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Estudos de Psicologia (Natal)
versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669
Estud. psicol. (Natal) vol.26 no.3 Natal jul./set. 2021
https://doi.org/10.22491/1678-4669.20210027
10.22491/1678-4669.20210027
TEMAS EM POLÍTICAS SOCIAIS: ASSISTÊNCIA SOCIAL E SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS
Luto e sobrevivência: a luta das comunidades tradicionais pesqueiras nos contextos da pandemia da Covid-19
Grief and survival: the struggle of traditional fishing communities in the context of the COVID-19 pandemic
Luto y supervivencia: la lucha de las comunidades tradicionales pesqueras en los contextos de la pandemia del Covid-19
Antônio Vladimir Félix-SilvaI; Camila Batista Silva GomesII
IUniversidade Federal do Delta do Parnaíba
IIArticulação Nacional das Pescadoras. Conselho Pastoral dos Pescadores José Lucas Soares de Araújo. Psicólogo autônomo
RESUMO
Em um cenário no qual a soberania do capital e o estado de exceção borram as fronteiras entre poder de vida e políticas de morte, a pandemia da Covid-19 amplia a precarização da vida. O objetivo é analisar processos de subjetivação e enunciação de luta, luto e sobrevivência nas comunidades pesqueiras no acesso à saúde e à assistência social. Trata-se de uma cartografia como modo de fazer pesquisa, cuja produção de informações se deu por meio do rastreio, pouso e reconhecimento junto ao Observatório dos Impactos do Coronavírus nas Comunidades Pesqueiras. Os resultados mostram um devir comum na luta, diante do luto e da sobrevivência; a vida de todas as gerações importam e todas as vidas e mortes são passíveis de luto e de luta; processos de exclusão-inclusão no acesso ao auxílio emergencial em meio à suspensão do trabalho da pesca artesanal e do seguro defeso.
Palavras-chave: covid-19; luta; luto; sobrevivência; comunidade tradicional pesqueira.
ABSTRACT
In a scenario in which the sovereignty of capital and the state of exception blur the boundaries between the power of life and policies of death, the Covid-19 pandemic amplifies the precariousness of life. The objective is to analyze processes of subjectivation and enunciation of struggle, grief, and survival in fishing communities in terms of access to health and social assistance. We used cartography as a way of doing research, which produced information through tracing, landing, and recognition methods along with the Observatory of the Coronavirus Impacts on Fishing Communities. The results show a common becoming in the struggle, in the face of grief and survival; the lives of all generations matter, and all lives and deaths are susceptible to grief and struggle; processes of exclusion-inclusion regarding government emergency financial help, the suspension of artisanal fishing work and Close Season Insurance.
Keywords: covid-19; struggle; grief; survival; traditional fishing community.
RESUMEN
En el escenario, en el cual la soberanía del capital y del estado de excepción borran las fronteras entre el poder de vida y las políticas de muerte, la pandemia del Covid-19 amplia la precarización de la vida. El objetivo es analizar procesos de subjetivación y enunciación de la lucha, del luto y de la supervivencia en las comunidades pesqueras en el acceso a la salud y a la asistencia social. Se trata de una cartografía como modo de investigar, cuya producción de informaciones ocurrió por medio de rastreo, poso y reconocimiento junto al Observatorio de los Impactos del Coronavirus en las Comunidades Pesqueras. Los resultados muestran un devenir común en la lucha, frente al luto y la supervivencia; la vida de todas las generaciones importa y todas las vidas y la muertes son pasibles de lucha y luto; procesos de exclusión-inclusión en el acceso a la ayuda económica gubernamental de emergencia en medio a la suspensión del trabajo de la pesca artesanal y del seguro de protección para la temporada de pesca vedada.
Palabras clave: covid-19; lucha; luto; supervivencia; comunidad pesquera tradicional.
A partir da grave situação-problema de saúde pública que vem se configurando com a pandemia da Covid-19, acostumados com a liberdade de ir e vir nos territórios das águas, pescadoras e pescadores artesanais passaram a gerir a vida, ora entre o isolamento social e o trabalho artesanal, ora entre ser guardiãs do território e a necessidade de deslocamentos para acessar serviços assistenciais, como auxílio emergencial, seguro-defeso e cestas básicas, além de atendimento médico e hospitalar.
A pandemia da Covid-19 teve seu agente, novo Coronavírus SARS-Cov-2, identificado, inicialmente, na China, em dezembro de 2019. O registro do primeiro caso da doença, no Brasil, é do final de janeiro de 2020, ainda que a primeira divulgação seja de 26 de fevereiro. Os critérios de isolamento social horizontal foram regulamentados pelo Ministério da Saúde na primeira quinzena de março, e logo adotados por estados e municípios, com funcionamento de serviços essenciais para alguns e quarentena para outros. Não obstante, o exponencial número de mortes mais de 100 mil, nos Estados Unidos e mais de 28.000, no Brasil, só nos primeiros três meses (até 30/05/ 2020) deve-se à escolha pela soberania do capital.
A análise de Judith Butler (2018, 2019), a partir de sua tese sobre vida precária, luto, violência e ética da convivência, nos permite afirmar que nunca convergiu tanto o modelo econômico neoliberal dos EUA com a governabilidade imposta pelo Brasil como nesse contexto de pandemia. Esses governos têm em comum o apego às instituições de violência, à militarização da sociedade e da política, à ampliação das injustiças sociais, à negação e à destruição de direitos de cidadania, além do apego à destruição dos ecossistemas e aos danos ecológicos e socioambientais e à intensificação das desigualdades econômicas, acelerando a condição precária da vida (Butler, 2018). Para tais governos, prevalece a racionalidade do mercado na hora de decidir quais saúdes e quais vidas são reconhecidas e devem ser protegidas, bem como quais populações e quais vidas são consideradas descartáveis (Butler, 2018). Dito isso, quais vidas são passíveis de luto, diante das perdas por Covid-19?
