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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.37 no.32 Rio de Jeneiro jun. 2015
ARTIGOS
A dúvida na neurose obsessiva: leituras freudianas
Doubt in obsessional neurosis: Freudian readings
Leonardo CâmaraI, II*; Regina HerzogI, II**
IUniversidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil
IINúcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade - NEPECC - Brasil
RESUMO
Este artigo tem por objetivo discutir a maneira como a experiência de dúvida comparece na configuração obsessiva. Como forma de trabalhar esta questão, o campo de análise restringe-se ao discurso freudiano, no qual é proposto o estabelecimento de três leituras distintas da dúvida: (1) como um sintoma compulsivo; (2) como uma experiência articulada à inibição; (3) como a modalidade mais importante de resistência do sujeito obsessivo contra o dispositivo clínico.
Palavras-chave: Dúvida, neurose obsessiva, sintoma, inibição, resistência.
ABSTRACT
The purpose of this article is to discuss how the experience of doubt emerges in the obsessive configuration. As a way of examining this issue, the field of analysis is restricted to the Freudian discourse in which the establishment of three distinct readings on doubt is proposed: (1) as a compulsive symptom; (2) as an experience articulated to inhibition; (3) as the most important kind of resistance offered by the obsessive subject to the clinical treatment.
Keywords: Doubt, obsessional neurosis, symptom, inhibition, resistance.
Não, eu mesmo adivinhei: Stavróguin, se crê, crê que não crê. Mas se não crê, então não crê que não crê
(DOSTOIÉVSKI, 1872/2004, p. 597).
Um dos critérios mais seguros para se qualificar um discurso como sendo da ordem do delírio repousa na observação de que um dado indivíduo possui certeza subjetiva absoluta em relação a uma ideia que, ademais, não é socialmente partilhada. Nada pode demovê-lo desta convicção e nem mesmo pô-lo em dúvida. Este é um fato estabelecido, amiúde invocado para distinguir de maneira elementar a psicose da neurose: aí onde o psicótico é soberano, o neurótico vacila. É certo que este último cultiva convicções; mas, para além delas, não há garantia que as proteja da experiência e do encontro com a alteridade. Pois, se a absorção narcísica sobre si pode gerar e, sobretudo, fixar certezas, a entrada do outro na cena psíquica pode quebrantá-las e reduzi-las a pó. Este é, aliás, um dos sentidos que a técnica de interpretação comporta em um tratamento analítico e uma das intenções que a psicanálise se propõe em relação ao conhecimento humano.
Acrescente-se que a dúvida é uma experiência psíquica essencial na função de pensamento e no processo de raciocínio. Se, no campo da filosofia, ela foi elevada ao estatuto de método por um Descartes, no campo da psicopatologia foi alçada, por sua vez, ao estatuto de sintoma por uma categoria de neurose em particular: a neurose obsessiva. Considerada como um afeto pela psiquiatria alemã, na segunda metade do século XIX, a dúvida em sua apresentação compulsiva ou obsessiva foi um sintoma codificado em distintas descrições psicopatológicas - muitas delas tendo sido fonte de inspiração para a composição da categoria de neurose obsessiva. Invoca-se, como exemplo, a psicastenia e a folie du doute (CASTEL, 2012a).
Dispersa na obra freudiana, a dúvida se apresenta de variadas formas, cada qual adquirindo uma posição mais ou menos relevante, nas distintas leituras teóricas da neurose obsessiva. Propomos delimitar três figuras da dúvida relacionadas a esta configuração clínica, tal como encontradas no discurso freudiano. A primeira a compreende como um sintoma obsessivo. Herdada dos discursos médicos do final do século XIX, esta concepção funda os alicerces para as leituras psicanalíticas posteriores sobre a dúvida. A segunda figura consiste na articulação entre a dúvida e a experiência de inibição. A partir desta relação, a hegemonia dos processos de pensamento e a correlata redução da capacidade de decisão e ação do neurótico obsessivo adquirem uma visibilidade decisiva. Por fim, a terceira figura coloca a dúvida como a forma mais importante de resistência que estes sujeitos apresentam contra o dispositivo clínico. Através de dois casos atendidos e descritos por Freud, evidencia-se a maneira como esta modalidade de resistência se apresenta, assim como as estratégias clínicas que Freud lança mão para manejá-la.
