Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.18 no.1 Ribeirão Preto 2010
Uma família fisicamente violenta: uma visão pela teoria bioecológica do desenvolvimento humano
A physically violent family: a bioecological theory of human development perspective
Clarissa De AntoniI; Silvia Helena KollerII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO
O objetivo deste estudo de caso foi compreender o fenômeno da violência física em uma família pelo viés dos pressupostos da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano. Aspectos sistêmicos foram identificados, quando relacionados às pessoas, aos processos, aos contextos de desenvolvimento e ao tempo (história de vida e rotinas familiares) e aos fatores de risco e de proteção existentes. Os resultados obtidos por meio de entrevistas individuais e em grupo com a família e por depoimentos de profissionais da rede mostraram que as interações eram marcadas por severas agressões corporais e verbais, utilizadas como estratégias de comunicação e como forma de relacionamento entre todos os seus membros. A violência era resultado de diversos fatores, como das características pessoais e do grupo, da rede de apoio escassa e da influência cultural e da mídia. Este estudo de caso revela como profissionais que atuam na prevenção e intervenção com famílias violentas podem identificar aspectos relevantes em uma análise ecológica do fenômeno da violência.
Palavras-chave: Violência Intrafamiliar, Análise Ecológica, Vulnerabilidade e Risco.
ABSTRACT
The objective of this case study was to evaluate a physically violent family, using the Bioecological Theory of Human Development to identify risk and protective factors. Systemic aspects related to the variables such as: the person, the processes, the developmental contexts and time (life history and family routines) were identified. Results obtained through interviews of family members, and professionals, showed that the interactions were marked by severe corporal and verbal aggressions, which were used as communication strategies, and as a way to establish contact among all members. Family members indicated that violence was seen as natural, what hindered the acceptance of change. The case study illustrates how professionals who work in prevention, and intervention with violent families may identify relevant aspects in a systemic analysis of the violence phenomenon.
Keywords: Intrafamiliar Violence, Ecological Analysis, Vulnerable and Risk.
A violência faz parte do cotidiano de muitas famílias brasileiras. Não apenas a violência urbana ou social a que estão expostas, mas a violência que ocorre dentro do ambiente doméstico, perpetrada por pessoas que deveriam zelar pelo bem-estar dessas crianças e adolescentes. Pesquisas apontam que o abuso físico ou o uso de força física contra a criança ou adolescente por parte de seus cuidadores (Cecconello, De Antoni, & Koller, 2003) são uma das formas mais frequente de violência existentes no contexto familiar (Cecconello, De Antoni, & Koller, 2003; Zottis, Algeri, & Portella, 2006). Segundo dados da Secretária Especial de Direitos Humanos da Presidência da República do Brasil (SEDH/PR), a negligência e o abuso físico concentram o maior número de ligações recebidas pela Central de atendimento (Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes, o Disque 100), que acolhe denúncias de violência contra crianças, principalmente em relação ao abuso sexual. Entre 2003 e junho de 2009, 35% foram de casos de negligência, 34% de violência psicológica e física e 31% de violência sexual.
O abuso físico ou a violência física são facilmente diagnosticados quando há, em decorrência dessas agressões, lesões orgânicas, como as cutâneas, ósseas, oculares e neurológicas. Queimaduras, hematomas, fraturas são alguns exemplos. Os critérios de identificação dessa violência são descritos por manuais elaborados pelo Ministério da Saúde brasileiro e pela Organização Mundial de Saúde. No entanto, atualmente, observa-se que os pretensos cuidadores de crianças e adolescentes se utilizam cada vez mais de materiais que não deixam marcas físicas visíveis (De Antoni, 2005), dificultando a identificação, sua notificação e o encaminhamento devido da situação.
As famílias com abuso físico procuram justificar tal prática e possuem certa peculariedade entre si. A maioria das famílias demonstra a crença nos valores autoritários e na asserção de poder dos pais sobre os filhos (Cecconello, De Antoni, & Koller, 2003; Oates, Ryan, & Booth, 2000). Muitas vezes, o abuso é justificado como uma prática disciplinar, e o poder decisório está centralizado no abusador (Cecconello, De Antoni, & Koller, 2003; De Antoni, 2005). Estudos realizados com famílias com história de abuso físico revelam que os pais violentos tendem a desencadear menos situações de interação com seus filhos do que pais não abusivos. Demonstrações de carinho e afeto são raras e predomina um sentimento de rejeição entre os familiares. A relação entre pais e filhos é marcada por hostilidade, ausência de reciprocidade e desequilíbrio de poder (De Antoni & Koller, 2000; De Antoni, Barone, & Koller, 2006; De Antoni, Teodoro, & Koller, 2009).
Esse tipo de interação familiar deve ser analisado como um fenômeno complexo e multicausal, pois é influenciada e influencia outros contextos. A perspectiva sistêmica permite essa compreensão, com base em uma abordagem multifacetada na qual o problema é visto de forma processual e dinâmico, envolvendo o contexto, a história e as pessoas como protagonistas e observadores do fenômeno. Uma das teorias sistêmicas mais recentes da Psicologia é a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (TBDH), proposta por Urie Bronfenbrenner (1979/1996, 2004). Essa abordagem define o desenvolvimento humano como um fenômeno de continuidade e mudanças nas características biopsicológicas dos seres humanos, tanto no indivíduo como no grupo. Esse processo estende-se pelo ciclo vital, pelas gerações, pela história passada e futura, sendo o desenvolvimento compreendido como contínuo e processual.
Belsky (1993) salientou que a etiologia dos maus-tratos deve ser considerada a partir de fatores históricos, contemporâneos, culturais, situacionais, além de atribuídos às características dos pais e dos filhos. O modelo teórico-metodológico de Bronfenbrenner (2004) abrange todas essas dimensões, pois envolve quatro núcleos inter-relacionados dinamicamente na compreensão dos fenômenos: a Pessoa, o Processo, o Contexto e o Tempo (Modelo PPCT). Esse modelo possibilita conhecer a interação desses núcleos e os aspectos que envolvem o funcionamento familiar.
O núcleo Pessoa, ou também denominado "eu ecológico", representa o ser humano ou o grupo familiar em desenvolvimento por meio das suas características biológicas, psicológicas, sociais e por suas interações. A família pode ser considerada uma unidade relacional alvo, e ser analisada como uma entidade particular.
O núcleo Processo relaciona-se à maneira como a pessoa ou a família significa suas experiências e interpreta o ambiente ao longo de seu ciclo vital. O processo é o motor do desenvolvimento e ocorre por meio do desempenho de papéis, das atividades diárias exercidas e das inter-relações estabelecidas em determinado ambiente e na intersecção de vários contextos.