Em um cenário, no qual estão borradas as fronteiras entre políticas de controle de vida e morte, a pandemia da Covid-19 afeta diretamente a saúde e sua determinação social, sobretudo no que se refere à sobrevivência nas comunidades tradicionais. Como as comunidades tradicionais de pesca artesanal estão enfrentando as contingências impostas pela pandemia? Como as pescadoras e os pescadores artesanais estão tendo acesso à saúde e às medidas de mitigação dos impactos socioeconômicos causados pela pandemia da Covid-19? A partir dessa problematização, objetivamos, com este estudo mediado pelo uso das redes sociais virtuais como campo de pesquisa: a) analisar processos de subjetivação e enunciação do luto, da luta e da sobrevivência nas comunidades pesqueiras em tempos da pandemia; b) caracterizar modos de acesso emergencial aos serviços de saúde e à assistência social.
Neste estudo, compreendemos saúde como campo de disputas políticas frente à sua determinação social, ou seja, frente não só ao estilo de vida, comportamento humano e riscos ambientais, mas também frente às relações de poder entre os agentes sociais (mediações intersubjetivas) e as medições semióticas relacionadas com as instâncias econômicas, sociais, políticas e culturais e interseccionais (classe, raça/etnia, gênero, sexualidade, geração, região...). Desse modo, as disputas em torno da determinação social da saúde, no contexto das comunidades tradicionais pesqueiras, tanto podem reduzir as condições de vulnerabilidade como podem ampliar a precarização da vida, haja vista que, no contexto de pandemia, a promoção da saúde também é resultante do acesso ao território vivo das águas e ao trabalho artesanal, à renda e à segurança alimentar, ao seguro-defeso e ao auxílio emergencial, bem como do acesso aos serviços assistências e de atenção à saúde.
Na perspectiva de uma cartografia do luto, da luta e da sobrevivência, no território tradicionalmente ocupado por pescadoras e pescadores artesanais, convergimos com Butler (2018), quando ela afirma que Michel Foucault (citado por Butler, 2018), com sua concepção de estratégias biopolíticas de gestão da vida e da morte e também Achille Mbembe (citado por Butler, 2018), com o conceito de necropolítica, nos ajudam a compreender que há diferenças entre políticas de morte explícita a "determinadas populações e políticas que produzem condições de negligência sistemática que na realidade permitem que pessoas morram" (Butler, 2018, p. 17).
Agamben (2017a) também parte da tese de Foucault (citado por Agamben, 2017a), segundo a qual, no contemporâneo, o que está permanentemente sendo colocado em jogo é a vida o biopoder e a necropolítica: o poder de vida e subtração da dimensão política da vida e o poder de morte "da forma-de-vida como vida política" (2017a, p. 16), sabendo que essa forma de vida "designa acima de tudo uma vida que se pode matar sem cometer homicídio" (Agamben, 2017b, p. 295). Ao ordenamento jurídico-político desse processo de exclusão inclusiva, o filósofo italiano denomina estado de exceção e, a partir da análise desse dispositivo1, apresenta sua tese, segundo a qual "a vida não é política em si mesma por isso, ela deve ser excluída da cidade; contudo, é justamente a exceptio, a exclusão-inclusão desse Impolítico que fundamenta o espaço político" (Agamben, 2017b, p. 295).
Nesse campo de disputas infindáveis, "a tradição dos oprimidos nos ensina que o 'estado de exceção' no qual vivemos é regra" (Benjamin, citado por Agamben, 2017a, p. 17) e funciona como um dos dispositivos que caracterizam a soberania do capital na contemporaneidade: uma biopolítica que nos expõe não só aos processos de sujeição, mas também aos processos de subjetivação, dessubjetivação e ressubjetivação, agenciados tanto pelos dispositivos estatais como pelos próprios sujeitos (Agamben, 2016). Nesses processos de subjetivação e de sujeição, "está em jogo o próprio viver e, no seu viver, está em jogo, antes de tudo, o seu modo de viver" (Agamben, 2017a, pp. 15-16). Nesse sentido, a sobrevivência é associada à posição de resto, à vida como resto, e o que resta é a sobrevivência como testemunho da forma de se singularizar e de desativar o dispositivo (Agamben, 1998/2008).
Didier Fassin (2019) defende o conceito de política da vida a partir da concepção de vida em Derrida, para quem a sobrevivência à morte não é só o que resta: a vida é sobrevivência e a sobrevivência à morte é a vida além da vida, ou seja, uma vida mais intensa possível (Derrida, citado por Fassin, 2019, Tradução nossa). Em Butler, encontramos não uma negação de que a vida não é política em si mesma, nem necessariamente uma afirmação da política da vida, mas uma problematização:
Não haveria uma razão política para repensar a possibilidade de comunidade com base na vulnerabilidade e na perda [...], sem considerar uma dimensão da vida política que tem a ver com nossa exposição à violência e nossa cumplicidade para com ela" (Butler, 2019, p. 39).
A filósofa nos faz lembrar que minorias "[...] são como comunidade, sujeitas à violência, expostas à sua possibilidade, se não a sua concretização" (Butler, 2019, p. 40).
Antes da autoidentificação de comunidade como sujeito de direto, tal como se encontra na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, o ordenamento jurídico-político para esse reconhecimento, muitas vezes, não deixava de buscar no imaginário social uma comunidade idealizada em uma identidade que se supunha tradicional, no passado. Tal processo de subjetivação e sujeição era segmentado em um olhar estrangeiro sobre religião, modo de se vestir, de se alimentar, de viver e de morrer, velar o corpo e vivenciar o luto a partir de vestígios etnográficos e iconográficos que servissem como prova irrefutável. No entanto, a autoafirmação comunidade tradicional se define a partir de um território existencial vivo (Santos & Silveira, 2010), local de produção de vida e de bens materiais e simbólicos, no presente, portanto, "não passa pelo resíduo, pela sobra ou 'pelo que foi e não é mais', senão pelo que de fato é, pelo que efetivamente é vivido" (Marques, 2018, p. 135).
