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Psicologia Escolar e Educacional

versão impressa ISSN 1413-8557

Psicol. esc. educ. v.12 n.2 Campinas dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Subjetividade e arte de rua: 100% Graffit

 

Subjetivity and the Street Art: 100% Graffit

 

Subjetividad y arte de la calle: 100% grafito

 

 

Leila Dupret*

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

O trabalho de Psicologia Escolar/Educacional teve como ponto de partida uma demanda dos jovens que integram comunidades pertencentes a Itaipu, Camboinhas e Piratininga, região oceânica do Estado do Rio de Janeiro, e participavam de atividades oferecidas pela Fundação Gol de Letra. A meta da intervenção psicológica era interferir na construção da subjetividade dos membros do grupo participante com ações educativas complementares, a partir da realização de oficinas de grafite, conforme sugerida pelos jovens. Quando entendido como uma linguagem que pretende transmitir anseios ou revelar inquietações, o grafite inclui necessariamente o componente psicológico presente na arte. Ademais, na relação educativa é fundamental estimular a competência dos educandos, enaltecendo suas iniciativas, no sentido da independência de suas ações, decisões e possibilidades de auto-aperfeiçoamento no aprendizado. As oportunidades oferecidas, combinadas com a capacidade e potencial humano, podem favorecer o reconhecimento do pensamento criativo e a autonomia no processo de aprender.

Palavras-chave: Subjetividade, Ações educativas, Aprendizado.


ABSTRACT

The work of School / Educational Psychology had as start a demand of the teenages who integrates commuities wich belong to Itaipu, Camboinhas and Piratininga, oceanic region of Rio de Janeiro Satate, and participited of activities offered by Gol de Letra Foundation. The goal of the psychological intervention was to interfere in the construction of the subjectivity of the participating group with complementary educative actions, from the accomplishment of graphite workshops, as suggested for the teenages. When understood as a language that it intends to transmit wishes or revel inquietude the graphite necessarily includes the psychological component in the art. Besides, in the educative relation is basic to stimulate the teens competence, valorizing their initiatives, meaning the independence of their action, decisions and possibilities of self-improvement in the learning. The offered oportunities, combined with the capacity and human potential, can favor the recognition of the creative thought and the autonomy in the process to learn.

Keywords: Subjectivity, Educative actions, Learning.


RESUMEN

El trabajo de la Psicología Escolar/Educacional tuvo como punto de partida una demanda de los jóvenes que integran comunidades pertenecientes a Itaipu, Camboinhas y Piratininga, región oceánica del Estado de Rio de Janeiro, y que participaban de actividades ofrecidas por la Fundação Gol de Letra. La meta de la intervención psicológica era interferir en la construcción de la subjetividad de los miembros del grupo participante con acciones educativas complementares, a partir de la realización de talleres de grafito, como sugerido por los jóvenes. Cuando se entiende como un lenguaje que pretende transmitir anhelos o revelar inquietudes, el grafito necesariamente incluye el componente psicológico presente en el arte. Además, en la relación educativa es fundamental estimular la competencia de los educandos, enalteciendo sus iniciativas en el sentido de la independencia de sus acciones, decisiones y posibilidades de auto-perfeccionamiento en el aprendizaje. Las oportunidades ofrecidas, combinadas con la capacidad y potencial humano, pueden favorecer el reconocimiento del pensamiento creativo y la autonomía en el proceso de aprender.

Palabras clave: Subjetividad, Acciones educativas, Aprendizaje.


 

 

Introdução

O trabalho de Psicologia realizado em parceria com a Fundação Gol de Letra desde 2004 tem evidenciado a importância do papel da Educação no Desenvolvimento Humano. Ele está voltado ao estímulo das potencialidades, da criatividade e da auto-estima do jovem que pertence às comunidades de Itaipu, Piratininga e Camboinhas, no município de Niterói, região oceânica do Estado do Rio de Janeiro.

A proposta apresenta como recurso necessário e fundamental para a reflexão o cuidado que se deve ter consigo, com os outros, respectiva família, com a casa, com os amigos, a comunidade, o ambiente em que se vive e, por extensão, toda a humanidade. Esta perspectiva ética que norteia as relações está sustentada por concepções ideológicas que alimentam uma postura diante do mundo regida por princípios de liberdade e de responsabilidade que constroem a consciência do comportamento humano e seus possíveis desdobramentos. Nas palavras de Boff (1999, p.91) "cuidado significa então, ....zelo, atenção, bom trato. ... um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude."