O núcleo Contexto é visto como o meio ambiente ecológico no qual as pessoas se desenvolvem ao longo de suas histórias, e tais contextos interpostos se denominam como microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema (Bronfenbrenner, 1979/1996). Esses ambientes podem ser compreendidos como esferas concêntricas contidas uma nas outras. O microssistema compreende atividades, papéis e interações experienciadas pela pessoa ou grupo familiar em determinado ambiente. A família, portanto, é o primeiro microssistema no qual a pessoa em desenvolvimento interage.
O mesossistema é o conjunto de microssistemas de determinada pessoa ou família, composta pela interação dos diversos ambientes no qual ela transita, como a escola, o local de trabalho, a instituição religiosa que frequenta, entre outros. O exossistema consiste em um ou mais ambientes no qual as pessoas/famílias não estejam fisicamente presentes, mas nos quais as decisões tomadas têm influência sobre seu desenvolvimento. O macrossistema engloba a cultura, subcultura e todo o sistema de crenças ou ideologias subjacentes em uma sociedade e que têm influência no desenvolvimento das pessoas ao longo de seu ciclo vital (Bronfenbrenner, 1979/1996). Segundo Garbarino e Eckenrode (1997), na visão ecológica, a família reflete os modelos ou esquemas existentes no macrossistema, principalmente em relação ao funcionamento, aos valores e às tradições de acordo com a cultura em que está inserida. Esses modelos influenciam no desenvolvimento pessoal e social, e assim a dinâmica entre pessoa, família e sociedade vai, ao longo do tempo, sofrendo um processo de mudança.
O núcleo Tempo está relacionado às influências e às heranças culturais existentes nas famílias, revelando as raízes históricas da sociedade, as descendências étnicas e a valorização ou não de determinada prática cultural ou ritualística. Tal núcleo também organiza, cronologicamente, as rotinas e os eventos, possibilitando conhecer a história pregressa e as expectativas de futuro.
O modelo PPCT permite analisar de forma ampla e específica os mecanismos de risco e de proteção presentes no meio familiar, levando-se em conta os fatores intra e extrafamiliares. Assim, tem-se um panorama das relações, das causas e consequências da violência naquele contexto (Koller & De Antoni, 2004).
Em todos os contextos vivenciados pelo eu ecológico, há fatores de risco e de proteção ativos e com ações dinâmicas que influenciam os processos familiares em seu desenvolvimento. O termo risco tem sido utilizado, no campo da saúde mental, com o significado de estressor ou fator que predispõe a um resultado negativo ou indesejado (Cowan, Cowan, & Schulz, 1996). O risco poderá desencadear um distúrbio ou uma doença, de acordo com sua severidade, duração, frequência ou intensidade de um ou mais sintomas ou comportamentos. Os fatores de proteção poderão defender ou fortalecer a pessoa diante de um risco ou frente a uma condição de vulnerabilidade. Risco e proteção não são eventos estáticos, portanto, devem ser vistos como processos e podem ser definidos por suas implicações nas relações e nos resultados específicos. Cabe lembrar que qualquer variável pode agir como indicador de risco ou de proteção em uma determinada situação.
Segundo Rutter (1999), os indicadores de risco e de proteção devem ser examinados dentro do contexto de vida da pessoa ou da família, pois um indicador compreendido como de risco pode se tornar protetivo no futuro e vice-versa. Se, diante de fatores de risco, um indivíduo desencadeia uma doença ou o sistema familiar utiliza-se de estratégias inadequadas para lidar com tais fatores, pode-se identificá-lo como vulnerável naquele momento. Todavia, se consegue enfrentar o risco, por meio de um comportamento adaptativo positivo e aprender com essa situação, há um processo de resiliência, ou seja, a família apresenta uma capacidade dinâmica para superar esse estresse (Yunes, 2003).
A intervenção com famílias violentas exige antes uma análise criteriosa dos fatores de risco e de proteção existentes ao longo da história em cada grupo. Portanto, o objetivo deste estudo de estudo de caso é compreender o fenômeno da violência física em uma família por meio dos pressupostos da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (Bronfenbrenner, 1979/1996, 2004). Aspectos sistêmicos foram identificados, quando relacionados às pessoas, processos, contextos de desenvolvimento e tempo (história de vida e rotinas familiares) e aos fatores de risco e de proteção existentes nesse contexto familiar.
Especificamente neste estudo será utilizado como roteiro para descrição e avaliação da família o esquema de análise proposto e publicado por Koller e De Antoni (2004). Esse esquema sugere a análise do Processo no núcleo Pessoa desde um nível ecológico individual - o eu ecológico, ao longo dos demais Contextos (do microssistema ao macrossistema) em seu ciclo vital (Tempo).
Método para elaboração do estudo de caso
Os dados para realização deste estudo de caso foram obtidos por meio de diagnóstico inicial realizado em um serviço de atendimento psicológico familiar em um Hospital referência em Porto Alegre-RS. Esse diagnóstico estava vinculado à pesquisa de doutorado intitulada Coesão e hierarquia em famílias com história de abuso físico (De Antoni, 2005). Todas as famílias com denúncia de violência que eram encaminhadas pela rede para o Hospital passavam por esse processo. O caso descrito neste artigo foi encaminhado por meio de ordem judicial pela Promotoria da Infância e Juventude e tratava-se de um menino de 11 anos, denunciado pela escola ao Conselho Tutelar (CT) por apresentar um comportamento agressivo para com os colegas e professores.
Foram entrevistados separadamente e em conjunto três familiares: o pai, a mãe e o menino. Os instrumentos aplicados foram: uma entrevista semidirigida, o Teste do Sistema Familiar - FAST - (Gehring, 1993), que avalia a coesão e a hierarquia do sistema familiar em três situações diferentes, típica, ideal e em situações de conflito, que, nesse caso, eram as situações de violência, e informações obtidas pela rede, tais como: entrevista com professores, parecer jurídico e dos técnicos do Conselho Tutelar. A partir dos dados coletados foi realizada a análise de conteúdo (Bardin, 1977), em que categorias de sentido relacionadas aos fatores de risco e de proteção foram levantadas. Esses fatores foram integrados ao modelo Pessoa-Processo-Contexto-Tempo da TBDH, para uma compreensão dinâmica e ecológica do fenômeno e dos fatores de risco e de proteção presentes. Este estudo seguiu as determinações da Resolução no 196/96, do Ministério da Saúde (1996), do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei no 8.069, de 1990) e teve aprovação por dois Comitês de Ética (da Universidade e do Hospital).
