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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.42 no.42 Rio de Jeneiro jan./jun. 2020

 

ARTIGOS

 

Do traumático ao viver criativo: narrativas sobre psicanálise e Primo Levi

 

From traumatic to creative living: narratives about psychoanalysis and Primo Levi

 

 

Bibiana Massem HomercherI*; Silvio Augusto Lopes IensenI**

IUniversidade Franciscana - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo contempla a investigação do traumático em narrativas testemunhais de Primo Levi. A proposta consiste em investigar e interpretar o traumático da obra Os afogados e os sobreviventes de Primo Levi, com aportes teóricos da Psicanálise. Os resultados apontam para uma profunda relação entre o traumático em psicanálise e a obra de Levi, observada na literatura de testemunho, da memória, do corpo e da criatividade. Conclui-se que a psicanálise tem muito a contribuir com a temática do traumático e literatura de testemunho através de sua perspectiva sobre aquilo que é traumático, no qual é encontrada uma dimensão lacunar e de impossibilidade, que a escrita testemunhal procura simbolizar.

Palavras-chave: Psicanálise, Traumático, Primo Levi, Literatura de Testemunho.


ABSTRACT

The article contemplates the investigation of the traumatic in witness narratives of Primo Levi's work, The Drowned and the Saved. The research is characterized by being of documentary bibliographic nature with psychoanalytical interpretation. The results point to a deep relationship between traumatic psychoanalysis and Levi's work, observed in the literature of testimony, memory, body and creativity. It is concluded that psychoanalysis has much to contribute to the theme of trauma and testimonial literature, through its perspective on what is traumatic in which is found a lacunar dimension and impossibility, which testimony writing seeks to symbolize.

Keywords: Psychoanalysis, Traumatic, Primo Levi, Literature of Testimony.


 

 

1. Introdução

A partir de sua teoria, técnica e método, a psicanálise trabalha com o sujeito do inconsciente no cenário da investigação clínica, e com os discursos do sujeito em análise desenvolve a teoria sobre a constituição do psiquismo humano e das relações do homem no âmbito social. As modificações do sujeito no campo social se refletem na teoria psicanalítica, a qual sofre transformações em sua técnica quando às manifestações do indivíduo aderem conotações ainda não visualizadas na cultura.

Apesar de emergir das análises dos fenômenos do sujeito na clínica, os estudos psicanalíticos vão além. As condições culturais e sociais interferem, por vezes, drasticamente, no setting analítico. Crises econômicas, guerras, transições culturais, rupturas de paradigmas, entre outras situações do campo coletivo, podem gerar novas formas de viver e de estar no mundo, novas subjetividades, e a clínica psicanalítica é parte dessas transformações.

O tema deste artigo contempla tensionar a concepção teórica do traumático em psicanálise com base em testemunhos de um sobrevivente de campo de concentração da Segunda Guerra Mundial. O sobrevivente é o escritor Primo Levi, que foi deportado a Auschwitz em meados de 1944, mas anteriormente já havia sido preso em 1943, com 24 anos, conseguindo a liberdade em 1945. Os escritos são repletos de uma vivência em que a morte é uma espera constante.

Os escritos são testemunhos de uma experiência singular atrelada aos acontecimentos reais. Deixaram marcas infindáveis, em sua subjetividade e, também, na memória social. Os testemunhos trazem o olhar de um sobrevivente perante uma violência de Estado sem precedentes, a qual marcou a história não só da Alemanha, mas também a da humanidade.

A obra de Primo Levi, Os afogados e os sobreviventes (1986), a última obra publicada antes de seu falecimento no ano seguinte, será aprofundada neste trabalho. A temática se torna relevante, uma vez que, pelo testemunho de Primo Levi, a psicanálise pode observar o traumático, pois tanto a perspectiva psicanalítica sobre o traumático e a obra de Levi revelam uma certa incapacidade de representação em relação a eventos de amplitude tão catastrófica (ANTONELLO, 2019; KUPERMANN, 2016). Isso acontece porque o traumático é considerado uma espécie de armazenamento psíquico sem inscrição simbólica, um avesso da memória (MORENO; JUNIOR, 2012).

O artigo visa, por meio da fundamentação psicanalítica, entender o traumático no aparelho psíquico, e posteriormente, perceber cenas traumáticas por intermédio da leitura da obra de Primo Levi. Desse modo, o objetivo é investigar o traumático em psicanálise a partir de extratos do último escrito de Levi, visto que os escritos se oferecem como tentativa de narrar uma experiência indizível (KOLTAI, 2016). O estudo é relevante porque traz o traumático embasado nos testemunhos do autor.

 

2. Referencial Teórico

2.1 Delineamentos sobre trauma e traumático na perspectiva psicanalítica

O vocábulo "trauma", de etimologia grega, está associado à palavra "ferida" (BESSET, et al., 2006; LAPLANCHE & PONTALIS, 2001). Figueiredo (2008) sublinha o trauma ou o traumático remetendo a algo catastrófico, que é contextualizado em uma dimensão das efrações e dos fractais, ou seja, algo que escapa ao campo de uma ordem, de um poder. Neste sentido, pode-se pensar que o conceito de trauma está relacionado a algo que permeia um sentido nomeado como lógico, assim como uma ferida, que seria algo que interrompe um sistema específico, a saber: psíquico.

De acordo com Laplanche e Pontalis (2001) os termos trauma e traumatismo são alinhados como semelhantes; todavia, Klautau; Winograd e Sollero-de-Campos (2016) sublinham algumas distinções entre os termos trauma, traumático e traumatismo. Assim como a palavra trauma remete ao termo grego "ferida", o termo "traumatismo" tem como significado atrelado às consequências do trauma no organismo, ligado a uma violência externa. O terceiro vocábulo, associado aos outros dois, o "traumático", é considerado um acontecimento tão impactante que leva o sujeito a ficar imobilizado sem conseguir reagir.

