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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.18 no.1 Ribeirão Preto  2010

 

Juventude, violência e alteridade

 

Youth violence and otherness

 

 

Maristhela Bergamim de OliveiraI; Edinete Maria RosaII

IUniversidade Federal do Espírito Santo
IIUniversidade Federal do Espírito Santo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A preocupação com a violência e suas várias manifestações contemporâneas envolvendo a população jovem do nosso país, desafia-nos à construção deste artigo, histórico e teórico/conceitual, que objetiva lançar luz sobre o fenômeno "Juventude e Violência". Apoiados principalmente em autores como Castel, Chauí, Ianni e Wieviorka buscamos ampliar o entendimento do fenômeno da violência analisando suas raízes ancoradas na sociedade capitalista e nas transformações decorrentes da globalização, que apresentam uma nova forma de sociabilidade pautada no individualismo. Por fim, ressalta-se que a superação do esvaziamento simbólico ordenador da sociedade atual está em repensar as relações de alteridade a partir do que se acredita ser um retorno à utopia.

Palavras-chave: Juventude, Violência, Alteridade, Sociabilidade, Utopia.


ABSTRACT

Concerns about violence and its various contemporary manifestations involving youngsters in this country prompted us to write this historical, theoretical and conceptual paper, which aims at shedding light on the phenomenon of " Violence and Youth". Drawing on Castel, Chauí, Ianni and Wieviorka, we aimed at extending the comprehension of the phenomenon of violence by analyzing its roots, anchored in a capitalist society and its transformations caused by globalization, which present a new way of sociability based on individualism. Finally, it is emphasized that the process of overcoming the symbolic emptiness of contemporary society is based on rethinking the relations of otherness from those that are believed to be a return to Utopia.

Keywords: Youth, Violence, Otherness, Sociability, Utopia.


 

 

(Des)atando os nós entre juventude e violência

O crescimento da violência na sociedade brasileira e sua associação com a juventude têm motivado inúmeros estudos, em especial nas últimas décadas (Zaluar, 1994; Diógenes & Waiselfisz, 1998; Diógenes & Minayo, 1999; Zaluar, 2003; Abramovay, 2004). Contudo, a pesquisa no interior do conhecimento produzido mostra que as análises centram-se, preponderantemente, nos territórios da pobreza, denunciando uma escassez de estudos voltados à violência e juventude que se ampliem para além das classes populares, em contraposição à emergência de episódios violentos protagonizados por jovens pertencentes a classes sociais privilegiadas.

Peralva (2000) esclarece que a dificuldade em romper com a relação de causa e efeito entre pobreza e violência não se dá apenas pelo peso das representações que circulam no seio da sociedade civil, mas também pela constante reintrodução dessa ideia pela própria intelectualidade quando insiste na noção de revolta para explicar o motivo do engajamento do "pobre" na experiência do crime.

A violência em sua expressão banalizada, presente no nosso cotidiano, principalmente na forma do alheamento em relação ao outro, atinge quase indistintamente todas as gerações e classes. Protagonizada pelos jovens, ela revela sua condição juvenil, uma identidade e uma marca de juventude que os unifica e os expõe aos conflitos históricos surgidos nas sociedades contemporâneas, ainda que ressalvando sua multiplicidade e as particularidades decorrentes ao pertencimento a uma determinada classe social. Como bem reflete Mello (1991, p.131) "A experiência da cidade e da violência é uma experiência partilhada por todos, embora vivida sob condições de extremada diferença".

É nesse contexto de acirramento da violência que a condição juvenil permite a sua produção enquanto categoria social (Groppo, 2000), categoria analítica na relação com as estruturas histórico-sociais que a determinam. Enquanto segmento catalisador das tensões sociais (Diógenes,1999), a juventude metaforicamente passa a representar a vitrine dos conflitos sociais e a crise da juventude, mais que a crise da adolescência, passa a ser reveladora também da crise permanente da sociedade capitalista (Sales, 2003), da crise de significações de nossa modernidade (Waiselfisz, 1998). É o que torna a juventude um termo-chave (Abramo, 2005) na atualidade, uma vez que suas questões relacionam-se com temas centrais dessa conjuntura histórica.