Nesta perspectiva é essencial que se pense a Educação como um processo amplo, que está para além das relações meramente pedagógicas, pois que se traduz em toda a transmissão de usos, costumes, modos de relação e de produção, tradições, crenças e toda a gama de informações não restritas apenas ao campo do conhecimento formal, mas também à cultura e ao aparato sócio-histórico que a contextualiza. Deste modo, o processo educativo entendido em sua dinâmica relacional, pode oferecer estratégias para que o atual quadro de degradação da humanidade seja modificado, a começar pelas próprias práticas educacionais que incentivem a participação ativa do educando e este modo de proceder sirva de referência para atitudes da população em geral.

Neste sentido, torna-se imprescindível uma Educação que não somente sensibilize, mas também proporcione conhecimentos a respeito de valores morais e éticos, no intuito de interferir nas atitudes dos indivíduos. A Educação deve desempenhar uma função capital de despertar a consciência e o entendimento dos problemas que afetam o aprender. Deve abranger pessoas de todas as idades e de todos os níveis, no âmbito do aprendizado formal e não-formal. A Educação deve também possibilitar ao indivíduo, compreender os principais problemas do mundo contemporâneo, proporcionando-lhe conhecimentos técnicos e ferramentas necessárias para desempenhar uma função produtiva, visando ao seu engajamento no mercado de trabalho, tal como defendem Freire e Horton (2003).

Por sua vez, um dos principais objetivos da Psicologia consiste em apresentar alternativas para que o ser humano possa compreender sua complexa constituição entendida como a interação de componentes orgânicos, psíquicos e antropológicos, estes últimos incluindo os aspectos sociais, políticos, culturais, religiosos, ideológicos e demais constituintes de sua construção subjetiva. Desta forma, pretende promover a utilização reflexiva e prudente dos recursos disponíveis para que se transformem em instrumentos psicológicos, conforme ressalta Vygotsky (1996).

Além disso, pode ser entendida como função da Psicologia despertar o interesse do sujeito em participar de um processo ativo, buscando possíveis soluções às questões apontadas como relevantes para si mesmo, pertencentes a seu próprio contexto, social e individual ao mesmo tempo.

A compreensão da relação entre o social e o individual na constituição e na ação dos indivíduos, a especificidade dos processos de institucionalização e grupalidade e a complexidade dos processos de subjetivação, entre outras questões, dão subsídios para planejar um trabalho efetivo com a comunidade... (Mitjáns-Martinez, 2005, p. 111).

O viés metodológico pautado em experiências que estimulam e reconhecem as potencialidades do sujeito como construtor de sua subjetividade viabiliza o atendimento de demandas que pertencem ao âmbito de realidades específicas, considerando-as como desafios a serem enfrentados com recursos oferecidos pela Psicologia.

O Aprendizado

A utilização de práticas do cotidiano como meio para otimizar competências vislumbrando inclusive a possibilidade de gerar renda sem, obviamente, desresponsabilizar instâncias governamentais, traduz-se no desafio contemporâneo de profissionais que lidam com jovens.

A execução do trabalho de Psicologia Escolar/Educacional teve como meta interferir na construção da subjetividade dos membros do grupo participante, ampliando as práticas pedagógicas regulares com ações educativas complementares, a partir da realização de oficinas que viabilizassem: o estreitamento do vínculo afetivo dos indivíduos entre si e com a comunidade; a percepção de possibilidades pessoais e de grupo para a geração de rendas; a ampliação dos horizontes e descoberta das potencialidades dos sujeitos; o fortalecimento da produção artística e cultural das pessoas revertendo-a para a comunidade; o desenvolvimento da auto-estima e da valorização pessoal dos sujeitos; o desenvolvimento da criatividade pessoal e coletiva; o estímulo à integração social e trabalho de equipe.

Daí a relevância de a uma definição dos procedimentos pertinentes ao campo da Psicologia, em especial a que diz respeito à área da Educação. Sendo assim, concordou-se com Reigota (2001) quando afirma no que tange a educação, que ela visa à participação dos cidadãos nas discussões e decisões sobre a diversidade de questões, elaborando alternativas de intervenção. A educação deve estar pautada na prática e no aprendizado do diálogo entre gerações, culturas e costumes diferentes, em busca da cidadania.