Freud e Breuer (1893/1974) atribuíram o traumático a uma espécie de situação em que a pessoa é envolvida em um cenário de ameaça à vida, em geral, associada ao corpo. Por exemplo, um trabalhador que é submetido ao golpe de um pedaço de madeira e tem uma ligeira contusão naquele instante, porém não é visualizado algo mais grave, e apenas semanas ou meses depois da cena da contusão nota-se que o braço do trabalhador ficou paralisado, mostrando uma repetição do fenômeno inicial, mas agora de modo mais agravado. O mesmo Freud (1893/1940) propõe com a neurose traumática, em que qualquer cenário vivenciado elucide as mesmas sensações agoniantes de vergonha, angústia e dor psíquica experienciadas na cena originária, assim como o trabalhador que só percebe a consequência da lesão causada por um pedaço de madeira a posteriori do acontecimento; a diferença é que a neurose traumática não seria causada por uma lesão corporal, como no caso do trabalhador.

Ademais, ao discorrer sobre o caso de Emma (cuja queixa é a sua impossibilidade de entrar sozinha em lojas), Freud (1895/1950) visualiza que o recalcamento na histeria acontece em dois tempos, pois ao aprofundar-se no caso, descobriu que Emma remontava a uma lembrança de quando tinha doze anos. Com mais investigações, remete-se a uma memória de quando tinha oito anos (momento em que Emma fora a uma confeitaria e visualizou o proprietário tocando nas partes genitais dele por cima da roupa). Por isso, a análise do caso Emma, por meio da etiologia da histeria, mostra que o trauma acontecera em dois tempos, ou seja, o impacto de que o fenômeno traumático só acontece a posteriori. O traumático não está no primeiro momento, mas sim, no segundo tempo, podendo ser compreendido como danos psíquicos consequentes de um fato traumático advindo de um ataque externo (KLAUTAU; WINOGRAD; SOLLERO-DE-CAMPOS, 2016).

Em consequência dessas análises, Freud (1895/1950) declara rejeição às cenas de sedução como fatos reais, e sim como fantasias, apontando uma realidade ficcional no inconsciente referente a tais cenários sexuais. Passou a elaborar as hipóteses não mais focadas na teoria da sedução e no trauma como etiologia dos sintomas da histeria, mas sim direcionadas à fantasia como fator predominante que influencia, seguidamente, as construções sobre narcisismo, sexualidade infantil e Complexo de Édipo (BESSET, 2006; FERRARI, 2004).

Freud (1895/1950) constata que se recalcam lembranças que só se transformam em vivências traumáticas por uma ação anterior. Na carta 69, designada a Fliess, Freud (1897/1986, p. 13) assevera: "nossos enfermos padecem de reminiscências; seus sintomas são restos e símbolos mnêmicos de certas vivências traumáticas " - comunicando que o sintoma seria uma derivação de algo traumático.

Além disso, Freud (1920/2010) assevera que as neuroses traumáticas e as neuroses de guerra se sobressaíram a partir de desastres, acidentes com risco de vida, e, principalmente, por causa das guerras que estavam acontecendo naquele período. Apontou semelhanças entre a neurose traumática e a histeria. Porém, destacou que seu diferencial se encontraria em uma fragilidade subjetiva, de forma semelhante ao que se observava em uma hipocondria ou em uma melancolia. Em relação à neurose traumática, sinalizou que esta provém de uma circunstância que leva o indivíduo a vivenciar uma sensação de extremo terror e que tal fenômeno é distinto daquilo, até então, observado na histeria.

Freud (1920/2010) também tece considerações acerca de casos que se diferenciam da ideia do princípio do prazer (neuroses traumáticas), visto que em pacientes que sofreram um trauma, essencialmente no contexto de guerra, a dinâmica do princípio do prazer estava fora da questão. O autor percebeu esse fenômeno com a investigação dos sonhos, uma vez que estes ilustram processos psíquicos profundos. Os sonhos que acontecem em uma neurose traumática têm um atributo de levar o doente a retornar ao momento do acidente, renovando o terror. Desse modo, é perceptível uma fixação ao traumático.

Ficou evidente que, para Freud (1939/2018), os traumas são impressões experimentadas pelo próprio corpo do sujeito. O traumático se apresenta como uma vivência de sensações experimentadas primariamente, futuramente esquecidas, mas que influenciam significativamente na etiologia das neuroses. Segundo o autor, traumas considerados etiológicos estão ligados aos sintomas da neurose, além de terem relação com a compulsão do repetir, já que o traumático acontece em dois momentos.

Favero (2009) avalia que, na teoria freudiana, o traumático era a hipótese primordial para o tratamento das neuroses, mas que em 1897 a teoria foi rejeitada diante da observação de que há uma realidade psíquica do indivíduo, um aspecto da fantasia, em que o traumático estava ligado, naquele instante, ao fato concreto de um abuso sexual na infância. Apenas em 1920, Freud retomou a conceituação do traumático, agora por outro viés.

Apesar das oscilações da importância que o traumático manifesta ao longo da teoria freudiana, isso não significa que seu conteúdo seja menos crucial (FAVERO, 2009). Moraes e Macedo (2011) apontaram que Freud não abandonou, em si, a ideia do traumático, apenas deixou de lado a hipótese inicial de que teria origem em uma cena real. Nesse sentido, é desconsiderada uma visão específica a respeito do traumático, gerando uma abertura para que novas teorias fossem manifestadas.

2.2 Breve percurso da literatura de testemunho e suas narrativas sobre o traumático

A literatura de testemunho emergiu em virtude dos eventos catastróficos ocorridos em meados do século XX, principalmente devidos aos genocídios nos campos de concentração, o Shoah1 (DANZIGER, 2007; ANTONELLO, 2019). A partir disso, começaram a surgir narrações de sobreviventes acercadas vivências de extrema violência física e psíquica. Tais relatos reverberaram nos estudos literários, sendo nomeados, incialmente, como Literatura do holocausto, e, posteriormente, como Literatura de testemunho (MACIEL, 2016; ANTONELLO, 2019).