Breve histórico da família
A família Peres era formada pelo pai, Rui, 37 anos, a mãe Mara, 34 anos e dois filhos dessa relação, Van, 18 anos e Rambo, 11 anos. Esses nomes são fictícios para preservar a identidade da família. No entanto, os nomes verdadeiros dos filhos prestigiam atores de filmes norte-americanos de ação e violência que são conhecidos mundialmente pela imagem de força física e brutalidade.
A aparência física deles mostrava certa homogenia na forma de se vestirem, se comportarem e na sua constituição física. Todos usavam calças compridas largas, camisetas, jaquetas ou coletes (simulando coletes salva-vidas) com camuflagem militar e tênis. Falavam em tom de voz alto e gesticulavam com movimentos bruscos. Estavam com sobrepeso e aparentavam ter mais idade. Eram de etnia branca. O casal estava junto há 20 anos e se conheceu na casa de vizinhos, quando Rui tinha 16 anos e Mara, 14. Namoraram contra a vontade da mãe de Mara. Após alguns meses, foram morar juntos em outro estado, longe da família, mas por questões financeiras retornaram. Aos 16 anos, Mara engravidou de Van e sua maior preocupação era: "Aí, e agora? Como é que vou dizer pra minha mãe, ela vai me bater!"1. Mara revelou que sua mãe sempre lhe batia, mesmo depois de casada: "Às vezes, não tinha motivo nenhum, ela ficava louca da cabeça e me batia". Justificou essas ações como: "Foi a criação dela, meu avô ensinou ela assim". Mara comentou sobre sua mãe lhe bater com arame farpado, fincando-o na cabeça. Revelou, também, o homicídio de seu pai cometido por sua mãe, sem querer dar mais detalhes do acontecimento. Apenas comentou que "foi sem motivo aparente e que o pai encheu o saco". Sua mãe ficou presa durante três meses e que "não deu em nada o processo judicial".
Rui comentou que não teve pai e descreveu sua mãe como uma pessoa comunicativa. Acrescentou que nas famílias que vivem em cidades interioranas, a agressão física é uma prática aceita e faz com que os filhos respeitem os pais. Justificou, portanto, o fato de a mãe lhe bater como: "Lá no interior não é problema se sempre bateu (pais). O problema é que quando eles (pais) acham que gente tá errado, né? Pelo menos as pessoas não erram muito que nem agora... Nêgo véio com 36, 40 anos apanha. Então, eu até acho bonito isso aí, que, pelo menos, a pessoa respeita a família, né?".
Quando foram morar na capital, passaram privações econômicas e até fome. Aos 20 anos, Mara engravidou pela segunda vez de um menino, mas a criança teve infecção generalizada e faleceu quando tinha aproximadamente um ano. Nunca pronunciaram o nome dessa criança em todas as entrevistas. Então, como desejava uma filha, dois anos depois, aos 23 anos, engravidou novamente e, assim, nasceu outro menino: "Quando o Rambo veio, nós já estávamos com a nossa vida bem".
A família Peres, segundo o relato dos pais, era de nível socioeconômico médio. O casal trabalhava como vendedor ambulante de um produto ilícito. Van não trabalhava e, segundo a família, por ser usuário de drogas, realizava assaltos na rua ou vendia os objetos de casa para adquiri-las.
O pai estudou até a quinta série do ensino fundamental e a mãe era analfabeta. Van parou de estudar na quinta série, e Rambo cursava a turma de progressão (ciclo AB), que equivale à primeira e à segunda série do ensino fundamental, em uma escola pública. Os pais não incentivavam os estudos de Rambo. Frequentavam, eventualmente, uma igreja neopentecostal e informaram que suas vidas "fermentaram" com essa adesão, isto é, conquistaram a partir daí maior estabilidade financeira e muitos bens materiais. Já a comunidade em que viviam foi descrita como "um lugar onde há tráfico de drogas". A família não tinha contato com outros parentes.
A rotina familiar era marcada pelo individualismo de atividades. Os pais trabalhavam na rua das 16h às 21h. Rambo acordava ao meio-dia, almoçava e ia para a escola. Retornava pelas 15h30 e assistia aos programas na televisão até as 4 horas da manhã, inclusive via filmes pornográficos e de violência. A mãe esperava Rambo retornar para sair ao trabalho. Temia que, se não houver alguém em casa para impedir, Van poderia "saquear a casa!". Rambo tinha, então, a função de proteger os bens da família contra os abusos e furtos do irmão. Van não tinha horários para sair ou chegar e, geralmente, passava a noite fora. Ultimamente estava impedido de entrar na casa e, portanto, estava dormindo na rua. Foi mordido por ratos e apresentava desnutrição e diversos hematomas e escoriações na última vez que falou com a mãe.
Rui levava, eventualmente, Rambo ao bar onde jogavam sinuca. Aos sábados, o pai saia para trabalhar e a mãe ficava limpando a casa. Aos domingos, os três saiam para almoçar em restaurantes e, quando estavam em casa, cada familiar permanecia em um cômodo assistindo à televisão. Quando faziam as refeições em casa, cada um se recolhia individualmente aos seus dormitórios para comer "diante da sua televisão". Mara comentou na frente de Rambo, e este confirmou sua observação, de que o menino sentia falta de um contato mais próximo com o pai: "Antigamente, ele (Rui) pegava o guri e saía pra jogar bola, com os dois (Rambo e Van). Ia comprar uns tênis... ou iam ao bar tomar refri, mesmo tendo refri em casa". A mãe mencionou não usufruir de momentos de lazer com a família ou com o marido.
A manifestação da violência na família
A primeira intervenção do Conselho Tutelar na família foi por uma denúncia da tia de Mara, quando Van tinha oito anos. Os pais informaram que Van era um bom aluno até os 14 anos, mas, nessa idade, ele abandonou os estudos. Esteve internado em um local de recuperação para tratamento para drogadição e duas vezes na antiga FEBEM. Os pais revelaram que: "Ele rouba, ele cheira, ele fuma, não podemos bater mais, porque o Conselho se meteu".
