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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.18 no.1 Ribeirão Preto 2010
Abuso, negligência e parricídio: um estudo de caso
Abuse, negligence, and parricide: a case study
Paula Inez Cunha Gomide
Faculdade Evangélica do Paraná Universidade Tuiuti do Paraná
RESUMO
O matricídio é definido como o homicídio da mãe executado por um filho(a). A literatura da área ressalta a história de abuso físico, sexual e psicológico que estas crianças e adolescentes sofreram até chegarem ao ato extremo de assassinar seus pais. Este trabalho relata o tratamento psicoterápico realizado com um adolescente matricida e discute a influência das variáveis familiares (negligência, abuso físico, psicológico e sexual intrafamiliar) como determinantes do matricídio.
Palavras-chave: Matricídio, Adolescente, Psicoterapia.
ABSTRACT
Matricide is defined as the mother's homicide committed by a son or a daughter. This field's literature points to the history of psychological, sexual, and physical abuse which those children and adolescents suffered until they reached the extreme behavior of killing their parents. This paper reports the psychotherapy treatment conducted with a matricide adolescent, and discusses the influence of family variables (neglect, physical, psychological and sexual abuse within the family) as matricide determinants.
Keywords: Matricide, Adolescence, Psychotherapy.
A morte de um pai ou uma mãe por um filho sinaliza que padrões biológicos fortes, universais e filogenéticos, desenvolvidos ao longo dos milhões de anos para a preservação da espécie humana, foram rompidos de alguma maneira. Deve-se, portanto, em primeiro momento, buscar fatos e relacionamentos ocorridos ao longo da vida desta família que poderiam ser responsáveis pela quebra de laços afetivos tão bem instalados na história da humanidade.
Parricídio é definido como o homicídio, ou a tentativa de homicídio, envolvendo pais, mães, padrastos e madrastas como vítimas (Heide, 1994). O filho que mata a mãe é denominado de matricida, enquanto o que mata o pai é denominado patricida. Este tipo de homicídio é muito raro. Nos Estados Unidos, de 1976 a 2002, os dados analisados mostraram 0,9% de matricídios, 1% de patricídios e 0,5% em que a vítima era o padrasto ou madrasta. No Canadá, 3,7% de casos de parricídio foram registrados de 1991 a 1997. Na França, neste mesmo período, apareceram de 2% a 3% de casos registrados entre os homicídios (Marleau, 2002).
Duzentos e vinte e seis casos de crianças e adolescentes que mataram seus pais foram analisados por Heide e Boots (2007), em vários países por meio de relatos feitos na mídia. Destes, 68% ocorreram nos Estados Unidos, 3% no Canadá, 17% na Ásia, 9% na Europa, 2% na Austrália. A análise dos relatos mostrou que 82% dos delitos foram executados por apenas um participante, 12% tinham dois participantes envolvidos e em 6% dos casos por três participantes. Com relação às 379 vítimas identificadas, 59% dos delitos envolviam apenas uma vítima, 26% duas vítimas, 8% três vítimas, 4% quatro vítimas, 3% cinco vítimas e 0,4% 10 vítimas. Foram relatados 62% de matricídios e 61% de patricídios, destes 25% representavam um duplo homicídio em que pai e mãe eram as vítimas. Os crimes envolvendo padrastos (4%) e madrastas (1%) foram bem menos frequentes. As armas mais usadas para cometer os crimes foram as de fogo (39%), seguidas pelas armas brancas (20%), objetos pontiagudos (12%) e múltiplos instrumentos e procedimentos (estrangulação, asfixia, fogo, etc.). É importante salientar que os autores encontraram que 80% dos parricídios foram cometidos por indivíduos com menos de 20 anos, 8% estavam na faixa dos 30 anos, 10% na faixa dos 40 anos e apenas 2% na faixa dos 50 anos de idade. Eram brancos em sua maioria (65%), seguidos por asiáticos (28%) e negros (7%). O agressor principal em 78% dos casos era o filho e em 22% a filha. Em 20% dos casos analisados foi verificado que o parricida utilizou mais força que a necessária para matar (muitas facadas, pauladas), fenômeno denominado "overkill".
Gomide e Pinheiro (2006), analisando a população adulta de 9200 presos do Estado do Paraná, encontraram 957 (10,4%) sentenciados que haviam cometido homicídio, destes, 1,98% haviam cometido parricídio. A distribuição de idade e sexo dos parricidas foi de 65% de adultos masculinos, 17% de adultos do sexo feminino, 8,7% de adolescentes masculinos e 8,7% de adolescentes femininos.
Abusos e Negligência
Heide (1994) sugere que entender os parâmetros dos maus tratos infantis é um fator crítico para se determinar o processo de como adolescentes matam seus pais. A lei distingue duas formas de maus tratos: a execução e a omissão. Agir de forma nociva constitui-se em abuso; falhar em proteger a criança de situações aversivas constitui-se em negligência. A autora diferencia três tipos de abusos: físico, sexual e psicológico, e três tipos de negligência: física, médica e emocional. O abuso físico inclui maus tratos físicos que produzem dor (surras, espancamentos utilizando objetos para bater). Já o abuso sexual pode ser de dois tipos: o explícito, que envolve penetração vaginal, anal, sexo oral e masturbação da criança; e o abuso encoberto, que envolve a exposição da criança a cenas sexuais inadequadas para a idade, como, por exemplo, o adulto masturbar-se ou fazer sexo em frente à criança e mostrar pornografia para a criança. O abuso sexual explícito também se distingue do estupro na análise psicológica, entretanto, para o Direito Penal não há esta distinção. No abuso não há violência, o abusador não machuca a criança fisicamente; já, quando um dos pais comete um ato sexual com violência, o ato é de agressão e não difere de um estupro cometido por um estranho. O ataque sexual demonstra raiva e poder. Por último, o abuso psicológico pode ser verbal (por exemplo: "você não serve para nada", "você está arruinando meu casamento", "você é um demônio") ou ações que humilhem, depreciem, rebaixem a autoestima ("você não vai conseguir arrumar uma namorada porque é muito feio"; "não adianta comprar uma roupa nova, você é muito desengonçado").