Apesar de ter seus primórdios no genocídio judeu, ao longo do tempo a literatura de testemunho foi se ampliando para além desse episódio catastrófico, agregando também relatos de indivíduos que presenciaram violências e abusos nas ditaduras militares na América Latina. Desse modo, a literatura de testemunho tem sua singularidade fundamentada em testemunhos de pessoas que passaram por condições extremamente traumáticas, ocasionadas por regimes ditatoriais e totalitários (SILVA, 2014; ANTONELLO, 2019).

A literatura de testemunho está além de um gênero, representa a dimensão de um tempo de catástrofes em virtude de sua relação com o "real", transpondo a ideia de que a literatura seria uma espécie de imitação. Este "real" não está ligado com o que é nomeado de realidade, e sim com algo que resiste à simbolização, que pode ser compreendido com a ideia de trauma, como uma espécie de perfuração ou ferida que não se fecha (SELIGMANN-SILVA, 2003).

Conforme Benjamin (1994), o diferencial da narrativa da literatura de testemunho é que não está ligada ao objetivo de proporcionar informações e explicações sobre algum cenário. O caráter singular das narrações acontece, justamente, porque evitam noticiar algo, abrindo espaço para interpretações subjetivas a respeito daquilo que é narrado e, em consequência, o cenário da narração não se perde, sua tenência é desenvolver-se e trazer novos olhares. Com isso, a literatura de testemunho está atrelada a um modo de narração.

Um dos escritores mais significativos da literatura de testemunho é o químico italiano Primo Levi, que foi deportado para Auschwitz em 1944. Ele foi um dos pouquíssimos sobreviventes do Shoah e, após o fim da Segunda Guerra Mundial e sua saída do campo de concentração, dedicou suas obras a relatar os horrores que experienciou no Lager2 (LEVI, 1988; RUSSO, 2018). Nas narrativas, principalmente aquelas denominadas É isto um homem? a Trégua e Os afogados e os sobreviventes, testemunham, de modo bastante subjetivo, sua vivência como sobrevivente e sua tentativa constante de simbolizar o traumático (MACÊDO, 2012).

O testemunho é uma tentativa de narrar o traumático, que é indizível, apresentando-se como via de possibilidade para dar voz aos sobreviventes que sofreram violação de seus direitos humanos (MACIEL, 2016). Embora, em geral, o testemunho seja deflagrado por uma situação ocorrida no âmbito da realidade; mesmo quando se trate de uma cena violenta, ele não deve ser visualizado como uma descrição real do fato, uma vez que seu discurso teria caráter ficcional (SELIGMANN-SILVA, 2000). Isso aponta, em primeiro lugar, para a circunstância de que, por ser disruptivo, o testemunho pode (e muitas vezes vai) ser desacreditado enquanto documento.

Já Lacapra (1999) anuncia os conceitos de trauma histórico (uma perda) e trauma estrutural (o trans-histórico relacionado a uma ausência). Para o autor a experiência traumática de uma perda engloba contextos específicos, particulares e é narrada em fenômenos temporais (passado, presente e futuro). Quando existe uma condição que suspende a temporalidade, então ela é nomeada como trans-histórica ou trauma estrutural. Nesse sentido, a perda e ausência não são sinônimas, pois a primeira tem um objeto específico e a segunda não apresenta objeto definido. O Shoah apresenta tanto um trauma histórico, por ser evento localizável no espaço e no tempo, como uma condição trans-histórica que não é localizável. Trata-se, pois, de um desdobramento que tem relação com a angústia diante do que não se pode definir em termos de objeto, ou seja, a própria finitude da existência, que é difícil de ser apreendida em termos de representação.

Agamben (2008) declara que o ato de testemunhar apresenta uma dimensão de impossibilidade, uma lacuna, porque há algo que falta na tentativa de os sobreviventes narrarem pelo outro que perdeu seu lugar de fala. A distância demonstra que testemunhar teria um espaço que sobra, uma função de resto. Desse modo, Kupermann e Barbosa (2016), analisando as obras de Primo Levi, afirmaram que a escrita de testemunho seria uma forma de bordar o traumático.

Para Felman (2000), a psicanálise atua, na escuta clínica, no recolhimento de testemunhos do paciente. Conforme a autora, o testemunho do paciente não é fundamentado em um acontecimento real, em uma verdade absoluta, e sim em um discurso de falha, um testemunho de um não saber, uma verdade que constantemente escapa. Assim, testemunhar é suportar a solidão de seu discurso e aguentar a responsabilidade que advém disso, com a tentativa de transpor o próprio isolamento.

 

3. Metodologia

Este artigo é uma visão sobre a interseção da psicanálise, a partir do conceito de traumático, coma literatura do testemunho. É do escrito de Primo Levi, na obra Os afogados e os sobreviventes de 1986, que se pensa sobre a possibilidade de realizar uma interpretação do traumático. Segundo Iribarry (2003) a compreensão psicanalítica tem um caráter peculiar, porque o (a) pesquisador (a) não ocupa um lugar distante referente ao objeto de estudo, mas, elucida apropriações subjetivas perante suas investigações, evocando o sujeito que pesquisa.

A proposta consiste em criar laços entre o traumático em psicanálise e os relatos de Primo Levi, acerca dos campos de concentração. Será necessário analisar a conceituação de trauma e traumático, a partir de trechos de uma obra desse escritor italiano, que é Os afogados e os sobreviventes.

A obra Os afogados e os sobreviventes foi publicada em 1986, última obra antes do falecimento de seu autor (sendo hipoteticamente ponderado ter sido suicídio) no ano de 1987. Essa narrativa retoma seu primeiro livro É isto um homem, publicado em 1947. No entanto, em Os afogados e os sobreviventes, apresenta sua visão quarenta anos depois do acontecimento (SLAVUTZKY, 2009; MACÊDO, 2012). A obra é uma tentativa de esclarecer circunstâncias consideradas ainda obscuras referentes ao Lager, procurando respostas sobre os horrores acontecidos nos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial (LEVI, 1986/2016).