O fato de o CT não os deixar bater no adolescente ou de os impedir de trancar Van em casa, na visão do casal, desencadeou a situação de delinquência do filho. Em relação a Rambo, os pais receberam a primeira queixa sobre o comportamento agressivo na escola quando este estava na educação infantil. O CT foi acionado e acompanhava o caso desde aquela época. O menino frequentava a escola no turno da tarde e permanecia lá apenas até o horário de recreio, sendo diariamente dispensado pela professora. O motivo alegado pela professora da escola para mandá-lo embora nesse horário é que ele se tornava incontrolável, não tinha limites, não aceitava opiniões, ameaçava e batia nos colegas, não prestava atenção às aulas, não obedecia à professora, não realizava as atividades propostas e assediava sexualmente as meninas. Os pais relataram um episódio em que Rambo agrediu fisicamente uma professora e disseram que a diretora se queixou que ele constantemente levava uma faca para a escola. Segundo relato da professora e da orientadora em reunião realizada junto à equipe de atendimento no Hospital: "Rambo tornou-se um mito. Todos têm medo dele". A professora disse que a mãe batia (tapas no rosto e na boca) em Rambo na frente de todos, quando este tentava falar algo. Rambo contou que seus colegas o chamavam de "gardenal" e que se alguém o ofendia ou a sua família, ele já partia "pra porrada".
A mãe revelou que obrigava Rambo a tomar água de melissa, depois do almoço, para que ele ficasse mais tranquilo. Rambo achava que o "remédio" só fazia efeito até o intervalo da aula, por isso não conseguia se controlar após o recreio. Havia um impasse em relação à permanência de Rambo na escola, pois tanto a diretoria, os pais dos demais alunos e o próprio Rambo desejavam a troca de escola, mas os seus pais eram incisivos em mantê-lo.
Os pais não concordavam com o comportamento agressivo descrito e defendiam Rambo das acusações realizadas pela escola. O pai comentou: "Muitas coisas que eles falam na escola, eu não entendo! Que em casa ele não faz nada disto, dizem que na escola ele bate nos outros, pega pelo pescoço, eu não acredito nisto". A mãe defendeu: "Dizem que levou uma faca, mas não tem faca nenhuma, a única coisa que ele leva é a tesoura, todas as crianças levam tesoura pra cortar papel". Segundo informações da professora da escola e do prontuário, Rambo repetia várias vezes que: "Eu não sei por que eu nasci, só para obedecer aos outros e apanhar". Durante o atendimento psicológico, Rambo contou que colocou um brinco e que seu pai ameaçou "arrancar sua orelha" se não o tirasse.
A relação entre os pais e Rambo, segundo a percepção dos pais, "é muito boa". Para o pai: "Rambo é uma criança calma, é prestativo, até auxilia a mãe que está com o braço quebrado. Conversamos sobre tudo, pois ele é nosso companheiro", e a mãe completou: "O único companheiro aqui é ele", e "Tudo o que ele quer a gente dá". Em algum momento o pai afirmou que fora de casa: "Ele é meio rebeldezinho, que isto eu sei, porque eu o ensinei assim desde pequeno". No entanto, na família, Rambo tinha que seguir as determinações dos pais, sem questionar, de acordo com o pai: "O Rambo é assim, eu grito com ele e ele chega a ficar tremendo". A mãe observou que: "E o guri não pode chorar!".
Sobre a criação dos filhos, consideravam que deve ser "à moda antiga", isto é, da mesma forma que seus pais agiam em relação a eles com rigidez e punição física. Para Rui: "Os pais têm que bater com um pedaço de pau, ferro, o que tiver na mão", e que: "Sempre deixo um pedacinho de mangueira de bobeira, um caninho d 'água, para bater nos filhos". Para Rui: "Os pais podem bater em qualquer parte do corpo, inclusive na cabeça. O objetivo principal é machucar". E continuou: "a criança aprenderá que não deve repetir o comportamento". O pai desautorizava constantemente as ordens da mãe, por exemplo, a mãe castigou Rambo restringindo-o de assistir à televisão e o pai perguntou: "Por que você não está vendo televisão?". Rambo respondeu: "A mãe disse que eu tô de castigo!". E o pai retrucou: "Então pode ligar, porque eu tô mandando!".
Mara e Rui falaram sobre suas diferenças na forma como manifestam sua agressividade. Para Rui, a mãe "vive dando tapas e empurrões nos filhos". Por outro lado, ele batia uma só vez: "Mas é para aprender!". Mara percebeu que quando estava irritada com alguém, procurava "descarregar" na pessoa que lhe causou esse sentimento. Já o marido, "explode" com ela e os filhos. Rui contra-argumentou essa afirmativa, dizendo que: "Eu não explodo com ninguém. Eu sou daquele tempo ainda que o marido é quem manda dentro de casa, entendeu? Se é pra tal coisa, não vai fazer, não deve fazer". O pai intitulava-se: "Sim, o xerife da casa sou eu".
Na relação com o irmão, Rambo disse que sempre conversava com Van, com o objetivo de aproximar-se. De acordo com Mara, ela sempre escutava o diálogo deles: "Bah, mano, sai da droga, os caras vão acabar te matando". Havia também brigas constantes entre os irmãos, com pontapés e socos, por disputa de objetos. Para Rui, a maioria das brigas na família era entre os irmãos e, para impedi-las, disse que interferia de alguma forma.
Segundo relato, o casal dificilmente conversava. As decisões eram tomadas por Rui e quando Mara tentava contestar, começavam as agressões verbais e físicas. Para o casal, o principal motivo da violência conjugal tinha origem em questões financeiras. Já para Rambo, os motivos das brigas eram diversos e, muitas vezes, não estavam claros. O menino confirmou: "Basta o pai estar de mau humor", por exemplo. Os filhos buscavam interferir na "pancadaria deles e acabamos apanhando também". Sempre defendiam a mãe, e esta defendia-os. Rambo revelou que o irmão e ele pensavam em: "Pegar o pai e deixá-lo no hospital, na próxima vez que agredir a mãe". Mara revelou que "apanha calada" e não sabia o porquê de o marido bater nela. Disse que "conta até três para não revidar e se controlar", porque sabe que "se perder o controle, pode matá-lo". Revelou, também, que no início aceitava os carinhos do marido como forma de perdoá-lo pelas agressões, mas que agora não queria nenhum tipo de intimidade entre eles.
Os pais tinham expectativas diferentes para os dois filhos. Em relação a Van, não conseguiram expressar qualquer expectativa em relação ao seu futuro. Julgavam que não valia a pena investir em Van "em função de ser usuário de drogas". O pai comentou: "Van não vai ajudar nós em nada". A mãe falou que desistiu e que temia que ele fosse morto. A esperança de Rui era que Rambo interrompesse os estudos e se dedicasse à rádio comunitária que estão organizando e aos negócios do pai, sendo seu sucessor.