O território das águas, tradicionalmente ocupado por pescadoras e pescadores artesanais, pertence à União. Como os povos indígenas e os povos remanescentes de quilombolas, os povos das águas não têm direito de propriedade dessas terras, tampouco a pescadora artesanal ou o pescador artesanal reivindica um direto de propriedade individual. A luta pelo reconhecimento e pela regularização do território das comunidades tradicionais pesqueiras, encampada pelos movimentos de pescadoras e pescadores, ainda é uma forma de resistência à lógica colonial-capitalística. Trata-se de uma luta por não abrir mão de "uma zona de vida comunitária que faz uso" como o que resta (Agamben, 2016,
p. 13), zona que implica a não separação das ecologias ambiental, subjetiva e social (Guattari, 2012). Ou seja, uma zona de usufruto e existência de vida comunitária que, o tempo todo, a soberania do capital, através dos empreendimentos econômicos de grande porte, tenta separar da vida e do seu modo de viver. "Podemos dizer, portanto, que esse problema é puramente político, ou ao menos, comunitário" (Agamben, 2016, p. 13).
Diante das perdas por morte e dos impactos socioeconômicos provocados pela pandemia, "[...] num momento em que o fascismo e sua apologia da morte e da violência dominam [...]" a sociedade brasileira (Albuquerque Júnior, 2019, s/n p.), como nos mostra Durval Muniz de Albuquerque Júnior , o luto coletivo nos interpela sobre o sentido do poder transformador da vida. Neste contexto, a palavra oral e escrita é a maneira que encontramos para narrar não só "as marcas deixadas por esse grande trauma coletivo" (Albuquerque Júnior, 2020, p. 7), mas também para narrar a luta contra o desejo coletivo de morte que os inimigos da vida humana e não humana querem impor às minorias que eles consideram indignas de viver (Albuquerque Júnior, 2019, 2020).
Nesta perspectiva, escrevemos este relato de pesquisa sobre luta, luto e sobrevivência nas comunidades tradicionais pesqueiras. Escrevemos como quem escreve à moda de orelhas de livro e conchas do mar para escutar as vozes das águas que ecoam do silêncio e das palavras de pescadoras e pescadores artesanais e parceiras e parceiros. Luto e luta, silêncio e palavra que desassossegam nosso corpo, e que podem nos fazer fugir ao abandono, abandonar-se e "recorrer a um 'nós'", pois todas e todos nós temos experiências de luto, como ressalta Butler (2019), ou "temos a noção do que é ter perdido alguém" (p. 40). Neste sentido, o que nos remete ao luto, à luta e à sobrevivência, na assertiva de Butler (2019), é o que é a vida e sua dimensão política no território das águas, onde vida humana e vida não humana coexistem com políticas de morte ao território de existência das comunidades tradicionais pesqueiras, bem antes da pandemia do coronavírus.
Rastreio, pouso e reconhecimento cartográfico
A cartografia como modo de fazer pesquisa-intervenção pode ser compreendida como uma rede em constante processo de construção, de formação e deformação, a partir do plano da experiência e da composição das paisagens psicossociais engendradas no próprio percurso da produção de conhecimento (Passos & Barros, 2009). Neste sentido, o aspecto interventivo deste relato de pesquisa se expressa de forma explícita na produção de informações junto a uma rede social virtual como campo de pesquisa, a qual está sendo realizada sob o caráter de apoiadores, participantes e membros de coletivos dos movimentos sociais pesqueiros.
É nos contextos das comunidades tradicionais pesqueiras que, ao longo de mais de três anos, estamos realizando pesquisas por meio de cartografias, compondo o território das águas e os movimentos de pescadoras e pescadores artesanais, ora como parceiros e pesquisadores, ora como membros do Conselho Pastoral dos Pescadores CPP, da Articulação Nacional das Pescadoras Artesanais - ANP e do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais MPP/Brasil. Este relato de pesquisa, referente à produção de informações via uma rede social virtual, é um recorte desses estudos sobre processos de subjetivação, determinação social da saúde e movimentos de luta e resistência das comunidades tradicionais pesqueiras (CAAE 03051018.8.0000.5214). Estudos que seguimos realizando com autorização institucional das coordenações da ANP e do MPP, que representam 18 estados do Brasil.
Referimo-nos ao Grupo Observatório dos Impactos do Coronavírus nas Comunidades Pesqueiras - ObCovid-19/Pesca como campo de pesquisa. Grupo de WhatsApp, do qual fazemos parte e que foi criado em 17 de março de 2020, pelos movimentos sociais pesqueiros e instituições parceiras, cientistas e pesquisadores de algumas universidades que atuam na defesa da pesca artesanal e dos territórios pesqueiros e dos direitos de pescadoras e pescadores artesanais. Depois, foi lançado um Blog, no qual são divulgados Boletins Diários, Boletins Epidemiológicos e Boletins Mensais. O primeiro boletim diário foi publicado no dia 21/03/20.
Esta pesquisa foi realizada entre março e maio de 2020. Durante esse período, foram emitidos: três Boletins mensais; 70 Boletins Diários, entre 21/03 e 30/05/2020; e oito Boletins Epidemiológicos, entre a décima quarta semana e a vigésima primeira semana, ou seja, de 29/03 a 23/05/2020. Os boletins epidemiológicos e mensais são sistematizados a partir de um relatório disponibilizado no Blog do observatório e preenchido por participantes das regionais do CPP.
Para cartografar os enunciados e informações produzidos pelo Grupo ObCovid-19/Pesca como rede social virtual, seguimos as quatro variedades da atenção do cartógrafo propostas por Kastrup (2009): rastreio, toque, pouso e reconhecimento atento. O processo de rastreio ocorreu por meio de varredura diária, explorando, inicialmente, de forma assistemática, mensagens escritas, áudios, podcasts, blogs, Cards de divulgação de lives e outras redes sociais tais como Facebook e Instagram. O toque deu-se, especialmente, em áudios de pescadoras e pescadores artesanais e em mensagens da coordenação do CPP, por meio das quais vislumbrávamos processos de produção de informações. O pouso aconteceu por meio de nossa interação na rede social virtual e fez com que selecionássemos entradas, por meio das quais reconheceríamos possíveis analisadores. Assim, um pouso levou a outros pousos em outros territórios: Blog do observatório, onde consultamos os boletins; Live da Teia de Saberes, realizada no dia 27/05/2020, cujo anfitrião, Fernando Carneiro (2020), recebeu Eliete Paraguassú, mulher quilombola e marisqueira de Ilha de Maré (BA), Carlos Brandão e Boaventura de Sousa Santos.