A noção de juventude assentada no imaginário social costuma ganhar associação direta com a ideia de uma fase da vida marcada pela instabilidade e, por isso, mais suscetível aos problemas sociais de seu tempo, de forma que a juventude torna-se, ela própria, um "problema social". Decorrem daí os enquadramentos estigmatizantes que nos trazem a juventude revoltada e delinquente dos anos 50; a juventude militante e revolucionária dos anos 60 e 70; a juventude cética e passiva dos anos 80 e 90 ( que mesmo tendo protagonizado movimentações como o "fora Collor" essas foram vistas com desconfiança quanto à efetividade de sua dimensão politizadora) e, na atualidade, a juventude violenta ( Abramo, 1997).

Ao realizar a problematização sociológica da juventude em seu consistente estudo sobre culturas juvenis, o sociólogo português Pais (1993) lembra como a própria Sociologia participa dessa construção social, determinada pelas representações formuladas pelo senso comum, fazendo com que alguns estudos funcionem como "caixa de ressonância" da mídia, deixando de assumir um papel desmistificador que, ao analisar os problemas que emergem da realidade, deve se propor ao labor sociológico de se interrogar sobre a essência dessa aparente realidade.

À luz das reflexões de Bourdieu (1990), que se impuseram como marco para os estudos envolvendo a juventude, a teoria sociológica se depara com a necessidade de questionar as representações mais correntes e indevidas sobre a juventude e, nesse sentido, considera a juventude como uma categoria teórica manipulada e manipulável. De acordo com o autor, juventude é uma palavra cuja definição se expõe a variada manipulação porque tende a ser percebida e definida biologicamente, escamoteando aspectos determinantes como classe social, gênero e raça que a tornam uma categoria socialmente construída.

Cabe, portanto, desconfiar de qualquer ideia de juventude tomada como uma etapa da vida homogênea e unitária, detentora de interesses comuns, assim como daquela que aborda a juventude como uma realidade dada e não como uma construção social. Ela é, sobretudo, "uma categoria socialmente construída, formulada no contexto de particulares circunstâncias econômicas, sociais ou políticas; uma categoria sujeita, pois, a se modificar ao longo do tempo" (Pais, 1993, p.29).

Esclarece-nos Pais (1993) que, apenas quando os comportamentos juvenis começaram a ser associados a uma cultura adolescente, no avançar do século XIX, é que a adolescência passou a se fazer presente na consciência social e a se constituir objeto de estudo e análise. No interior de um processo gradativamente prestigioso, os jovens alcançaram atualmente uma força de grupo social sem precedentes, capaz de influenciar e impor modos de conduta próprios a outros grupos de idade, sem que isso retire o devido "mérito" da indústria cultural em sua insistente valorização de uma cultura juvenil.

Ocorre que o debate acadêmico sobre o tema da juventude, ainda permeado por disputas conceituais, incorporou acúmulos teóricos e atualmente, mesmo enfatizando a noção de "juventudes", em consideração às múltiplas situações e significações inerentes ao segmento, reconhece a validade da condição juvenil por imprimir sentido a todos os grupos sociais (Abramo, 2005).

Ao observarmos, portanto, os jovens na sua relação com a violência atual queremos explorar as similaridades que homogeiniza esse grupo, à luz do contexto histórico que vivemos, sem, contudo, elidir a condição de classe e os significados próprios desse pertencimento.

Devemos entender a juventude como uma categoria que é produzida analiticamente, na relação com o processo sócio-histórico que a modernidade constitui. E como, a partir do reconhecimento das transformações políticas, econômicas e ideoculturais, a juventude, em conexão com as novas formas de sociabilidade que despontam, incluindo-se aí as expressões de violência, transforma-se em recurso revelador das características e metamorfoses presentes na contemporaneidade.

