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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.41 no.40 Rio de Jeneiro jan./jun. 2019

 

ARTIGOS

 

A eleição de líderes totalitários no século XXI: uma leitura freudiana

 

The election of totalitarian leaders in the 21st century: a Freudian reading

 

 

Monique Marques Longo*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Freud, em 1914, postulou um tipo de escolha de objetos libidinais como apoio ou anaclítico determinado pela semelhança com o pai protetor ou com a mãe que o alimentou. Em 1921, o autor complementou expondo que também as escolhas de líderes que elegemos ao longo de nossas vidas, os quais produzem homogeneidade às massas, são frutos de uma transferência de sentimentos e idealizações àquele que instauramos como Ideal de Eu. Este artigo tem como objetivo traçar um diálogo entre a psicanálise e filósofos políticos visando pensar as vicissitudes psíquicas de sujeitos que elegem líderes de características totalitárias a despeito de toda a ameaça que representam aos sistemas democráticos de governo.

Palavras-chave: Narcisismo, Ideal de Eu, Governos Totalitários, Filosofia Política.


ABSTRACT

Freud in 1914 postulated a kind of choice of libidinal objects as support or anaclitic determined by the resemblance to the protective parent or to the mother who fed him. In 1921, the author added that the choices of leaders we elect throughout our lives, which produce homogeneity for the masses, are the result of a transference of feelings and idealizations to the one we establish as the Ego Ideal. Aiming at setting a dialogue between psychoanalysis and political philosophy in order to think about the psychic vicissitudes of subjects who elect political leaders with totalitarian characteristics despite all the threat they pose to democratic systems of government.

Keywords: Narcissism, Ego Ideal, Totalitarian Governments, Political Philosophy.


 

 

1. Introdução

Mesmo após assistirmos as atrocidades provocadas pelas grandes guerras, onde uma parte da população foi dizimada em função de determinada ideologia de estado, conhecemos, na atualidade, sujeitos que defendem o retorno a regimes de governo fascistas. Observamos, em pleno século XXI, políticos em todo o mundo defenderem a intervenção militar, a repressão das massas, o fim da liberdade de expressão, a desigualdade de salários entre homens e mulheres, a exoneração de professores que fomentam a reflexão crítica em sala de aula, dentre outros discursos que bem caracterizam sistemas totalitários de governo. À primeira vista, tal fato parece inexplicável se relembramos, por exemplo, os episódios de extermínio promovidos pela Segunda Guerra Mundial ou os massacres cometidos pós-golpe militar em 1964, no Brasil.

Freud em 1921, ao salientar possíveis atravessamentos da formação psíquica nas vicissitudes sociais, e vice-versa, advoga que os laços emocionais constituem a essência dos laços sociais. As massas se agrupariam "por um poder de alguma espécie; e a que poder poderia essa façanha ser mais bem atribuída do que a Eros?", questiona Freud (1921/2006, p. 117).

O texto retomará uma discussão já levantada por precedentes filósofos (ADORNO, 1951; ADORNO; HORKHEIMER, 1985) e por psicanalistas (CROCHIK 1996, 1999; PEDROSSIAN, 2008; HOFFMAN; BIRMAN, 2018),

o que ratifica a relevância dos constructos teóricos da psicanálise para a compreensão de vicissitudes políticas atuais. No entanto, este artigo visará apresentar inéditas reflexões a partir de um possível diálogo entre as reflexões freudianas e as apresentadas por filósofos que se direcionaram a pensar temáticas políticas mundiais após a Segunda Guerra Mundial.

Partiremos da hipótese de que Freud, ao analisar os processos de identificação como possível resolução do Complexo de Édipo - seu correlato o Complexo de Castração - e as escolhas de Ideais de Eu, nos ajuda a compreender possíveis determinantes psíquicos no que toca à eleição dos líderes aos quais outorgamos autoridade no decorrer de nossas vidas.