Primo Levi foi um químico italiano e prestigiado escritor, que decidiu escrever em decorrência de sua experiência em Auschwitz. Levi foi preso em 1943 por estar ligado à resistência contra o fascismo. Ao ser descoberto judeu, foi enviado para o Lager ; em 1944 foi deportado a Auschwitz, localizado na Polônia, onde permaneceu de 1944 até janeiro de 1945, retornando à Itália no mesmo ano de sua libertação, sendo um dos pouquíssimos sobreviventes desse campo de concentração (LEVI, 1988; MONTEIRO, 2014; PEREIRA, 2017). Desejou testemunhar aos outros sobre o Holocausto, e passou a escrever livros, considerados literatura de testemunho (MACIEL, 2016). Em decorrência disso, sua obra contribuiu significativamente para a realização desta pesquisa.

A obra Os afogados e os sobreviventes contém um prefácio, oito capítulos e conclusão. Para o presente artigo foram feitos recortes de cinco capítulos dessa obra que são intitulados: o primeiro capítulo A memória da ofensa ; o segundo, nomeado Zona cinzenta; o terceiro A vergonha ; o quarto Comunicar e o quinto capítulo Violência inútil. Esses capítulos foram especificamente escolhidos em virtude daquilo que abordam.

O primeiro capítulo, A memória da ofensa trata sobre o esquecimento e as possíveis distorções a que a dimensão da memória está atrelada; o segundo capítulo, Zona cinzenta, aborda como o Lager apresentava ambiguidades para além da ideia binária de "bem e mal"; o terceiro capítulo, A vergonha, traz referências em que mesmo você sendo violentado de modo injusto, ainda existe uma culpa que prevalece; o quarto Capítulo, Comunicar, relata as dificuldades de compreensão das diferentes línguas dentro do Lager, justamente a inviabilidade da palavra dentro do campo de concentração; e o quinto capítulo, Violência inútil, demonstra sobre as diversas violências manifestadas pelo totalitarismo e no Shoah que deixaram marcas indeléveis.

 

4. Resultados e Discussões

4.1 As vertentes do traumático na obra Os afogados e os sobreviventes

Nas páginas a seguir, tem-se a possibilidade de realizar uma relação entre recortes sobre as vivências traumáticas da obra escolhida e o cruzamento com autores que tratam da literatura de testemunho e do traumático sob o olhar psicanalítico. Será visualizado, também, se Primo Levi seria considerado uma verdadeira testemunha dentro do campo da literatura de testemunho, além de iniciar os aprofundamentos daquilo que seria traumático em sua obra.

Maciel (2016) assevera que a literatura de testemunho pode vir a ser compreendida como um modo de recriação de um universo fundamentado em vivências de sujeitos que experienciaram, de alguma maneira, um fenômeno histórico. Para a autora, as narrativas testemunhais são uma tentativa de reconstrução de um mundo fundado pelo escritor, manifestando um contexto traumático e inenarrável.

Repito, não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas. Esta é uma noção incômoda, da qual tomei consciência pouco a pouco, lendo as memórias dos outros e relendo as minhas muitos anos depois. Nós, sobreviventes, somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo. Quem o fez, quem fitou a górgona, não voltou para contar, ou voltou mudo (...) (LEVI, 1986, p. 66).

Neste recorte, Levi enfatiza que as verdadeiras testemunhas não são os sobreviventes, mas, aqueles que não conseguiram narrar os acontecimentos, ou que não sobreviveram para testemunhar. Apesar disso, para Agamben (2008) Primo Levi é a testemunha mais autêntica. No Latim, há dois vocábulos para indicar testemunho: testis (tem como sentido aquele que se posiciona como terceiro) e supersters (aquele que teve atravessamentos de um evento). O autor ressalta que Levi é um supersters, porque não é um terceiro, mas que isso também exprime que o testemunho não está atrelado a fatos, porque não é neutro em relação ao episódio.

Seligmann-Silva (2000) destaca que o testemunho está incluso em uma dimensão complexa da memória. Narrar o trauma é circular em uma memória de um passado que repetidamente volta, um passado sempre presente. O sobrevivente, por ter uma vivência no avesso do campo simbólico, reagirá de modo a estranhar o mundo após a catástrofe, sendo por intermédio da imaginação que elucida na literatura uma tentativa de representar o traumático. Compreende-se que mesmo que a atitude de narrar o traumático circule entre a imaginação e o excesso de real, e que Levi não se considere uma autêntica testemunha, percebe-se esse caráter tão peculiar da literatura de testemunho, atravessamentos singulares do autor em relação a sua memória acerca do traumático.

O mar de dor, passado e presente, nos circundava, e seu nível subia de ano em ano até quase nos fazer submergir. Era inútil fechar os olhos ou virar-lhe as costas, porque estava inteiramente em torno de nós, em toda direção até o horizonte. Não nos era possível, nem quisemos, ser ilhas, entre nós, os justos, nem mais nem menos numerosos do que em qualquer outro grupo humano, experimentaram remorso, vergonha, dor - em resumo, pelo crime que outros, e não eles, tinham cometido, e no qual se sentiram envolvidos, porque sentiam em tudo quanto acontecera em torno deles, em sua presença, e neles, era irrevogável. Jamais poderia ser cancelado, demonstrava que o homem, o gênero humano, nós, em suma, éramos potencialmente capazes de construir uma quantidade infinita de dor, e que a dor é a única força que se cria do nada, sem custo e sem cansaço. Basta não ver, não ouvir, não fazer (LEVI, 1986, p. 68).

Verifica-se que a vivência no Lager era repleta de uma imersão de dor, um mergulho em um sofrimento infindável. Laplanche e Pontalis (2001) asseveram que o traumático seria um episódio, na vida do indivíduo, de intenso afeto, diante do qual o sujeito não consegue reagir de um modo mais pertinente, podendo produzir efeitos patológicos duradouros no aparelho psíquico. Sendo assim, o traumático seria um fenômeno desencadeado por um acontecimento de afluxo de excitações intoleráveis à organização psíquica, fazendo com que o aparelho reaja contra investimentos. Por suplantar uma carga excessiva de emoções, promove uma efração (o trauma). Então, a vivência do Shoah é uma espécie de engolfar-se em um excesso de excitações intoleráveis, gerando um fractal, uma ruptura no psíquico. O sujeito encontra-se totalmente imobilizado perante tal fenômeno, não encontrando subsídios simbólicos para tratar com o traumático.