Para fundamentarmos essa abordagem lançamo-nos à idéia de que os jovens espelham as relações sócio-culturais, condensando seus significados (Foracchi, 1978), sem que isso conduza, no entanto, ao desenho de um comportamento homogêneo, quer seja conservador ou transformador. Souza (1999) mostra-nos com propriedade essa reflexão ao sugerir que o jovem deve ser compreendido como um elo necessário do presente com o passado, porque transita de um tempo para outro e porque assimila um conteúdo acumulado no tempo que ressurge na forma potencializadora de ideias e ações, transformadoras ou não.

Assim, é pela via dessa transitoriedade da vida juvenil que os jovens capturam e manifestam mais intensamente as mudanças culturais. Os adultos, por sua vez, lembranos Margulis (2000), enfrentam as transformações do mundo como se essas consistissem em mais uma etapa, pautada no passado que viveram e no futuro que, embora desconheçam, encontrarão o equilíbrio. Por outro lado, os jovens apegam-se ao presente, na preponderância do processo em detrimento do conteúdo (Sallas & Bega, 2005), alheios às formas de organização e leitura da realidade presentes no imaginário dos adultos, possuidores de um quadro de referências já configurado (Groppo, 2000).

Queremos, porém, evitar a reprodução de uma ideia de transição que tem levado à associação da juventude com indeterminação - nem se é criança, nem se é adulto, desqualificando, portanto, essa fase da vida entendida apenas como uma passagem (Sposito, 2002). Além disso, a ênfase na transitoriedade enquanto instabilidade, como sendo própria da juventude, em oposição à rigidez e estabilidade da ordem social adulta perde sustentabilidade na época atual em que a insegurança, a desfiliação e a transitoriedade passam a ser marcas da vida contemporânea.

Na medida em que o fenômeno da violência perde a exclusividade da autoria por jovens "famélicos" ou "excluídos" (Takeuti, 2002), e especificamente habitantes das periferias pobres das cidades, é possível compreender que "não se trata de uma 'patologia' de alguns grupos sociais juvenis, mas bem de um fenômeno mais generalizado" (p.203) e que diz respeito mais à sociedade como um todo do que aos próprios jovens, denunciando o caos na "ordem social".

Este processo não apenas se generaliza no interior de classes sociais diferentes, mas também representa uma novidade, mesmo que não exclusiva, em sua expressão. Dirigida a um objeto indefinido, sem instrumentalidade, desfocada em relação a um inimigo claro, cuja aleatoriedade geralmente atinge o mais próximo (Castel, 2005), essa expressão de violência é caracterizada pela quebra dos valores de tolerância, pela gratuidade e mesmo pela crueldade. Da violência dos ataques pessoais ao outro (Zaluar, 2003) podem chegar à morte, motivada por causas irrelevantes como um simples olhar enviesado.

Em seu trabalho de construção de um novo paradigma da violência, decorrente das transformações contemporâneas, Wieviorka (1997) considera central como nível de análise, as "mutações societais", pinçando daí como aspecto ainda mais essencial e apto a formar um nível próprio de análise, o individualismo moderno.

As transformações politicoeconômicas e sócio-culturais aí inscritas não são explicadas apenas pelo processo de globalização, sob seu aspecto econômico, mas por um movimento mundial de revolução burguesa que "modifica, reorienta e transfigura formas de sociabilidade e jogos de forças sociais, modos de ser e estilos de vida, realidades e imaginários" (Ianni, 2003, p.20), abalando bases sociais e individuais de referência.

Pensada no plano das condutas individuais e da mera deterioração de valores morais e éticos que, restaurados, corrigiriam sua presença "ameaçadora", a violência tem sua causa obscurecida ou reportada aos loucos e perversos, deixando "na sombra o vínculo que prende necessariamente violência mundial e economia política mundial" (Chauí, 2003, p.45).

