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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.41 no.40 Rio de Jeneiro jan./jun. 2019
ARTIGOS
A virada de 1928: Sándor Ferenczi e o pensamento das relações de objeto na psicanálise
1928's turning point: Sándor Ferenczi and object relations thought in psychoanalysis
Daniel Kupermann*
Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi - Brasil
Universidade de São Paulo - USP - Brasil
RESUMO
Demonstramos nesse artigo que as origens do pensamento das relações de objeto na psicanálise podem ser encontradas na virada de 1928 realizada no campo psicanalítico por Sándor Ferenczi por meio da publicação de três ensaios: A adaptação da família à criança, A elasticidade da técnica psicanalítica e O problema do fim da análise. Nessa trilogia Ferenczi tece contribuições em três dimensões - metapsicologia/psicopatologia, teoria da clínica, e ética da psicanálise - que apontam para o desenvolvimento de um estilo clínico empático, inspirado em uma ética do cuidado, que foi a força motriz para a constituição do pensamento das relações de objeto na psicanálise.
Palavras-chave: Sándor Ferenczi, Empatia, Trauma Psíquico, Clivagem, Masoquismo, Relações de Objeto.
ABSTRACT
In this article, we demonstrate that the origins of object relations thought in psychoanalysis can be found in 1928's turning point undertaken by Sándor Ferenczi in the psychoanalytical field through the publication of three papers: The adaptation of the family to the child, The elasticity of the psycho-analytic technique and The problem of the termination of the analysis. In this trilogy, Ferenczi weaves contributions in three dimensions - metapsychology/psychopathology, clinical theory and ethics in psychoanalysis - that point to the development of an empathic clinical style, inspired in ethics of care, which was the driver for the constitution of object relations thought in psychoanalysis.
Keywords: Sándor Ferenczi, Empathy, Psychic Trauma, Cleavage, Masochism, Object Relations.
Introdução
As ideias desenvolvidas nesse artigo visam suscitar a reflexão sobre as origens do pensamento das relações de objeto na psicanálise. Nesse sentido abordarei os fundamentos e a clínica sob a inspiração do pensamento das relações de objeto a partir do que nomeei de virada de 1928 realizada no campo psicanalítico por Sándor Ferenczi. Não por acaso, a opção pelo termo "virada" pretende mostrar que há uma relação entre a virada ferencziana de 1928 e a consagrada virada freudiana de 1920, caracterizada pela formulação da pulsão de morte e da segunda tópica do aparelho psíquico1.
Decio Gurfinkel, no seu excelente livro Relações de objeto (2017), recentemente publicado, nos recorda que Michael Balint já indicara que a origem do pensamento das relações de objeto estaria na obra de Ferenczi, especialmente em Thalassa, publicado em 1924, mas que teria atingido a força máxima das suas teses em 1928, com a edição, por Ferenczi, dos artigos sobre a elasticidade da técnica e sobre o problema do fim da análise.
Acompanhando parcialmente Balint (1968/2014), acredito que se pode afirmar que a origem explícita do pensamento das relações de objeto na psicanálise reside na articulação - intrínseca e necessária - da trilogia publicada por Ferenczi em 1928, que constitui um verdadeiro marco fundador na história das ideias psicanalíticas, com destaque para o ensaio A adaptação da família à criança (1928a/1992).
De fato, Thalassa (1924a/1993) apresenta ao público os postulados lamarckistas da "bioanálise" que vinham sendo elaborados há quase uma década por Ferenczi e, também, por Freud2 - com destaque para a dimensão estruturante das catástrofes sofridas pelas espécies ao longo do processo de adaptação que conduziu ao surgimento do Homo sapiens, e para os poderes curativos da regressão que move a conduta dos seres sexuados. No entanto, o ensaio não explora suficientemente os desdobramentos dessas mesmas teses na teoria da clínica e nas concepções acerca do encontro transferencial, justamente o que será exposto na trilogia que configura a virada de 1928.