Embora eminentemente social, a educação promove a construção de saberes pessoais, que se traduzem em subjetividades diversas, as quais permitem identificar a presença do que é individual e coletivo coexistindo na trama da complexidade do mundo. Nesta perspectiva, o primeiro passo da Psicologia deve ser a identificação de representações das pessoas envolvidas no processo educativo, a respeito do seu contexto e possíveis demandas por elas reconhecidas como prioritárias para serem trabalhadas. Acompanhando este processo, é fundamental uma metodologia que tenha como referência o aprender a olhar, a ler indícios e o imprevisível; que entenda a ciência como exercício de criatividade e atividade que permite integrar a arte e os diferentes conhecimentos: científicos e populares. Segundo Leff, (2001, p.121) "um processo educativo que fomenta a capacidade de construção de conceitos pelos alunos a partir de suas significações."

Cabe destacar, porém, que as concepções de Freire (1975) e Vygotsky (1988), sobre a compreensão de práticas em contextos educativos a partir dos campos pedagógico e psicológico, segundo suas áreas de especialização, respectivamente, já haviam trazido para a discussão acadêmica a importância de se levar em conta a relação entre os saberes: popular e científico. Além disso, suas propostas estão pautadas em concepções que convergem para um dos principais constituintes do Desenvolvimento Humano: o atravessamento sócio-histórico.

O conceito de Educação Libertadora, definido por Paulo Freire (1975) e de fundamental importância para a construção da cidadania, está voltado à área pedagógica proporcionando reflexões acerca de metodologias educativas que viabilizem o aprendizado a partir da própria experiência de quem aprende.

Antes de se elaborarem conceitos, é preciso extrair dos educandos os elementos de sua prática social: quem são, o que fazem, o que sabem, o que vivem, o que querem, que desafios enfrentam. ... ou seja, toda leitura é sempre a partir de minha realidade, do contexto em que me encontro, e não do discurso abstrato do emissor. (Freire & Beto, 2004, p.77).

O conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, definido por Vygotysky (1988), possibilita vislumbrar o "espaço possível" da interação de sujeitos no processo de desenvolvimento do ser humano, permitindo no campo da psicologia pensar sobre a dinâmica do aprendizado na amplitude de seu cotidiano social e construção subjetiva.

Partindo-se do pressuposto de que é a interação o ponto mais significativo para serem investigados fenômenos psicológicos, considera-se que: em seu processo de desenvolvimento, o sujeito interage com sujeitos e objetos. Interage com o meio-social, com a cultura, com a família, com a escola, com o professor. Essa rede interativa corresponde à relação entre o desenvolvimento e o aprendizado, suas interferências mútuas, suas referências recíprocas. Aponta a maneira pessoal que cada sujeito tem de transmitir e captar informações. Em uma palavra, comunicar suas representações.

É no decorrer da história do sujeito, que ocorre seu processo de aprender, no qual uma de suas características refere-se ao querer aprender, isto é, os motivos que, possivelmente, estariam colaborando e favorecendo o aprendizado. Quando se tem interesse sobre o que se faz, mesmo que não se consiga de todo atingir o objetivo desejado, sente-se capaz de realizar algo. Existe o sentimento ou uma força motriz de se dedicar à questão. Na relação educativa é fundamental estimular a competência dos educandos, enaltecendo suas iniciativas, no sentido da independência de suas ações, decisões e possibilidades de auto-aperfeiçoamento no aprendizado.

Neste sentido, a intervenção assume um papel importante no processo de conscientização, posto que proporciona outros elementos, que não os da própria pessoa, para a efetivação de seu conhecimento sobre algo. (Dupret, 1999, p.25)

O fato importante a ser ressaltado é que, de modo geral, nos ambientes educativos não há manifestação do interesse em que sejam apresentadas estratégias distintas das habitualmente transmitidas. Em função deste tipo de abordagem, são desprezados os produtos da ação criativa das pessoas, desestimulando, indiretamente, a exploração e o aproveitamento de suas potencialidades. Assim, a prática educacional estabelece padrões rígidos para o funcionamento do sujeito, que podem propiciar o surgimento de problemas, inclusive de aprendizado.

Tenho certeza de que uma das doenças mais trágicas de nossas sociedades é a burocratização da mente. Se você vai mais além dos padrões previamente estabelecidos, considerados como inevitáveis, você perde a credibilidade. No entanto, não há criatividade sem ruptura, sem rompimento com o passado, sem um conflito no qual é preciso tomar uma decisão. Eu diria que não há existência humana sem ruptura. (Freire & Horton, 2003, p.63).