Desta forma, alerta-nos Chauí (2003), é necessário superar a noção de reforma dos costumes e de apelo ao "retorno à ética", muito próprios do que denomina uma forma contemporânea da alienação, isto é, um reflexo da fragmentação e a dispersão da sociedade atual que nos impede de imprimir a necessária e elucidativa unidade de sua própria dispersão. Uma unidade que se situa "no nível das condições materiais da sociedade e da política e não no nível das condutas individuais" (Chauí, 2003, p. 44).

Assim, se partimos do lugar principal de produção da violência, ou seja, a estrutura da sociedade, torna-se exigência reconhecer que a forma atual de acumulação capitalista produz a dispersão e desfiliação dos grupos e classes sociais, desmontando suas bases de referência. Subliminarmente serve-se, ainda, da operante ideologia neoliberal que transforma o caos em progresso e modernidade e o que deveria ser apreendido como vazio, desproteção, precariedade ou darwinismo social é apologeticamente pregado como realização do bem comum pelo estímulo à competitividade individual. Como saldo temos um aclamado individualismo agressivo, destruidor daquilo que Chauí (2003) denomina de realização coletiva do possível, ou seja, a produção de um sentimento coletivo de pertencimento e de compartilhamento mínimo de uma existência comum.

Quanto ao individualismo, essa força crescente no mundo contemporâneo, encontramos não apenas em suas expressões imediatas, mas principalmente nas mediações daí decorrentes, elementos cruciais para a análise e compreensão daviolência. É desta forma, por exemplo, que Castel (2005), ao tratar das profundas transformações no mundo do trabalho, geradoras da insegurização, descoletivização e desfiliação, ressalta o efeito político dessa angústia de viver desmunido, sem possibilidade de controlar o futuro, "ao Deus dará", cuja marca maior é o ressentimento. Trata-se, segundo ele, de uma frustração coletiva que se esforça por encontrar culpados. Palco para a insurgência da violência irracional, isto é dirigida contra semelhantes.

Sobre essa capacidade de transformar as relações sociais que a época burguesa atual possui, Dufour (2005), filósofo francês, afirma que em meio à exaltação da fluidez e à permanência da instabilidade, sobressai a pretensão do capitalismo neoliberal de fabricar um homem novo, curvado e subjugado ao jogo da circulação insaciável da mercadoria. Para tanto tudo que possa obstruir a sua expansão deve ser destruído, por isso todo valor ou regulamentação simbólica devem ser dissolvidos. Em outros termos, sob o manto da proclamação da autonomia do indivíduo e da ampliação da tolerância e revolução dos costumes, busca-se a des-simbolização do mundo, a aniquilação de qualquer ordem moral ou transcendental em prol da troca comercial.

A emergência desse novo sujeito resulta de uma fratura na modernidade caracterizada pelo esgotamento dos grandes discursos de legitimação, em especial o religioso e o político, substituídos por uma nova ordem, desta vez fundada no indivíduo.

Trata-se de um processo de mudança que busca afirmar o mecanismo da individuação, ressaltando suas vantagens em torno da construção de uma certa autonomia e emancipação, porém desdenhando os danos e sofrimentos que causa, em especial, pela perda de referências. Fenômeno que atinge, sobretudo, as novas gerações, expõe os jovens a esse sistema fluido que, na falta de um enunciador coletivo legitimado, os impele ao "façam-se por si próprios".

Contudo, advertidamente, lembra Dufour (2001, p. 2) que "o ser humano é uma substância que não recebe a própria existência de si, mas de um Outro", referindo se a um processo que afirma o reconhecimento da alteridade, isto é, o reconhecimento do Outro, do diferente, do plural como constitutivo do mesmo. É do Outro - e dessa relação dialética de submissão e esforço de se afastar, associando, "num mesmo movimento, uma construção e uma exclusão" (Jodelet, 2002, p. 52) - que o sujeito retira a função simbólica e o ponto de apoio que lhe concedem um fundamento. É através da exterioridade fornecida pelo Outro que o sujeito funda a sua interioridade e uma ordem temporal.