Mas o que determinaria uma virada no campo psicanalítico? Todo psicanalista que consideramos efetivamente um autor desenvolveu suas contribuições a Freud em, no mínimo, três vertentes: primeiro, criando categorias metapsicológicas próprias, referidas ao processo de constituição subjetiva, bem como a psicopatologia que lhe é correspondente; além disso, estabelecendo uma teoria da clínica capaz de lidar com os quadros psicopatológicos descritos de acordo com suas concepções acerca das origens do sofrimento humano; finalmente, propondo reflexões ético-político-institucionais que se referem tanto à direção do tratamento - ou a sua concepção de cura -, quanto à critica acerca das resistências do próprio psicanalista ao poder de afetação do encontro clínico, e das competências que lhe são exigidas para exercer de maneira adequada seu ofício. É o que se pode encontrar, guardando evidentes diferenças, em Freud, Klein, Winnicott e Lacan, dentre outros.
Dessa maneira, pode-se considerar que a virada se dá quando essas três dimensões da obra de um psicanalista indicam efetivamente uma mudança de direção nos caminhos (Wege)3 do pensamento teórico-clínico da psicanálise. Uma virada se diferenciaria, assim, da concepção de "retorno à verdade de Freud", enfatizada por Lacan (1955/1998), aproximando-se mais do exercício da "função autor" - presente e atuante na produção e na transmissão de saber concernentes ao campo das discursividades, do qual participa a psicanálise - descrita por Michael Foucault (1969/2000). A "função autor" se exerce por meio do retorno à obra do instaurador (Freud, no caso da psicanálise) em função de certo tipo de "esquecimento" que, longe de ser um acidente de percurso, parece ser inerente à própria constituição da discursividade.
O retorno promovido pelo movimento de virada remeteria, portanto, menos à verdade última que arriscaria fechar o sentido do ato de instauração de uma discursividade, do que a uma abertura - por meio do reconhecimento de diferenças - à riqueza da obra inaugural, obturada por uma pseudoplenitude das leituras vigentes.
A virada ferencziana de 1928
Justamente, em 1928 Sándor Ferenczi apresenta à comunidade psicanalítica três ensaios, cada um deles dedicado a uma das vertentes constitutivas de uma obra autoral em psicanálise: metapsicologia/psicopatologia, teoria da clínica ou da técnica, considerações ético-político-institucionais. O primeiro deles é A adaptação da família à criança (1928a/1992), no qual Ferenczi promove uma torção no conceito de adaptação utilizado por Freud e, de certo modo, privilegiado por ele mesmo (Ferenczi) no instigante ensaio de 1913 O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios (1913/1992), segundo o qual a criança pulsional, movida pelo princípio de prazer, deveria se adaptar "unilateralmente" ao princípio de realidade imposto pelo mundo dos objetos por meio de sucessivos traumas estruturantes4. A partir da publicação desse ensaio, enriquecido pelos desenvolvimentos subsequentes de Balint e Winnicott, a concepção vigente para os psicanalistas identificados com o pensamento das relações de objeto seria a de que a adaptação primária - condição para a experiência de onipotência criadora do sujeito - é aquela promovida pelo ambiente frente à chegada do infans.
O segundo ensaio, A elasticidade da técnica psicanalítica (1928b/1992), deve ser lido como prolongamento do primeiro, uma vez que nele Ferenczi extrai as consequências clínicas de sua perspectiva ambientalista. Poder-se-ia sintetizar seu argumento com a ideia de que não é o analisando que assumiria a tarefa de se adaptar à técnica psicanalítica, então definida pelo tripé associação livre, princípio de abstinência no campo transferencial e interpretação; o analista é que precisaria dispor da flexibilidade elástica necessária para atender aqueles que até então eram considerados inanalisáveis.
Pode-se perceber que, no mesmo gesto promovido por A elasticidade da técnica, a própria psicanálise se abriu para os chamados pacientes difíceis, primeira forma de nomear o que atualmente se conhece como borderlines (na literatura anglo-saxã), casos-limite (na literatura francesa) ou patologias narcísicas. Para Ferenczi, tratava-se, efetivamente, de pacientes traumatizados.