Indicadores de Risco
Diversos indicadores de risco foram identificados nessa família utilizando-se o modelo PPCT. Esses fatores de risco podiam potencializar a violência naquele contexto. De acordo com Koller e De Antoni (2004), os fatores compreendidos no núcleo Pessoa ou "eu ecológico" estão relacionados às características biopsicossociais. Geralmente esse núcleo é o único foco de análise para um diagnóstico psicológico, com base nos processos intrapsíquicos e de acordo com uma visão mais tradicional da Psicologia. No entanto, na concepção sistêmica pode-se pensar como se estabelecem as interações (núcleo Processo) a partir dessas características individuais. Por exemplo, essa família apresentava características comportamentais semelhantes, ao reproduzirem o mesmo comportamento (falar, vestir, gesticular). Buscavam uma forma de identidade familiar, no entanto, os membros da família Peres não eram "companheiros". Apresentavam uma atitude individualista, em função da insegurança no ambiente familiar e do sentimento de solidão ou isolamento provocado pela falta de trocas afetivas. Cada um isolava-se em seu próprio mundo, com sua própria televisão e sua própria dor. E isso era um reflexo do isolamento emocional vivenciado por todos.
Rambo também apresentava baixa autoestima e autoimagem enfraquecida e, para lidar com isto, assumia um "papel" de forte e "valentão", contrário aos reais sentimentos. A imagem que os pais possuíam de Rambo, como ser calmo, confirmava o comportamento submisso do menino no ambiente doméstico. Adicionalmente, tal imagem reafirmava que em outros ambientes, como na escola, sua vontade era de reproduzir um modelo de comportamento valorizado e semelhante aos pais, exercendo o poder por meio da força e brutalidade. No entanto, Rambo declarava seu desejo de morrer e isso podia demonstrar seu sentimento de inferioridade, fragilidade e depressão. Van apresentava um comportamento antissocial, e, de certa forma, essas ações eram reforçadas e valorizadas por Rui, que criou os filhos para serem "rebeldes".
Segundo Cobb (1992), a adolescência é marcada pela busca e formação da identidade psicológica, que se caracteriza pela consciência de si e do outro. Assim, como Van não tinha documentos de identidade, parece que não encontrou a sua identidade psicológica, pois demonstrava sua fragilidade e vulnerabilidade frente à interação com os outros, reproduzindo um comportamento agressivo e distante. O pai apresentava um comportamento desafiador e irônico, contestando frequentemente as observações e o sistema de apoio. Parecia ver o ambiente de forma hostil, o que o levava a agir agressivamente aos contatos sociais. A mãe fazia um movimento de contestação às ordens de Rui, mas acabava cedendo aos seus mandos, de forma submissa, pelo medo e reproduzindo o comportamento agressivo.
A compreensão do núcleo Pessoa é primordial para conhecer como a violência se manifesta nas interações familiares. No entanto, as análises dos núcleos Tempo e Contexto possibilitam ampliar a visão sobre o fenômeno da violência nessa família, pensando sobre outras influências, além das questões comportamentais diretamente observadas.
No núcleo Tempo, segundo Koller e De Antoni (2004), deve-se levar em conta a história anterior ou o ciclo de violência evidenciado nas relações transgeracionais ou intergeracionais desse grupo. A presença de abuso físico no microssistema familiar revelou uma repetição de um modelo parental aprendido possivelmente pelo processo de modelação (Cecconello, De Antoni, & Koller, 2003). Para Bandura (1997), a modelação é uma forma de aprendizado pela observação do comportamento do outro e implica elaboração de uma representação mental desse comportamento, o armazenamento na memória e sua reprodução posterior frente a uma experiência semelhante. O casal relatou os abusos físicos sofridos em suas famílias de origem, principalmente a severidade dos atos agressivos por parte da mãe de Mara e de Rui. Esses atos agressivos eram frequentes e naturais, mesmo quando adultos. Inclusive, o homicídio do pai de Mara foi informado como um ato banal, sem repercussões legais ou morais. Em relação ao tempo de organização familiar, a rotina não favorecia as interações, pois as atividades não eram em conjunto. Por exemplo, Rambo não tinha horários a cumprir.
Portanto, Tempo e Processo interagem dinamicamente, pois o comportamento violento estava presente na história dessa família e reforçava a crença de que ele sempre fez parte das interações. Rui também falou com naturalidade sobre os pais exercerem seu controle sobre os filhos por meio da intimidação e força física. Além disso, parecia haver uma crença de que o respeito se adquire por imposição ou punição, em vez de ser conquistado pela admiração. Portanto os familiares associavam e confundiam os sentimentos de medo com os de respeito, e buscavam despertar esses sentimentos nos filhos como uma forma de se sentirem respeitados. Esse fato tornava-se risco para violência à medida que as gerações aprendiam erroneamente essa distorção em relação aos sentimentos e absorviam essa crença.
Percebe-se, ainda, nesse caso, que o risco da repetição de atos abusivos por parte dos pais, na relação parental, podia ser intensificado pela falta de insight sobre a severidade desse comportamento e de suas consequências negativas para o desenvolvimento saudável de seus filhos. Rui afirmou que não se importava com as sequelas dos abusos físicos e que, por ter passado por essa experiência e estar vivo, o mesmo aconteceria com seus filhos. Assim, a aceitação passiva e incontestável sobre a agressividade para com os filhos, associada ao desconhecimento sobre os Direitos Humanos, pode impedir o rompimento desse padrão, perpetuando-o entre gerações.
No núcleo Contexto, em termos microssistêmicos, teoricamente, as relações familiares saudáveis deveriam ser estabelecidas com reciprocidade, afeto e equilíbrio de poder (Bronfenbrenner, 1979/1996). A família forma uma unidade funcional, e, para manter a homeostase desse sistema, seus membros empregam e trocam constantemente energia, isto é, há um esforço físico e emocional para que o sistema funcione da forma que compreende como esperada. Para a família de Rambo, a manifestação do afeto amoroso, que é idealmente esperada de uma família, era substituída pela agressão física. O carinho demonstrado por beijos e abraços inexistia. A mãe expressou não querer mais carinho do marido, que sempre ocorria após as brigas. As relações eram estabelecidas por uma competitividade de força física, portanto, os socos, tapas e pontapés estavam presentes constantemente. Essa era a forma que usavam para tocarem uns nos outros. A violência servia para que as relações não mudassem; por mais que a mãe e os filhos desejassem que a violência fosse minimizada, nenhuma ação era efetivamente realizada. Havia um desejo de revidar a violência com mais violência, podendo chegar à aniquilação ou destruição do outro. Isso ficou evidente, por exemplo, na articulação de uma estratégia entre os irmãos para "pegar" o pai. Assim, os pensamentos e os sentimentos eram pautados por intensa raiva.