No que concerne às contribuições freudianas, portanto, buscaremos neste artigo apresentar: (1) a concepção freudiana de narcisismo e sua influência nas escolhas objetais libidinais; (2) as vicissitudes do processo de identificação como sustentação dos mecanismos de inserção do sujeito na cultura; (3) a identificação com nossos progenitores como superação do Complexo de Édipo/ Castração; (4) a formação das massas como mecanismo de agrupamento de sujeitos individuais a partir das escolhas dos seus líderes; e (5) as múltiplas escolhas de Ideal de Eu que realizamos como preponderantes na constituição individual psíquica e social. Nos aportaremos teoricamente, neste primeiro momento, portanto, nos textos Introdução ao narcisismo de 1914, Psicologia das massas e análise do Eu de 1921 e O mal-estar na civilização de 1930.

Num segundo momento, visando discutir peculiaridades dos sistemas totalitários, nos ancoraremos nas contribuições produzidas pelos filósofos Eduardo Jardim (2011), Nadia Souki (2001) e Hannah Arendt (1978/2008). Focaremos nossas reflexões nas implicações produzidas, no sujeito contemporâneo, pela perda da autoridade das instituições Igreja, Família e Escola que, durante o período moderno, sustentavam esse lugar do pai/autoridade e permitiram a afirmação da violência - repressão como mote da organização social.

Os escritos apresentados pelos referidos filósofos trouxeram para o debate as vicissitudes da chamada pós-modernidade. Um diálogo entre a psicanálise freudiana e a filosofia política nos pareceu profícuo para pensarmos a emergência de discursos totalitários de governo em nível mundial, na atualidade. A reflexão proposta pelo artigo, portanto, mostra-se urgente e necessária.

 

2. Os conceitos de narcisismo, Ideal de Eu e a função do pai em Freud

A despeito de Freud já ter se referido à temática do narcisismo em Três ensaios sobre a teoria sexual (1905/2006) e, em 1911 quando discutiu O caso Schreber, é em 1914 que o psicanalista apresenta uma obra exclusivamente focada em tal temática. O texto Introdução ao narcisismo faz alusão ao mito grego de Narciso e se direciona a duas principais temáticas: (1) discorrer sobre as consequências de um possível apaixonamento pelo próprio corpo, inicialmente compreendido como sintoma perverso e posteriormente como estruturante de todo aparelho psíquico, e (2) discutir o conceito de Ideal de Eu que, posteriormente, em 1923, utilizará como aporte teórico para postular o conceito de SuperEu.

Freud, no texto de 1914, relembra os conceitos postulados inicialmente por Havelock Ellis em 1898 ao refletir sobre o mito de Narciso e por Paul Näcke, em 1899, ao visar compreender a fixação de grau extremo do sujeito em seu próprio corpo. No decorrer da obra, no entanto, Freud se ocupa de argumentar em favor de um distanciamento da ideia proposta pelos precedentes - de que características narcísicas seriam exclusivas dos psicóticos, algo defendido por ele mesmo em 1910 e 1911. O autor passa a considerar o narcisismo segundo algumas manifestações em: (1) homossexuais, (2) neuróticos como resistência ao trabalho analítico, (3) nos sintomas megalomaníacos dos esquizofrênicos quando a libido é retirada dos objetos para seu próprio eu e (4) em crianças e povos primitivos quando há supervalorização dos próprios desejos e pensamentos.

Desta forma, Freud infere certo grau de normalidade aos aspectos narcísicos no desenvolvimento humano. Defende, de forma inédita, que apenas uma parte da libido é investida nos objetos, e não totalmente como expunha anteriormente. Segundo Gomes (2017, p. 102), Freud agora fala que "a libido, originariamente investe o próprio eu, e que parte deste investimento permanece ligada ao eu, mesmo quando se estabelecem fortes investimentos objetais".