Segundo Betts (2018), as vivências traumáticas não têm espaço no campo simbólico, ficam à mercê da vida psíquica, encapsuladas, podendo gerar consequências degradantes para o sujeito. Desse modo, a literatura de testemunho se faz caminho para a reparação psíquica; tentativa de encontrar um ambiente de escuta e de acolhimento perante o outro; meio de canalizar e de transmitir uma experiência traumática.

Era um sinal: para eles, não éramos mais homens, conosco, como com vacas ou mulas, não havia diferença substancial entre o berro e o murro. Para que um cavalo corra ou pare, mude de direção, puxe ou pare de puxar, não é preciso negociar com ele ou dar-lhe explicações minuciosas; basta um dicionário constituído de uma dúzia de signos diferentemente combinados mas unívocos, não importa se acústicos, táteis ou visuais: tração das rédeas, aguilhão das esporas, gritos, gestos, golpes de chicote, estalos dos lábios, pancadas no dorso tudo serve igualmente (LEVI, 1986, p. 73).

Nesse recorte testemunhal, fica visível a despersonalização da humanidade dentro do Lager. Eles não eram mais humanos, não tinham um lugar no campo social, estavam abandonados sendo a violência física algo constante. Birman (2012) assevera que o traumático seria um reflexo de algo que é inevitável. Assim, o excesso de violência corporal demonstra a inevitabilidade de construir fontes simbólicas para tratar com a dimensão traumática.

Kupermann (2008), assegura que o que define se algo terá um valor traumático ou não para o sujeito está associado ao desenvolvimento da criança, essencialmente, na relação da criança com o adulto, pois é o outro que estimula a construção de sentido na criança, principalmente em momentos de experiência de dor que necessitam de uma via simbólica. Quando não há esse olhar de reconhecimento, o trauma se transforma em algo patogênico, e a circunstância definida, para isso, seria o abandono. Para o autor, o abandono (traumático) geraria o sofrimento psíquico. Quanto a Levi, ele destaca o abandono dentro do Shoah, por estar em um ambiente de perda de reconhecimento perante o Estado, a sociedade, a civilização. Não eram considerados mais humanos, já não se constituíam seres de laços de cultura, pois havia sido este o espaço de um "não lugar".

Na memória de todos nós, sobreviventes, sofrivelmente poliglotas, os primeiros dias de Lager ficaram impressos sob a forma de um filme desfocado e frenético, cheio de som e de fúria, e carente de significado: um caleidoscópio de personagens sem nome, nem face, mergulhados num contínuo e ensurdecedor barulho de fundo, sobre o qual, no entanto, a palavra humana não aflorava. Um filme em cinza e negro, sonoro, mas não falado (...). Quarenta anos depois, ainda recordamos de forma puramente acústica palavras e frases pronunciadas em torno de nós em línguas que não conhecíamos nem depois aprendemos (...) (LEVI, 1986, p. 75).

Felman (2000) afirma que o ato de testemunhar implica uma surpresa que provém de uma crise inerente. Para a autora essa crise tem relação com o âmbito do traumático, que desafia a possibilidade de representação da linguagem. A literatura de testemunho desestabiliza, deixa lacunas, a surpresa é justamente nas sensações de imprevisibilidade e de impossibilidade de narrar por completo tal acontecimento (FELMAN, 2000; KESSLER; KVELLER, 2017). Nesse sentido, mesmo quarenta anos depois, as recordações dos primeiros dias no Lager ainda sobressaem na memória de Levi. Os detalhes permanecem vivos, presentes, lembranças de um passado que retorna, um passado traumático.

Percebem-se alguns pontos a respeito do ato de testemunhar de um sobrevivente, do fenômeno traumático que circunda na obra Os afogados e os sobreviventes de Primo Levi e por quais motivos intensifica-se o caráter deste escrito como uma literatura de testemunho, sendo repleta de conteúdo traumático. Também se pode visualizar como a recordação traumática é uma experiência sempre presente no psíquico do sujeito que, mesmo quarenta anos depois, ainda permanece viva nesta obra.

4.2 Entre memória, corpo e traumático: o viver criativo na obra Os afogados e os sobreviventes de Primo Levi

Segue-se nas próximas páginas fragmentos no que se considera predominante a questão do traumático relacionado à dimensão da memória, do corpo e interlocuções sobre o traumático e o viver criativo. Ao longo do texto são realizados entrelaçamentos entre o traumático em psicanálise e fragmentos do escrito de Primo Levi.

Quero examinar aqui as recordações de experiências extremas, de ofensas sofridas ou infligidas. Neste caso atuam todos ou quase todos os fatores que podem obliterar ou deformar o registro mnemônico: a recordação de um trauma, sofrido ou infligido, é também traumática, porque evocá-la dói ou pelo menos perturba (...) (LEVI, 1986, p. 18).

A evocação de lembranças traumáticas deflagra um processo doloroso, pois, a memória traumática tem um aspecto literal, a repetição da lembrança é a mesma, em virtude de a expressão do traumático ser um avesso da memória pelo seu caráter do irrepresentável e do impossível (MORENO; JUNIOR, 2012; MALDONADO; CARDOSO, 2009). Segundo Moraes e Macedo (2011), a memória e o traumático mantêm significativa ligação, devido à marca do trauma no psiquismo do sujeito ser de atributo indelével.

Freud (1914/2010) ressalta que a vivência do traumático atualiza-se devido a uma circunstância em que o ego do sujeito se encontra imobilizado para lidar com o fenômeno que, quando é recordado, ocorre em seguida a atualização (a posteriori) das mesmas sensações que tinha experienciado no evento. Desse modo, compreende-se que rememorar uma cena traumática remete a um sofrimento, pela incapacidade do sujeito quanto a simbolizá-lo, mesmo que a memória seja elucidada repetidamente no psiquismo do trauma.