A dúvida como sintoma
A dúvida aparece no discurso freudiano, pela primeira vez, como um tipo de sintoma. Este surgimento se dá no contexto das discussões do meio médico do final do século XIX. Freud participa das controvérsias teóricas, propõe distinções e sistematizações e lança mão de modelos que buscam fornecer inteligibilidade a certos sintomas, síndromes e quadros que, lentamente, são recombinados na entidade clínica da neurose obsessiva. Sendo cotejada a partir de diferentes designações, a dúvida é, inicialmente, compreendida como um curto-circuito da intenção consciente do sujeito acometido por neurastenia (FREUD, 1892-3/2006). Também é descrita como um sintoma crônico da Angstneurose, ligada à expectativa ansiosa e ao comprometimento da capacidade de decisão e da função de memória (FREUD, 1895b/2006; 1950[1893]/2006).
Numa formulação mais consistente, a dúvida passa a ser entendida como uma consequência residual, previsível da ação das obsessões sobre o psiquismo. A interrupção persistente do fluxo de atividade mental pelas ideias obsessivas leva o sujeito a não ter mais certeza quanto aos seus processos psíquicos terem se desenrolado da maneira esperada (FREUD, 1895a/2006; 1895b/2006). Desta forma, a dúvida não é considerada um sintoma, mas o produto da interferência provocada pela presença de um sintoma de natureza obsessiva na vida mental. Apesar desta hipótese não se sustentar nos anos posteriores, Freud não abrirá mão dela: se ela perde o valor de elucidar a significação da dúvida, no quadro geral da neurose obsessiva, não obstante é preservada por ter um inconteste valor descritivo - a saber, a correlação da dúvida com o prejuízo da atenção (distração). De fato, Freud retoma esta observação quase quinze anos mais tarde para precisá-la em apenas um aspecto: é a intrusão incessante de conteúdos violentos na consciência que promovem a interrupção dos processos psíquicos (FREUD, 1909/2006).
De qualquer maneira, após a consideração desta hipótese, a dúvida adquire uma formulação mais estável no modelo das neuropsicoses de defesa, passando a ser entendida como um sintoma. 'Estável', bem entendido, porquanto estabeleça certos contornos, que se manterão invariáveis ao longo das diferentes teorizações. Importante observar ainda que, a partir deste momento, a dúvida é descolada da dinâmica das neuroses atuais para ser processada no âmbito das psiconeuroses e, mais especificamente, da neurose obsessiva. Isto significa dizer que o sintoma em questão passa a ser entendido em um contexto de conflitualidade psíquica, integrando os percalços da história do sujeito.
Assim, segundo o modelo das neuropsicoses de defesa, a histeria e a neurose obsessiva partilham de um fator etiológico comum: em ambas, a criança é vítima de abuso sexual. Essa experiência é vivida de forma passiva e induz intensa quota de desprazer. O que evidencia a distinção entre as duas patologias é a maneira como o sujeito reage posteriormente a tal situação (FREUD, 1896/2006). Na neurose obsessiva, a criança verte-se "da posição de seduzido para a de sedutor e da posição de violentado na inviolabilidade do seu corpo para a posição de agressor do corpo do outro" (BIRMAN, 1992, p. 66). Tornar-se ativa no quadro de forças que compõe o cenário de violência é a maneira como a criança pode conquistar prazer e triunfar ante seu estado anterior de passividade. Porém, a entrada precoce no mundo da moralidade conduz o sujeito a significar, sob outra perspectiva, o ato cometido: este passa a ser considerado como algo da ordem da monstruosidade. Inaugura-se em sua vida emocional o afeto de autoacusação ou autorrecriminação, que leva a criança a empreender esforços para esquecer-se do que foi cometido. Não tarda a haver, a partir deste movimento, a incidência do recalque sobre as lembranças em questão (FREUD, 1896/2006).