É ainda nesse ensaio que Ferenczi, provocado pelo desafio apresentado pelos analisandos que apresentavam comprometimento nos processos de ligação constituintes do narcisismo primário e da integração egóica, propõe o termo empatia para nomear modalidades ampliadas da interação clínica. As dificuldades apresentadas pelos sujeitos traumatizados em cumprir a regra da associação livre, sonhar, cometer atos falhos, e em incluir o analista no campo da atualização das imagos inconscientes infantis conforme preconizado pela concepção vigente de transferência, exigiram do psicanalista uma presença sensível de maneira a preservar alguma possibilidade de intervenção clínica (cf. KUPERMANN, 2008). A empatia (Einfühlung), literalmente "sentir dentro", indica a exigência de o analista sentir o outro em si, o que inaugurou a trilha para as reflexões que floresceram na escola inglesa a partir dos anos 1950 acerca da contratransferência5.
Finalmente, em O problema do fim da análise (1928c/1992), ensaio que encerra a trilogia, Ferenczi dá o passo logicamente necessário: se a clínica psicanalítica inspirada por sua perspectiva ambientalista - para fins esquemáticos nomearei o estilo clínico criado por Ferenczi de estilo empático - exigia do psicanalista uma disponibilidade sensível e afetiva diferenciada daquela proposta pelo método freudiano clássico - que poderíamos designar, também para fins esquemáticos, como um estilo interpretativo -, seria condição sine qua non para o sucesso da experiência psicanalítica a reflexão acerca das análises de formação (as "didáticas"), bem como de seus efeitos sobre a metapsicologia dos analistas. É importante, no entanto, ressaltar que um estilo não se contrapõe ao outro. Freud decerto não deixou de conceber a importância da empatia, assim como Ferenczi não abandonou o instrumento interpretativo. Trata-se, portanto, mais de ênfase ou privilégio do que de oposição. Mas, conforme pretendemos demonstrar, em algumas situações clínicas a ênfase faz bastante diferença.
De fato, o tom de O problema do fim da análise é extremamente crítico em relação à formação dos analistas, e indica uma direção ética importante ao formular que no horizonte do final do tratamento estaria a desconstrução do narcisismo (patológico, como veremos) e do superego. Inclusive, no que se refere à análise dos analistas, ao desfazimento do que Balint (1948, 1954) nomeou de "superego técnico", referindo-se a adesão rígida dos psicanalistas aos sistemas de filiação teóricos que impede que analisem utilizando o "livre jogo das faculdades" necessário para ampliar a sua capacidade imaginativa.
Uma vez introduzida a trilogia que compõe a virada de 1928 promovida no campo psicanalítico por Sándor Ferenczi, nos deteremos, inicialmente, em Adaptação da família à criança, indicando de que maneira esse ensaio pretende confrontar a segunda teoria da angústia de Freud.
Da dor à alegria de existir
Em Inibições, sintomas e ansiedade Freud (1926/1980) apresenta duas importantes balizas da sua última teoria, referida à pulsão de morte e à segunda tópica do aparelho psíquico. O argumento - na verdade, um debate -, gira em torno da publicação do livro de Otto Rank, O trauma do nascimento (que foi dedicado a Freud), no qual se encontra um otimismo clínico inédito, apresentado no último capítulo e sustentado na ideia de que o manejo da transferência poderia promover um "segundo" nascimento - devido à separação do analista prevista pela liquidação da transferência -, agora não traumático (RANK, 1924/2016). Freud critica tanto sua metapsicologia quanto seu modelo clínico.
Em primeiro lugar, para Freud (1926/1980) o nascimento seria apenas o protótipo das separações posteriores - como o desmame, a aquisição do controle fisiológico implicado no asseio, o ingresso na vida escolar, as ligações amorosas, a inserção no mundo do trabalho - que acompanham o processo de amadurecimento subjetivo e de socialização. Ou seja, a aquisição do sentido de realidade seria necessariamente traumática, uma vez que o ser humano nasce em estado de desamparo e dependência - devido a sua prematuridade biológica -, e toda ameaça de abandono ou medo da perda do amor da mãe ou do cuidador o remete novamente ao desamparo, fonte primária de toda angústia. Na vida adulta, a angústia deixa de estar relacionada diretamente ao outro do qual a criança dependia, passando a ser efeito funcionamento do superego, o Outro incorporado no psiquismo.