A negligência física inclui não prover a criança de alimentos, roupas ou moradia segura; a negligência médica envolve não fornecer cuidados à saúde obrigatórios (vacinas, levar ao médico quando a criança se machuca ou está doente) e a negligência emocional ocorre quando os pais falham em promover condições favoráveis para que o desenvolvimento da criança seja saudável (dar amor, afeto, apoio, valores morais, etc.). Para o Direito, a negligência é considerada um crime de abandono de incapaz.
Ackerman (1986) introduziu o termo "incesto emocional" para se referir ao abuso sexual emocional, que frequentemente é acompanhado de negligência. São pais que usam a criança como se fosse o seu parceiro, tornando-a confidente, discutindo sua relação sexual com o marido ou esposa, obrigando a criança a tomar partido contra o parceiro (a).
Normalmente, um tipo de abuso é acompanhado por um ou mais tipos de negligência. Por exemplo, pais que abusam fisicamente dos filhos, negligenciam cuidados médicos. Estudos de Heide (1994) com adolescentes parricidas determinaram a presença de uma ou mais destas formas específicas de abusos e negligência. A autora entende que o mais consistente fator entre jovens que matam é que eles, via de regra, observaram ou experienciaram violência familiar (Heide, 1994).
Hale e Scott (1997) consideram que uma forma de se entender este crime é entender que esta é uma forma racional de se acabar com um longo e permanente abuso. A explicação para muitos parricídios cometidos por adolescentes é um ato desesperado de autoproteção pela percepção real de um perigo iminente. Os autores propõem que a desintegração familiar, a quebra dos valores morais, o abuso de drogas, a violência e a negligência familiar são as causas do parricídio (jurisprudência sociológica). De maneira que não são a pobreza cultural e econômica os fatores determinantes da violência juvenil e sim a desintegração da autoridade paterna e do núcleo familiar. Consideram também que somente avaliando estes fatores como responsáveis pela agressão poder-se-ia tratar o parricida de maneira eficiente.
Estudos de parricidas têm mostrado que muitos dos agressores adultos são diagnosticados como psicóticos, porém o mesmo não tem sido verificado em relação aos agressores adolescentes, cuja maioria, constatou-se, ter sido vítima de abusos prolongados desde a infância (Dutton & Yamini, 1995; Newhill, 1991).
Heide (1994) estudou o caso de sete adolescentes parricidas, com idade entre 12 e 17 anos, brancos, seis homens e uma mulher. Como grupo, eles mataram seis pais, três mães e um irmão, usando armas de fogo disponíveis em casa. Seis deles foram severamente abusados na infância e, segundo a autora, cometeram os homicídios, em ato de desespero, para finalizar os abusos cometidos pelas vítimas. Em quatro dos seis casos em que havia abuso, a esposa também era abusada fisicamente, e os adolescentes contaram o horror que sentiam ao testemunharem estes espancamentos e, também, a iminência de serem espancados nestas ocasiões. O abuso sexual explícito foi identificado em dois casos: um menino que matou os pais e uma menina que cometeu patricídio, após ter sido abusada e violentada sexualmente pelo pai. Abuso verbal, negligência emocional e negligência física foram identificadas em seis dos casos estudados (ausência de comida e de medicamentos - a criança tinha hepatite e não recebia atendimentos médicos -, etc.). Cabe mencionar que o incesto emocional ficou evidente em três dos casos analisados.
Hale e Scott (1997) relatam o caso de uma adolescente, de 14 anos, que junto com seu namorado, mataram sua mãe, batendo nela, com um castiçal, 13 vezes (overkill). Sua mãe era uma alcoolista que havia abusado fisicamente da adolescente por muitos anos. Ela ficou encarcerada por seis meses e depois foi morar com uma tia, demonstrou ser excelente aluna e tornou-se capitã do time de tênis. Foi admitida em Harvard, mas perdeu a vaga quando souberam que havia sido encarcerada. Mais tarde foi aceita na Columbia University. Outro caso relatado pelos autores foi de uma adolescente, de 16 anos, que contratou um homem para matar seu pai, com apoio da mãe. Quatro irmãs testemunharam que seu pai batia e havia abusado delas durante anos. A mãe testemunhou que o pai havia ameaçado matá-las. A adolescente tentou persuadir a mãe a fugir, mas não obteve êxito. A mãe da adolescente foi condenada a cinco anos de prisão pela sua atuação passiva e a adolescente foi sentenciada a 33 anos por ter sido responsabilizada pelo crime.