A neurose obsessiva se desencadeia como um quadro clínico, propriamente dito, quando do fracasso do recalque. As ideias obsessivas, que remetem ao duplo registro da violência e da sexualidade, passam a marcar sua presença ensurdecedora no psiquismo. Diante deste cenário, o eu aciona um repertório de sintomas denominados "medidas de proteção", dentre os quais figura-se a dúvida. Sendo um sintoma que luta exclusivamente contra as representações obsessivas, a dúvida elege a função do pensamento como seu campo de atuação privilegiado, podendo valer-se também da mobilização da função motora. Seu modo de funcionamento é caracterizado, particularmente, por "um violento desvio para outros pensamentos de conteúdo tão contrário quanto possível" (FREUD, 1896/2006, p. 172). Ela pode se manifestar como ruminação obsessiva, que "versa regularmente sobre coisas abstratas e supra-sensuais" (FREUD, 1896/2006, p. 172), ou ainda como um estado mental, no qual o doente concentra seus esforços conscientes para controlar ou dominar cada representação que comparece ao campo da consciência1.
Tal processo pode ser realizado através de um minucioso trabalho lógico, de uma análise comparativa da representação com a percepção atual ou de uma exaustiva interrogação quanto à natureza daquilo que está sendo apreciado. Destaca-se aí a participação pronunciada do eu, da consciência e das faculdades racionais. As formas listadas dão vazão a diferentes manifestações patológicas da dúvida, como as manias de precisão, de checagem ou de duvidar (FREUD, 1896/2006). Portanto, se antes a dúvida era concebida como um efeito lógico da distração das funções mentais pela irrupção dos sintomas obsessivos, agora a distração é a meta intencional da dúvida que, sendo propriamente um sintoma, se impõe como medida de proteção contra a irrupção de outros sintomas.
Neste sentido, a dúvida passa a ter como função afastar o neurótico de um possível encontro com aquilo que retorna do recalcado. No contexto geral da narrativa que compõe o modelo das neuropsicoses de defesa, a dúvida é uma forma de recusa do sujeito a entrar em contato com a violência que o fundou. Esta violência é constituída por uma dualidade radical: a de o sujeito ter cometido um ato monstruoso contra o outro, mas também de ter sido o objeto de crueldade do outro. A arquitetura dual que compreende as posições de ativo e passivo, algoz e vítima, acompanha o obsessivo e permeia seu funcionamento. A recusa que é justaposta à realidade da violência fundante é operada pela dúvida e exercida pelo eu, dando-se em um âmbito eminentemente intelectual: "o sujeito se indaga de maneira interminável sobre a existência da experiência primordial, isto é, sobre a sua veracidade" (BIRMAN, 1992, p. 68). Portanto, é a um evento factual - que ocupou lugar na experiência concreta do sujeito - que a dúvida se opõe. Tendo a sua realidade pressentida, o obsessivo abriga-se na esfera do pensamento, destituindo-o ao mesmo tempo de todo o afeto correlato. Promovida esta cisão, ele encontra as condições para duvidar de sua experiência.
A concepção da dúvida como um sintoma obsessivo apresenta um aspecto que irá adquirir importância crescente no discurso freudiano: sua relação com o registro intelectual. A dúvida exprime um conflito que se apresenta de forma interminável. No entanto, a que local a dúvida como conflito comparece? Enquanto que na histeria um conflito psíquico é deslocado para a esfera somática através do mecanismo de conversão, na neurose obsessiva, o conflito é mantido na esfera psíquica (FREUD, 1896/2006). A partir desta distinção clássica, a dúvida é considerada o equivalente exato da conversão histérica na configuração obsessiva (FLOURY, 2014). Mais especificamente, a experiência de dúvida localiza-se na esfera intelectual e enraíza-se na vida pulsional: ela é, em outras palavras, "o conflito pulsional deslocado para o campo intelectual" (FENICHEL, 1946/2005, p. 271). A compreensão da dúvida, enquanto expressão de um conflito pulsional atualizado no campo do pensamento, é uma observação que sustentará, a partir de então, a leitura freudiana sobre a neurose obsessiva.