Além da transcrição da fala da marisqueira Eliete, transcrevemos narrativas de 17 pescadoras e pescadores artesanais, de momentos nos quais as discussões e debates se acirravam ou nos sensibilizavam a todas e todos que participamos do ObCovid/Pesca. Utilizamo-nos de informações sistematizadas e publicadas no Boletim Epidemiológico 01, 14ª Semana (29/Mar/2020 a 04/Abr/2020) e nos Boletins Diários 33 (22/Abr/2020), 67 (26/Mai/2020 e 71 (30/Mai/2020). Nestes, constam, diariamente, todos os nomes de pescadoras e pescadores ou de outras pessoas com suspeita ou confirmação de Covid-19, curadas ou que vieram a óbito, além da idade de cada um/uma e o nome da comunidade pesqueira e da cidade.
O reconhecimento atento dos processos de subjetivação e enunciação em torno do que a pandemia de Covid-19 nos faz ver acerca das comunidades tradicionais pesqueiras, nos possibilitou reconhecer nos enunciados analisados, o luto, a sobrevivência e a luta como matérias de expressão desses processos.
Luto, luta e sobrevivência nas comunidades de pesca artesanal
De Norte a Sul do Brasil, barcos de pesca industrial seguiram no mar, feito celebrado pelo Sindicato dos Armadores de Pesca do Estado do Rio de Janeiro ("Pesca de arrasto em SC", 2020). Também nessa modalidade de pesca, entre o litoral do Piauí e do Ceará, a Vigilância Sanitária e a Secretaria de Pesca de Luís Correia-PI, no início de maio, estavam planejando ações junto aos armadores de pesca que embarcam e desembarcam em portos de capitais de estados do Norte e Nordeste, onde estava tendo maior incidência de casos da Covid-19. No Sudeste e no Sul, por conta da pesca de arrasto, da safra da tainha em Santa Catarina e da safra do camarão no Rio Grande do Sul, a preocupação era com o número de pescadores para evitar aglomerações e respeitar distância mínima entre eles (Luz, 2020).
Em menos de um mês, Ana Flávia e Mary, do CPP, divulgavam, no ObCovid/Pesca, o óbito de Cristiano Corrêa Couto (47 anos), pescador da comunidade de Zimbro-SC, cujo barco estava no litoral paulista. Antes da prefeitura de São Sebastião-SP divulgar o resultado da testagem e confirmar causa morte por coronavírus, o corpo seguiu pelo mar até Navegantes-SC, onde foi velado pela família sem orientação de cuidados sanitários de prevenção à doença. Nesse dia, essa informação também saiu no Boletim Diário 67 (26/Mai/2020). Depois da volta do barco a Navegantes-SC, no qual acompanhavam o corpo mais 23 tripulantes, a testagem de 10 deu positivo para Covid-19 e de 13 deu negativo. A causa da morte do pescador foi divulgada como infarto e, até então, o departamento de Vigilância Epidemiológica de Navegantes não havia recebido informações sobre a suspeita de Covid-19 como possível causa da morte ("Pescador morre em barco; mais 10 são contaminados", 2020).
Escrevíamos no ObCovid/Pesca: nos contextos bastante diversificados das cidades do Brasil, faltam testes para diagnosticar a Covid-19 e faltam leitos, equipamentos de proteção individual, profissionais da saúde, hospitais, vacina e medicação confiável comprovada, e sobra defesa do uso da cloroquina, cujas pesquisas apontam que pode acelerar o processo do morrer, por parte do presidente e seus apoiadores, contrariando dois ministros da saúde que deixaram o governo, porque seguiam as orientações da Organização Mundial da Saúde.
Nesses contextos, a vida matável e morrível e as "políticas que produzem condições de negligência sistemática que na realidade permitem que pessoas morram" (Butler, 2018, p. 17) apontam para "[...] a implementação de um 'estado suicidário'" (Paul Virilio, citado por Safatle, 2020, p. 1).
Nas carreatas de morte, um desfile de privilegiados brancos gritam palavras de ordem, voltadas a colocar os seus empregados, pretos e pardos, para retornarem ao moedor de carne do sistema capitalista, apesar da morte de muitos deles. [...] A pandemia explicitou a face desumana do capitalismo, que em nome da preservação da economia, do PIB, da rentabilidade da Bolsa de Valores, é capaz de sacrificar milhares de vidas humanas (Albuquerque Júnior, 2020, p.10).
Nas palavras de Safatle (2020), o estado suicidário à brasileira, fundado na mistura de escravidão e capitalismo, sangue, silêncio e esquecimento, faz da revolta contra as injustiças sociais e contra governos e autoridades que seguem produzindo exclusão, um ritual de liquidação de si e dos corpos considerados invisíveis; tudo isso aplaudido por quem tem os circuitos dos afetos preso ao desejo de autodestruição e de sacrifício dos outros há gerações (Safatle, 2020).
No Brasil, estamos experimentando efeitos de uma racionalidade perversa com discursos de ordem político-fascista e de progresso socioeconômico neoliberal que seguem voltados à reprodução de um inconsciente colonial-capitalístico e à produção de subjetividade capitalística (Rolnik, 2018). Pensando com Guattari (1977/1981), podemos dizer que se trata de um agenciamento que se dá pela articulação de uma série de dispositivos sociais, equipamentos coletivos e instituições que trabalham no controle das subjetividades, tendo como efeitos processos de semiotização bastante eficientes que por meio de laços praticamente invisíveis vão aprisionando as subjetividades à teia de produção colonial-capitalística. Assim, nossos modos de viver, de amar, de sonhar e de trabalhar podem acabar reproduzindo meios de sujeição e relações servis, na medida em que podemos investir nosso desejo de modo inconsciente a toda essa lógica maquínica (Guattari, 1977/1981).