Alteridade e Utopia

A noção de alteridade, originalmente situada nos campos da filosofia e antropologia, ao incorporar elaborações que passaram a considerar as dimensões simbólicas, constrói-se "como produto e processo psicossocial" (Jodelet, 2002, p. 47). Essa perspectiva permite esclarecer os processos de construção da alteridade afetados pelas relações humanas e sociais atualmente produzidas, em que o reconhecimento do Outro é negado. A diferença é rejeitada como sinônimo de inferioridade.

Em sua discussão sobre alteridade e relação, Guareschi (1998) aborda algumas concepções atuais acerca do ser humano, entre elas a que se refere ao ser humano como indivíduo. Segundo o autor essa é uma noção que se apresenta com significativa força em nossa sociedade não só porque imprime fundamento, como também porque apresenta respostas aos interesses neoliberais que requerem de cada um a responsabilidade por sua própria vida e a todos apenas o cuidado de "Deus". Assim, o sucesso e o fracasso de cada um respondem apenas à (in)competência pessoal, imergindo todos em um comportamento individualista, que vem se tornando dominante em nossa sociedade

A negação da alteridade, explica-nos Souza (2007), seja por vinculação étnica, de gênero, religiosa, sexual, geracional, bem como de classe, encontra-se profundamente associada à intolerância, campo fértil para a manifestação de variadas formas de violência e, o que é pior, muitas vezes legitimada socialmente.

Senão, o que falar da exortação neoliberal ao individualismo, em que a livre competição é desejável. Inferiorizados e vulnerabilizados diante das forças sociais, os "perdedores" perdem seu status de sujeitos e seu alijamento social é legitimado, pois são responsabilizados individual e socialmente por seu fracasso. Entendendo esse mecanismo na perspectiva de Mello (1999) o Outro não é visto apenas como diferente e sim como desigual. Destituído dos mesmos atributos de humanidade que nos identifica, o Outro deixa de ser reconhecido como semelhante, inspirando desconfianças e temores. Segundo Guareschi (1998) existe uma estreita ligação entre alteridade, ética e justiça, sendo que esta última não se realiza fora de uma relação. É na relação com um outro que as ações se definem como corretas e respeitadoras ou não do direito alheio, portanto o atributo da justiça ou da injustiça é próprio das relações e não do indivíduo. Ao desconsiderar o Outro como parte e essência de si próprio, o ser humano-indivíduo auto-intitula-se o centro do mundo e apto a decidir sobre o que é ou não é justo.

Uma vez sem o Outro, retomamos a Dufour (2001), não é apenas o sujeito, o ser em si mesmo que fica comprometido, mas também o ser coletivo, pois a falta de uma referência comum a um mesmo Outro dificulta a construção do sentimento de pertencimento a uma coletividade que é de todos.

Nesse contexto reflexivo extraímos as contribuições de Kehl (1991) que, ao discutir a época atual, afirma que sua principal característica é a atitude ressentida e defensiva frente às crises da modernidade e suas promessas não cumpridas de emancipação. Diante da instauração da desilusão e da perda da ingenuidade, substituída pela angústia "o que resta é promover uma vasta liquidação de esperanças" (Kehl, 1991, p.38). A autora se remete ao pensador mexicano Octavio Paz para lembrar que o culto à revolução e o desejo utópico de transformação do homem - herança do cristianismo, malgrado o ceticismo religioso do qual se revestia o projeto político-revolucionário - restaram combalidos frente à dissolução das experiências socialistas. O lugar das promessas não cumpridas passa, então, no presente e no futuro, a ser ocupado pelo mercado, deixando como característica uma incapacidade de antecipação própria do simbolismo que permeia a utopia e aí a saída é investir plenamente e inconsequentemente no momento presente.