Outro caso relatado por Hale e Scott (1997) é de um adolescente de 14 anos, que vivia em casa jogando vídeo games e vendo TV com seus pais. Os pais não permitiam que fizesse coisas normais, como sair com amigos. Era obrigado a ficar sempre em casa. Ele pensou em matar os pais e depois se matar. Atirou na mãe, pelas costas, enquanto ela lavava os pratos. Após o homicídio ele disse ao pastor que não podia aguentar mais ser importunado, irritado. Foi preso e a corte juvenil determinou um tratamento ameno a ele.
Via de regra, os parricídios ocorrem em famílias monoparentais em que aquele que fica com a obrigação de exercer os cuidados parentais não demonstra habilidade e equilíbrio para fazê-lo, gerando relações hostis e abusivas. Entretanto, ocorrem casos de parricídio em famílias consideradas intactas, demonstrado por um caso relatado por Hale e Scott (1997), em que os autores exemplificam a forte relação entre negligência e parricídio. Um jovem de 16 anos matou seus pais chutando-os selvagemente e atacando-os com uma faca. Os pais eram professores universitários bem-sucedidos, a mãe trabalhava 60 horas por semana, lecionando à noite inclusive e o pai viajava 64 km diariamente para lecionar. A ausência parental levou à quebra da harmonia familiar. O jovem anunciou que iria matar os pais em inúmeras ocasiões. Seu quarto era pintado de vermelho e tinha letras de músicas com versos satânicos pintados nas paredes.
Muitos jovens que cometeram parricídio nunca haviam se envolvido com atos criminosos até a ocorrência do homicídio ou tentativa de homicídio de seus pais. Os adolescentes que têm amigos próximos raramente são delinquentes. Aqueles que são isolados têm o dobro de chance de terem comportamentos antissociais. Para estes jovens a violência torna-se um método para conseguir o que desejam ou eliminar uma situação indesejável (Heide, 1994).
Um caso de parricida com doença mental é relatado por Hale e Scott (1997). Um jovem de 16 anos, usuário de drogas e álcool, matou seus pais degolando-os após buscar obter as chaves do carro e não ter conseguido. Não expressou remorso nem motivo pelo ato ao ser inquirido pela polícia. Ele havia sido internado para tratamento de drogas, mas foi liberado sob custódia dos avós maternos. Foi inocentado e considerado insano, com diagnóstico de esquizofrenia e, posteriormente, encaminhado para uma instituição mental. Mais tarde seu estado emocional foi avaliado como não progressivo e que sofria, desde muito, de depressão, ansiedade, baixo nível de frustração e baixo controle de impulsos. Provavelmente o homicídio ocorreu durante indução psicótica provocada pelo uso de drogas.
Estudos realizados por especialistas em parricídio (Corder et al., 1976; Duncan & Duncan, 1971; Heide, 1992; McCully, 1978; Post, 1982; Russel, 1984; Sadoff, 1971; Sargent, 1962; Scherl & Mack, 1966; Tanay, 1973 e Wertham, 1941) encontraram uma relação positiva entre parricídio e formas de abuso. Em onze estudos analisados, 91% deles relacionaram parricídio com alguma forma de abuso sexual; 82% com abuso psicológico e 73% com abuso físico infantil e da esposa, negligência física e médica, e incesto emocional.
Heide e Solomon (1991) estudaram 40 mulheres vítimas de abuso na infância e ouviram que metade delas tinha sérios e recorrentes pensamentos de matar seus pais até a idade de 18 anos. Muitas relataram que não realizaram seus desejos por acreditarem não terem habilidades suficientes para executarem o ato (força, agilidade, velocidade, etc.). Estas mulheres tentaram outras estratégias para lidar com o problema (30% tentou cometer suicídio, 70% apresentou amnésia sobre sua infância).
Um dos padrões típicos de parricida envolve um filho que mata "um pai alcoolista e abusador físico e sexual" para proteger sua mãe e irmãos e a si mesmo. Hale e Scott (1997) citam um caso de duas crianças que mataram o pai enquanto ele dormia, após este ter abusado sexualmente de sua irmã. Este pai espancava rotineiramente os filhos e estes abusos foram testemunhados pelos vizinhos e professores. A justiça inocentou as crianças com base na tese da "síndrome da criança-espancada" (battered-child syndrome) (Kempe, 1971), que é uma tese similar àquela utilizada na defesa de mulheres que matam maridos espancadores em legítima defesa (battered-women syndrome) (Walker, 2009).
Normalmente, os psiquiatras tendem a utilizar um enfoque interpretativo unicamente médico para explicar o comportamento criminoso, ignorando as influências das práticas parentais abusivas e negligência. Esta avaliação médica, quando não encontra doença mental, considera o indivíduo um agressor que age por livre vontade. Estes profissionais conhecem bem os diagnósticos de desordens mentais, porém quando o fator determinante está na violência familiar e na negligência eles tendem a subestimar estes fatos como determinantes da agressão.
Algumas cortes americanas têm aceitado a tese da "síndrome da criança-espancada" para a defesa de parricidas. Este diagnóstico, para ser aceito, precisa estar respaldado em informações que demonstrem os abusos múltiplos sofridos pela criança ou adolescente por um tempo prolongado. Esses maus tratos não podem ser ocasionais ou acidentais, mas sim devem ser infligidos ao filho (a) por meio da força e demonstrar a incapacidade da criança em se defender. É também importante que a justificativa dada pelo pai seja inconsistente com os tipos de maus tratos observados. Neste entendimento, a defesa da tese da "síndrome da criança-espancada" representa uma extensão da doutrina da autodefesa para parricidas que, ainda assim, não carrega adequadamente a realidade complexa desta severa forma de violência, de maneira que, o diagnóstico médico ou psicológico, deve ser aceito como indicador confiável do abuso. A supervigilância e o senso de iminente perigo verificados nas histórias de parricidas podem ser resultantes mais do abuso emocional que do físico (Hale & Scott, 1997) e, nestes casos, seria mais difícil de ser detectado na avaliação diagnóstica.