Dúvida e sua relação com a inibição
Após o abandono da teoria da sedução factual, a dúvida na configuração obsessiva só volta a aparecer com o caso clínico do Homem dos Ratos (FREUD, 1909/2006). Neste trabalho, Freud estabelece uma correlação que se manterá estável ao longo de seu percurso: dúvida e inibição se entrelaçam intimamente na neurose obsessiva. Daí em diante, a dúvida deixa de ser vista como um sintoma e começa a ser relacionada a questões estruturais do sujeito obsessivo. Da mesma maneira, a inibição não se limita apenas a sintomas de natureza negativa que, aliás, gozam de ampla participação no quadro mórbido da neurose obsessiva (FREUD, 1916-7a/2006; 1926/2006). A inibição, imbricada com a dúvida, expressa principalmente a posição existencial destes sujeitos.
A dúvida patológica se expressa de múltiplas maneiras em uma configuração obsessiva, ainda que o resultado, geralmente constante, seja a restrição das capacidades de ação e de pensamento do sujeito. Neste sentido, ela é compreendida como um fator de inibição destas funções. O grau de comprometimento é variável e amiúde progressivo. Sua incidência mais típica se dá com o alargamento do tempo necessário para o desempenho de uma ação. Esta situação, designada como procrastinação, caracteriza de modo flagrante a temporalidade do sujeito obsessivo, sendo uma das maneiras típicas pelas quais este se recusa a agir (BARROS, 2012). Propomos apresentar dois modos principais nos quais a dúvida, entrelaçada à experiência de inibição, se apresenta no sujeito obsessivo.
No primeiro caso, o sintoma de dúvida é claro e ruidoso, produzindo manifestações pontuais e expressivas, ainda que suas causas subjacentes sejam inconscientes ao sujeito. Uma de suas apresentações, a mania de dúvida, impõe de maneira incoercível ao psiquismo representações em forma de questões, detendo o fluxo de pensamento através de reiteradas interrogações. Estado semelhante é a mania de checagem, na qual o sujeito se vê acometido de uma incapacidade de recordar se executou ou não um ato - muitas vezes banal -, sendo assim impelido, continuamente, a checar se o mesmo foi de fato realizado. Nestas formas de dúvida compulsiva, a realização de um ato (ou de um pensamento) é constrangida pela convocação de pequenos atos (ou pensamentos), que estendem, indefinidamente, a possibilidade do ato original realizar-se ou do pensamento em questão prosseguir até sua conclusão. Neste caso, a inibição não se dá pela supressão direta do ato intencionado, mas pelo incremento de outras ações que impedem ou retardam indiretamente a realização da ação original. A dúvida desempenha aqui o papel de encadear tais ações impeditivas, afastando a possibilidade de execução daquilo que se intentava realizar.
No segundo caso, a experiência de dúvida evidencia-se como uma tendência generalizada da vida psíquica desses sujeitos, manifestando-se, essencialmente, no campo do pensamento. Esta tendência se dirige no sentido da incerteza e da evitação "seletiva" do conhecimento de fatos, que poderiam esclarecer o sujeito e levá-lo à certeza por ele próprio exigida para a tomada de uma decisão. Tal forma de dúvida opera como um seletor de conteúdos ou como um estilo de pensar. Na primeira situação, a função do pensamento está preservada; o que se torna característico é sua orientação para temas que não podem ser solucionados e que, sendo aceitos ou não em conformidade com a crença do sujeito, estão irreparavelmente expostos à dúvida e à incerteza. Como exemplo, Freud evoca os temas da "paternidade, duração da vida, vida após a morte e memória" (FREUD, 1909/2006, p. 202). Não obstante, a incerteza pode ser propagada a, basicamente, qualquer experiência mental, sejam questões de ordem metafísica ou simples afazeres cotidianos.
A experiência de dúvida também se apresenta como um estilo de pensamento. Em outras palavras, designa a forma como os eventos psíquicos são articulados e processados, referindo-se, não tanto ao conteúdo do pensamento, quanto ao próprio estilo de pensar. Neste caso, o pensamento é caracterizado por uma negação obstinada de qualquer asserção de natureza afirmativa. Isto se dá mediante a exigência meticulosa e inflexível de que tal afirmativa esteja revestida de uma certeza inatacável; desta maneira, tudo aquilo que escapa a este ideal recai como incerteza. Em decorrência disso, há o prolongamento indefinido do próprio movimento do pensar que posterga a sua conclusão: "através da dúvida obsessiva ocorre uma infinitização do tempo de compreender e, portanto, um adiamento crônico do tempo de concluir" (ARAÚJO, 2002, p. 24). Conclusão necessária, bem entendido, para que o pensamento desencadeie a ação. Neste caso, a dúvida não emperra o fluxo do pensamento, mas o impele a prosseguir, indefinidamente, em busca da certeza orientada pelo seu ideal.