Esse novo modo de vida que implica a tendência em lançar mão de estratégias de salvação individuais e imediatistas, no aqui e agora, disponíveis no mercado de felicidade, na forma de bens e serviços provoca, a despeito de todos os investimentos, uma satisfação efêmera e uma ansiedade permanente, cujo saldo geral é a frustração.

De acordo com Costa (2000, p. 84) a busca obsessiva pelo bem-estar individual não só alimenta o sentimento de alheamento em relação ao outro, uma vez que "quem vive permanentemente na infelicidade não pode olhar o outro como alguém com quem possa ou deva preocupar-se", como também potencializa a irresponsabilidade em relação a si, pelos estragos em nível pessoal causados pela busca incessante pela satisfação e pelo esvaziamento da esfera pública. Em busca da salvação individual o círculo vicioso do comércio de felicidade é alimentado. Intensificam-se, pois, as preocupações com a forma e a beleza físicas, com a prolongação da juventude, um ideal cultuado por todas as faixas etárias.

 

Reflexões finais

O esvaziamento de referências para o jovem opera na construção de um mundo onde as regras são construídas e reconstruídas ao sabor das conveniências momentâneas, da ditadura do consumo e da preponderância da satisfação individual. Nesse sentido, se não há limite ao prazer individual, não há tampouco lugar para o Outro. A alteridade, assim, é dissolvida.

Contudo, como nos apresenta Spagnol (2005) em seu estudo sobre "Jovens Delinqüentes Paulistanos", tanto na periferia, como na zona central, isto é, tanto no interior dos setores sociais populares quanto nos mais abastados, a individualidade é cerceada pela realidade e a realização dos anseios pessoais é impossibilitada pela carência à volta. E aí, "Uma das alternativas é correr riscos, buscar ideais a todo custo. Se ele ( o jovem) consegue algo que traga benefício, na esfera legal da jurisdição, sentir-se-á integrado, caso contrário, a resposta à negação será a violência" ( Spagnol, p. 291). A violência apresenta-se, então, como uma busca imperiosa de reversão dos sinais visíveis de desvantagem que o jogo da inserção social apresenta. Entre a resignação e a reinvidicação, a violência representaria uma terceira via tangencial.

Nesse sentido, juntam-se mais elementos para entendermos não só a razão de a violência ser praticada significativamente por jovens, vitimando-os igualmente, mas também para a entendermos como sintoma do conjunto da sociedade. Uma sociedade profundamente influenciada e produzida pela indústria cultural, "pop star" do mercado globalizado e garantia de altos lucros à aplicação do capital. Simultaneamente, " [...] sob muitos aspectos, uma parte da produção cinematográfica, televisiva e romanesca contribui muitíssimo para que leitores, espectadores e audiências construam e aperfeiçoem a sua visão da realidade e do imaginário de si próprios e dos outros [...]" (Ianni, 2003, p. 32).

Essa cultura de massa aposta, sobretudo, em produções que enfatizam a catástrofe, o terror, a violência, consideradas receitas inequívocas de sedução do freguês. Empenhada em atrair e envolver cada vez mais o seu público, ela se esmera em sofisticar suas produções e em intensificar o apelo catastrófico sem constrangimento, justificando-se por sua capacidade de promover um serviço à coletividade ao desnudar-lhe a violência e permitir-lhe a sua exorcização. Isso não é outra coisa senão a cultura da violência que alimenta cotidianamente o imaginário social.

Sob o pretexto de promover o entretenimento, o inconcebível vai paulatinamente sendo naturalizado e aceito sem maiores indignações. Ao confrontar o grande público com o terror insuportável e aliviá-lo com finais felizes, promove-se um efeito alienante em relação à realidade em curso e à que está por vir.