As oportunidades oferecidas, combinadas com a capacidade e potencial humano, podem favorecer o pensamento criativo. Do mesmo modo que a falta de oportunidade para a sua manifestação pode acarretar conturbações em seu desenvolvimento, embotando o sujeito na escolha de estratégias originais para a solução de problemas. Obviamente, a postura que admite o poder de criar acredita que o sujeito é capaz de fazer relações entre situações distintas e descobrir soluções a partir da transferência de suas experiências anteriores.

A respeito do processo de aprender, cabe ainda ressaltar um outro aspecto: a autonomia do sujeito que aprende. Em outras palavras, a confiança em si mesmo, em seus próprios pensamentos e relações que, em última instância, interferem no desenvolvimento. Acreditar em suas potencialidades e ter convicção pessoal de suas respostas ou descobertas, em vez de desconfiar ou desprezar seus pensamentos são atitudes que revelam a possibilidade de autoria e, segundo Freire (1997), devem estar presentes nas práticas educativas.

Assim, incentivar a autonomia pressupõe não ver o outro como um recipiente que retém o que lhe foi despejado. No caso do educando, seu aprendizado não deve ser o fruto da aceitação de conclusões incutidas na sua cabeça para que ele recite passivamente sem nenhum questionamento, mas, ao contrário, sugere um outro modo de ver o aprendizado, no qual o aprendente é encorajado a refletir e não repetir.

O Grafite

Diferente do que o senso comum acredita o grafite, em sua mais remota expressão, nasceu há muito tempo. Um tempo em que não se pensava na existência do spray. Manifestação de cunho popular se traduz na comunicação ampla e social de posições dos que se sentem sem condições de utilizar os veículos midiáticos instituídos para revelar seus princípios e/ou objetivos. Iniciativas deste teor, na verdade, tiveram sua origem com os egípcios que usavam sangue de animais, tinta artesanal e mesmo carvão para sinalizar ou divulgar algo a toda população.

Grafite ou Graffiti1 (do italiano graffiti, plural de graffito) significa "marca ou inscrição feita em um muro", e é o nome dado às inscrições feitas em paredes desde o Império Romano. Grafite vem da palavra "graphéin", que em grego quer dizer escrever e, em latim e italiano refere-se a "escritas feitas com carvão"; grafite também é o nome que se dá ao material de carbono que compõe o lápis.

Os estudos de Arthur Lara (2002) trazem informações esclarecedoras a respeito desta manifestação artística popular. O marco histórico atual para o entendimento do grafite como recurso utilizado pela população que pretende divulgar suas insatisfações possui duas vertentes, vinculadas a contextos sociais-históricos distintos, porém mantendo as características específicas desta modalidade comunicativa.

Uma delas se refere ao movimento de 1968, liderado pelos estudantes franceses os quais usavam muros de ruas e cartazes com dizeres, desenhos e caricaturas que representavam suas reivindicações e denúncias. A outra, também ocorrida nos anos 60, nasceu no Bronx, a partir de grupos negros que falavam com esta arte sobre sua opressão e miséria. Conjugado à música declamada (RAP) e à dança cujos movimentos do corpo correspondem a "quebras" ou "paradas" harmonizadas ao ritmo da música (Break), o grafite também constitui o movimento denominado Hip Hop.

Reprimido desde seu início e mantido sob a forma marginal, o grafite incorporou elementos plásticos e conteúdos psicológicos, que foram mantidos na relação com a livre figuração internacional. (Tellez, 1988, p. 29).

Armando Tellez (1988), semiólogo e investigador de arte cujo estudo está focado no grafite colombiano, dimensiona-o estática e antropologicamente caracterizando-o como uma forma de manifestação social em que a marginalidade, o anonimato, a espontaneidade e a velocidade constituem a composição simbólica que se insere na obra. Entretanto, cabe ressaltar que o anonimato pleno pode ceder lugar à autoria com pseudônimos, a partir da valorização dos tegs, isto é, registros nominais que se definem como assinaturas pessoais reconhecíveis por grafiteiros e identificados em seus autores por elementos de um mesmo grupo.