Como os atos agressivos eram cultuados, principalmente pelo pai, como forma de afirmação da sua masculinidade e força, em algumas situações, o motivo da agressão não estava claro para a vítima. A mãe, por exemplo, alegou que, muitas vezes, apanhou sem saber a causa; o mesmo parecia acontecer com seus filhos e, como revelou Rambo, para apanhar bastava "o pai estar de mau humor". Percebe-se que a falta de um modelo parental adequado pode levar ao risco de aceitação dessa prática como "educativa" e "natural". Os pais tinham a crença que tal ação era eficiente, talvez porque tinham um efeito imediato ao cessar o comportamento indesejado dos filhos. No entanto, mostrou-se ineficaz em longo prazo, pois fazia-se necessário utilizá-la repetidamente.
A prática disciplinar adotada por essa família era a coercitiva, pela qual os pais ameaçavam e puniam fisicamente seus filhos com o intuito de corrigir comportamentos indesejados, mas nem sempre incorretos. Adotavam um estilo parental negligente em relação a Van, e autoritário em relação a Rambo. Para Cecconello, De Antoni e Koller (2003), em uma revisão da literatura, o estilo negligente refere-se aos pais que não são afetivos nem exigentes, e demonstra distanciamento em relação ao comportamento do filho. Os pais autoritários são rígidos e autocráticos e tendem a enfatizar a obediência por meio do respeito à autoridade e à ordem, utilizam de punição como forma de controle e não valorizam o diálogo, a autonomia e a opinião dos filhos. Além disso, como no caso desses pais que acreditavam na disciplina severa, havia uma tendência de utilizar disciplinamento acompanhado por ações agressivas, além do abuso emocional provocado pelo comportamento do pai que desautorizava constantemente as ações da esposa, principalmente em relação à adoção de uma prática disciplinar restritiva, como não permitir assistir aos programas da TV. Isso podia causar certa confusão em Rambo, ao não conseguir discernir se o comportamento que eliciou o castigo era passível de correção. Isso também reforçava a ideia de que a mãe não tinha controle sobre ele. Por outro lado, os pais não colocavam limites para os filhos. Segundo a mãe: "Ele tem tudo, ganha tudo que quer". A falta de orientação, de regras e de limites podia fazer com que Rambo não avaliasse ou desenvolvesse a responsabilidade por seus atos, como também podia interferir no julgamento adequado sobre os mesmos. No caso dessa família, o abuso físico era, em algumas situações, justificado pela adoção de uma prática disciplinar; no entanto, essa justificativa não se mantinha, em função da frequência e pelos motivos que ocasionavam a violência.
Outro fator de risco existente nesse microssistema era o casal ter tido os filhos quando ainda adolescente (Levandowski, De Antoni, Koller, & Piccinini, 2002) e, conforme revelado, muitos aspectos relacionados à própria sexualidade e parentalidade eram desconhecidos. Esse risco associado a outros indicadores pode ter favorecido o início da violência. A falta de conhecimento sobre gravidez, a ausência de orientadores, a imaturidade, o despreparo para assumir seus papéis de pai e mãe e a necessidade de formar a identidade podem ter incrementado o fato de idolatrar personagens e a valorização das ações agressivas.
Em relação à comunicação, o diálogo era substituído por agressões. Ao invés de conversar sobre os problemas e buscar alternativas, os pais se calavam ou agrediam verbal e fisicamente. A única tentativa de diálogo ocorreu entre Rambo e Van, promovida pelo primeiro, que buscava conscientizar, sem sucesso, o irmão sobre os perigos causados pelo uso de drogas.
Os processos de comunicação intrafamiliares são importantes para o desenvolvimento da resiliência familiar, na superação dos eventos estressores e na promoção do curso adequado ao seu desenvolvimento. Segundo Yunes (2003), uma das formas de incrementar a resiliência baseia-se em "expressões emocionais abertas" (p. 82) que estão relacionadas ao compartilhamento de sentimentos, à empatia nas relações, na tolerância das diferenças, interações prazerosas e bem-humoradas. Nessa família, não havia expressões emocionais abertas, pelo contrário, apenas o silêncio em relação ao compartilhamento de sentimentos e as interações eram dolorosas e mal-humoradas. Os membros não falavam sobre os sentimentos relacionados a aspectos positivos, como felicidade, ou negativos, como o medo e a dor. Parecia que a esposa tinha receio de expor-se diante do marido, pois no contato individual apareceram sentimentos de intolerância à situação de violência vivida e ao desejo de romper com o casamento.
No microssistema dessa família não tinham sido, aparentemente, utilizadas estratégias eficazes que colaborem para a resolução de problemas. A colaboração na busca de soluções fazia parte do processo de comunicação (Yunes, 2003), assim como as tomadas de decisão compartilhadas com negociação, reciprocidade e justiça. Essa família mostrou-se vulnerável frente à tomada de decisão, gerando violência conjugal pelas discordâncias de opiniões.
O mesossistema dessa família era restrito ao ambiente de moradia, ao local de trabalho dos pais, à igreja e à escola de Rambo. A família não transitava constantemente em outros microssistemas. O trabalho do casal era executado ao "ar livre", onde circulavam muitas pessoas e não havia formação de vínculos. A igreja era frequentada eventualmente e sem relação de amizade com outros adeptos ou com o pastor. Parecia servir como reforço para legitimar a busca da prosperidade material, sem contribuição para o desenvolvimento moral ou espiritual. A escola de Rambo não estabelecia uma relação de reciprocidade e reforçava o estereótipo de que Rambo é agressivo e perigoso. A família estava isolada, pois não tinha amigos ou parentes. As outras instituições de contato formal, tais como o Conselho Tutelar, a promotoria e o Hospital, eram vistas por eles com desprezo e desdém.
Parece que a família não permitia formar uma rede de apoio social e afetiva. Assim, o risco de aumentar a severidade e a frequência dos atos violentos era maior, pois não tinha abertura para que outras pessoas ou instituições os orientassem. A ausência de relações de amizade e de apoio levou a família ao isolamento e ao fechamento do sistema, isto é, pouca troca com outros sistemas. Percebe-se, então, que a mesma não apresentava recursos sociais em seu padrão de organização, além de rigidez frente às mudanças e reformulações.