As práticas educativas constituem-se nas variadas formas que os pais utilizam para educar e socializar seus filhos. Elas podem ser positivas quando, por meio do afeto, comportamento moral e supervisão positiva, conseguem estabelecer regras de convívio social e desenvolver comportamentos pró-sociais nas crianças e adolescentes. Por outro lado, são negativas quando, por meio de negligência, abandono, coerção, abusos físicos e psicológicos favorecem o desenvolvimento de comportamentos antissociais, tais como uso de drogas, comportamento infratores e agressivos (Gomide, 2003, 2004, 2006). Abusar física, psicológica ou sexualmente dos filhos causa grave problema de desenvolvimento em crianças e adolescentes (Heide, 2004).
A literatura sobre parricídio ainda é escassa. Os estudiosos do assunto têm apresentado características e frequência deste tipo de crime em vários países; no entanto, inexistem referências sobre atendimento de parricidas, seja como vítima ou como agressor (Heide e Boots, 2007; Marleau, 2002).
O objetivo deste trabalho é o de relatar um tratamento psicoterápico realizado com um adolescente matricida e discutir a influência das variáveis familiares (negligência, abuso físico, psicológico e sexual intrafamiliar) como determinantes do matricídio.
Método
Participante: o participante deste estudo foi um adolescente de 17 anos, natural de uma cidade do interior do Estado, onde nasceu e viveu durante toda sua vida. Seus pais se casaram e após uma relação conflitiva, separaram-se quando a mãe estava grávida de apenas dois meses. A família materna era numerosa, composta por vários tios e primos, que se reuniam esporadicamente em festas. Apenas uma das tias mantinha-se próxima ao adolescente e sua mãe.
Histórico escolar: estava no 2º ano do Ensino Médio, quando o crime ocorreu. Cursou três anos de pré-escola e quando entrou na primeira série já estava alfabetizado. Até a quarta série não gostava de frequentar a escola, preferia ficar em casa vendo televisão com os avós. Para ele nunca foi fácil fazer amigos, pois os outros meninos caçoavam dele. Com mais idade, passou a enfrentá-los e eles pararam de amedrontá-lo. Como mudava muito de escola em razão das mudanças de endereço, estava sempre deslocado nas turmas. Com quinze anos, fugiu nas férias, retornando somente após a matrícula ter se encerrado. A mãe, para castigá-lo, matriculou-o em uma escola pública, onde discutiu, brigou com a orientadora e foi convidado a se retirar. Concluiu o ano em uma escola particular. A família sempre enfatizou a importância do estudo. Todos os tios tinham curso superior. O adolescente nunca sentiu alegria na escola. Gostava apenas de jogar bola, onde podia berrar, gritar, xingar e se descontrair, extravasar o ódio e a raiva que relatou ser muito grandes dentro dele. Jogava futsal desde pequeno, foi goleiro da seleção júnior de sua cidade.
Uso de drogas: relatou ter feito uso duas vezes de LSD e exctasy e intermediou uma vez a venda de exctasy, que ganhou um bom dinheiro na época.
Iniciação profissional: iniciou aos 14 anos e fez pequenos serviços, com duração média de dois a três meses cada um. Guardava um pouco do dinheiro e gastava o resto em roupas, festas e bebidas. Não gostava do trabalho.
Lazer: gostava de filmes de suspense, ficção e ação. Ouvia reggae e pop rock, e gostava de ler: o melhor livro que já leu foi "O Cortiço" e seu último livro foi "Cinco pessoas se encontram no céu". Gostava de cachorros. Contou que teve vários, e que, de repente, sem que ele entendesse, os animais desapareciam. Até 11 anos maltratava os gatos (amarrava bombinhas no rabo deles).
Unidade socioeducativa: após o crime foi encaminhado pela Vara da Infância e da Juventude a uma unidade socioeducativa do Estado em que a pesquisadora desenvolvia um programa de intervenção com adolescentes infratores, baseado na análise do comportamento. Ele não convivia com os demais adolescentes da unidade, pois o código de cadeia determina que quem mata a mãe deve morrer. Não apresentava comportamentos próprios de adolescentes infratores: não fazia parte de gangues, não furtava, não usava armas, não consumia drogas regularmente e não tinha histórico infracional.
Psicoterapia: durante parte do período de internamento fez sessões de psicoterapia. As sessões foram realizadas durante seis meses e conduzidas pela autora deste trabalho. Ocorreram 24 sessões individuais e três com membros da família (irmãs da mãe). As sessões de terapia individual iniciais foram realizadas em uma sala de atendimento da unidade socioeducativa e, posteriormente, no consultório da terapeuta, quando o juiz permitiu que o adolescente participasse de algumas atividades externas, inclusive da psicoterapia. A duração das sessões variava de 1 a 3 horas de duração, dependendo dos conteúdos tratados. Os instrumentos de coleta de dados utilizados foram o Inventário de Estilos Parentais (Gomide, 2006) e entrevistas. Em algumas sessões eram exibidos filmes sobre abuso sexual praticado pela mãe e sobre abuso físico e psicológico, além de filmes sobre práticas educativas adequadas e inadequadas. As irmãs da mãe foram convidadas a participar de uma sessão individual e outra familiar quando vieram visitar o adolescente na unidade socioeducativa.