Assim, a inibição da ação leva à supercompensação do pensamento. O território do pensamento se estende por sobre as fronteiras da ação, aglutinando-a e produzindo (ou reforçando) um estado de inibição. Ora, o pensamento é concebido como um dispositivo que prepara as condições para o agir, ensaiando na esfera psíquica aquilo que será, posteriormente, posto em execução. Se o agir é substituído pelo pensamento, isto assim ocorre porque este último deixa de ser apenas um movimento preparatório para passar a ser também o meio final de obtenção da satisfação sexual (FREUD, 1909/2006). Desta forma, o processo de pensar verte-se, regressivamente, ao registro do autoerotismo, posto que busca satisfazer-se em si mesmo. Como consequência, há o estabelecimento de um circuito fechado de satisfação, no qual a relação objetal é prescindida e as capacidades volitivas e executivas do sujeito, restringidas.
A ambivalência de sentimentos é compreendida como a raiz da disposição à dúvida na neurose obsessiva. Descrita como a "coexistência crônica" de dois sentimentos opostos direcionados a um mesmo objeto - sendo ambos de "elevadíssimo grau de intensidade" (FREUD, 1909/2006, p. 206) -, a ambivalência refere-se ao amor e ao ódio. As duas correntes funcionam a partir de regimes autônomos: o amor pertence ao registro consciente e o ódio, ao inconsciente. Entretanto, porquanto partilhem do investimento no mesmo objeto, estes sentimentos se encontram, constantemente, sob a exigência de conviverem entre si. A impossibilidade de síntese entre estas duas correntes, lançadas que são em um movimento dialético perpétuo, decorre do recalcamento. Neste caso, o processo defensivo funciona no sentido do amor atuar como uma força que procura impedir a emergência do ódio na consciência: o amor se manifesta, tanto mais intenso, quanto mais o ódio cresce no território do recalcado e busca expressar-se na consciência. Contudo, mobilizado nesta função defensiva, o amor não possui condições de fornecer o motor para a ação e para a tomada de decisão quanto ao investimento no objeto. Nestes termos, a ambivalência motiva "uma paralisia parcial da vontade e uma incapacidade de se chegar a uma decisão a respeito de qualquer uma das ações para as quais o amor deve suprir a força motivadora" (FREUD, 1909/2006, p. 208).
O objeto pelo qual a ambivalência desempenha um papel organizador da subjetivação obsessiva refere-se à figura paterna. Segundo o modelo edípico, o pai representa o índice fundamental de interferência do gozo sexual do sujeito; o ódio é uma reação específica do sujeito obsessivo à interdição sexual estabelecida pelo objeto paterno. A ambivalência em questão provoca uma complexificação do movimento desejante do sujeito, tendo como resultado uma inibição na sua capacidade de decidir pelo objeto de amor. Em relação ao desejo, o obsessivo encontra-se em um impasse tão insuperável quanto a possibilidade de síntese do movimento dialético do amor com o ódio. Sua indecisão orbita entre a influência paterna e o amor pelo objeto. Pois, de um lado, o pai instaura a interdição, que não consiste em suprimir o acesso ao gozo, mas em determinar os únicos meios legítimos para sua realização. Não obstante, estes meios asseguram e mantêm o privilégio do pai em relação ao desejo2. De outro lado, encontra-se a luta do sujeito de legitimar a sua própria forma de amar - quer dizer, o movimento de desejar para além da influência paterna. Em relação a esta problemática, Castel (2012b) reflete que "o ato embaraçado por excelência é se permitir o gozo que um pai defende" (p. 69).