Em termos macrossistêmicos, apareceram diversos aspectos, como a aceitação cultural da punição física, como prática educativa; a influência da mídia; a crença na impunidade; o machismo; e a desvalorização do ensino formal. A violência não era somente naturalizada ou banalizada por essa família, mas nitidamente valorizada. A influência da mídia sobre essa família era um fato muito aparente, que perpassa os nomes dos filhos, a forma como se vestem, se comunicam e se comportam. Há influência aparente da televisão, filmes, video games e jogos eletrônicos, da mídia impressa e de clipes musicais no comportamento das pessoas desta família. Tal influência já havia sido salientada por Porto (2002), pois a violência deve ser compreendida como um fenômeno plural, isto é, com múltiplas causas, sendo a mídia um dos fatores que colaboram para tal. Embora haja muita controvérsia, há estudos que comprovam que há um aumento da agressividade em pessoas expostas a programas violentos na televisão (Njaine & Minayo, 2004). No caso dessa família, não havia dúvida desse fato. A violência promovida e a exposição declarada dessa família à mídia com conteúdos agressivos revelaram perda de sensibilidade ou, mesmo, dessensibilização frente aos comportamentos destrutivos. As pessoas parecem ficar indiferentes ao assistir uma cena real de violência dirigida a outro ou ter uma atitude de omissão em relação à vítima, como nos casos de relato de bullying de Rambo na escola (Koller & De Antoni, 2004; Njaine & Minayo, 2004). Esse aspecto estava relacionado às variáveis de saúde, em nível macrossistêmico social e ambiental. O pai sugeriu que os filhos nasceram e foram criados para serem violentos e, principalmente, "rebeldezinhos", isto é, para confrontarem o sistema social vigente. Portanto, necessitam corresponder a esse papel atribuído, como o comportamento de Van por roubar, usar drogas, abandonar a escola, portar ilegalmente uma arma, entre outros, e de Rambo, de agredir colegas e professores.
Além disso, existia nessa família uma crença sobre a impunidade, isto é, de que não serão alvos de ações, punições ou processos por seus atos. Talvez essa crença seja reforçada por aspectos culturais macrossistêmicos que associam a ideia de haver na sociedade um alto índice de criminalidade e insuficientes políticas públicas para solucionar esse problema. Portanto, os familiares manipulavam informações, exerciam atividades profissionais ilícitas, confrontavam ordens judiciais e instituições legais. Comentavam de forma natural, sem segredos ou pudores, a existência de brigas, conflitos, lutas, furtos, e outras agressões no contexto familiar. Parecia que a família não qualificava a violência de forma negativa, como transgressão ou violação de Direitos Humanos, mas como um evento cotidiano no seu contexto de desenvolvimento.
Outra crença macrossistêmica presente nessa família é a cultura patriarcal, conhecida popularmente como "machismo". Segundo DeSouza, Baldwin e Rosa (2000), o "machismo" é um conjunto de condutas, constituídas, aprendidas e reforçadas culturalmente. Está relacionado às características e ao desempenho de papéis instituídos ao gênero masculino na cultura latina, e forma uma ideologia que promulga que é bom e até natural que os homens controlem o governo, as atividades públicas e a mulher. O pai acreditava que o outro tinha que ceder às suas vontades, portanto, o uso de atos agressivos servia para impor seu desejo e não ser questionado em suas atitudes. Ao se denominar o "xerife", assumia o poder de quem detém a liberdade ou o confinamento do outro, isto é, o poder de decidir sobre o outro. O sistema familiar tinha, então, que funcionar da forma como ele determinava. A esposa também se submetia a essa crença, quando apanhava "calada".
Outra crença relacionada aos valores culturais, portanto, macrossistêmica, é a desvalorização do estudo formal. O pai considerava que Rambo não precisava mais estudar, que o tempo poderia ser mais bem empregado se ele trabalhasse. A família acreditava que o estudo não era importante, pois em sua visão, nem para obter ganhos financeiros era necessário, como se o único objetivo de quem estuda seja o de agregar valor material. Os pais, então, impossibilitavam ao filho adquirir novos e diferentes conhecimentos advindos das informações escolares e das trocas efetuadas nesse ambiente.
Indicadores de Proteção
Os indicadores de proteção nessa família foram escassos. Em nível microssistêmico, a estabilidade econômica poderia favorecer o acesso a bens de consumo e certo conforto material, evitando reviverem a situação traumática de passar fome, ocorrida no passado. Em termos do exossistema, encontrou-se uma rede de serviços que era oferecida e atuava em conjunto no sentido de melhorar a qualidade de vida de toda a família e de cada um de seus membros. A promotoria, a escola, o Conselho Tutelar e o Hospital eram partes do mesossistema que buscavam dinamicamente promover proteção a esse grupo. Adicionalmente, a afiliação religiosa e o investimento na comunidade poderiam favorecer a essa família o senso de pertencimento, o que poderia auxiliá-la na estruturação de uma rede de apoio social mais bem estruturada e mais funcional no futuro.
Considerações finais
A família Peres também se tornou um "mito", assim como Rambo foi descrito pela professora. As atividades ilícitas, o isolamento social e a forma como se vestiam e se comportavam reforçavam e fomentavam esse mito entre eles mesmos e nos microssistemas em que transitavam. A família valorizava a imagem de destemidos, rebeldes e violentos e reproduzia esses comportamentos em todos os contextos em que se inseria, talvez como uma forma de proteção ao meio social, que, na sua percepção, sempre fora hostil. Assim, ao se sentirem poderosos, lidavam com as humilhações sofridas em sua história familiar.
O modelo PPCT promoveu uma visão do fenômeno da violência nessa família. Este estudo de caso revela como profissionais que atuam na prevenção e intervenção com famílias violentas podem identificar aspectos relevantes em uma análise sistêmica no fenômeno da violência. A partir dessas análises pode-se pensar em um planejamento estratégico com intervenções possíveis, tanto em nível de um atendimento psicossocial dos indivíduos e do grupo familiar, como na articulação da rede de serviços. O atendimento pode contemplar os processos psicológicos presentes na pessoa (eu ecológico), como também na conscientização do microssistema familiar sobre suas relações. Por exemplo, abordar os processos de comunicação, os padrões de organização e a influência transgeracional (núcleo Tempo), as práticas educativas (Processo) e a influência da mídia e da concepção "machista" (Contexto - macrossistema). As intervenções em rede poderiam envolver instituições como a Promotoria, CT, escola e o próprio serviço de atendimento, e esses órgãos devem estar atentos e coesos em suas ações a fim de auxiliar e apoiar a família nas mudanças necessárias. Esse modelo de análise permite também auxiliar os profissionais no atendimento e na intervenção psicossocial, já que a formação acadêmica, muitas vezes, não contempla especificamente a instrumentalização na intervenção em casos de violência ou em situações de riscos severos e persistentes.