A partir dessa obra, podemos pensar que existiria uma certa oposição entre libido do eu e a libido do objeto. Freud (1914/2006) expõe que quando nos apaixonamos por alguém há um investimento máximo da libido no objeto e, consequentemente, uma diminuição da libido pelo eu. De forma oposta, encontramos, por exemplo, a diminuição da libido em objetos externos nos hipocondríacos ou sujeitos que apresentam alguma doença física onde as energias direcionadas ao próprio corpo e a retirada da libido de objetos de amor aparecem como um certo mecanismo de autopreservação e cura.

A fixação no próprio corpo seria característica, portanto, de uma fase inicial de investimento da libido de todos os humanos. O narcisismo, ressalta Freud (1914/2006, p. 81) "não seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação, que, em certa medida, pode justificavelmente ser atribuído a toda criatura viva". Neste estágio primeiro de atuação da libido, as satisfações auto eróticas são vivenciadas em conjunto com as funções de autopreservação para, posteriormente, serem direcionadas a um objeto externo.

Num segundo momento, portanto, as pulsões sexuais direcionam-se ao objeto que produz prazer, mantendo, no caso, características narcísicas: almeja-se a mãe, ou sua substituta, que o alimenta e cuida. Freud caracteriza este tipo de objeto como de apoio e influenciará as subsequentes escolhas objetais no decorrer da vida. Nos apaixonaremos por alguém próximo ao nosso pai que nos protege ou a nossa mãe que nos cuida e alimenta.

Colateralmente a este tipo de escolha, Freud (1914/2006) postula um segundo, conceituado como narcísico e acontece quando nos apaixonamos segundo o modelo de nossa própria pessoa. A escolha narcísica do objeto de amor se direcionaria àquele que se assemelharia a ele próprio, ou seja, (1) ele amaria a si mesmo; ou (2) alguém que ele foi no passado; ou (3) alguém semelhante a quem gostaria de ser num futuro, ou (4) a pessoa que foi uma parte do eu, geralmente um filho que pariu.

Na terceira parte da obra Introdução ao narcisismo (1914/2006), Freud se direciona a discutir possíveis vicissitudes pelas quais o narcisismo infantil sofre perturbações potencialmente desestruturantes do Eu. A análise do Complexo de Castração - medo/ansiedade e inveja a respeito do pênis - torna clara a ideia de que ao perceber impossível a realização dos desejos ocultos pelos progenitores, a criança resolve identificar-se com algum deles como uma possível solução aos seus desejos incestuosos rechaçados culturalmente.

Ressalta Freud (1914/2006) que a passagem pelo Complexo de Édipo - e seu correlato o Complexo de Castração - produz o recalcamento das moções pulsionais libidinais quando vão de encontro às representações éticas e culturais. A resolução das pulsões sexuais direcionadas aos pais resulta na formação de Ideais de Eu pelos quais o sujeito passa a medir seu eu atual, parâmetro que, por auto respeito exige o redirecionamento das pulsões inconcebíveis por um SuperEu em formação. Ressalta Gomes que

para este eu ideal vale agora o amor por si mesmo, desfrutado na infância pelo Eu Real. O narcisismo se mostra deslocado para este novo eu ideal, o qual se encontra, como o infantil, de posse de todas as perfeições valiosas. Quando o ser humano não pode mais reter a perfeição narcísica de sua infância, ao ser perturbado por repressões e despedaçado pelo seu próprio julgamento, ele a procura reconquistar na sua nova forma de Ideal de Eu. O que ele projeta diante de si como seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância, no qual ele era seu próprio ideal (GOMES, 2017, p. 108-109).

Freud compara a identificação com a incorporação oral de um objeto pulsional. A ação de identificação seria equivalente, afirmam Guimarães e Celes (2007, p. 343), "a uma ação canibalística. Identificar-se com um objeto é devorar o objeto, colocá-lo dentro de si. Originariamente, a identificação representa a introjeção dos primeiros objetos da pulsão sexual, os pais".