Luto
No início de abril, foram notificados 19 casos suspeitos da Covid-19, entre pescadoras e pescadores artesanais, sendo um de Januária-MG, quatro de Carutapera-MA e sete de Remanso-BA (Boletim Epidemiológico 01, 29/Mar/2020 a 04/Abr/2020). Na primeira semana de abril, Dona Ângela, da Colônia Z-14, relata um óbito que ocorreu na Praia de Atapuz, Goiana-PE:
[...] O professor que morreu daqui de Goiana, ele era professor da rede estadual, não era pescador, mas fez um trabalho muito importante aqui no Balde do Rio com as crianças, ele estava trazendo os jovens para conhecer a gente, tem cd gravado das filmagens que filmou aqui na Colônia, fizeram pesquisa, fizeram um trabalho com os pescadores lá no colégio, [...] Tava trazendo os jovens para fazer turismo comunitário, tava descendo com os jovens para conhecer as Resex, mostrando o que a gente tinha, educando eles, educando o que era o Balde do Rio. Então é isso, ele não era pescador, mas fazia um trabalho com o povo aqui na comunidade [...] (D. Ângela, ObCovid/Pesca, 01/ Abr/2020).
À semelhança do luto que a comunidade de Balde do Rio sente com a morte do professor, cujo reconhecimento de uma vida passível de luto pela comunidade é anunciado por D. Ângela, a comunidade de Encarnação, em Salinas da Margarida-BA, sente muito à morte da jovem Jádila (29 anos). Andréa relata:
Ela tinha Lúpus. Foi internada sábado [18/04] no hospital local com sintomas da Covid-19. Fez o teste rápido e deu negativo. Fez também o outro exame, mas o Lacen não deu o resultado ainda. Na segunda-feira [20/04] à tarde foi transferida para Salvador e estava na UTI do hospital Couto Maia. É de uma família tradicional de pescadores. E também desenvolvia a atividade (Andréa. Boletim Diário 33, 22/Abr/2020).
Três dias depois do enterro, saiu o resultado negativo para Covid-19. Os sentimentos foram compartilhados por nós e por outras comunidades pesqueiras e pelas pessoas de instituições parceiras, no ObCovid-Pesca, ainda mais sabendo que o corpo de Jádila havia sido enterrado sem o ritual de velório na comunidade, pois foram seguidas todas as recomendações sanitárias de caixão lacrado sem velório.
Como ressalta Butler (2019), o luto não é privado como muitas pessoas pensam, tampouco isola a pessoa enlutada em uma situação solitária. Podemos constatar isso nas comunidades tradicionais pesqueiras, haja vista que o comum sentimento de pertencimento ao território das águas faz com que muitas pessoas compareçam ao velório, independentemente, de cada uma delas ser evangélica, católica ou de religiões de matrizes indígena e africana. Não vivenciar esse ritual do velório pode deixar marcas que dificultam a elaboração do luto para quem sofre muito com a perda do ente querido. Como sabemos, esse ritual implica visualizar o rosto de quem perdeu a vida pela última vez, rezar, orar ou apenas está junto dos familiares, amigos e amigas, conversar sobre a vida de quem era possuidor(a) do corpo presente e ir ao enterro. No caso relatado, nada disso foi possível, as pessoas da família de Jádila e da comunidade, como várias pessoas que sofreram perdas durante a pandemia, foram interditadas de tudo isso e, por conta do distanciamento social, não puderam receber visitas, algo tão comum durante alguns dias consecutivos à perda por morte de alguém.
No mês de maio, tivemos 15 óbitos, seis pescadoras e nove pescadores, sendo uma marisqueira do bairro de Periperi (Salvador-BA), e cinco pescadoras de Pernambuco, dentre as quais, Dona Claudeci, pescadora de Itapissuma (PE). Dentre os homens, lamentamos a perda de um pescador de 93 anos e as mortes de Cristiano (SC), Mestre (Barra de São João-RJ), Seu Manun (CE), Seu Rubem (presidente da Colônia de Pescadores São João da Ponta-PA), Beba (Colônia Z-1, Recife-PE), do presidente da Colônia de Turilândia (MA), de um pescador da Comunidade de Pau Deitado (Poço do Lumiar-MA) e de outro pescador de São João Pirabas (PA) (Boletim Diário 71, 30/Mai/2020).
Bill (CPP/Nordeste), diante da morte de Seu Rubem, declara:
Os guerreiros de São João da Ponta estão partindo. As gurizada de lá precisam se firmarem". No dia da morte de um pescador de 93, a ausência de seu nome não impediu o sentimento de luto coletivo: "A benção aos nossos mais velhos! (Thaís Dias)
"Sentimentos dobrados à toda comunidade. Que seu encantamento permaneça em todos pelos saberes" (Marta Santos).
Nesses contextos, a morte de pessoas idosas são tão sentidas quanto a morte de crianças e jovens. As pessoas anciãs são consideradas portadoras de memória não só da pesca artesanal, mas também do saber das plantas medicinais e muitos delas são benzedeiras, rezadeiras e raizeiras.
No ObCovid-Pesca, constatamos que a morte das mulheres é sempre um momento de sinceros sentimentos e reflexões, principalmente para outras mulheres; um momento muito difícil, no qual todas buscam muita força. Quando perdemos Dona Claudeci, compartilhamos esses sentimentos: "Desejo muita força e fé aos familiares e comunidade, nós mais que nunca precisamos continuar cuidando uns dos outros com responsabilidade e afeto" (Marta Santos); "Meus sentimentos com as pescadoras e povo de Pernambuco" (Zezé Pacheco); "Rezemos pela paz e superação dessa dor" (Célia Neves).
Podemos afirmar que, no contexto das comunidades tradicionais, a dimensão ético-política do luto, o cuidado e a solidariedade são expressões do feminismo também diante da dor pela perda por morte. O luto e os sentimentos de perda são coletivos e vão se estendendo aos profissionais da saúde e aos familiares. Célia compartilha o relato de Socorro, liderança da Resex Filhos do Mangue, Primavera-PA, que perdeu seu avô, pescador de 88 anos, no dia 23 de abril: "Meu avô era [...] meu exemplo de humildade e dedicação. Mas, infelizmente, esse vírus, o levou para perto do pai do céu! [...]. Aqui em minha comunidade [...], temos duas pessoas em estado grave, ontem, foram transferidos para Belém". Depois, Socorro complementa: "os dois são A. Costa, agente de Saúde e seu pai O. Corrêa" (Celía, ObCovid/Pesca, 23/Abr/2020). Convergimos com Butler (2019), que ressalta:
Quando perdemos certas pessoas, ou quando somos despossuídos de um lugar, ou de uma comunidade [...] Quando passamos pelo que passamos, algo sobre o que somos nós nos é revelado, algo que delineia os laços que mantemos com os outros, que nos mostra que esses laços constituem o que somos, laços e elos que nos compõem (Butler, 2019, p. 42).