A relação entre dúvida e inibição atravessada pelo conflito entre desejo e interdição é revisitada e transliterada para o modelo estrutural de aparelho anímico em "Inibição, sintoma e angústia" (FREUD, 1926/2006). O eu perde sua capacidade de intermediar as exigências do supereu e do isso, uma vez que é constrangido pelo conflito excessivo entre as duas instâncias, que se manifestam, particularmente, imperativas na neurose obsessiva. Deste cenário, decorre um comprometimento da capacidade volitiva do eu, de vez que "em toda decisão que tem de fazer é quase tão fortemente impelido de um lado como do outro" (FREUD, 1926/2006, p. 119). Note-se que a dualidade essencial do obsessivo está preservada nesta teorização: este sujeito luta para tornar-se ativo em um cenário no qual se encontra, pelo contrário, subjugado pelo outro (o pai). No caso, a dúvida é a expressão desta luta.
Dúvida como resistência
A dúvida representa também outra forma de luta, quando nos situamos na perspectiva da dinâmica do dispositivo clínico. Neste caso, ela figura como a modalidade mais importante - e também mais típica - de resistência que a neurose obsessiva emprega contra o tratamento analítico (FREUD, 1916-7b/2006). Ela, amiúde, comparece como um dos meios de sustentar a tenacidade do obsessivo em ater-se ao registro intelectual, isolando-o de potenciais experiências afetivas. Ademais e em correlação a isso, coloca-se como uma tentativa contínua de cindir o sujeito, seja do alcance do analista (buscando anular de antemão as colocações deste último), seja da influência do tratamento (tornando-o virtualmente inútil). Mesmo que demonstre uma eventual docilidade para com as colocações do terapeuta, esconde-se um ceticismo inflexível. O sujeito obsessivo parece pensar em relação a ele: "esse homem é mesmo muito bom, conta-me as coisas mais bonitas do mundo; o chato é que não acredito em nada disso" (LACAN, 1962-3/2005, p. 126). Quando a transferência negativa é manifesta e colorida por uma agressividade desinibida, o paciente "entra em guerra contra o seu médico, passa a desdenhar de tudo o que possa haver de verdade no que ele diz, busca apenas os pontos fracos de sua argumentação e os encontra" (FERENCZI, 1913/1992, p. 35, grifos dos autores).
A propósito da maneira como a dúvida atua nos dispositivos clínicos, a experiência com o Homem dos Ratos pode ser considerada um momento-chave no qual a técnica psicanalítica se remodela. De fato, Castel (2012b) situa este caso como um ponto de mutação: o método eminentemente interpretativo de tradução do inconsciente, em que o analista transmite ao analisando a solução de seu sintoma, é abandonado para outro, em que a experiência de cura se dá nessa "escola do sofrimento" que é a transferência (FREUD, 1909/2006). Freud elimina assim os últimos vestígios deixados pela herança do tratamento moral, bem como se afasta ainda mais do dispositivo da hipnose, para consolidar o tratamento psicanalítico em toda sua verve inovadora, baseada radicalmente no campo transferencial (CASTEL, 2012b).
Partindo de um vértice clínico, a dúvida do obsessivo opera como um movimento insistente de negar sem levar-se em conta o que é negado: Freud, em carta à Lou-Salomé, observa que "a inclinação para a dúvida não provém de um fato que ocasiona a dúvida" (MIJOLLA-MELLOR, 2005, p. 530). O que é dito pelo outro já está antecipadamente marcado pelo ceticismo e nada parece poder demover o sujeito obsessivo desta atitude - nem ele próprio. Assim, a dúvida apresenta-se como uma disposição, isto é, como uma atitude que se impõe antes do fato e que, mesmo, pode contribuir para a seleção de determinados fatos ou assuntos. Esta evidência mostra que a dúvida não se baseia no conteúdo do discurso, mas nos afetos que o atravessam. Em outras palavras, a dúvida - esta peça elementar da racionalidade - aponta, no funcionamento obsessivo, para uma direção insuspeitada: sua raiz eminentemente afetiva. A descoberta freudiana encontra nesta raiz o Édipo, que por sua vez condiciona suas modulações no interior da relação transferencial.
Em acréscimo ao evidente obstáculo que impõe ao tratamento, duas observações clínicas sustentam a designação do fenômeno da dúvida como uma modalidade de resistência. A primeira aponta para o fato dela se tornar mais forte e obstinada, quanto mais o trabalho se aproxima de complexos recalcados; a segunda observação indica que, uma vez acessado e elaborado o material recalcado, a dúvida perde seu caráter compulsivo. Nestes termos, em dois casos clínicos trabalhados por Freud que manifestam uma problemática obsessiva, encontra-se a dúvida como uma forma privilegiada de resistência ao dispositivo analítico. Referimo-nos aqui aos casos do Homem dos Ratos e do Homem dos Lobos (FREUD, 1909/2006; 1918/2006).