Além disso, Freud tece uma crítica severa a um modelo clínico que pretendia curar o trauma do nascimento, indicando que experiências traumáticas são constitutivas do aparelho psíquico; inexoráveis, portanto. Freud emprega, com a ironia que lhe era característica, uma analogia precisa: não se apaga o incêndio em uma casa retirando o lampião de querosene derrubado que o causou. O lampião freudiano é nada mais nada menos que a pulsão, com privilégio para a pulsão de morte (essa incendiária incorrigível). Assim, toda ameaça de perda do objeto, ou efetiva perda - de outra maneira, toda desfusão pulsional -, tem potencial destrutivo, exigindo um dispendioso trabalho de ligação por parte do aparelho psíquico.
Nesse sentido, Freud se afasta do privilégio atribuído por Rank à regressão terapêutica, bem como da concepção de um novo começo proporcionado pela experiência transferencial,6 e reafirma a primazia do seu modelo intrapsíquico ancorado no paradigma pulsional e no irremediável conflito entre as instancias que caracteriza o campo das neuroses.
Já Ferenczi, anteriormente parceiro de Rank na publicação de Perspectivas da psicanálise (cf. FERENCZI, 1924b/1993), adentra o debate criticando tanto Rank quanto Freud. Seu argumento se sustenta no que se pode denominar, após a publicação de A adaptação da família à criança, de ambientalismo psicanalítico, ilustrado por duas formulações que tem como máximas: 1. "O nascimento é um verdadeiro triunfo, exemplar para toda a vida" (FERENCZI, 1928a/1992, p. 4); e não um trauma, portanto; e 2. O estado de desamparo e a consequente dependência da criança ao adulto implicam que a relação dos adultos com a criança pode ser efetivamente traumática. Desse modo, o estado de desamparo não é, per si, a fonte do trauma, mas apenas na relação com o outro7. Assim como não existe um bebê sem cuidador, também não há desamparo sem uma perspectiva relacional que envolva a presença do outro (o mesmo tratamento teórico é dado por Ferenczi à pulsão de morte - tratar-se-ia de um mito fundador evocado por Freud, no sentido de que tanto Eros quanto Tânatos dependem da relação estabelecida com o/pelo outro cuidador).
A afirmação, com júbilo, de que o nascimento é um triunfo pressupõe, por um lado, que o feto está biologicamente pronto para nascer, isto é, para entrar em contato com o ambiente externo ao útero materno, o aparelho digestivo e respiratório já amadurecidos; por outro, que a família, representando o ambiente adaptado às necessidades biopsicofisiológicas do bebê, torna a transição do útero ao colo materno, e deste ao mundo, a mais delicada possível. Não é difícil reconhecer aqui Winnicott (1952/2000) e sua concepção de good enough mother, a mãe suficientemente bem adaptada ao neonato. Além disso, a formulação de um triunfo do nascimento contradiz a figura do "bebê melancólico" apresentada pelo próprio Ferenczi no seu ensaio de 1913, O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios (1913/1992), que persistiu no imaginário psicanalítico8. É digna de nota, nesse sentido, a epígrafe, claramente provocadora, escolhida por Rank para O trauma do nascimento: as palavras de Sileno a Midas evocadas por Nietzsche em O nascimento da tragédia, ou Helenismo e pessimismo (pode-se perceber que o título do livro de Rank inspira-se no de Nietzsche, invertendo-o e adaptando-o à terminologia psicanalítica: "A tragédia [trauma] do nascimento"). Diz Sileno: "o melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer" (NIETZSCHE apud RANK, 1924/2016, p. 7).
Se fosse possível escolher, o feto (melancólico, certamente) preferiria não nascer... para preservar sua onipotência no útero materno. A partir de 1928, no entanto, por exuberância vital e com a prova da alegria, o feto deseja nascer... e nasce.
Onipotência e traumatogênese
Chegamos, assim, a um problema decisivo no resgate da concepção de trauma pelo pensamento das relações de objeto: o da onipotência e sua relação com a etiologia psicopatológica. O psicanalista Jay Frankel (2017) é bastante preciso ao indicar a articulação tecida por Ferenczi entre o evento traumático e a emergência do narcisismo patológico. Não há necessidade de resgatarmos aqui todos os elementos da teoria do trauma construída por Ferenczi no final dos anos 1920 e início dos anos 1930 (cf. FERENCZI, 1929/1992, 1931/1992, 1933/1992). Basta, para avançar com o argumento aqui proposto, analisar os principais efeitos da traumatogênese sobre a subjetividade: a progressão traumática por meio da identificação ao agressor, e as fantasias de onipotência dela decorrentes.