O luto, nas comunidades tradicionais pesqueiras, nos remete ao que Butler (2019) nomeia como um senso de comunidade política que inclui responsabilidade ética e implicações políticas para além do entorno de um território geográfico, um estado, um país, um continente. É a vida e sua dimensão política que pode transformar o luto em sobrevivência e em luta coletiva para além da sobrevivência. Esse senso de comunidade emergiu, muitas vezes no ObCovid/Pesca, como matéria de expressão dos processos de subjetivação e enunciação do luto e também da luta, rompendo processos de esquecimentos e silenciamento:
[...] Então nós estamos morrendo silenciosamente e a gente tem que ter uma ação, a gente tem que saber quem é nós, quem é a comunidades quilombolas, indígena, pescadores e ribeirinhos. O pessoal que tão lá nas comunidades tradicionais como os umbandas, que não são reconhecidos, os ciganos e outras comunidades [...] (Navinier, Praia do Cotovelo, Touros-RN, ObCovid-19/Pesca, 04/ Abr/2020)
Albuquerque Júnior (2020) afirma que "a morte que é perda e as perdas" pela pandemia fazem "[...] com que emerja essa necessidade de luto coletivo e, ao mesmo tempo, de luta para reerguer a vida, para fazê-la distinta daquela que possibilitou que dado desastre global fosse possível" (Albuquerque Júnior, 2020, p. 12). Nas comunidades tradicionais pesqueiras, não é só a inscrição do luto coletivo pela Covid-19 que nos interpela a luta comum. Há séculos, tem sido o luto coletivo, efeito da morte lenta ao território das águas, e a luta permanente pela vida humana e não humana nesse território que nos interpelam a luta comum dos povos e comunidades tradicionais do campo, das florestas e das águas.
Sobrevivência
Com os impactos socioeconômicos produzidos como efeitos da Covid-19, a pesca com pequenas embarcações, nas águas doces e salgadas, foi a mais prejudicada, pois a comercialização do produto artesanal depende da venda em feiras livres ou dos mercadores que desapareceram, por conta do isolamento social e também por conta do bloqueio entre estados para evitar a propagação do coronavírus.
[...] Ficou uma situação difícil para todos os pescadores aonde todos sobrevivem da pesca e do peixe e não tem outro meio de vida. É esse pescar, pescar e pescar. Estamos diante de uma catástrofe pior da vida. Nós vem se arrastando desde o derramamento do petróleo [...] que veio em direção a gente, chegou, devastou, estava melhorando e agora [...] a situação se agravou muito mais. Então eu tô muito triste, muito triste por ver essa situação dos pescadores se perguntando o que se faz [...] (Seu Pescada. Praia da Pedra do Sal/ Parnaíba-PI, ObCovid-19, 10/Abr/2020).
[...] Nós estamos aqui, infelizmente nós estamos sem pescar porque a nossa população ela tem que tá pescando, mas como é que nós pesca? Vamos vender a quem? Nós não temos a quem vender! Nosso pescado infelizmente tá sendo pescado só pra gente comer de manhã, meio dia e noite. Mas a gente não tem onde entrar. Por que todos [os locais de venda] eles estão fechados. O povo que comprava da gente, eles não vem mais. Então a gente tem que fazer uma coisa que a gente tem que dizer a vocês, nós estamos aqui, se nós não morrer de coronavírus [pausa], nós vamos morrer de fome. (Dona Danduca, Remanso-BA, ObCovid-19/Pesca, 02/Abr/2020)
Como diz Seu Pescada, "a situação se agravou muito mais". E como ressalta Dona Danduca "se nós não morrer de coronavírus [pausa], nós vamos morrer de fome". Esses analisadores nos fazem afirmar: de parte, principalmente, do governo federal, o que afetou diretamente a segurança alimentar foi a falta de um plano de gestão de contingências e de mitigação dos efeitos não só das medidas de isolamento social relacionados não só com a pandemia, mas também com o desastre socioambiental causado pelo derramamento de petróleo cru e com as questões do seguro defeso e do auxílio emergencial. Ana Flávia (MPP/Bahia) reconhece que a situação das comunidades pesqueiras está cada vez mais difícil e a segurança alimentar começava a ficar comprometida, sem acesso à renda não tem como comprar outros alimentos, então, não sabe até quando a população pesqueira vai aguentar, porque com "[...] todos os pescadores com quem a gente conversa estão sofrendo, depois começa a apertar de uma forma porque os do lado estão passando dificuldade [também]".
Do Delta do Parnaíba-PI, Lucimar, presidente da Z-7, conta que tem 2500 filiados à Colônia de pescadores, sendo 1000 mulheres e 1.500 homens, desses 151 estão sem receber seguro-defeso desde 2013. Raimundo Félix, presidente da Federação de Colônia de Pescadores do Ceará, relata que no estado são mais de 30 mil pescadoras e pescadores espalhados por mais de 300 comunidades pesqueiras; destes, apenas 10 mil recebem seguro-defeso e, mesmo assim, no momento, o pagamento estava atrasado, e mais de 20 mil não têm suas necessidades, na prática, amparadas e atendidas por políticas públicas ("Comunidades pesqueiras enfrentam problemas durante pandemia", 2020).
Sou pescadora, aqui do Delta do Parnaíba, MPP/ Piauí/Brasil, [...] na verdade, todas essas questões de que todos os pescadores do Brasil, não conseguem acessar políticas públicas, em todas as questões graves, é responsabilidade do governo, que tem o RGP dos pescadores, [...] tudo de 2012, 2013 cancelados, ilegal [...]. Ai os pescadores vem [enfrentando] desastres [socioambientais], desastre de derramamento de óleo, desastre de veneno, desastre de epidemia de várias doenças. E o atraso dos pescadores por não terem recebido seguro defeso em 2015, os pescadores não está atualizados dos seus direitos, até hoje vem pendengando essa situação do seguro que não é um seguro desemprego é um seguro defeso, da reprodução da espécie. Eles confundem os direitos sociais dos pescadores. Cada direito é um direito social. E ai o seguro desemprego das empresas é outro direito. O seguro das reprodução das espécies é outro direito. Então é responsabilidade deles não nossa [...]" (Dona Celeste. ObCovid-19, 01/Abr/2020).