Posteriormente, no texto Psicologia das massas e análise do Eu (1921/2006), Freud prolonga a metáfora da escolha objetal. O psicanalista postula que não são apenas os pais, os idealizados pelos sujeitos. As escolhas de líderes que realizamos ao longo de nossa vida, que fomentam a união e dão homogeneidade às massas, e aos quais outorgamos autoridade, são frutos de uma transferência dos sentimentos e idealizações àquele que instauramos como Ideal de Eu.

Ao desenvolver argumentos sobre as causas que nos levam a unir-nos a determinados grupos e não a outros, Freud desenvolve as questões que balizam os processos de identificação, ressaltando três tipos. Além do tipo de identificação primária - já exposta aqui quando os sujeitos concluem a fase do Édipo assemelhando-se com algum dos seus progenitores -, Freud categoriza também a identificação das neuroses como processo de formação dos sintomas. Nesse tipo de identificação, a criança desenvolve o mesmo tipo de sintoma de um dos seus pais, isto é, absorve um só traço do objeto através de um processo de regressão. Num terceiro tipo, Freud caracteriza a identificação que não envolve investimento libidinal direto, mas baseia-se no desejo de se colocar na mesma situação que o Ideal elencado.

Freud, ao discorrer sobre as saídas possíveis à passagem pelo Édipo, se direciona a pensar o caminho percorrido pela libido rumo a se transformar em identificação, isto é, como os traços do objeto de amor passam de desejados a introjetados no Eu. Podemos inferir que a identificação se operacionaria como uma "forma original de laço emocional com um objeto que se apresenta, regressivamente, como sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal" (FREUD, 1921/2006, p. 135). O sujeito, ao invés de tê-lo - já que impossível - introjetaria o objeto no ego.

Tal processo ocorreria em momentos ulteriores da vida quando ratifica-se a impossibilidade de satisfação pulsional ou quando evidenciam-se características prévias semelhantes a outrem. Evidencia-se agora que a identificação decorre também, afirma Freud (1921/2006, p. 136), quando se percebe "qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é objeto de instinto da pulsão sexual".

Podemos dizer, então, que os grupos se formam a partir da percepção de semelhanças entre os seus componentes, e dentre essas semelhanças, sobretudo, há a escolha comum de seu líder, a quem algumas renúncias são feitas. Aprofunda Freud expondo

Já começamos a adivinhar que o laço mútuo existente entre os membros de um grupo é de natureza de uma identificação desse tipo, baseada numa importante qualidade emocional comum, e podemos suspeitar que essa qualidade comum reside na natureza do laço com o líder (FREUD, 1921/2006, p. 136).

A escolha do líder do grupo implica a renúncia do Ideal de Eu, individual, em prol de um Ideal comum - o líder - que passa a ser idealizado. O que favorece a coesão do grupo é a identificação recíproca com esse Ideal e a quem se outorga autoridade e submissão, assim como era com o pai durante a infância e na passagem pelo Complexo de Édipo.

A relação com o líder e com os demais membros do grupo é de natureza libidinal. No entanto, é precisamente a inibição ou a dessexualização desses impulsos que possibilita a ligação entre os membros. A posição de autoridade do líder, assim como a manutenção dos laços entre os "irmãos", exige renúncia à independência, à liberdade de escolhas e à autonomia. Relembra Freud (1930/1976, p. 130) que "para que esses objetivos sejam realizados, faz-se inevitável uma restrição à vida sexual".

O líder apresenta um efeito hipnótico no sujeito, o que faz com que este mostre características dissonantes das que individualmente apresenta. Entre os demais integrantes da massa, o sujeito pode expor a diminuição da capacidade intelectual, a falta de independência, semelhança de reações com os demais, falta de controle emocional e a intensificação de emoções. Com a limitação do narcisismo individual, a vontade do grupo passa a prevalecer sobre os demais e, ressaltam Guimarães e Celes (2007, p. 343), "a instauração do líder como Ideal de Ego faz com que cada membro do grupo sacrifique suas pretensões narcísicas sob a eminência de ter a proteção do pai - a figura do líder ideal". Freud (1921/2006) relembra que é assim na Igreja, onde os irmãos almejam o amor irrestrito do Pai maior na medida em que o respeita e introjeta sua perfeição, da mesma forma nas relações inerentes ao Exército quando as patentes impõem respeito aos hierarquicamente inferiores.