Apesar dos esforços da equipe de psicólogas do Hospital em realizar um atendimento integrado, após iniciar a psicoterapia com Rambo e a terapia familiar, a família abandonou o tratamento. Segundo informações obtidas pela rede, a família mudou de município, sem deixar qualquer forma de contato. Esse fato evidencia a dificuldade da família em lidar com uma possível mudança em suas crenças e no seu comportamento. Assim, demonstra sua vulnerabilidade frente a tantos fatores de risco, que impedem o desenvolvimento de um processo de resiliência familiar e compactuam com a perpetuação da violência. Também evidencia as limitações do trabalho dos profissionais, que atuam muitas vezes de forma isolada, sem uma estrutura de rede, que possa exercer tanto o acompanhamento, como o controle jurídico e social.
Sugere-se que novos estudos sejam realizados, utilizando a Teoria Bioecológica como aporte para a compreensão do fenômeno da violência intrafamiliar, estudos que possam consolidar esse modelo de análise como eficaz na estruturação de uma intervenção psicossocial. Da mesma forma, sugerem-se estudos sobre redes primárias e secundárias (mesossistema) que possam contribuir para amenizar ou, esperançosamente, possibilitar formas de interações familiares sem violência.
Infelizmente, a história de vida dessa família inclui cenas de violência e permite fazer analogia com um filme de ação. O roteiro inclui diversos tipos de violência vividos por seus protagonistas: violência transgeracional, intrafamiliar, social e urbana. No cenário, destaca-se uma residência com conforto e pequenos ambientes fechados, como nos cômodos da casa, que mostram o isolamento e não permitem trocas. Os membros da família são atores de uma realidade, em que desempenham papéis de fortes, valentes, rebeldes, contraventores e destemidos. Chorar não está no script, embora sofrer faça parte desse turbilhão de sentimentos, assim como raiva, medo e desprezo. Rambo e Van carregavam a sina em seus nomes. Van já atendeu, talvez em demasia, às expectativas familiares, e Rambo, por mais que tenha vontade de mudar isso, acaba representando o papel instituído. Assim, escritores da sua história, essa família vem desempenhando um reality show, cujo título poderia ser "Nascidos para Matar (a si mesmos)". Quem sabe nós, profissionais preocupados em modificar essa realidade e defensores de uma cultura pela paz, possamos influenciar esses scripts e ajudar essas famílias a reescrever a sua história?
Referências
Bandura, A. (1997). Self-efficacy: The exercise of control. New York: H. Freeman and Company. [ Links ]
Bardin, L. (1977). Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70. [ Links ]
Belsky, J. (1993). Ethiology of child maltreatment: A developmental-ecological analyses. Psychology Bulletin, 114(3), 413-434. [ Links ]
Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: Experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1979). [ Links ]
Bronfenbrenner, U. (2004). Making human beings human: Bioecological perspectives on human developmental. Thousand Oaks, CA: Sage. [ Links ]
Cecconello, A., De Antoni, C., & Koller, S. H. (2003). Práticas educativas, estilos parentais e abuso físico no contexto familiar. Psicologia em Estudo, 8, 45-54. [ Links ]
Cobb, N. (1992). Adolescence: Continuity, change, and diversity. Mountain View, CA: Mayfield. [ Links ]
Cowan, P. A., Cowan, C. P., & Schulz, M. (1996). Thinking about resilience in families. In E. M. Hetherington e E. A. Blechmann (Orgs.), Stress, coping, and resilience in children and families (pp. 1-38). New Jersey: Lawrence Erlbaum. [ Links ]
De Antoni, C. (2005). Coesão e hierarquia em famílias com história de abuso físico. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. [ Links ]
De Antoni, C. & Koller, S. H. (2000). A visão de família entre adolescentes que sofreram violência intrafamiliar. Estudos de Psicologia, 5(2), 347- 382. [ Links ]
De Antoni, C., Barone, L., & Koller, S. H. (2006). Violência e pobreza: um estudo sobre vulnerabilidade e resiliência familiar. In D. Dell"Aglio, S. H. Koller, & M. A. M. Yunes. Resiliência e Psicologia Positiva: interfaces entre risco e proteção (pp. 141-171). São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
De Antoni, C., Teodoro, M., & Koller, S. H. (2009). Coesão e hierarquia em famílias fisicamente abusivas. Universitas Psychologica, 8(2), 399-412. [ Links ]
DeSouza, E., Baldwin, J., & Rosa, F. H. (2000). A construção social dos papéis sexuais femininos. Psicologia Reflexão e Crítica, 13(3), 485-496. [ Links ]
Garbarino, J. & Eckenrode, J. (1997). Understanding abusive families: Ecological approach to theory and practice. San Francisco: Jossey-Bass. [ Links ]
Gehring, T. (1993). Family System Test - FAST, Manual. Germany: Hogrefe & Huber. [ Links ]
Koller, S. H. & De Antoni, C. (2004). Violência intrafamiliar: Uma visão ecológica. In S. H. Koller (Org.), Ecologia do desenvolvimento humano: Pesquisa e intervenção no Brasil (pp. 293-310). São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Levandowski, D., De Antoni, C., Koller, S. H., & Piccinini, C. (2002) Paternidade na Adolescência e os Fatores de Risco e de Proteção para a Violência na Interação Pai-Criança. Interações, VII(3), 77-100. [ Links ]
Njaine, K. & Minayo, M. C. (2004). A violência na mídia como tema na área de saúde pública: revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, 9(1), 201-211. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csc/v9n1/19837.pdf>. Acesso em 21 abr. 2009. [ Links ]
Oates, R. K., Ryan, M., & Booth, S. M. (2000). Child physical abuse. In R. Ammerman & M. Hersen (Orgs.), Case studies in family violence (pp. 133-176). New York: Plenum. [ Links ]
Porto, M. S. (2002). Violência e meios de comunicação em massa na sociedade contemporânea. Sociologias, 8, 152-171. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/soc/n8/n8a07.pdf>. Acesso em 21 abr. 2009. [ Links ]
Rutter, M. (1999). Resilience concepts and findings: Implications for family therapy. Journal of Family Therapy, 21, 119-144. [ Links ]
Yunes, M. A. (2003). Psicologia positiva e resiliência: O foco no indivíduo e na família. Psicologia em Estudo, 8, 75-84. [ Links ]
Zottis, G., Algeri, S., & Portella, V. (2006). Violência intrafamiliar contra crianças e as atribuições dos profissionais de enfermagem. Família: Saúde e Desenvolvimento, 8(2), 146-153. [ Links ]
Enviado em Abril de 2009
Revisado em Dezembro de 2009
Aceite final em Janeiro de 2010
Publicado em Dezembro de 2010
1 Os trechos referentes à entrevista foram transcritos de forma literal, sem correções gramaticais.