Ferenczi (1931/1992) indica que, na situação traumática, o agressor é alguém amado, do qual a criança não pode se desligar sob o risco de cair em abandono. Como recurso defensivo a criança se identifica com o objeto agressor, promovendo uma clivagem narcísica em uma parte que "sabe tudo mas nada sente" - a parte onipotente da progressão traumática - e outra parte sensível, destruída (ibid., p. 77). É conhecida a metáfora proposta por Ferenczi (1933/1992) da fruta bichada - madura por fora, porém apodrecida por dentro9.
Frankel (2017) indica, ainda, que Ferenczi foi o autor que evidenciou que a onipotência presente na chamada "doença mental" viria recobrir uma inexorável fragilidade e vulnerabilidade subjetiva, hipótese que, talvez, soe óbvia para os psicanalistas atualmente identificados com o pensamento das relações de objeto. No entanto, desde Freud, e ainda hoje, as consequências clínicas de se adotar ou não essa concepção não são unânimes no campo psicanalítico. Basta recordar que, para Freud (1914/1980), os psicóticos eram considerados intratáveis pelo fato de não estabelecerem transferência.
A partir da ampliação da clínica psicanalítica promovida por Ferenczi junto aos "pacientes difíceis" a concepção de quem seria inanalisável passou a serbastantequestionada10. Na traumatogênese descrita por Ferenczi (1933/1992, p. 103) ocorreria uma falha no estágio do chamado de "amor objetal passivo", no qual o sujeito em constituição necessitaria da "ternura materna" para estabelecer as identificações que o possibilitariam exercitar sua autenticidade e seu movimento desejante.
Antes ainda, desde as formulações de O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios (FERENCZI, 1913/1992), as fixações patológicas eram consideradas efeitos de rupturas traumáticas da experiência de onipotência responsável pela expansão da subjetividade que mobiliza o sujeito do seu autoerotismo em direção ao mundo, ou seja, às relações de objeto11. A fixação, porém, não diz respeito apenas a um estágio do desenvolvimento da libido, mas também à aderência a certas modalidades de relação de objeto, como já indicara Abraham (1970).
Balint (1968/2014) retomará justamente essa ideia do fracasso do "amor objetal passivo" redefinindo-a como "falha básica". Percebe-se, assim, que é o amor recebido pelos objetos primários que convoca a criança para as relações objetais, e não as pulsões de vida independentes do ambiente, como se fossem uma conquista autônoma do sujeito. A criança abandonada, dirá Ferenczi, ficará, ao contrário, assujeitada à Tânatos. Uma passagem de A criança mal acolhida e sua pulsão de morte é ilustrativa: "A 'força vital' que resiste às dificuldades da vida não é, portanto, muito forte no nascimento [...] ela só se reforça após a imunização progressiva contra os atentados físicos e psíquicos, por meio de um tratamento e de uma educação conduzidos com tato" (FERENCZI, 1929/1992, p. 50).
O efeito da falha traumática no estágio do chamado de amor objetal passivo seria, portanto, o comprometimento severo dos processos identificatórios, com a consequente incorporação do objeto do qual o sujeito não poderá mais prescindir. Advém daí a impossibilidade de fazer o luto do objeto - e, de acordo com Frankel (2017), o legado das "fantasias onipotentes" -, o que levou alguns autores a aproximar a clivagem descrita por Ferenczi do mecanismo da cisão própria da melancolia, como o faz, por exemplo, Teresa Pinheiro (2016).
O desafio clínico não seria, assim, o de enfrentar a onipotência oriunda do incremento do narcisismo secundário; ao contrário, tratar-se-ia de cuidar da dimensão sensível do sujeito anestesiado de modo a que possa exercitar a "ilusão" e o "sentimento" de onipotência primária (FERENCZI, 1913/1992, p. 47-48) responsável pelos movimentos de introjeção por meio dos quais se constituem o campo do si mesmo e o circuito dos objetos merecedores do seu investimento desejante.