Quando entendido como uma linguagem que pretende transmitir anseios ou revelar inquietações, o grafite inclui necessariamente o componente psicológico presente na arte.

A arte introduz cada vez mais a ação da paixão, rompe o equilíbrio interno, modifica a vontade em um sentido novo, formula para a mente e revive para o sentimento aquelas emoções, paixões e vícios que sem ela teriam permanecido em estado indefinido e imóvel. (Vygotsky, 1999, p.316).

Para ele, a obra de arte não é apenas um ato do criador, individualizado em seus objetivos e/ou desejos, mas sim uma referência mais ampla na qual, ao ser expressa, transforma-se em referência social, assumindo a condição de não apenas atingir o espectador e por ele ser interpretada, mas também o momento hitórico-social do qual participa, podendo permanecer inclusive, como marco na história da arte. Assim, uma obra de arte participa de vários momentos: do autor, quando a confecciona e a observa após sua confecção; do espectador, ao decodificar a imagem produzida pelo autor e construir sua interpretação, o que ocorre de modo exclusivo e coletivo a um só tempo; e ainda o momento social mais amplo, o qual marca historicamente o que ocorre no processo, delimitando os modos específicos de produção artística de uma época: expressionismo, impressionismo, surrealismo, para citarmos alguns exemplos.

No caso do grafite, é possível perceber os momentos supra mencionados com bastante clareza. Porém, é importante destacar a transformação sofrida socialmente pela própria obra de arte: o que era marginal e abominável passou a ser admissível e integrado à sociedade, como pode ser constatado, por exemplo, em campanhas publicitárias divulgadas na mídia.

Cabe esclarecer, entretanto, que existem algumas diferenças entre a pichação e o grafite, dentre elas gostaríamos de destacar em relação aos pichadores, a inovação, ousadia e sofisticação em criar tegs e a própria manutenção no lugar de discriminados, excluídos e à margem das sociedades, invadindo monumentos, pichando fachadas de edifícios e lugares quase inacessíveis. Quanto aos grafiteiros, embora mantenham as características de criativos, inovadores, ousados, espontâneos, sofisticando seus traços, formas e letras, se fazem cada vez mais presentes nos diversos contextos, marcando historicamente sua inserção social e participação no mercado de trabalho.

A exposição de grafite na Casa das Rosas, em São Paulo, apresenta suas modalidades tanto no desenho, quanto na escrita. No desenho, o grafite 3D, por exemplo, é constituído por idéias visuais de profundidade, sem a utilização de contornos, o que exige domínio técnico na combinação de cores e formas. O grafite artístico ou livre figuração está baseado na utilização do traço a mão livre e refere-se a caricaturas, personagens de história em quadrinhos, figurações realistas e também elementos abstratos. Há ainda o grafite em que são utilizados modelos de papelão ou película de radiografia para facilitar a execução e disseminação de uma marca individual ou de grupo. Quanto à escrita, segundo a agência Educabrasil2, o wild style tem como característica a distorção nas letras ou ainda o formato em zig-zag, ficando complic)adas de se entender, sendo decifradas apenas por aqueles que estão mergulhados no mundo do grafite e em seus códigos. Já as letras gordas, que parecem vivas, geralmente feitas com duas ou três cores, são denominadas bomber e nelas o uso de tinta látex e de rolinhos pode ou não ser combinado com outros materiais como o spray ou o pincel atômico. Há ainda a letra grafitada, geralmente mais sofisticadas que o bomber e configurada como uma assinatura de grupo.

Desde o início do grafite, os grafiteiros americanos se intitularam "writers" (escritores, em português) porque sua arte começou assim - escrevendo. Eles simplesmente escreviam seus nomes onde quer que pudessem e a partir daí começaram a desenvolver cada vez mais letras, os contornos, os desenhos, decorando com efeitos de luz e sombra. Quanto mais criativas eram suas "obras" maior era o reconhecimento perante os outros grafiteiros. O grafite se desenvolveu tanto que, hoje, são usadas iconografias de desenhos animados, figuras famosas da cultura e da pintura e personagens em quadrinhos, inseridos em suas assinaturas e nomes. Muitos até criam seus próprios personagens, os chamados "bonecos", que ajudam a caracterizar o trabalho de cada um, virando uma marca registrada do grafiteiro, como consta no projeto Periferiattiva3.