Reinserção ao meio social: as atividades externas à unidade de internação foram acompanhadas pela pesquisadora e por estagiárias previamente treinadas. As estagiárias desenvolviam com ele grupo de comportamento moral e habilidades sociais, passavam filmes preparatórios para sessões terapêuticas (sobre vários tipos de abuso e negligência), davam aulas de reforço escolar e visitavam o local de trabalho para discutir as dificuldades apresentadas. Esta preocupação se dava em razão da precária experiência profissional e da baixa autoestima do adolescente que poderia dificultar tanto o recebimento de ordens como o relacionamento, muitas vezes, hostil ou com brincadeiras pejorativas do ambiente de trabalho.
Resultados e Discussão
Os resultados desta intervenção serão descritos em quatro itens. Primeiramente, será apresentado o histórico dos relacionamentos familiares, retratando os abusos sofridos pelo adolescente durante a infância e a adolescência. Em seguida, será descrita a sessão da revelação do matricídio. O terceiro item referir-se-á às sessões familiares com as tias e, finalmente, no quarto item, serão apresentadas as estratégias utilizadas para sua reinserção ao meio social.
1. Histórico familiar
Inicialmente a terapeuta incentivou o adolescente a falar de sua relação com a mãe, avós maternos que viviam com ele, pai e familiares maternos. Buscava-se nestas sessões levantar as práticas educativas maternas e o tipo de apoio familiar existente. Contou que suas tias e primos tinham ciúmes do relacionamento íntimo que ele e a mãe mantinham com os avós maternos. A casa era sustentada pela mãe, que passava a maior parte do tempo no trabalho. Com eles moravam os avós maternos, ambos aposentados. A relação do adolescente com o avô era tranquila, permeada de afeto e respeito, segundo ele. O adolescente referiase ao avô como lei. A avó cozinhava, sua comida era boa e o adolescente gostava muito. A mãe quase não comia em casa. O jovem contou que ficava a maior parte do tempo com os avós. Não saia muito, pois ela não deixava: "minha mãe tinha medo que acontecesse algo comigo, como eu sumir na rua ou que me roubassem". Não se lembra de muitas brincadeiras da infância; disse apenas que se relacionava bem com os primos, mas ficava a maior parte do tempo assistindo TV.
Abuso físico: ele relatou que desde pequeno (dois a três anos) era espancado pela mãe. As tias confirmaram estes relatos. Diziam não poder interferir, pois a mãe não admitia intromissões e ficava violenta com quem o fizesse. Às vezes, os avós tentavam impedir os espancamentos, porém, nestas ocasiões, eram expulsos da casa e passavam a morar temporariamente com uma das outras filhas. Visto que os avós haviam espancado as filhas, a mãe, usava este argumento para impedir a proteção deles. Relatou que constantemente estava com hematomas pelo corpo. Quando ia reclamar para o avô, ele nada dizia, apenas ouvia. Mais tarde o avô aconselhou o menino a sair de casa, ir embora. Muitas noites a criança era acordada com socos e era espancada enquanto dormia. Relatou que sempre dormia com calças compridas e cobertas para se proteger. Já mais velho, não conseguindo mais espancá-lo, a mãe passou a jogar água quente nele enquanto dormia. Quando a terapeuta perguntava a causa de não sair da cama da mãe apesar dos espancamentos, ele respondia que era porque esperava pelo afeto materno.
Estes foram os primeiros relatos feitos pelo adolescente durante as sessões. Contava tudo com raiva, medo, tristeza e principalmente sem compreender porque era tratado desta forma pela mãe e avós maternos. Muitas vezes dizia que a mãe era responsável pela sua educação; que era hoje um homem porque ela tinha lhe dado o que vestir e o que comer. Dizia que deveria ser grato. A mãe repetia para ele constantemente estes argumentos. Nestes momentos a terapeuta colocava questões como "o que você entende por educar e cuidar?" "Como é possível cuidar e espancar? Amar e jogar água fervendo? Proteger e mandar ir embora sozinho?" Inicialmente, o adolescente ficava sem responder e, no decorrer das sessões, passou a dizer claramente que não se sentia cuidado e nem amado. Passou a questionar a forma como era tratado pelos "cuidadores".
Pode-se observar claramente que o adolescente foi abusado fisicamente e que esta forma de controle coercitivo trás consequências negativas extremamente severas. Gershoff, (2002), Simons, Wu, Lin, Gordon e Gonger (2000), Haapasoloa e Pokelaa (1999), Strauss, (1994) e Huesmann e Eron (1984) que estudam as consequências do espancamento em crianças e adolescentes mostram o alto nível de correlação entre abuso físico e comportamento infrator, uso de drogas e comportamento antissocial de uma maneira geral. A criança não entende que seu comportamento é inadequado, entende sim, que ele é inadequado (Gomide, 2004).
