele intervalo em que novamente fui jogada no fosso de impotência em que nos encontrávamos, no auge da pandemia. O silêncio pesado desse atendimento ecoava a angústia de um momento inusitado: ele em seu quarto/caverna, eu em minha casa/caverna, tentando fechar a entrada para um vírus traiçoeiro e mudo como a pulsão de morte. Ele anunciando seu desejo de se entregar à morte, eu tomada pela decisão de não me entregar, vivendo, nas sessões, a sensação de estar colocada entre dois espelhos paralelos, com as imagens se multiplicando e se interpenetrando, refletindo as valas anônimas e os cortejos fúnebres que assombravam o nosso imaginário: o dele, o meu, o dos meus entes queridos. Se, por um lado, sabemos que, "de fato, é impossível imaginar a nossa própria morte e que, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores" (Freud, 1915/1976b, p. 327), por outro lado, não há como negar o estrago que a realidade de inúmeras mortes simultâneas traz para a crença em nossa imortalidade. Estávamos, assim, dependurados, ou melhor, conectados por dois fios: o desamparo e o medo da morte.
O paciente havia constatado que chegara ao fundo do poço e que precisava reagir: ou tentava sobreviver à angústia diante da vida, ou dela desistia. O futuro parecia incerto. Sem ilusões, ele não deixava que eu sonhasse com alguma saída. Faltava-nos atingir um ponto em que ele pudesse me passar "informações unilaterais", ou seja, em que ele se permitisse associar livremente, abandonando aquele estado em que "o inconsciente parece emudecido" (Figueiredo, 2003, p. 150), apesar de convocar o aparelho psíquico do analista para composições como identificações projetivas e enactments. O estado emocional em que nos encontrávamos ilustrava a diferença fundamental que Freud estabeleceu entre o luto e a vivência melancólica:
No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego. O paciente representa seu ego para nós como sendo desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível; ele se repreende e se avilta, esperando ser expulso e punido. Degrada-se perante todos, e sente comiseração por seus próprios parentes por estarem ligados a uma pessoa tão desprezível. Não acha que uma mudança tenha se processado nele, mas estende sua autocrítica até o passado, declarando que nunca foi melhor. (Freud, 1917[1915]/1976a, p. 278)
Contudo, a pequenez do ego apresentava o seu reverso: a impossibilidade de "demonstrar, perante aqueles que o cercam, uma atitude de humildade e submissão, única que caberia a pessoas tão desprezíveis" (p. 281). A estagnação na vida, sem nenhuma atividade e dormindo o dia todo,2 conseguira, "pelo caminho indireto da autopunição, vingar-se do objeto original e torturar o ente amado através de sua doença, ... a fim de evitar a necessidade de expressar abertamente sua hostilidade para com ele" (p. 284). Ultrapassada essa etapa, armado de arrogância, passou a torturar a mãe (objeto primordial, tratado como se fosse o único que importava no mundo), acusando-a sadicamente por todos os seus sofrimentos. Ela ora resistia aos movimentos de identificação projetiva que tentavam derrubar as barreiras egoicas entre eles e criavam verdadeiros "embaralhamentos" dos aparatos psíquicos, ora desmoronava e transformava-se em refém de sua cólera. Não conseguia entender como uma criança, que antes fora dócil, havia se transformado a tal ponto. Freud lhe responderia:
A catexia erótica do melancólico no tocante a seu objeto sofreu assim uma dupla vicissitude: parte dela retrocedeu à identificação, mas a outra parte, sob a influência do conflito devido à "ambivalência", foi levada de volta à etapa do sadismo que se acha mais próxima do conflito. (p. 284)
As acusações dirigidas pelo melancólico contra si mesmo representam ataques a outra pessoa, a "alguém que o paciente ama ou amou ou deveria amar". Assim, o objeto abandonado é preservado na forma de uma identificação com ele: "[Ao identificar-se com o objeto,] a sombra do objeto recai sobre o ego" (p. 281), o que não deixa de ser uma forma de negar a perda do objeto. A partir de então, objeto e ego serão prisioneiros um do outro.