É importante ressaltar que a grafitagem possui técnica e planejamento, com vistas ao aprimoramento da qualidade do trabalho e o alcance do objetivo almejado. Assim, ocorre um estudo prévio sobre as condições locais, o tempo necessário para a execução do trabalho, o material que será preciso, além de serem considerados outros constituintes circunstanciais os quais participam da ação que faz desta arte de rua um instrumento de comunicação social.

O grafite expandiu tanto suas possibilidade que ganhou as telas de cinema. Em 2006, no Festival do Rio, Pablo Aravena, diretor do filme Histórias do Grafite, retrata o movimento em países como EUA, Canadá, França, Holanda, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Japão e Brasil. Ele acompanhou a rotina dos "Gêmeos", dupla brasileira cujo trabalho extrapolou o limite das ruas, passando a ser exibido em museus da Europa e dos EUA. O documentário mostra a capacidade do grafite em reunir originalidade e criatividade em sua arte visual, mapeando sua evolução dos "subterrâneos" ao pensamento corrente da população: do underground ao mainstream.

Conforme afirma Lara,

Muitos jovens passaram a ter no grafite, agora em grafia portuguesa e plenamente incorporado à linguagem cotidiana, uma alternativa econômica e a possibilidade de participação social. Seja pela fama adquirida ou pela saída do anonimato, o movimento grafite se alastrou também pelos bairros populares e ganhou novos conteúdos. (Lara. 2002, p.101)

O Grupo 100% Graffit

A Fundação Gol de Letra tem por objetivo proporcionar a crianças e adolescentes um programa de educação integral e integrado, em período complementar ao da escola regular, que os instrumentalize para a criação e usufruto dos conhecimentos das áreas de esporte e educação física, música, dança, informática e língua e literatura portuguesa, expandindo suas intenções às comunidades e escolas que viabilizem tais procedimentos4.

A instituição educativa deve ser entendida como ponto de referência da comunidade, um núcleo deflagrador de aprendizado e educação, que expande seus limites para além de seus próprios muros, intercambiando saberes e vivências com quem a cerca ou com ela se relaciona. Deste modo, fazer da educação um veículo para a cidadania significa criar subsídios para a reflexão sobre pensamentos e ações, utilizando a realidade do cotidiano como recurso para o aprendizado.

Assim, ao se chegar à Fundação Gol de Letra objetivou-se como proposta de trabalho participar das atividades sugeridas pela instituição, a fim de se realizar um trabalho conjunto com vistas ao estímulo das potencialidades dos usuários da Fundação. Entretanto, o fato de ter sido encontrada uma pichação em um dos banheiros, mudou-se o foco de atuação. Pois, se a instituição proporcionava diversas alternativas para o engajamento social do jovem, sustentadas por uma noção pedagógica participativa, priorizando o diálogo, aquela manifestação era indicadora de que estava acontecendo algo com que se devesse preocupar, ou melhor, havia algo expresso nas suas entrelinhas que era preciso decifrar: o não dito. Este passou a ser então o objetivo inicial de nosso trabalho: descobrir o que queriam os jovens, além do que já lhes era dado.

A Gol de Letra, por atender a crianças e jovens, disponibilizava o transporte para que seus usuários pudessem estar presentes nas atividades sugeridas nos projetos de educação complementar. Foi aproveitado este período do trajeto entre a Fundação e as diferentes comunidades, para se estabelecer contato com as pessoas perguntando-lhes sobre que tipo de atividade gostariam de participar e que não estava sendo oferecida pela instituição. A partir deste levantamento, ficou claro que os jovens gostariam de ter a oportunidade de fazer grafite. Encaminhou-se então à Fundação os resultados deste trabalho inicial acrescido da assunção de responsabilidade da autora e colaboradoras em proporcionar a execução do que foi denominado oficina de grafite.

Assim, a intervenção psicológica começou nas instalações da Fundação Gol de Letra, em razão de uma demanda dos jovens que integram comunidades pertencentes a Itaipu, Camboinhas e Piratininga, região oceânica do Estado do Rio de Janeiro e já participavam de outras atividades oferecidas por essa instituição.

A execução do trabalho de Psicologia Escolar/Educacional teve como meta interferir na construção subjetiva do grupo participante, a partir da realização de oficinas que viabilizassem: o estreitamento do vínculo afetivo dos indivíduos entre si e com a comunidade; a percepção de possibilidades pessoais e de grupo para a geração de renda; a ampliação dos horizontes e descoberta das potencialidades dos sujeitos; o fortalecimento da produção artística e cultural das pessoas revertendo para a comunidade; o desenvolvimento da auto-estima e da valorização pessoal dos sujeitos; o estabelecimento de parcerias em espaços ludo-pedagógicos por meio da arte; o desenvolvimento da criatividade pessoal e coletiva; o estímulo à integração social e trabalho de equipe.