Abuso psicológico: os espancamentos relatados não tinham o objetivo de educar e eram acompanhados de raiva intensa, palavrões e desqualificações, como nos casos relatados pelo adolescente deste estudo. A mãe registrou o filho apenas em seu nome e nunca permitiu a aproximação do pai. Informava que o pai não queria saber dele, que a havia espancado, sendo este o motivo da separação. Certa vez, o adolescente encontrou uma foto do pai na casa de uma tia, porém, assim que a mãe tomou conhecimento, rasgou-a. Ela não permitia a convivência do adolescente com amigos; trazer amigos ou ir à casa deles era proibido. Argumentava que era perigoso e precisava protegê-lo. Em várias ocasiões rasgou suas roupas e cadernos, quebrou seus brinquedos, deu seus presentes para outras crianças e não compareceu às festas escolares ou ao aniversário do próprio filho. Depois, comprava novamente os presentes e as roupas. Fazia o menino copiar, de madrugada, o caderno que ela havia rasgado propositadamente, sob a justificativa de que ele havia errado a tarefa. Assim que a criança começava a fazer amigos nas redondezas, ela imediatamente mudava de bairro, procurando lugares isolados, onde ele não podia sair sozinho.
Ao longo do processo terapêutico, a história dos abusos sofrida pelo adolescente foi sendo revelada. Inicialmente, referiu-se aos abusos físicos, depois aos psicológicos. Relatou o ódio e a frustração que sentia por estar sempre mendigando o afeto materno. Nunca se sentiu amado. No entanto, vivia buscando este amor. Disse submeter-se a tudo, pois acreditava que um dia receberia o amor materno. Não sabia por que a mãe o odiava. Ela dizia que era por que ele era muito parecido com o pai que a havia maltratado. Falou do seu enorme desejo de conhecer o pai e ter informações sobre ele, mas a mãe o forçava a odiar o pai. Passou a perceber que os avós maternos, infelizmente, não o protegeram dos abusos sofridos. Eram meros expectadores. Entendeu que eles também espancaram os filhos e ficaram sem moral diante da mãe.
O abuso psicológico é uma forma tão severa de coerção quanto o abuso físico. O abuso de poder e falta de afeto são percebidos pela criança como se ela estivesse em perigo, não fosse amada. Embora o abuso psicológico possa ser sutil e de difícil mensuração, na prática pode ser o mais frequente de todos os tipos de abuso. Várias consequências negativas podem advir do uso desta forma de controle, entre elas, uma baixa autoestima, dificuldades em estabelecer relacionamentos sociais ou ideações suicidas (Gershoff, 2002). O autor mostrou uma série de práticas disciplinares usadas pelo abusador psicológico: confinamento, humilhação pública, xingamentos, ameaça, incitação à mentira, excesso de destituição de privilégios, retirada inapropriada de diversão, entre outras. Foram identificados vários comportamentos abusivos utilizados pela mãe para controlar o filho, usados de forma a dar a impressão que o que ela fazia tinha "boa intenção", era para educá-lo melhor.
Negligência: relatou que em várias ocasiões a mãe saia e o deixava sozinho em casa, algumas vezes com febre. Em festas da escola não aparecia. Viajava no dia do seu aniversário e, quando questionada, dizia que ele errara a data. Rasgava suas roupas. Quando o filho não fazia o que ela exigia, a mãe o punia ficando dias sem falar com ele, não dando dinheiro para lanches e, até mesmo, não comprando comida para casa.
Pode-se verificar claramente as várias formas de negligência médica, física, alimentar e emocional. Para Feldman (1977), o jovem que viveu em ambiente com carência ou ausência de relacionamentos afetivos consistentes poderá prejudicar o outro (a vítima) sem remorsos. A vítima potencial é aquela representada pelo algoz. Filhos da negligência são inseguros, vulneráveis, hostis e agressivos socialmente (Dodge, Petit & Battes, 1994).
Abuso sexual: o adolescente relatou dormir na cama da mãe até completar 13 anos, usava chupeta e mamadeira até esta idade. A partir desta época, sua mãe colocou um guarda-roupa no quarto para dividi-lo. Trazia periodicamente namorados muito jovens com os quais mantinha relações sexuais, enquanto o filho dormia ao lado. A mãe andava constantemente nua pela casa. Fato confirmado pelas tias. Em uma viagem da terapeuta, o adolescente foi autorizado a falar com ela pelo telefone. No telefone, ele começou os primeiros relatos sobre o abuso sexual. Começou assim "a senhora sempre me disse que eu ia me lembrar de mais coisas. A senhora estava certa. Só tenho coragem de contar agora porque é pelo telefone". Disse lembrar-se de detalhes que pareciam não existir antes. Nas sessões anteriores era dito a ele que possivelmente muitas outras lembranças iriam ocorrer, principalmente àquelas relacionadas ao dia do crime, que para ele estava confuso e obscuro. Cada vez que contava algum tipo de abuso mostrava raiva e nojo pela mãe e dizia "ela não era minha mãe". Ele contou que ela dava banhos nele, masturbando-o. Dava beijos de língua dizendo que queria ensiná-lo a beijar. Encostava-se nele na cama e depois o espancava. Quando ele não cooperava com sua aproximação erótica, dava-lhe tapas na cara. Afirmou "minha mãe me tratava como homem, não como filho". Relatou ter muito ciúme da mãe. Afastou-se das abordagens sexuais maternas aos 13 anos, quando assistiu a um filme erótico e percebeu que aquilo que ele e a mãe faziam estava no filme. Disse sentir nojo e vergonha. A partir desta data o relacionamento deles ficou muito violento. A mãe passou a fiscalizar os passos do filho que tentava fugir ao seu controle. Ele passou a fazer tudo para agredi-la: fugia de casa, não estudava, quebrava coisas, agredia verbalmente a mãe e outros membros da família, mentia, manipulava, furtava dinheiro dos parentes e da mãe e até vendeu drogas uma vez. Relatou que tinha ódio, ciúme, frustração e se sentia angustiado todo o tempo. A imagem que veio à sua memória, em sessão terapêutica, "eu (ainda criança) estava com os braços estendidos, dentro de um furacão, sem saída, pedindo ajuda".