É por isso que, conforme Ogden,
em resposta à dor da perda, o ego é dividido duas vezes, formando um relacionamento objetal interno no qual uma parte dissociada do ego (a instância crítica) raivosamente (com indignação) ataca a parte dissociada do ego (o ego identificado com o objeto). (2010, p. 55)
É como se ocorresse uma "inconsciente negociação com o diabo", pois o melancólico, em troca da evasão da dor pela perda do objeto, é condenado à falta de vitalidade que implica uma desconexão com a realidade. Ogden ressalta que, enquanto Freud estabelecia para a melancolia um movimento contínuo sujeito-objeto (ou, ainda, eu-mim), ele reelaborava o modelo de mente que até então havia proposto - uma concepção nova da estrutura do inconsciente, para mostrar o seu pensamento teórico e clínico sobre as relações entre aspectos inconscientes, pareados, dissociados do ego (isto é, sobre relações objetais internas inconscientes). Como exemplo, Ogden recorta um parágrafo de "Luto e melancolia" no qual acrescenta colchetes para enfatizar os ecos do pensamento freudiano na teoria das relações objetais:
Uma escolha-objetal, uma ligação da libido a uma determinada pessoa, existiu no passado [para o melancólico]; depois, devido a uma ofensa ou decepção real proveniente dessa pessoa amada, a relação objetal se esfacelou. O resultado não foi o normal, de retirada da libido [energia emocional amorosa] desse objeto para um novo. ... [Em vez disso], a catexia objetal [o investimento emocional no objeto] provou ter pouco poder de resistência [pouca capacidade de manter o vínculo com o objeto] e foi finalizada. Mas a libido livre não foi dirigida a outro objeto; ela foi recolhida ao ego. Ali ... ela [o investimento emocional amoroso que foi retirado do objeto] ... serviu para estabelecer uma identificação do [de uma parte do] ego com o objeto abandonado. Assim, a sombra do objeto recaiu sobre o [uma parte do] ego, e este pôde doravante ser julgado por uma instância especial [outra parte do ego], como se fosse um objeto, o objeto renunciado. Desse modo, uma perda-de-objeto foi transformada em uma perda-do-ego [uma diminuição da autoestima] e o conflito entre o ego e a pessoa amada [foi transformado] em uma cisão entre a atividade crítica do [de uma parte do] ego [posteriormente denominada superego] e o [outra parte do] ego assim alterado por identificação. (Freud, 1917[1915], citado por Ogden, 2010, p. 54)
Assim, o melancólico estende suas críticas para trás e para a frente no tempo, como se houvesse "um ataque atemporal contínuo do sujeito (eu) ao objeto (mim) que exaure o ego (conceito em transição aqui) ao ponto de ele tornar-se pobre e vazio" (Ogden, 2010, p. 52). Freud passa a descrever o ego como uma estrutura psíquica composta de partes conscientes e inconscientes que geram pensamentos e sentimentos de modo independente e que têm funções críticas e moralistas dissociadas, com uma parte saudável e outra patológica, grandioso e frágil. Nessa situação, o sadismo, que para Freud "soluciona o enigma da tendência ao suicídio", é o que faz a melancolia tão interessante quanto perigosa:
Tão intenso é o amor de si mesmo do ego (self love), ... e tão vasta é a quantidade de libido narcisista que vemos liberada no medo surgido de uma ameaça à vida, que não podemos conceber como esse ego consente em sua própria destruição. (1917[1915]/1976a, pp. 284-285)
A situação que desencadeia a patologia advém do fato, constatado por Freud, de que o melancólico, não tendo tido um trânsito fácil de catexias, tornou-se incapaz de mover-se do narcisismo para o amor objetal. Quando precisar se desligar do objeto perdido, seja por morte, abandono, decepção ou alguma outra razão, com certeza fracassará, restando-lhe apenas a estratégia de instalar, dentro do próprio eu, o objeto perdido. Do fato de que o melancólico somente consegue estabelecer formas narcisistas de relações objetais, de modo que a incapacidade para lidar com a perda do objeto o condena à regressão e à identificação narcisista, surgem questionamentos sobre como se dá o movimento transferencial/contratransferencial nesses casos.
Sem carinho e sem coberta, no tapete atrás da porta, reclamei baixinho
As condições do setting analítico favorecem o estabelecimento de transferências, que são as reedições de impulsos, lembranças e fantasias que experimentamos com as pessoas significativas da nossa história. É raro que um interlocutor deixe de lado seus interesses pessoais para se entregar ao relato dos nossos pensamentos, dissabores e memórias, enquanto os organiza com a paciência de quem monta um quebra-cabeças. Quando nos tornarmos o foco exclusivo de atenção e interesse, regredimos aos momentos do ideal narcísico de onipotência. Assim, a transferência é um destino, e será por isso mesmo que, conforme Ferenczi, "o médico [analista] é sempre e exclusivamente um desses 'espectros' (Freud) que fazem ressuscitar no paciente as figuras desaparecidas de sua infância" (1909/1991d, p. 91).