A técnica proposta por Therezinha Lins de Albuquerque (1986), a qual sugere o favorecimento à transformação do problema individual em tema de discussão coletiva, ampliação do campo de debates sobre assuntos de interesse dos membros do grupo, reflexão sobre pensamentos e ações dos sujeitos em questão. Esta técnica foi então utilizada como procedimento para a intervenção da equipe de Psicologia presente no local, de modo sistemático, a fim de realizar o trabalho voltado ao desenvolvimento humano.

A metodologia de caráter participativo, empregada nas oficinas favoreceu a composição de três grupos distintos que, por sugestão dos jovens, transformariam os muros da própria Fundação no local de exposição de seus trabalhos para uma eleição do melhor deles, a ser realizada na festa de final de ano da instituição. O acordo institucional viabilizou a execução da proposta e, como prêmio, o grupo vencedor assumiria a responsabilidade de efetivar as oficinas desse momento em diante.

Assim, o grupo 100% Graffit nasceu nas instalações da Fundação Gol de Letra, em razão de uma demanda dos jovens que já participavam de atividades ligadas à música, dança, esportes, informática e literatura, mas que precisavam mostrar outros talentos que ainda não haviam tido a chance de fazê-lo.

As oficinas, ministradas pelos jovens uma vez por semana, durante todo o ano de 2005, tinham como diferencial o planejamento das atividades e sua organização para o funcionamento, pois eram feitos pelos próprios participantes. Esta prática permite desenvolver potenciais para a construção da identidade de grupo e o exercício de gerenciamento de projeto, além de contribuir para a execução do trabalho cooperativo. Embora a equipe de Psicologia estivesse presente cotidianamente, a postura foi a de oferecer subsídios a crianças e adolescentes na busca de estratégias para resolverem suas situações-problema, estimulando-os em suas capacidades. Este modo de proceder desemboca na noção de protagonismo juvenil, que segundo Costa (2001, p.10) tem no paradigma do Desenvolvimento Humano seu fio condutor, ressaltando a importância "do desenvolvimento do potencial do educando, criando oportunidades e condições para que as potencialidades presentes no ser de cada jovem transformem-se, à medida que ele se procura e se experiência na ação, em competências, habilidades e capacidades para viver e trabalhar numa sociedade cada vez mais complexa, competitiva e exigente".

A efemeridade, os desafios e as exigências da sociedade contemporânea demandaram novas configurações do trabalho e diversas modalidades de inserção no mesmo, diante das quais, o protagonismo pode ser encarado como uma via promissora para se viabilizarem as expectativas pessoais dos jovens que, cada vez mais, se vêem na busca de um engajamento social produtivo e se deparam com o "achatamento" de oportunidades, principalmente os de comunidades de baixa renda. Afinal, como é lembrado por Zibas, Ferretti e Tartuce (2004, p.414). "ao se voltar à etimologia do termo "protagonismo", verifica-se que protagnistés significava o ator principal do teatro grego, ou aquele que ocupava o lugar principal em um acontecimento". Em outras palavras, a possibilidade do jovem se reconhecer como interferente social, a partir da importância de sua participação produtiva.

Em prosseguimento, as oficinas ministradas pelos jovens foram realizadas em escolas da redondeza como atividade extra-classe e estendidas a outras localidades, começando pela comunidade do Jacaré, localizada em Itaipu. Estes fatos são indicadores da instalação do processo multiplicador, no qual estes jovens desempenham o papel de agentes junto ao grupo social em que estão inseridos.

O grafite, contudo, abriu um espaço popular e uma nova categoria de manifestação artística no meio urbano, ao mesmo tempo individual e coletiva, conseguindo subsidiar parte de sua produção com verbas vindas da remuneração obtida com trabalhos encomendados. (Lara, 2002, p.103).