Após a reunião com as tias, o processo de entendimento dos abusos sexuais ficou mais bem compreendido. Disse da vergonha e do nojo que sentia da situação e que depois se tornaram raiva incontrolável.
Heide e Boots (2007) afirmam haver correlação entre abuso sexual e parricídio, de forma que na clínica forense deve-se estar ciente que a revelação do abuso sexual poderá ocorrer durante as sessões terapêuticas. Também é importante que o terapeuta espere as revelações de forma natural, sem pressão, mas demonstrando aceitação incondicional quando a revelação for feita.
2. Revelação do crime
No quarto mês de psicoterapia conseguiu relembrar o dia do crime. Estavam, ele e a mãe, no banheiro escovando os dentes, quando ela deu-lhe um beijo na boca, ele recuou dizendo "está carente", ela reagiu dando-lhe um tapa no rosto. Ele pegou uma faca que a mãe havia usado para comer pêssego e a atacou. Continuou dando facadas até a raiva acabar (overkill). Sentou-se e sentiu um enorme alívio. Levou o corpo para o chuveiro para limpar o sangue. Queria que não ficassem vestígios da existência dela na casa, como se fosse possível apagar sua presença, lavou o sangue e retirou o corpo da cena do crime. Esta cena, que desencadeou o matricídio é o resumo de sua história "sedução e agressão".
Pode-se verificar que o crime não foi premeditado, mas foi realizado com extrema emoção. Parece haver um momento que não há mais como conviver com a situação e somente com a eliminação do algoz a tortura poderá ser encerrada.
3. Sessões Familiares com as tias
Histórico de abuso intrafamiliar: foi solicitado ao adolescente para conversar com suas tias sobre os abusos e também para que avaliasse o tipo de apoio que poderia receber ao sair da unidade de socioeducação. A terapeuta falou separadamente com cada uma delas, depois fez sessões conjuntas do adolescente com cada tia separadamente e finalmente, realizou uma sessão com as três tias e o adolescente. Inicialmente contaram que o irmão mais velho delas, já falecido, havia abusado sexualmente de uma das filhas. A cunhada e os sobrinhos não compareceram ao enterro e puseram fogo na oficina onde ele trabalhava. Uma das tias contou que sabia que o pai delas abusara de uma de suas irmãs no cafezal, onde ele trabalhava, no sítio. Depois admitiu que havia sido com ela. Todas, por fim, relataram também que foram abusadas pelo pai e pelo irmão mais velho. As tias relataram que foram espancadas, tanto pelo pai como pela mãe, os quais usavam ferros, chutes e outras formas violentas para discipliná-las.
Após estas sessões, as tias fizeram vários telefonemas para a terapeuta para discutir a história de abuso sexual da família. Foram encaminhadas para outros profissionais, em suas cidades, para realizarem suas próprias psicoterapias. Ficaram muito perturbadas com a relação do abuso sexual e o matricídio. As tias oscilavam entre raiva do adolescente e pena, mas, todas queriam distância dele. Proibiram seus filhos de manterem contato por carta ou internet com o primo preso. A revelação do abuso intrafamiliar desnorteou a família e, de uma certa maneira, passaram a culpar o adolescente por este assunto ter vindo à tona.
A violência intergeracional discutida na literatura, seja ela física, psicológica ou sexual, pode se expressar em níveis de várias intensidades (Capaldi, Conger, Hops & Thornberry, 2003). A mídia, o poder judiciário e a própria família envolvida com a violência familiar não percebem os determinantes do comportamento violento, buscando atribuir motivos fúteis como "matou a mãe por dinheiro", "pôs fogo na oficina do marido por ciúme", "ingratidão", "estava drogado por isto espancou a avó", etc. O conhecimento da real história vivida por estes agressores poderá elucidar a origem e os determinantes desta violência. Este conhecimento servirá tanto para a prevenção como para o tratamento dos indivíduos e das famílias envolvidas com a violência intergeracional. Certamente sem tratamento adequado a "bola de neve" irá aumentar.
Os estudos intergeracionais essencialmente postulam que crianças que vivem em ambientes familiares que permitem um desenvolvimento saudável tornar-se-ão adultos plenamente normais capazes de serem bons pais. Disfunções na família de origem resultarão em má adaptação por parte dos filhos, aumentando fortemente a probabilidade de funcionamento familiar negativo na geração seguinte.
4. Reinserção social e escolar
Ao longo de seu internamento foram feitas várias atividades para reinseri-lo ao meio social: iniciou uma atividade de qualificação profissional, cujo principal objetivo foi desenvolver um repertório de convívio com as regras do trabalho e de aumentar seu relacionamento social, que era precário. Após quatro meses de atividade, foi avaliado positivamente pelos seus superiores. As sessões terapêuticas deste período incluíam prepará-lo para a convivência no trabalho e na faculdade. Suas dificuldades de relacionamento eram discutidas, modelos alternativos de comportamento eram treinados e muitas vezes a terapeuta e estagiárias iam ao local de trabalho para receber e fornecer informações sobre o desempenho do adolescente.