Também é possível entender que a perturbação do traumático é associada a sua recordação constante e real da vivência sofrida pelo indivíduo. Freud (1920/2010) observou o fenômeno nas neuroses traumáticas em que o sujeito é mergulhado em um excesso de afeto, angústia e horror. Conforme Moraes e Macedo (2011), apesar de o trauma não ter uma dimensão representacional, é manifestado no sujeito uma ação que elucida intensas sensações que não são descritíveis simbolicamente.

Na maior parte dos casos, a hora da libertação não foi nem alegre nem despreocupada, soava em geral num contexto trágico de destruição, massacre e sofrimento. Naquele momento, quando voltávamos a nos sentir homens, ou seja, responsáveis, retornavam as angústias dos homens: a angústia da família dispersa ou perdida; da dor universal ao redor; do próprio cansaço, que parecia definitivo, não mais remediável; da vida a ser recomeçada em meio às ruínas, muitas vezes só (LEVI, 1986, p. 55).

Evidencia-se que, mesmo na hora da libertação, os sentimentos que repercutiam não eram de felicidade ou de alívio, devido ao contexto catastrófico, uma vez que a experiência traumática é uma memória do não representável, daquilo que permanece invariavelmente intenso, um afeto sem significado (MORAES; MACEDO, 2011). Então, entender que as angústias de uma vida cotidiana retornam, todavia, é uma sensação de imenso desamparo, devido ao cenário em que se contemplava a libertação depois de um longo período de estado de desolação.

Freud (1930/2010) afirma que o mal-estar invade o psíquico do humano em sua relação com o mundo externo. O indivíduo sofre na cultura devido a algumas circunstâncias, tais como o declínio do corpo, a finitude da existência, e os laços com outros, que consequentemente elucidam sensações de desprazer. Quanto à liberdade do Lager, Levi destaca que retornam as angústias do cotidiano; e em função dos danos sofridos no Shoah, a ideia de recomeçar advém de um lugar de muito desamparo. Então, surge o questionamento: afinal, qual caminho seguir após sobreviver a um cenário demasiadamente catastrófico?

Certamente a lembrança traumática é vigente, mesmo após a libertação do Lager. A autonomia que foi retirada retorna, a sensação não é de euforia, pois o processo de despersonalização do sujeito foi traumático, e nomeá-la situa-se no âmbito no inassimilável. Por isso, a inevitabilidade do retorno ao trauma é o aspecto mais infindável da escrita de Primo Levi. Ela perpassa em suas palavras a dificuldade de remediar as cenas traumáticas que o envolveram ao imergir no campo de concentração (SELLIGMANN-SILVA, 2008). Em decorrência disso, pode-se compreender os obstáculos que o indivíduo encontra para emergir nas angústias de uma vida na esfera social.

A memória é essencial quando se trata da vivência traumática, principalmente na obra de Levi, visto que estase caracteriza por uma busca de compromisso com a memória individual e a social, sendo um atributo ético na narrativa testemunhal (AGAMBEN, 2008; SELLIGMANN-SILVA, 2008). A memória na literatura de testemunho não apresenta o fato real da cena traumática devido ao seu atributo de irrealidade, pois a escrita literária é uma tentativa de representação com o elemento imaginativo. Todavia, o ato de simbolizar não é integral, sua incorporação nunca é completa (SELLIGMANN-SILVA, 2008).

A memória é um instrumento maravilhoso, mas falaz (...). Sabem-no bem os magistrados: quase nunca sucede que duas testemunhas oculares do mesmo fato o descrevam do mesmo modo e com as mesmas palavras, ainda que o fato seja recente e nenhum dos dois tenha interesse em deformá-lo (...). Conhecem-se alguns mecanismos que falsificam a memória em condições particulares: os traumas, não apenas os cerebrais; a interferência de outras recordações "concorrentes"; estados anormais da consciência; repressões, recalques. Todavia, mesmo em condições normais, desenrola-se uma lenta degradação, um ofuscamento dos contornos, um esquecimento por assim dizer natural, a que poucas recordações resistem (LEVI, 1986, p. 17).

Compreende-se a singularidade da memória porque, mesmo que dois indivíduos tenham presenciado o mesmo acontecimento, cada um o perceberá de maneira diferente. Isso aponta os motivos pelos quais a memória de algo está destinada a deformações e é suscetível a distorções, pois a escrita do testemunho não está atrelada ao fato empírico da realidade, e sim a uma realidade ligada a uma representação específica referente a tal acontecimento (SELLIGMANN-SILVA, 2005; SILVA, 2014). Pode ser inferido que as cenas que cada indivíduo viveu detêm particularidades que se atravessam, não apenas na memória, mas também na escrita testemunhal.

Freud (1908/2015) assevera que o escritor, ao produzir uma obra, utiliza a fantasia como forma de criar, semelhante à criança que brinca e revela aspectos de seu universo psíquico. A fantasia é uma tentativa de realização de um desejo para corrigir uma vivência insatisfatória na realidade. Pode-se, então, compreender que a brincadeira no adulto seria a dimensão da fantasia que auxilia a manusear as frustrações da realidade externa. Entende-se que a literatura do testemunho, mesmo sendo uma escrita de uma experiência traumática, contém fragmentos da fantasia do sujeito, e são justamente os pedaços fantasiosos que auxiliam no impulso de escrever para nomear e reviver o traumático.

Para Winnicott (1975) o indivíduo que apreende o mundo de modo criativo mantém um estado saudável e de não submissão perante a realidade externa. É através da percepção criativa movida pela influência ambiental que o sujeito consegue encontrar recursos para lidar com uma ideia traumática. A capacidade criativa auxilia a reconstrução e reconstituição psíquica, pois desde os primórdios da infância, o indivíduo presencia vivências de insatisfações e perdas de onipotência. Compreende-se que na obra de Levi o escrito testemunhal é um modo de não submissão, uma ação constante de resiliência perante as memórias traumáticas do evento Shoah, pois mesmo derivando das recordações traumáticas, parece que a capacidade de fantasiar em sua narrativa é presente como uma ponte entre o traumático e a possibilidade criativa.