A repetição transferencial, em sua versão neurótica ou melancólica, almeja realizar tudo aquilo que não pôde acontecer no passado, o que nos leva a trabalhar em um terreno que se pode escavar para descobrir o que subjaz às lembranças encobridoras. No artigo "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte" (1929/1991a), Ferenczi enumera os pontos a serem observados na história da criança e de seu par parental. O pressuposto é de que "todos os indícios confirmam que essas crianças registraram bem os sinais conscientes e inconscientes de aversão ou de impaciência da mãe, e [sua] vontade de viver viu-se desde então quebrada" (pp. 48-49). No caso do nosso paciente, mesmo tendo sido um filho desejado pelos pais, foi uma criança mal acolhida em sua singularidade, sem espaço para expressar seus afetos, agressividade e rebeldia diante das figuras de autoridade. Tampouco a sua extrema timidez pôde ser vista como algo que dificultava a sua socialização. Foi criado dentro da redoma que o pai construiu, mas sob o "chicote" das expectativas maternas onipotentes, em uma mistura de anseios parentais que contribuiu para fixar a sua disposição narcísica e o seu corolário. Neste ponto, convém lembrar a reflexão de Hornstein (2009) sobre o predomínio da vulnerabilidade da autoestima nos quadros narcísicos: muito sensíveis aos fracassos e desilusões e propensas a fantasias grandiosas, centradas em si mesmas, com uma configuração objetal muito variável, as personalidades narcísicas tornam-se dependentes de reconhecimento e admiração, sendo decisiva a função do outro nas flutuações do sentimento de autoestima.
No nosso paciente, tal constituição psíquica na infância possibilitou a instalação do processo melancólico, ao facilitar o represamento das catexias libidinais no próprio eu e em nada contribuir para a elaboração dos processos de perda e luto. Os reflexos desse enquistamento narcísico incidiam em múltiplas direções. No âmbito familiar, a mãe, desolada e perplexa, assim se expressou: "Não consigo entender como ele pode, com essa pandemia matando sem parar, com tanta gente passando fome ao nosso redor, continuar olhando só para o próprio umbigo". No contexto da transferência, atualizando-se o que não pôde ser vivido no passado, esperaríamos manifestações de agressividade, de transgressão das regras do enquadre analítico, de ausência de qualquer valorização da escuta clínica ou de quem a sustentava. Tudo isso se apresentou nessa análise, mas não a ponto de encharcar a analista de um ódio que inviabilizasse a sua reverie ou que impedisse um encontro em que ela pudesse exercer a arte de "sentir com" - que é a grande aposta de todo tratamento.
A disponibilidade interna na função analítica requer, no mínimo, que o analista em sua infância tenha alcançado uma fluidez no trânsito das catexias libidinais, conseguindo, com mais facilidade, alternar os investimentos no objeto e no eu. Essa é a precondição subjetiva para a possibilidade de vir a ser analista, conforme lembra Figueiredo quando enfatiza a necessidade da "contratransferência primordial", que nos coloca diante do sofrimento "antes mesmo de saber do que e de quem se trata" (2003, p. 128). Tal atitude equivale à disponibilidade para funcionar como suporte de transferências e para deixar-se afetar pelo sofrimento do outro em seus aspectos incompreensíveis e desconhecidos, em suas modalidades afetivas e comportamentais profundas e primitivas. Embora a propensão do psiquismo para servir de suporte às transferências alheias seja fortemente atacada, como é o caso que aqui descrevemos e que exigiu da analista muita habilidade para manter-se viva e funcional, a contratransferência primordial não se dissolve. Pelo contrário. Isso porque, quando nos mantemos na posição de analista, apesar de feridos narcisicamente pela incapacidade de salvar o paciente do sofrimento, nós nos tornamos mais sensíveis a esse sofrimento, o que é o oposto do que seria o "fortalecimento do narcisismo patológico do analista" (Figueiredo, 2003, p. 132).