No primeiro destes historiais clínicos, a dúvida, enquanto resistência, mostra-se através de apresentações variadas. Ernst Länzer, o paciente conhecido como o Homem dos Ratos, expressa continuamente, por exemplo, dúvidas quanto à eficiência do método analítico em um caso tão grave como o dele. Ao mesmo tempo, parte considerável de sua fala é marcada por uma indefinição tão patente, que chega a conduzir o analista a um estado de confusão, levando-o a duvidar de seu poder de escuta e compreensão: vide os relatos labirínticos do Homem dos Ratos quanto à história do pagamento da dívida do pince-nez. Longe de ser acidental, o discurso confuso e vago, logo sujeito a dúvidas e incredulidade, é um expediente comum do neurótico obsessivo, funcionando "como um meio de evitar que as coisas [sejam] compreendidas" (FREUD, 1909/2006, p. 197).
Entretanto, a modalidade principal de resistência ocorre na situação em que Länzer instila dúvidas persistentes às interpretações de Freud. Tais dúvidas tornam-se mais engenhosas quanto mais o tratamento se aproxima de identificar e apontar o ódio recalcado que o paciente nutre pelo pai. Neste caso, o analista enfrenta, não apenas a formação reativa - que envelopa os sentimentos hostis com o manto de um amor filial puro - como também a dúvida - que desmonta todas as suas interpretações, a partir de um crivo racional. Cada evidência trazida a lume por Freud é rebatida por Länzer, com o dobro de contra-evidências e o veredito de que, afinal, não se sente convencido com os argumentos do analista. Diante deste problema, Freud esclarece que não é função da análise convencer o paciente através de quaisquer discussões racionais: tal procedimento serve apenas para introduzir, na consciência, os complexos recalcados que serão, posteriormente, perlaborados (FREUD, 1909/2006).
Contudo, é digno de nota que "somente pelo caminho doloroso da transferência é que [o paciente] foi capaz de se convencer de que sua relação com o pai realmente carecia da postulação desse complemento inconsciente [i.e., de um sentimento de ódio recalcado]" (FREUD, 1909/2006, p. 182). Em outras palavras, a dúvida de Länzer quanto ao ponto nodal de seu adoecimento - o inaceitável ódio pelo pai que amava tanto - só passou a ser minado quando, em transferência, repetiu uma hostilidade análoga contra Freud. A perlaboração deste fato psíquico, conquistada apenas com a atualização do ódio no setting, condicionou o desvanecimento da dúvida compulsiva como uma modalidade de resistência.
Situação diversa ocorre com Sergei Pankeiév, o Homem dos Lobos. Neste caso clínico, a "dúvida permitiu ao nosso paciente entrincheirar-se por trás de uma indiferença respeitosa, deixando que os esforços do tratamento passassem fora do seu alcance durante anos" (FREUD, 1918/2006, p. 84). Ao contrário de Länzer, que usa a dúvida como uma arma, Pankeiév a utiliza como um escudo. Seu duvidar não é barulhento, mas silencioso: a resistência não comparece como discussões verbais acaloradas, mas como o mais simples isolamento do sujeito a qualquer possibilidade de mobilização suscitada pela análise. Como intervir diante deste estado de coisas? Freud toma uma medida estratégica: concentra todo o trabalho analítico em um sintoma corporal, considerando-o de natureza histérica - logo, passível de escuta e interpretação.
Pankeiév apresenta perturbações intestinais graves. Incapaz de evacuar espontaneamente, acostumou-se a tomar purgativos ou, com maior frequência, a ser submetido a enemas como forma de livrar-se do acúmulo de fezes em suas vísceras. Esta curiosa constipação o acometeu durante toda a vida adulta e lhe causava tamanho sofrimento, que relatava sentir-se embotado em relação a si e ao mundo. Só quando evacuava é que lhe sobrevinha a sensação de ser real, quer dizer, de estar em contato com o seu redor. Indicado pelo próprio Freud a um colega gastroenterologista, Pankeiév é informado que esta perturbação não tem raízes orgânicas, sendo pelo contrário de natureza "funcional, ou mesmo psiquicamente determinada" (FREUD, 1918/2006, p. 83-4).