Por uma clínica do masoquismo
Proponho que o problema clínico privilegiado ao qual Ferenczi se dedicou no final da sua obra foi o da clínica do masoquismo, sincrônico com as formulações de Freud a partir de 1920 (de fato, Freud pouco fala da melancolia após a "virada de 1920"). Com a traumatogênese ferencziana, o entendimento para a escolha defensiva por meio do masoquismo deixa de ser a de uma "covardia moral", um simples evitamento do desamparo cotidiano. A dor provocada pela identificação ao agressor viria atenuar uma dor maior provocada pelo desmentido traumático, como realça Ferenczi no Diário clínico (1932/1990, p. 56-64).
Nesse sentido, pode-se entender que o ponto de partida das inquietações de Ferenczi tenha sido a percepção - ainda intuitiva, é verdade - dos efeitos iatrogênicos da psicanálise. A constatação de que a psicanálise, do modo como era praticada já em meados dos anos 1910, poderia reforçar a identificação com o agressor atualizado na figura do analista o levou primeiro à técnica ativa e, depois, à criação do que nomeei de estilo empático. Efetivamente, o tripé associação livre/princípio de abstinência no campo transferencial/interpretação fora desenvolvido para o tratamento da neurose, e não para os pacientes assujeitados à clivagem narcísica. Se nos detivermos em cada um dos elementos que balizavam a técnica freudiana até 1920, veremos que: 1. A associação livre não promovia os efeitos esperados, uma vez que os analisandos graves apresentavam comprometimento nos processos de simbolização, e as formações do inconsciente - sonhos, atos falhos e piadas - não se manifestavam conforme esperado; 2. A frustração no manejo da transferência reproduzia menos a diferença em relação às imagos infantis atualizadas, do que a identificação ao agressor, reforçando o traumatismo e a aderência afetiva dos analisandos aos seus analistas; e 3. A interpretação, que tem como alvo as resistências neuróticas e o recalcado, não obtinham sucesso em acessar o núcleo traumatizado do analisando, transformando a clínica em um exercício intelectual inócuo, e as análises em experiências intermináveis. Para essas subjetividades, insistir em uma clínica que adota como visada o reconhecimento da castração seria o equivalente a colocar a carroça na frente dos bois... apostando em uma força motriz erótica ausente que, pelo contrário, precisaria ser despertada na relação com o analista.
A clínica psicanalítica passava, assim, a ser norteada por uma ética do cuidado, assentada sobre duas grandes balizas: a regressão thalássica - que nos remete ao período da ternura, no qual vigora, por parte do analisando, a demanda de amor objetal passivo -, e a análise pelo jogo (cf. KUPERMANN, 2017). O termo "neocatarse" concebido por Ferenczi (1930/1992) define a tarefa de perlaboração almejada pelo estilo clínico empático desenvolvido, com sofisticação, nas obras de autores como Balint, Winnicott e Kohut.
De acordo com a definição de Winnicott (1954/2000), a regressão à dependência seria a resposta clínica para a progressão traumática impulsionada pela identificação ao agressor. A presença sensível do psicanalista favoreceria, em contrapartida, as condições necessárias e suficientes para a regressão reparadora do narcisismo primário comprometido e para a possibilidade de o sujeito livrar-se, enfim, do objeto incorporado. "Por trás do amor de transferência, submissão ou adoração [...] o desejo nostálgico de libertação desse amor opressivo", escreve Ferenczi (1931/1992, p. 104), acrescentando: "Se ajudarmos a criança, o paciente [...] a abandonar essa identificação e a defender-se dessa transferência tirânica, pode-se dizer que fomos bem-sucedidos".
A concepção de análise pelo jogo (FERENCZI, 1931/1992), por seu turno, visava suportar o movimento expansivo e lúdico dos analisandos que exercitam, muitas vezes por meio de movimentos efetivamente hostis - no sentido da tentativa de evacuar o objeto agressor e persecutório -, a introjeção, demandando do psicanalista presença sensível e, também, o vigor necessário para resistir no encontro promovido pelo campo de afetação. A figura do "João teimoso", o boneco que apanha das crianças mantendo seu ponto de sustentação, é evocada por Ferenczi como metáfora inspiradora do trabalho do psicanalista em determinadas situações clínicas. "É necessário", escreve Ferenczi (1928b/1992, p. 31-32), "ceder às tendências do paciente, mas sem abandonar a tração na direção de suas próprias opiniões".