Talvez o aspecto que me deu forças para sair do estado letárgico de luto melancólico tenha sido a alegria diante da possibilidade de coser as bordas da fissura narcísica abissal que essa análise em mim instalava, pois afirmei, peremptoriamente, que ele não queria mais morrer. A pergunta "E você? Você vai ao meu velório?" explicitou, pela primeira vez, o pedido de que eu declarasse o que sentia por ele. A fagulha que reacendeu a esperança que vinha se perdendo foi a percepção do movimento de introjeção da minha pessoa em um psiquismo que enfrentava grande dificuldade em introjetar novos objetos de amor e de ódio.
Eu te estranhei
No dia seguinte à sessão aqui narrada, ainda soava em mim a pergunta: "Como Romeu e Julieta?". Esse era um dos elos que precisavam se reconectar, por ser a "informação unilateral" que, como uma associação livre, jogava alguma luz no caso. Os afetos pareciam muito distantes da tragédia, mas relembrei trechos da sua história familiar. Imaginei o que teria se passado entre os Montecchio e os Capuleto e dificultado as tramas da paixão ilusória e necessária do nosso pequeno Édipo, impedindo-o de abandonar a imago materna, gigantesca e impiedosa, e enxergar a sua outra face, amorosa e delicada. Talvez fosse possível desatar os elos rígidos que ligavam essa figura emblemática, representante da mulher castradora, à mãe da realidade e seus excessos de zelo, para que ele pudesse vivenciar, ainda que a posteriori, um breve apaixonamento por sua Julieta. Essa demanda anacrônica poderia ser uma das responsáveis por ele estar sempre perdido no tempo.
Sabendo quão árduos são os caminhos da edipianização e como podem ficar emaranhados em questões narcísicas, só nos restava apostar que algo brotaria nesse quiasma. Antes de tudo, a identificação maciça com o objeto primário teria de se dissolver, para que dele fosse tomada uma certa distância. Somente depois de aberta essa hiância seria possível a criação de uma representação da mãe, como alteridade, para que ela se tornasse objeto de desejo - com a particularidade de que, nas perturbações graves do psiquismo, como é o presente caso, o narcisismo desempenha um papel mais importante do que o Édipo, como nos lembra Joyce McDougall. Isso porque, no inconsciente, a sobrevivência ocupa um espaço maior do que o conflito edipiano, a ponto de, para alguns indivíduos, "a problemática do desejo [ser] um luxo" (McDougall, 1983, pp. 116-117).
Os momentos inaugurais de relação com o primeiro objeto de amor sempre modelarão as vicissitudes do conflito edipiano ao longo de suas linhas de evolução. Os desencontros de tempo no idílio shakespeariano, que enlaçaram os amantes num pacto de morte para que pudessem finalmente viver o amor, pareciam, também aqui, se configurar: um morrendo pelo outro - enlace metafórico da introjeção do objeto perdido e dos desígnios da clivagem instaurada nesse movimento psíquico.
Para finalizar esta breve apresentação do momento angustiante de encruzilhada transferencial, vale a pena mencionar que, após o apagar das luzes, a analista conseguiu dormir bem a noite inteira - o que não deixava de ser um indício tranquilizador de que havia cumprido o seu papel. Talvez isso tenha acontecido porque, como reflete Reis, a analista ocupou um lugar ao mesmo tempo semelhante e diferente das figuras parentais do paciente; por isso, no atendimento clínico, é importante que nos coloquemos disponíveis para "sentir com" o paciente, "para acompanhá-lo em sua viagem, às vezes como testemunha de sua dor, mas também como peça imprescindível para a reconciliação e o reencantamento do mundo" (2017, p. 87).
No dia seguinte, recebi uma mensagem da mãe do cliente dizendo saber que a sessão tinha sido muito pesada e que ele havia chorado demais. "Mas parece que isso fez bem para ele, pois reagiu", ela disse. "Ele se levantou, tomou banho e se aprontou para sair de casa." Interpelado sobre para onde iria em meio ao lockdown decretado na cidade, respondeu que encontraria alguma utilidade na vida: decidira ajudar uma comunidade carente em um bairro próximo. Mesmo não sabendo por quanto tempo ele sustentaria essa iniciativa, a mãe ficou contente por ele ter conseguido reunir forças para sair da cama e se relacionar com a penúria da realidade circundante - o que, com certeza, teria algum efeito sobre o seu estado depressivo.