O primeiro movimento de Freud é tornar claro algo que era da ordem do não-declarado: o ceticismo de seu paciente. Para isso, ele "promete" a Pankeiév a remissão completa de sua constipação, ao que recebe como resposta uma incredulidade aparentemente irremovível e, mais importante, manifesta. Desde então, a linha de trabalho que Freud delineia consiste, unicamente, em criar condições para que oHomem dos Lobos possa falar sobre o seu sintoma: "Tive então a satisfação de ver a sua dúvida murchar à medida em que, no decorrer do trabalho, seus intestinos começaram, como órgãos histericamente afetados, a 'entrar na conversa', e, em poucas semanas, recuperaram o seu funcionamento normal" (FREUD, 1918/2006, p. 84). Não parece exagerado designar-se como engenhosa esta estratégia. Freud não entra mais em confronto direto com o paciente e tampouco busca "introduzi-lo" aos seus complexos inconscientes. Fiando-se em um elemento histérico subjacente à configuração obsessiva, o analista consegue catalisar uma experiência afetiva no sujeito: a melhora de um sintoma tão grave rompe o ceticismo quanto à efetividade do tratamento, possibilitando que o paciente consiga duvidar de sua dúvida. Esta forma de resistência entra então em desmoronamento.
Ora, se grosso modo o dispositivo analítico consiste em levar o sujeito a desconhecer-se, pondo-o em dúvida quanto às suas mais arraigadas certezas, de que maneira se orienta uma análise com um paciente que, pelo contrário, duvida de tudo? Para o neurótico obsessivo, a dúvida não é um veículo para desconhecer-se, mas um procedimento para manter-se no mesmo lugar; em outras palavras, não é uma forma de romper suas certezas, mas preservá-las. Em que pesem as diferenças entre os casos do Homem dos Ratos e do Homem dos Lobos, depreende-se dois fatores invariantes no manejo de Freud em relação à dúvida compulsiva de ambos: a intervenção analítica não consiste em injetar mais interrogações às suas narrativas ou, muito menos, sugerir ou insinuar afirmações. O trabalho se dirige, antes, no sentido de surpreender o sujeito, levando-o a duvidar de sua dúvida. Como se expressou de maneira brilhante em outro lugar referindo-se a um assunto diferente, "se alguém se considera um cético, é bom ter dúvidas, às vezes, também acerca do ceticismo próprio" (FREUD, 1932/2006, p. 59). Contudo, a única maneira que isto pode ser conquistado é através da promoção de uma experiência afetiva forte o suficiente para antagonizar com o movimento aglutinante de racionalização do obsessivo. Para tanto, o analista pode ter de procurar - e apostar - em algum traço histérico que emerja em sua escuta, tomando-o como um fio de Ariadne no tortuoso labirinto obsessivo.
Referências
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Artigo recebido em: 31/05/2014
Aprovado para publicação em: 15/07/2014
Endereço para correspondência
Leonardo Câmara
E-mail: lcpcamara@gmail.com
Regina Herzog
E-mail: rherzog@globo.com
*Psicólogo, mestrando Programa Pós-graduação Teoria Psicanalítica/UFRJ, bolsista/FAPERJ/Bolsa Nota 10 (Rio de Janeiro-RJ-Brasil), membro/Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade-NEPECC (Rio de Janeiro-RJ-Brasil).
**Psicanalista, bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq (Rio de Janeiro-RJ-Brasil), profa. associada Programa de Pós-graduação Teoria Psicanalítica/UFRJ (Rio de Janeiro-RJ-Brasil), coordenadora/Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade-NEPECC (Rio de Janeiro-RJ-Brasil).
1Este procedimento tem ressonâncias com a ação voluntária que o sujeito, quando criança, lançou mão para esquecer-se da violência da qual foi agente e vítima.
2Este paradoxo atinge uma enunciação lapidar com o conceito de supereu: tu deves ser como teu pai, tu não podes ser como teu pai (FREUD, 1923/2006).