Freud recorre posteriormente ao mito da horda primitiva para explicar as características misteriosas e coercitivas das formações grupais e dos fenômenos de sugestão que as acompanham. Ressalta Freud (1921/2006, p. 138) que

O líder do grupo é ainda o temido pai primevo; o grupo ainda deseja ser governado pela força irrestrita e possui uma paixão extrema pela autoridade; na expressão de Le Bon, tem sede de obediência. O pai primevo é o ideal do grupo, que dirige o ego no lugar do ideal de ego (FREUD, 1921/2006, p. 138).

No entanto, para que existam as semelhanças é necessário haver os diferentes. A coesão entre membros de uma massa exige a repressão do ódio entre semelhantes e seu direcionamento aos dissonantes, processo conceituado por Freud (1930/1976) como narcisismo das pequenas diferenças. Odeia-se aquele que não pertence à coletividade, agride-se muitas vezes aquele que apresenta traços dissonantes. O sujeito torna-se intolerante em prol da manutenção do grupo. Supervaloriza-se uma identidade coletiva e reconhecem-se as diferenças no outro apenas quando interessam à homogeneização dos integrantes da massa, como se todos os seus integrantes fossem perfeitamente iguais. "É sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade", expõe Freud (1930/1976, p. 136).

Em certos indivíduos, que ainda preservam um certo grau do narcisismo infantil, a projeção da sua suposta perfeição no líder é favorecida. Em muitos indivíduos, afirma Freud (1921/2006, p. 139)

A separação entre o ego e o ideal de ego não se acha muito avançada e os dois ainda coincidem facilmente; o ego amiúde preservou sua primitiva autocomplacência narcísica. A seleção do líder é muitíssimo facilitada por essa circunstância. Com frequência precisa apenas possuir as qualidades típicas dos indivíduos interessados sob uma forma pura, clara e particularmente acentuada, necessitando somente fornecer uma impressão de maior força e de mais liberdade de libido. Nesse caso, a necessidade de um chefe forte frequentemente o encontrará a meio caminho, e o investirá de uma predominância que de outro modo talvez não pudesse reinvindicar. Os outros membros do grupo, cujo ideal do ego, salvo isso, não se haveria corporificado em sua pessoa sem alguma correção, são então arrastados com os demais por ‘sugestão’, isto é, por meio da identificação (FREUD, 1921/2006 p. 139).

À luz dessas reflexões tornam-se compreensíveis os episódios de intolerância religiosa e política visíveis na atualidade e que, na história da humanidade, apresentaram-se recorrentes e letais. Desta forma, fica claro também, que sujeitos cujo psiquismo ainda preserva certo grau do narcisismo infantil, adultos que desconsideram seu desamparo e castração, são os mais suscetíveis aos processos irrestritos de idealização - fruto de uma suposta perfeição fantasiada e inconscientemente projetada nos seus líderes escolhidos.

 

3. A perda das autoridades modernas: o vazio do desamparo

Em sua obra A vida do espírito, a filósofa Hannah Arendt (1978/2008) se direciona a pensar a crise de certas instituições sociais, consideradas até o século XIX autoridades sociais, e que, consequentemente, balizavam o agir humano. Segundo a autora, o início do período moderno é marcado pela crise eclesiástica gerada pelo movimento reformista do século XVII, pela descoberta de novos continentes que, por sua vez, ratificaram o movimento imperialista e pela invenção do telescópio quando Galileu revoluciona as concepções de conhecimento e homem etnocentricamente, até então, determinadas.