Não sabemos quanto tempo será necessário para que as pulsões de vida tomem o leme dessa subjetividade, pois, como reflete Freud, "a melancolia nos confronta com outros problemas, cuja compreensão em parte nos escapa. O fato de desaparecer após certo tempo, sem deixar quaisquer vestígios, ... é uma característica que ela compartilha com o luto" (1917[1915]/1976a, p. 285). No caso aqui descrito, esperamos que a posição melancólica desapareça e que sejam liberadas moções libidinais que alimentarão a montagem identificatória do paciente, dando novos sentidos às veredas edipianas.
Quando olhaste bem nos olhos meus
Depois de meses tendo de aceitar as sessões online como única opção que a realidade da pandemia impôs, agora podemos fazer algumas considerações sobre os efeitos dessa modalidade de atendimento.3 No caso do nosso paciente, durante algumas semanas ele resistiu a prosseguir sua análise por meio remoto. Depois reconsiderou essa decisão e instalou-se no novo setting, mas de maneira singular: aninhou-se a um palmo de distância da câmera do computador, de modo que seu olhar fixo se voltasse para cima. Nas sessões, surgiram aspectos aprofundados e emoções intensas, como se tivesse introjetado a função analítica dos nossos encontros. Essa mudança evoca as reflexões de McDougall sobre o encastelamento de Narciso em si mesmo como a delimitação de um espaço impregnado de decepção e desespero. Retomo, aqui, uma hipótese cabível para este caso:
[Não] poderíamos supor ... que essa criança frágil, à espreita de uma imagem de si mesma duplicada, procura no espelho das águas um objeto perdido, diferente dela, um olhar? E que esse olhar é o mesmo que toda criança busca avidamente nas pupilas maternas - reflexo destinado a devolver não apenas a sua imagem especular, mas também tudo aquilo que ela representa para a mãe? (McDougall, 1983, p. 116)
Nesse sentido, supomos que o nosso paciente se debruçava sobre a tela de cristal líquido para buscar, no reflexo do olhar da analista, o olhar materno - objeto perdido para sempre -, sombra que se abatia sobre o seu eu e deflagrava a penúria de um longo processo melancólico.
Por mais paradoxal que seja, é preciso admitir que a dor vivenciada pelo paciente durante a sessão narrada no começo deste artigo propiciou uma experiência estruturante para o seu discurso. A nova lente imagética, instalada por força das circunstâncias em sua análise, inaugurou uma via para que a representação de coisa (que permanece no inconsciente e é da ordem da imagem) se ligasse a uma representação de palavra. As associações livres passaram a mostrar esse processo migratório: o uso habitual da dimensão discursiva e defensiva, de ordem cética e restrita à radicalidade de uma lógica racional, cedeu espaço à forte pregnância da imagem visual e dos rituais místicos de modo imperativo em seu primitivo mundo interno, até então guardado a sete chaves. Passou a falar do conhecimento adquirido, ao longo dos anos, por um psiquismo que, organizado de maneira obsessiva, racional e lógica, tentava negar e dominar a vulnerabilidade humana inaceitável. Mostrou desenhos e coleções de símbolos religiosos e místicos, de que se utilizava para protegê-lo nas situações adversas da vida.4 Formulei internamente a hipótese de que essa seria a função da suplência simbólica dos objetos primordiais em um psiquismo em reconstituição. Se, no plano espacial, a imagem representa o aquém da linguagem, é preciso um hiato de silêncio para que ela se reapresente em sua forma linguística.
Segundo Ferenczi, a experiência psicanalítica mostra que a principal condição para que surja um verdadeiro símbolo não é de natureza intelectual, e sim afetiva:
Só podemos considerar símbolos, no sentido psicanalítico do termo, as coisas (representações) que chegam à consciência com um investimento afetivo que a lógica não explica nem justifica, e cuja análise permite estabelecer que elas devem essa sobrecarga afetiva a uma identificação inconsciente com uma (o símbolo) outra coisa (representação), à qual pertence efetivamente esse suplemento afetivo. Por conseguinte, nem toda comparação é um símbolo, mas unicamente aquela da qual um dos termos está recalcado no inconsciente. (1913/1991c, p. 116)
Como dissemos, recorrer a um símbolo desenhado em um papel antes do enfrentamento do momento difícil, em uma espécie de ritual, deixava-o preparado para assumir o controle do que estava à sua volta. Mas seria também um movimento para nos autorizar a endossar a função da imagem no campo da clínica, corroborando o que afirma Rolland: "A imagem é um material essencial ao aparelho psíquico; um dos três suportes da vida do espírito: entre a linguagem, que nos põe em comunicação uns com os outros, ... e a negatividade do inconsciente" (2016, p. 27).