Seligmann-Silva (2008) destaca que pela incapacidade de representar o Lager ao qual é atribuído o caráter inverossímil daquela realidade e ao lado de uma necessidade vital de testemunhar, a imaginação se torna um arquipélago substancial para enfrentar o excesso do real traumático, transformando-se em um caminho para a narração. O autor relata que o traumático e a literatura fundem-se para narrar uma história testemunhal, e que através da imaginação encontra-se a produção de singularidade perante a situação traumática, que oscila entre literalidade traumática e literatura imaginativa. Pode-se perceber que a singularidade das memórias traumáticas vividas pelo caso em tela, são particulares devido aos traços não só de excesso de realidade, mas também da fantasia. Por conseguinte, isso certifica que ninguém testemunhou o Lager da mesma maneira.

Gostaria de convidar todo aquele que ousar tentar um juízo a realizar sobre si mesmo, com sinceridade, uma experiência conceitual, imagine, se conseguir, ter passado meses ou anos num gueto, atormentado pela fome crônica, pelo cansaço, pela promiscuidade e pela humilhação, ter visto morrer ao redor, um a um, os próprios entes queridos, ter sido arrancado do mundo, sem poder receber nem transmitir notícias, ter sido, por fim, embarcado num comboio, oitenta ou cem pessoas em cada vagão de carga, ter viajado para o desconhecido, às cegas, por dias e noites insones; e ver-se, afinal, lançado entre os muros de um inferno indecifrável. Aqui se lhe oferece a sobrevivência e se lhe propõe, ou antes, impõe, uma tarefa sinistra, mas vaga (LEVI, 1986, p. 46).

A memória é algo de ênfase psíquica e corporal, ou seja, além de existir a fratura na memória representacional no psiquismo, pode haver outra na estrutura simbólica do corpo, visto que a formação do desenvolvimento do eu está ligada ao contorno do corpo físico (NOGUEIRA; NETO, 2016; BESSET et al., 2006). Pode-se atentar à possibilidade de visualizar que a construção psíquica tem relação com a imagem que é desenvolvida pelo corpo em aparatos reais e imaginários.

O extrato da obra de Levi mostra que as violências infligidas no Lager eram, em sua maioria, no corpo real. Muitos faleciam devido à fome, ao cansaço, à falta básica de subsídios para sobreviver, além das humilhações psicológicas, da perda de humanidade (LEVI, 1986). A esse respeito, Freud (1939/2018) anuncia que o corpo sofre impressões de acontecimentos traumáticos. Coutinho (2008) sustenta que na perspectiva psicanalítica o corpo parte de um investimento libidinal, é como um lugar de inscrição de fantasias, de representação, de descomedimento, e também daquilo que não é inscrito no psíquico.

Levi descreve uma das vivências dolorosas do traumático no corpo:

A operação era pouco dolorosa e não durava mais que um minuto, mas era traumática. Seu significado simbólico estava claro para todos: este é um sinal indelével, daqui não sairão mais; esta é a marca que se imprime nos escravos e nos animais destinados ao matadouro, e vocês se tornaram isso. Vocês não têm mais nome: este é o seu nome. A violência da tatuagem era gratuita, um fim em si mesmo, pura ofensa: não bastavam os três números de pano costurados nas calças, no casaco e no agasalho de inverno? Não, não bastavam: era preciso algo mais, uma mensagem não verbal, a fim de que o inocente sentisse escrita na carne sua condenação. Tratava-se também de um retorno à barbárie tanto mais perturbador para os judeus ortodoxos; de fato, justamente para distinguir os judeus dos "bárbaros", a tatuagem é vedada pela lei mosaica (LEVÍTICO, 19.28) (LEVI, 1986, p. 97).

Macêdo (2012) afirma que a situação traumática é aquilo que é grafado no corpo, de tal modo que o sujeito não se esquecerá, pois reverbera, mesmo que imperceptivelmente, e não é passível de anulação. Isso demonstra que, mesmo após décadas de uma experiência traumática, ela pode ressurgir com a mesma intensidade que tinha no primeiro instante em que ocorreu. Percebe-se que antecedente ao ato do corpo ainda subsidia uma esperança, mesmo que mínima; todavia, a tatuagem na pele pode ser um assinalamento do começo da degradação do simbólico e das inviabilidades de sentido para o fenômeno.

Para Outeiral (2004) o traumático é um excesso de excitações onde o sujeito se sente incapaz de tolerar e elaborar psiquicamente tais estímulos. Masud Khan (1963) ao conceber o conceito de trauma cumulativo, também enfatiza os fatores do excesso presentes em fontes, não apenas ambientais, mas intrapsíquicas e intersistêmicas, que interferem posteriormente no trauma cumulativo, que se estabelece ao longo da infância e da adolescência silenciosamente. Averigua-se que o corpo, como subsídio de relação com o ambiente que experiencia o excesso do traumático, apreende esses estímulos sem a possibilidade de assimilá-los e significá-los.

Pode-se observar que há no corpo, na impressão real, uma dimensão de morte, o sinal não verbal da própria deterioração da imagem corporal (a marca da tatuagem), que é a experiência traumática. Freud (1915/2010) assegura que em contextos de guerra é frequente a presença de uma desilusão perante a humanidade, pois a ilusão não consegue auxiliar para que o sujeito lide com o desprazer, principalmente em cenários de destruição. Enfatiza que é impossível imaginar a morte, devido à situação de que um dos traços do inconsciente é a crença na atemporalidade. Então, constata-se que a morte demonstra um aspecto de excesso, por ser algo incontestável na vida humana e isso a assemelha à experiência traumática pelo seu caráter de inevitabilidade.