Foi feito contato com o tio paterno do adolescente, pastor, buscando-se uma aproximação com a sua família paterna. O pai morava em outro Estado, havia tido dois filhos, cuja mãe falecera recentemente. Segundo o tio paterno, a mãe sabia onde o pai residia, encontrava-se com ele e não permitia a sua aproximação ao filho. O pai não sabia, até então, do matricídio. Os contatos com a família paterna não foram concretizados por falta de interesse do tio pastor.
O adolescente tinha o maior nível de escolaridade da unidade socioeducativa. Não havia professor das matérias que ele precisava cursar para concluir o Ensino Médio. Foram feitos contatos com os responsáveis pelo ensino de jovens a distância para que professores e material escolar fossem obtidos. Conseguiu concluir o Ensino Médio e prestou vestibular: passou em quatro faculdades. Iniciou o curso superior, mas foi obrigado a abandoná-lo por ter se envolvido com um aluno "não matriculado" na faculdade. O aluno pediu a ele que guardasse "receitas médicas" em sua mochila. Foi pego nesta "contravenção" e perdeu seu direito de cursar a faculdade. Um ano depois foi colocado em Regime de Semiliberdade e prestou novo vestibular. Passou e há dois anos cursa fisioterapia. Durante este período procurou a terapeuta para novas revelações. Contou que a família materna mantém distância dele, preferindo vê-lo na prisão. Percebeu que seu avô materno comportava-se como seu pai e que, provavelmente, o era. Isto justificaria todo o ódio que a mãe sentia por ele "você é a cara de seu pai, por isto te odeio". Lembrou-se que a mãe casou-se apressadamente, dois meses depois, já grávida, expulsou o suposto pai de seu filho, impedindo qualquer contato com a criança. Falou claramente "meu avô era meu pai, por isto minha mãe me odiava".
Considerações Finais
O matricídio não é um crime comum. Não se repete. A motivação para o crime cessa neste ato. A literatura especializada mostra que os indivíduos que cometem parricídio são levados a esta extrema ação para interromperem seu calvário (Heide & Boots, 2007). Foram abusados física, psicológica e sexualmente por quem deveria protegê-los e amá-los. Não matam a mãe, pois ela não exerceu sua função materna. Matam seu algoz, seu torturador. Foram vítimas de mães que muito provavelmente foram abusadas sexualmente por pais ou irmãos e que, por não terem recebido tratamento, tornam-se pessoas perversas, descarregando no filho o ódio contra sua própria história.
Justamente é o antagonismo entre a ação e o argumento usado pela mãe que gera a baixa autoestima e a ineficácia em adquirir conceitos claros sobre o certo e errado. Esta conduta ambivalente gera medo, raiva e desamparo.
A abordagem da jurisprudência sociológica não absolve o jovem da responsabilidade, propõe relativizar o grau de responsabilidade dele que mata os pais e atribuir um maior grau de culpa às outras variáveis que levam a criança a matar, ou seja, sua história e abusos sexuais sofridos. A tese da "síndrome da criança-espancada" (battered-child syndrome) inclui os determinantes sociais e comportamentais, analisa as relações abusivas, que estão correlacionadas ao crime, entendendo que estes determinantes são atenuantes do crime. De maneira que, em lugar de entender o jovem matricida como um monstro que precisa ser extirpado da sociedade, considera que o filho que mata o pai o faz em legítima defesa, o faz para interromper uma vida de tortura e privação, o faz para se libertar do seu calvário.
Estes abusos ocorrem por um período longo e não de uma maneira episódica. Os padrões educativos utilizados por pais abusadores são constantes. As crianças criadas com práticas abusivas não conhecem relacionamento amoroso, afeto materno ou paterno genuíno, amor incondicional. Sequer sabem identificar e discriminar comportamentos maternos ou paternos apropriados, confundem padrões de cuidados parentais com aproximações sexuais, castigo ou punição com preocupação com o bem-estar.
Os profissionais de Saúde Mental e do Direito precisam conhecer melhor estas formas de abuso para poder exercer mais eficazmente sua função, evitando os desdobramentos trágicos que os abusos repetidos e de longo prazo ocasionam em crianças e adolescentes.
As intervenções com parricidas parecem apontar para um caminho promissor. As pesquisas (Heide, 2004) mostram que estes homicidas têm baixíssima probabilidade de matar novamente, pois a motivação para o crime cessa com a morte dos pais (Heide, 2009). No entanto, inexistem trabalhos relatando resultados de tratamento com parricidas, supostamente porque os casos são raros e, possivelmente, porque ao se ignorar os fatores familiares e psicológicos que levam a este tipo de crime, a justiça não indica psicoterapia, apenas encarceramento.
Ser filho do avô paterno. Esta é a história deste adolescente. Esta é a história de sua tragédia.
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Endereço para correspondência:
Praça da Ucrânia 80, apto 162
Curitiba, PR. CEP 80.730-430
E-mail para: pgomide@onda.com.br
Enviado em Junho de 2009
Revisado em Dezembro de 2009
Aceite final em Fevereiro de 2010
Publicado em Dezembro de 2010
Nota dos autores:
Paula Inez Cunha Gomide - Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP/1990). Professora Titular da Faculdade Evangélica do Paraná e professora da Universidade Tuiuti do Paraná.