Á guisa de conclusão: a psicanálise sem pai nem mãe
Alguns comentadores e, mesmo, detratores dos autores representativos do pensamento das relações de objeto na psicanálise associam sua clínica a um exercício no qual o psicanalista ocuparia uma posição materna que, no limite, tenderia a manter a dependência por parte dos seus analisandos12. Por outro lado, o percurso freudiano indicou de que modo a clínica regida pelo princípio da abstinência no campo transferencial, que tem como alvo a assunção da castração por parte do analisando, implica uma posição paterna por parte do analista (FREUD, 1937/1980). No entanto, os vários acidentes de percurso sofridos por Freud apontaram que a adoção da postura de "substituto paterno" (idem) tende a reforçar o masoquismo dos analisandos, que toleram as maiores violências impostas - na maior parte das vezes involuntariamente, decerto - por seus próprios analistas. O caso do Homem dos Lobos é fartamente ilustrativo do fracasso iatrogênico do estilo "paterno" em psicanálise (FREUD, 1918[1914]/1980; BRUNSWICK, 1928/1981).
Para Ferenczi, no entanto, se a técnica inspirada pelo estilo interpretativo podia tornar-se, efetivamente, sádica, a maternagem, por sua vez, arriscava ser "hipócrita". Isso porque a maior resistência à análise decorreria da insensibilidade do psicanalista, ou seja, da recusa dos modos pelos quais é afetado pelo encontro clínico. Em seu último ano de vida, por meio da "análise mútua", Ferenczi (1932/1990) buscara livrar o espaço analítico de toda hipocrisia defensiva, convocando o psicanalista ao reconhecimento e ao enfrentamento dos traumatismos decorrentes da sua prática clínica. Seu ponto de chegada foi a proposição de que muitas vezes o encontro analítico conjurava "duas crianças" que, igualmente desamparadas estabelecem uma "comunidade de destino" de modo a alcançar a vivência da ternura necessária para o advento da sua autenticidade criadora.
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Artigo recebido em: 20/02/2018
Aprovado para publicação em: 09/04/2019
Endereço para correspondência
Daniel Kupermann
E-mail: danielkupermann@gmail.com
*Psicanalista. Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Presidente do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Professor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil.
1Em comunicação pessoal Renato Mezan declarou acreditar que o termo "virada", consagrado na literatura psicanalítica brasileira no sentido da mudança teórica realizada por Freud a partir de 1920, se deve originalmente a Laplanche sendo, portanto, uma tradução do francês tournant. No entanto, até o momento não foi possível encontrar essa referência.
2Ver Neuroses de transferência: uma síntese (FREUD, 1915/1987).
3Em referência ao ensaio decisivo de Freud (1919/2010) Caminhos da terapia psicanalítica.
4Demonstrei, alhures, que se pode encontrar no mesmo ensaio uma dimensão ativa da criança ferencziana que iria ao encontro do sentido de realidade por meio de um movimento progressivo impulsionado por suas próprias forças introjetivas. Ver Kupermann (2003, cap. 2)
5Remeto o leitor a Para além da contratransferência: o analista aplicado, organizado por Cintra, Tamburrino e Ribeiro (2017).
6A ideia de new beginning foi preconizada por Balint (1932/1994) e popularizada na escola inglesa - e entre nós - por Winnicott (1954/2000).
7Recordo ao leitor o provocador artigo de Jurandir Freire Costa (2000) intitulado O mito psicanalítico do desamparo.
8"O feto preferiria muito permanecer ainda na quietude do corpo materno, mas é implacavelmente posto no mundo [...]" (FERENCZI, 1913/1992, p. 52).
9Metáfora inspiradora para o título sugestivo do livro de Nicolas Abraham e Maria Torok (1995), A casca e o núcleo, dedicado ao desenvolvimento das hipóteses ferenczianas.
10Vale notar que a psicanálise com crianças praticada por von Hug-Hellmuth, Melanie Klein e Anna Freud iniciara essa ampliação da prática psicanalítica, bem como a adaptação do setting clássico às necessidades dessa modalidade clínica.
11"Introjeção", de acordo com Ferenczi (1909/1991, 1912/1991).
12Curiosamente, nem Ferenczi nem Winnicott, os dois alvos maiores dessa crítica, tiveram filhos.