Essa invisibilidade expõe a precarização da vida, sem RGP, em caso de acidente de trabalho, doença ocupacional ou outros processos de adoecimento, não há como requerer auxílio doença junto ao Instituto Nacional de Seguridade Social e até mesmo contar tempo para aposentadoria.
Ao defender sua tese, Butler (2018) chama de biopolítica "os poderes que organizam a vida, incluindo aqueles que expõem diferentemente as vidas à condição precária como parte de uma administração maior das populações por meios governamentais e não governamentais [...]" (p. 216). Ao estabelecer as políticas de controle da vida e da morte de populações das comunidades tradicionais pesqueiras, o Estado "estabelece um conjunto de medidas para a valoração diferencial da vida em si", reconhecendo "as vidas que importam" e deixando de reconhecer "as vidas que não importam como vidas [...], como vivíveis ou contam apenas como vivas" (Butler, 2018, p. 216).
Nesse contexto, a determinação social da saúde da mulher pescadora artesanal é bastante afetada. Há pescadora com suspeita de Covid-19, com medo, sem saber como irá continuar cuidando da mãe de 80 anos. Há pescadora que se divide entre pescar e organizar mutirão para limpar Camboa, por conta de assoreamento do rio. As mulheres seguem cuidando de tudo, inclusive, dos ecossistemas, haja vista que elas não têm condições de manter o trabalho da pesca artesanal, durante o período de isolamento social, pois a precarização da vida dessas mulheres e a questão de gênero demarcam efeitos "do entrelaçamento entre os processos de feminização, racionalização e privatização da natureza" (Carmela & Pinheira, 2019, p. 276).
[...] Eu não tô parada. Eu não tô nas quarentenas em casa, porque eu tô indo pra maré. Eu tô com umas demandas aqui na localidade que as águas aqui invade as casas da gente por trás. Ganhei umas bueiras enorme pra puxar e encanar essas águas, ganhei a máquina. Quer queira quer não, essas bueiras e máquina chegou agora nessa agonia do corona. E mesmo com corona eu tô lá e a máquina colocou essas bueiras essa semana (Dona Ângela, Colônia Z-14, Praia de Atapuz, Goiana-PE, ObCovid/Pesca/WhatsApp, 01/Abr/2020).
Silvia Federici (2019) analisa como o trabalho reprodutivo marca a produção de subjetividade das mulheres, ressaltando que as mulheres das comunidades tradicionais
têm sido as principais apoiadoras de um uso não capitalista dos recursos naturais (terras, águas, florestas) e da agricultura orientada para a subsistência, e, portanto, ficaram no caminho tanto da completa comercialização da "natureza" quanto da destruição dos últimos comuns remanescentes". (Federici, 2019, p. 184)
Todos essas questões dos processos de trabalho artesanal da pesca, da falta de acesso ao território das águas e obtenção de renda ou auxílio emergencial, ampliam a vulnerabilidade social relacionada com a segurança alimenta e dizem respeito à precarização dos modos de vida e da determinação social da saúde.
Luta
O agenciamento da pandemia, pelo estado de exceção e pela soberania do capital, opera a subtração da dimensão política da vida, produz processos de subjetivação e sujeição, fazendo emergir questões relacionadas à interseccionalidade. A ameaça à vida nas comunidades tradicionais, antes, durante e depois da pandemia,
é coerente com a velha determinação do capital em privar milhões de pessoas planeta afora de seus meios de reprodução, entregar suas terras, suas águas, suas florestas e seus bairros ao controle de corporações e eliminar quem resiste à desapropriação. (Federici, 2019, p. 14)
Para além da subnotificação das informações e manipulação dos dados sobre óbitos por Covid-19 pelo Ministério da Saúde nesse período da pesquisa, quando se analisa os processos de subjetivação relacionados ao trabalho e às vidas vivíveis e às vidas matáveis pelo coronavírus, podemos dizer que para uma minoria que ocupa a classe economicamente hegemônica é a primeira vez que a sobrevivência deixa de ser uma abstração e se torna sobrevivência concreta. Mas, para a maioria da população preta, parda e pobre que constitui povos e comunidades tradicionais pesqueiras, sobreviver é o verbo mais conjugado na reprodução da vida cotidiana. Um verbo que, independente da língua, muitas vezes, se conjuga muito mais com gestos e ações do que com palavras, principalmente, quando a sobrevivência é tradução do luto em luta e resistência como nos territórios das águas, tradicionalmente ocupados por pescadoras e pescadores artesanais, como nos mostra uma das mulheres da ANP e do MPP:
[...] Eu sou Eliete Paraguassú, eu sou marisqueira e quilombola aqui do território de Ilha de Maré [...]. É Considerado o território mais negro de Salvador porque toda população de Ilha de Maré se identifica enquanto preto e pretas. [...] Mas falar deste lugar nesse momento de Covid - 19 é falar desse retrato que a gente vivencia em todo Brasil, é falar desse racismo que vivem as comunidades tradicionais, é esse retrato que a gente vive, é um retrato que nunca foi reparado, nunca foi enxergado como sujeito de direito, de políticas públicas, sujeitos de direitos às coisas mais básicas que esse território deveria ter e isso remete para a agente enquanto movimento de pescadores, enquanto mulheres negras, enquanto mães, enquanto pescadoras, a gente precisa tá com nossos corpos defendendo o invisível que é a Covid 19. Então, falar da Covid neste momento é falar de um racismo que sempre existiu nestes territórios, a falta da política pública, a falta de saneamento básico, a falta de investimento do poder público neste lugar. Pra gente falar desse lugar que é o lugar onde a gente vive em disputa, é falar também de um lugar que essas disputas até em um momento desses ainda é muito presente. É um momento de morte, é um momento de sobrevivência e que mesmo assim, o poder público ele nos olha diferente. Que mesmo numa situação dessa difícil, ainda continua fazendo as políticas dentro dos territórios, nesse momento que é difícil, as políticas públicas elas não chegam como deveriam chegar, como, por exemplo, são os nossos corpos que estão sendo as barreiras para que o invisível não entre aos nossos territórios. As barreiras sanitárias quem estão fazendo é as comunidades [...]. (Eliete Paraguassú, Teia de Saberes, 27/Mai/2020).