Quarenta anos depois, minha tatuagem se tornou parte do meu corpo. Não me vanglorio dela nem me envergonho, não a exibo nem a escondo. Mostro-a de má vontade a quem me pede por pura curiosidade; prontamente e com ira, a quem se declara incrédulo. Muitas vezes os jovens me perguntam por que não a retiro, e isto me espanta: por que deveria? Não somos muitos no mundo a trazer esse testemunho (LEVI, 1986, p. 97).

De acordo com Winnicott (1975) um indivíduo que presenciou algum tipo de cárcere, presídios, campos de concentração, perseguições em vista de um regime político cruel, dificilmente manterá a criatividade. O autor sublinha que, nesses casos em específico, são sujeitos que, em decorrência de fatores ambientais em um momento tardio do crescimento pessoal, perdem a capacidade criativa por vivenciarem o lado mais bruto da civilização. Aqueles que mantêm o processo criativo são os que sofrem.

Benjamin (1936/1994) assevera que muitos soldados que voltaram da guerra demonstraram-se não mais ricos em possibilidades de comunicação, e sim mais pobres simbolicamente e criativamente. Em contraponto, o autor assemelha que o caráter de morte é um impulso narrativo, pois seria onde o escritor originaria sua autoridade. Entende-se que Primo Levi conservou sua capacidade criativa através da escrita, do testemunhar para poder lidar com a experiência traumática, e que mantém a tatuagem como resistência, um traço de sobrevivência e, também, de resiliência.

Segundo Moura (2005) a marca do traumático é a evidência de uma ferida que está ligada ao excesso de real no psíquico, pois não se aloja como uma memória, mas como aquilo que foi cindido, que gera no sujeito repercussões mórbidas por se haver com o irrepresentável. Seligmann-Silva (2000) ratifica que o trauma é uma ferida na memória, e sua recordação do instante da vivência traumática é transbordante pela quantidade de literalidade do evento, por isso os obstáculos para a representação do Shoah e os limites do testemunho. É possível, então, se certificar de que a tatuagem que Levi ainda conserva em seu corpo quarenta anos depois do Lager, é um fractal daquilo que se mantém inverossímil.

Neste capítulo há alguns pontos a respeito do traumático sendo possível perceber as marcas de um excesso no corpo, na memória, no psíquico. Também foi verificado o elemento da fantasia manifestada na potencialidade de Levi na tentativa de narrar e testemunhar sobre seu período de aprisionamento do Lager, ou seja, uma capacidade de criar, imaginar mesmo sendo um sobrevivente de uma situação tão mórbida.

 

5. Considerações Finais

Entende-se que os extratos retirados da obra de Primo Levi Os afogados e os sobreviventes têm muito a acrescentar em relação ao traumático cruzado com a compreensão psicanalítica. Foram percebidas vivências com demasiadas sensações de agonia, vergonha e horror. As cenas traumáticas são notáveis e elucidaram acontecimentos que invadiam o campo do corpo e da memória.

A literatura de testemunho é uma possibilidade de amparo ao excesso de real que se expressa no contexto de guerra e catástrofe. Apresenta-se como um modo de representação do indelével, daquilo que escapa da dimensão do narrável. Também é significativo abordar a dimensão da atemporalidade, que se manifesta na obra de Levi mesmo quarenta anos depois de sua experiência do Lager, e que apesar de o testemunho ser uma via de escuta e acolhimento, cada sujeito tem o seu tempo para tentar lidar com um acontecimento traumático, que dificilmente será o tempo cronológico.

A obra de Levi expressa a capacidade criativa, como testemunho de que é tangível realizar um composto de fantasia, imaginação e literalidade para configurar uma narrativa daquilo que é traumático. Nesse sentido, a capacidade do viver criativo foi manifestada naquilo que impulsiona Levi em suas narrativas sobre a experiência em Auschwitz. Configura-se como uma tentativa de simbolizar e representar aquilo que escapa do campo do cognoscível. O bordear com as palavras é o lugar onde o autor encontra subsídios para lidar com o sofrimento das memórias traumáticas que insistem em retornar, fazendo uso do caminho criativo.

Ao realizar a interlocução entre a perspectiva psicanalítica e o traumático na escrita do testemunho de Levi, encontrou-se um fenômeno de excesso de real que se manifesta no psiquismo gerando um fractal, uma ruptura, uma lacuna, ou seja, uma dimensão de impossibilidade. A marca do indelével, presente nas violências que Levi sofreu no corpo dentro do Lager; a despersonalização, o sentir-se não ser mais humano (visíveis nos trechos em que o autor destaca sobre a tatuagem); o instante doloroso em que a ideia de sair do campo de concentração torna-se completamente escassa; o cenário de morte, de destruição e desilusão, todas essas situações expõem aquilo que é derivado do traumático, e contribuiu para o conhecimento psicanalítico a respeito do traumático.

Conclui-se que o traumático está no campo de um afeto sem significado e a escrita de testemunho de Levi é uma tentativa de bordar o traumático, de um passado que está constantemente presente, de uma memória que retorna. Por isso a escrita testemunhal é uma via de resiliência e um esforço de tentar simbolizar o que continua sendo um lugar onde a linguagem não circula.

 

 

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Artigo recebido em: 18/12/2019
Aprovado para publicação em: 25/05/2020

Endereço para correspondência
Bibiana Massem Homercher
E-mail: bibianamh@hotmail.com
Silvio Augusto Lopes Iensen
E-mail: silvioiensen@gmail.com

 

 

*Psicóloga. Residente em Saúde Mental da Universidade Franciscana. Santa Maria, RS, Brasil.
**Doutor em Psicologia pela Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor Adjunto do curso de Psicologia da Universidade Francisca-na. Psicólogo Clínico. Santa Maria, RS, Brasil.
1Termo em hebraico que significa destruição, utilizado, a partir da década de 1950, para denominar o holocausto (DANZIGER, 2007; ANTONELLO, 2019).
2Vocábulo alemão que tem como sentido campos de concentração (LEVI, 1988; RUSSO, 2018).

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