Foucault (1988/1999) vai se aprofundar na questão ao se direcionar aos atravessamentos que a modernidade traz à sexualidade humana. O filósofo discorre sobre as consequências destes mesmos movimentos no esfacelamento da autoridade das instituições modernas que até então balizavam os parâmetros epistemológicos, as concepções de verdade e os valores axiológicos definidores da relação do sujeito com sua sexualidade. A família tradicional, a Igreja e a escola, que até a modernidade eram consideradas autoridades epistemológicas, passam a ser questionadas e destituídas como base axiológica e parâmetro da relação do homem com seu corpo.

Para Arendt (1978/2008), portanto, o esfacelamento da autoridade destas instituições desequilibrou as bases sobre as quais os parâmetros da tradição se sustentavam, deixando "a população destituída de um lugar no mundo". A exacerbação desta experiência solitária passou a ditar as bases do processo de alienação popular. Sem os pilares da tradição que sustentavam o seu pertencimento a um tempo e espaço específicos, a população passa a vivenciar uma "forma extrema de desamparo" ressalta Jardim (2011, p. 37).

Esta profunda experiência de solidão, de forma exacerbada, passa a ser o alvo central da doutrinação ideológica instaurada pelos regimes ditatoriais. A violência promovida pelos Estados totalitários e reverberada pela própria população que passa a ser manipulada, não decorre da força da sua autoridade, como previamente se pensou, mas justamente da crise da autoridade das tradições.

Aportada na perspectiva arendtiana, a filósofa e também psicanalista Nadia Souki (2001) busca compreender as confusões terminológicas que se construíram em torno do termo autoridade na atualidade. Para Souki, as constantes indistinções feitas entre os termos "autoridade" e "autoritarismo" não são apenas fatores da sua crise no mundo moderno, mas, sobretudo, sintomáticas de seu obscurecimento na arena política.

O termo autoridade é tratado como sinônimo de autoritarismo, palavra-chave rechaçada, sobretudo, no campo político pelos defensores do fim da tradição. Os entusiastas da modernidade, pondera Souki (2001, p. 126), "com seu acento sobre a racionalidade, pregam que a tradição é inútil e sem valor, baseados na suposição de que a modernidade será obtida quando a tradição for destruída e suplantada". Segundo a psicanalista, o que não fica claro, para tais pensadores, são as distinções existentes entre a autoridade, tradição e o poder legítimo. Nem sempre o poder legítimo tem autoridade e, muito menos, deriva da tradição. O poder instituído pode tê-lo alcançado pela manipulação e/ou pela violência, algo incompatível com a autoridade em seu significado arendtiano.

Souki (2001) pondera que as indistinções feitas entre poderes autoritários e tirânicos não são apenas confusões terminológicas, desatenção semântica. Eleger candidatos que prerrogam práticas totalitárias, como foi o caso do Stalin na antiga URSS, de Hittler na Alemanha e de Mussolini, na Itália, é sintomático de um período marcado por uma perda de sentido da política e uma crise dos poderes que a aportavam.

O que a obra de Souki (2001) nos chama a atenção é que a autoridade não tem consistência ontológica. São as concepções historicamente compartilhadas acerca do que se considera ser a autoridade que sofreram modificações ao longo do tempo. O termo "ganhou novas roupagens", mas não desapareceu da vida política. Até porque, ressalta Souki (2001, p. 129) "não é possível conceber uma comunidade humana ou uma ordem política na qual a tradição e a autoridade não estejam presentes". Relembra-nos que "a função simbólica da lei é estruturante do próprio aparelho mental humano e, por consequência, também da vida em comum" (Souki, 2001, p. 127).

As regras, as normas e a instituição superior por meio da qual a lei nos é introjetada não são incompatíveis com um suposto aparelho psíquico regido pelo princípio do prazer. Ao contrário, os limites impostos aos desejos e pulsões, consideradas inicialmente irreprimíveis por Freud, vão ao encontro da instância moral do SuperEu; como afirma Freud em Além do princípio do prazer (1920/2006).