A maioria dos pescadores e pescadoras artesanais já havia ficado seis meses sem obter renda, quando os compradores que comercializam seus produtos suspenderam a compra em função da tragédia socioambiental provocada pelo derramamento de petróleo cru que atingiu, no segundo semestre de 2019, praias, rios e mangues do litoral nordeste e sudeste, afetando a biodiversidade de ecossistemas que compõem as Reservas Extrativistas - Resex e as Áreas de Proteção Ambiental - APA, principalmente da região Nordeste do Brasil.
Agora, com a pandemia da Covid-19, no primeiro momento, foram excluídos do direito ao auxílio emergencial sob alegação de que receberiam seguro defeso. MPP, ANP, CPP e outros movimentos pesqueiros de comunidades tradicionais atuaram juntos e pressionaram deputados e senadores, até que finalmente, as pescadoras e pescadores foram incluídos, tanto no projeto de lei, quanto na Lei Nº 13.982, de 2 de abril de 2020. Em pleno período da pandemia, esses movimentos se articularam junto à Defensoria Pública e junto ao Congresso Nacional e também conseguiram aprovação de um projeto que garante, finalmente, o processo de regularização do RGP e o pagamento do seguro-defeso, ainda que o governo federal esteja dificultando ao máximo ao exigir um recadastramento com prova de vida via sistema eletrônico com fotos de perfil e impressão digital.
Considerações finais
No Brasil, a situação em relação ao acesso à saúde e aos dispositivos de assistência se agrava dada a intencionalidade de governos, tais como Michel Temer e Jair Bolsonaro, em destruir o Sistema Único de Saúde SUS. A Emenda Constitucional (EC) 95 representou, na prática, a desvinculação do financiamento mínimo de 15% da receita da União com esse setor e limitou os gastos ao valor utilizado no ano de 2017 e seu reajuste ao índice da inflação acumulada, fazendo com que o SUS perdesse R$ 20 bilhões em 2019. Portanto, a Covid-19 acontece no auge de precarização da saúde e sua determinação social, cujo ordenamento jurídico-político do poder de vida e morte já vinha afetando as minorias e os territórios tradicionalmente ocupados com efeitos direto nos modos de vida, segurança alimentar, trabalho e renda, emprego, acesso à saúde e à educação em todos os níveis e efeitos no sistema de seguridade social, bastante prejudicado com as reformas trabalhista e da previdência.
Com o isolamento social em curso e em meio a um cenário de luto e perdas por mortes causadas por insuficiência respiratória ou outros agravos relacionados ao coronavírus, a luta das entidades que compõem os movimentos sociais de pescadores e pescadoras artesanais vem se reconfigurando por meio do uso de outras plataformas, deslocando-se das redes lançadas no território das águas às redes virtuais, como podemos experimentar com o ObCovid-Pesca. Por meio desta cartografia, acompanhamos e compomos a luta dos movimentos sociais pesqueiros que nos deslocaram para essa rede social virtual, diante da necessidade de monitorar os impactos do coronavírus à saúde e sua determinação social nas comunidades tradicionais pesqueiras. Logo pousamos sobre a escassez de políticas públicas e tecnologias sociais não só para identificar e combater o Covid-19, mas também para o enfrentamento da insegurança alimentar, do atraso ou inadimplência do seguro defeso e da falta de auxílio emergencial, haja vista o desmonte das plataformas de mitigação das vulnerabilidades e injustiças sociais produzidas pela política de distribuição desigual da precariedade, além dos seus efeitos na determinação social da saúde.
Nesse contexto, reconhecemos processos intersecionais que envolvem as lutas, o luto e a sobrevivência de pescadores e pescadoras artesanais há gerações; processos de precarização da vida nos territórios tradicionais pesqueiros, bem como processos singulares de composição e resistência comunitária. Os movimentos sociais pesqueiros, MPP, ANP e CPP e parceiros que compõem a luta dos povos do mar e território das águas seguem resistindo, mostrando que não estão em silêncio e não ficarão no esquecimento. Nos territórios das águas, tradicionalmente ocupados por pescadoras e pescadores artesanais, há um devir comum na luta, diante do luto e da sobrevivência. Nas comunidades pesqueiras, como em outras comunidades tradicionais, a vida de todas as gerações importam e todas as vidas e mortes são passíveis de luto e de luta.
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Endereço para correspondência:
Antônio Vladimir Félix-Silva
Av. São Sebastião, 3950, Condomínio Delta
Apartamento 8, Bairro Frei Higino
Parnaíba/PI
CEP 64.207-005
Telefone: (85) 99994-5139
Email: wladyfelix@hotmail.com
Recebido em 31.mai.20
Revisado em 23.set.21
Aceito em 31.dez.21
Antônio Vladimir Félix-Silva, Doutor em Ciências Psicológicas pela Universidade de Havana/Cuba, é Professor da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar). ORCID: https://orcid. org/0000-0003-3084-379X
Camila Batista Silva Gomes, Assessora da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP) na temática da Saúde do Trabalhador e Trabalhadora, Educadora Popular e Coordenadora do Conselho Pastoral dos Pescadores CPP/Ceará. Email: camilabaltista@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3428-4641
José Lucas Soares de Araújo, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar). Email: joselucas2126@gmail.com. ORCID: https://orcid. org/0000-0002-4541-9329
1. Neste contexto, o conceito foucaultiano de dispositivo como uma rede que se estabelece entre elementos discursivos, ditos e não ditos, atende a compreensão de Agamben (2009) para quem o disposto é qualquer coisa que opera de algum modo a capacidade não só de capturar, modelar e controlar os processos de subjetivação, mas também de orientar, determinar, interceptar "e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes" (Agamben, 2009, p. 40).