O perigo não reside na intenção de desvelamento da realidade, de denúncia da miséria e das mazelas sociais e sim na espetacularização do mal. E considerando que "há um efeito identificatório que é próprio da lógica do espetáculo" (Kehl,2004,103), não é de se surpreender que o autor da violência produzida, imbuído de um poder que a visibilidade e a imagem lhe atribuem, passe a produzir identificações e simpatias, frente à ausência de um sistema de referências alternativo aos valores do consumo; à desconfiança nas instituições, na justiça e na polícia -; ao alheamento em relação ao Outro; à crença de que a política e a utopia estão obsoletas.

Se a discussão que trazemos revela a presença excessiva da estrutura e, ainda, reconhece a capacidade, aparentemente inesgotável, de reestrututração e estabilização do capital, é preciso injetar fôlego à utopia. Ou, ao menos, sob pena de perdermos o senso crítico do real, impor-nos o esforço da análise dialética, ainda que, como reconhece Pais (1993, p.51) "sem obviamente rejeitar o fato de as vidas humanas se confrontarem com 'condicionamentos sociais' e 'campos de possibilidades' bem rígidos ou constrangedores, em grande parte dos casos".

Nesse sentido, precisamos superar qualquer enfoque que escorregue no determinismo e incorporarmos, em seu lugar, uma relação dinâmica entre a estrutura e a dimensão pessoa-cultura (Abad, 2003, 2006), que não só rompe com o engessamento que a perspectiva estruturalista produz na ação humana como reconhece a possibilidade de constituição do sujeito e ator social.

Construída, portanto, sobre essa crise institucional que provoca o esvaziamento simbólico ordenador da sociedade, a nova condição juvenil precisa também ser recuperada como uma possibilidade de renovação e enriquecimento social e cultural da sociedade, capitaneados pela juventude em face de seu potencial transformador "em áreas tão díspares como a participação social e política, a expressão artística, as concepções sobre o ócio e o uso do tempo livre, os consumos e as produções de objetos culturais, e as relações sociais e afetivas, entre outros" (Abad, 2003, p.25).

Como nos aponta Peralva (1997, p. 23), "enquanto o adulto vive ainda sob o impacto de um modelo de sociedade que se decompõe, o jovem já vive em um mundo radicalmente novo, cujas categorias de inteligibilidade ele ajuda a construir".

Vivendo, pois, sob o imperativo da autonomia individual, sob a ênfase da experimentação dinâmica e múltipla de novas experiências, da prematuridade física e mental, favorecida pela antecipação da emancipação emocional e afetiva que a iniciação sexual precoce favorece, os jovens contemporâneos vivem distintamente a juventude em comparação com as gerações que lhe precederam.

Diferentemente das gerações anteriores, os jovens atuais não precisam mais ansiar com impaciência pela condição adulta para acessar a autonomia e a independência - ainda que não seja econômica - interditadas sofrivelmente aos jovens de gerações passadas. Ao contrário, talvez agora o melhor fosse tratar de evitar ou prorrogar a condição adulta, que traz a tiracolo obrigações e requisitos indesejáveis.

E quando o trabalho assalariado, a trajetória profissional, deixam de ser garantias, interferindo na própria sociabilidade e na definição de uma nova condição juvenil, os resultados dessa reordenação social podem, possivelmente, vir a representar conteúdos enriquecedores para novas experiências socializantes e, por que não, transformadoras.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Maristhela Bergamim de Oliveira
Vara da Infância e da Juventude de Vitória - Poder Judiciário do Espírito Santo
Avenida Florentino Ávidos, nº 100, Centro
CEP: 29020040 - Vitória, ES
E-mail: mstbergamim@terra.com.br

Enviado em Maio de 2009
Revisado em Dezembro de 2009
Aceite final em Fevereiro de 2010
Publicado em Dezembro de 2010

 

 

Nota dos autores:

Maristhela Bergamim de Oliveira - Mestre em Política Social pela UFES, assistente social da Vara da Infância e da Juventude de Vitória, Poder Judiciário do Estado de Espírito Santo.
Edinete Maria Rosa - Psicóloga, professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da UFES e dos programas de Pós-Graduação em Psicologia e em Política Social da UFES.

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