As regras, as normas e a autoridade que as instituem não desaparecem nem da vida humana nem, consequentemente, da vida política. Os significantes socialmente compartilhados acerca destas instâncias morais é que se modificaram, abrindo espaço para toxicomanias, ideologizações, para o consumismo exacerbado e o fanatismo religioso e político, como é o caso de sujeitos que idealizam seus candidatos. Discurso semelhante ao do Pai que protege a "família" e garante alimento ao filho que obedece, ou do slogan do desenvolvimento econômico e higienização racial de uma nação - utilizado por líderes europeus no período das grandes guerras.

 

4. Um diálogo entre a psicanálise freudiana e a filosofia política: candidatos totalitários como projeção de um narcisismo infantil?

A crise da autoridade religiosa, o descrédito na racionalidade humana e as ameaças promovidas pelas bombas atômicas no século XX desestabilizaram os valores sob os quais as autoridades instituídas se instauravam. Como já exposto por Arendt (1978/2008) é deste vazio - lugar do Pai originalmente perdido - que se utilizou e se utilizam os regimes ditatoriais cujas bases, corrobora Souki (2001, p. 128), são "decorrente da perda da capacidade de pensar e julgar".

Os textos freudianos de 1914, 1921 e 1930 nos ajudaram a corroborar a ideia de que as escolhas dos líderes políticos aos quais outorgamos autoridade são determinadas pelas concepções de Ideal de Eu que formulamos no decorrer de nossos processos identificatórios, ao longo da vida. Sendo os progenitores os primeiros objetos pulsionais idealizados e alocados no lugar de Ideal de Eu - e como saída possível do Complexo de Castração - as marcas identificatórias destes, de alguma forma, acabam por constituir os parâmetros por meio dos quais elencamos os demais Ideais no decorrer de nossas vidas. Relembraram-nos Guimaraes e Celes (2007, p. 343), que "a instauração do líder como Ideal de Ego faz com que cada membro do grupo sacrifique suas pretensões narcísicas sob a eminência de ter a proteção do pai - a figura do líder ideal".

O narcisismo constitui uma fase inicial de investimento da libido de todos os humanos, mecanismo de autopreservação, não apenas dos pervertidos ou homossexuais. É a passagem do Édipo, e a resolução do seu correlato o Complexo de Castração, que vai oferecer ao sujeito a possibilidade da desconstrução das nossas visões narcísicas de mundo e práticas egocêntricas de nos relacionarmos com o Outro. É justamente a passagem pelo Édipo que nos oferece o necessário conhecimento acerca da importância de nos descentrar, questionar, assim como a possibilidade de encarar o desamparo que nos constitui enquanto humanos.

Em prol da proteção do suposto pai e da segurança promovida pelo pertencimento ao grupo abrimos mão de nossa individualidade, capacidade intelectual, de nossos parâmetros e de nosso Ideal de Eu, particulares. Em prol do grupo, rechaçamos o diferente, somos intolerantes com o excêntrico, agredimos o outro que nos apresenta outras formas de pensar, agir e se posicionar no mundo. Somos etnocentricamente determinados psíquica e socialmente.

Nesse sentido, parece que escolher líderes políticos de características totalitárias, que nos ofereçam total proteção, - uma proteção fantasiosamente irrestrita, mas sim impossível - parece ir ao encontro das nossas necessidades infantis, de amparo e amor incondicional a qualquer custo. Inclusive se o custo for dizimar o "irmão", o concorrente, o diferente, o negro, o pobre, o gay, a mulher, o nordestino, o judeu...

E assim caminhou a humanidade....

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 02/08/2018
Aprovado para publicação em: 12/02/2019

Endereço para correspondência
Monique Marques Longo
E-mail: moniqueml@globo.com

 

 

*Psicopedagoga. Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Membro Associado em Formação do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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