Apesar das limitações dos atendimentos online, que com certeza contrastam com a qualidade da nossa presença junto ao paciente, temos de admitir que em alguns casos (como no exemplo que acabamos de ver e em muitos outros de pacientes com tendências esquizoides) a própria tela pode funcionar como um "escudo de cristal" e substituir outras defesas psíquicas, que uma vez dispensadas permitem que se instalem novos canais de comunicação entre a dupla analítica. As experiências que estamos vivendo mostram como os campos da imagem e da linguagem se encontram em uma relação de complementaridade e, ao mesmo tempo, de exclusão.5 Como diria Rolland, "o gênio proteiforme da imagem pode fazer com que ela seja ora da ordem do visível, ora do invisível" (2016, p. 28).
Aguardemos, portanto, o "admirável mundo novo" que surgirá após a pandemia. Afinal, não é a primeira vez nem será a última que a humanidade se defronta com o desconhecido que salta das telas. Convém lembrar do espanto traumático com que foi recebida a criação do cinema. Em 28 de dezembro de 1895, na cidade de La Ciotat, no sudoeste da França, os irmãos Lumière apresentaram a película L'arrivée d'un train en gare de La Ciotat [A chegada de um trem à estação de La Ciotat]. Em poucos segundos, a visão da enorme locomotiva se movimentando na tela fez com que as pessoas fugissem desesperadas para o fundo da sala, com medo de serem atropeladas. Agora não fugimos. Aliás, nem temos para onde correr. O inimigo é invisível e onipresente.
Referências
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Recebido em 20/7/2020
Aceito em 15/12/2020
1 Canção "Atrás da porta", composição de 1972, letra de Chico Buarque e música de Francis Hime.
2 Conforme Ferenczi, esse movimento psíquico de dormir o tempo todo, ao longo do processo melancólico, tem uma conotação regressiva: "O primeiro sono é, portanto, a reprodução bem-sucedida da situação intrauterina que preserva, tanto quanto possível, das excitações externas, com a provável função biológica de concentrar a totalidade da energia nos processos de crescimento e regeneração, sem ser perturbado por uma tarefa exterior a realizar. ... Mesmo o sono posterior nada mais é senão uma regressão periódica e repetida ao estágio de onipotência alucinatória mágica" (1913/1991b, p. 51).
3 Cabe aqui uma advertência: a despeito dos efeitos positivos do atendimento online no caso aqui apresentado, isso não significa que tal modalidade de atendimento deva ser oferecida, indiscriminadamente, para todos os casos de depressão grave e melancolia, nos quais existe risco de suicídio. Deve-se ter em mente que, por mais que as sessões virtuais tenham facilitado a passagem da função imagética para o mundo da linguagem verbal, e assim ajudado o paciente a se movimentar psiquicamente para além da estagnação melancólica, o bom desfecho do tratamento (aqui brevemente relatado) se deve, sobretudo, ao manejo da transferência estabelecida desde a primeira vez que o paciente iniciou a análise, no começo da puberdade. Esta foi retomada alguns anos depois, em plena adolescência, estendendo-se à sua vida adulta - momento em que a pandemia impôs o atendimento virtual. Portanto, tínhamos de prosseguir. Mas cabe ao analista, antes de se decidir entre sessões presenciais ou virtuais, calcular muito bem o risco de atos extremos nesses casos difíceis.
4 Um bom exemplo do que Ferenczi (1913/1991b) chamaria de discordância do obsessivo: a coexistência inexplicável da lucidez e da superstição.
5 Poderíamos pensar no porvir de um processo analítico de um adoecimento melancólico que tivesse de ficar restrito ao atendimento online, devido às ondas de pandemia nos próximos anos. Que o destino que aguarda os sujeitos narcísicos, até então indiferentes a todos, não seja o de prestar atenção no outro apenas e tão somente como uma forma de evitar o contágio, o que os faria mergulhar em ondas de persecutoriedade.