Este é o caso do Grupo 100% Graffit que já atingiu o patamar da produtividade, não só com a "arte nos muros", mas também com camisetas e outras produções em tecido, com trabalhos encomendados para campanhas publicitárias em Niterói. Desde maio de 2006 e estendido ao ano de 2007, o grupo conseguiu o patrocínio da Soter, uma empresa de construção civil que apoiando programas de ação social, utiliza esta arte para divulgar sua preocupação com a cultura e os cuidados ambientais necessários em seus empreendimentos.

Conforme nos lembra Ozella (2003), em tempos nos quais o jovem de baixo poder aquisitivo está cada vez mais ameaçado, mais excluído e as saídas para a inserção no mercado de trabalho são efetivamente cada vez mais difíceis, é de extrema importância entender a escolha profissional através do significado histórico, social, econômico, e, até mesmo, ideológico que, por sua vez, representa o cotidiano dos indivíduos.

 

Discussão dos Resultados

O indivíduo, na sua existência, desenvolve-se a partir de relações que estabelece com outros sujeitos e com os objetos disponíveis socialmente, daí a co-responsabilidade dos pais, governo e sociedade em proporcionar principalmente a jovens e crianças, educação, lazer e cultura. A arte, o esporte e a tecnologia podem oferecer ao jovem morador de comunidade, subsídios para compreender seu papel de cidadão responsável, capaz de enfrentar, com criatividade e flexibilidade, as mudanças impostas pelo cotidiano, exercendo sua condição de protagonista no contexto social. Neste sentido, a proposta de protagonismo juvenil adotada sustenta-se na concepção de Costa (2001) que sugere o diálogo como fundamental na relação do adulto com os jovens.

Esse relacionamento baseia-se na não imposição a priori aos jovens de um ideário em função do qual eles deveriam atuar no contexto social. Ao contrário, a partir das regras básicas do convívio democrático ... , o jovem vai atuar, para em algum momento de seu futuro posicionar-se politicamente de forma mais amadurecida e lúcida, com base não só em idéias, mas, principalmente, em suas experiências e vivências concretas em face da realidade. (Costa, 2001, p.26).

Cabe destacar, porém, que as produções artísticas e literárias têm papel de destaque no desenvolvimento econômico e social, uma vez que integram ao processo produtivo, parcelas significativas dos estratos de baixa renda, na maioria uma mão-de-obra sem maiores qualificações tecnológicas, gerando trabalho e renda a baixo custo e, eventualmente, divisas com a exportação de seus produtos. Os resultados desta atividade são ainda potencializados, quando a região também é consumidora de suas produções. Nesta perspectiva, as palavras de Klein (2004, p.123) nos alertam sobre a possível cilada burguesa que pode estar embutida neste mecanismo, à qual devemos estar atentos sob pena de se compartilhar com a concepção em "que a promoção do protagonismo juvenil para o desenvolvimento de uma chamada "ação-participativa", nada mais é do que um processo que tem como fim último à transferência das responsabilidades do Estado, para o próprio indivíduo, de acordo com os anseios do neoliberalismo."

Acrescenta-se ainda, nesta mesma linha crítica, o risco que se corre em utilizar incorretamente o conceito de resiliência, tão enfatizado atualmente, também como uma forma de responsabilizar apenas os sujeitos individualmente pelos seus sucessos ou fracassos, desresponsabilizando, ou minimizando a responsabilidade do Estado em efetivar políticas públicas, no que se refere aos cuidados com os cidadãos e à elaboração de programas institucionais de integração social.

Afinal, como bem lembrado por Zibas,

"Resiliência" significa a capacidade de pessoas resistirem à adversidade, valendo-se da experiência assim adquirida para construir novas habilidades e comportamentos que lhes permitam sobrepor-se às condições adversas e alcançarem melhor qualidade de vida. O conceito se aplica a ações que visam ao combate à pobreza... (Zibas, Ferretti & Tartuce, 2004, p.417).

Exatamente pelas considerações expostas anteriormente, torna-se evidente que os mecanismos de desenvolvimento das potencialidades individuais propostos pelo paradigma do desenvolvimento humano, dentre eles o despertar da auto-estima e da valorização pessoal; a construção da identidade individual e coletiva; e a educação para valores, que culminam em práticas de protagonismo juvenil, devem ser tratados de modo contextualizado, considerando a desigualdade social presente nas condições reais de existência de cada um, entendendo que tais potencialidades, não são suficientes para gerar o empoderamento coletivo.

Em outras palavras, a descoberta de talentos que, embora ainda estivessem na obscuridade, e se revelaram como verdadeiros artistas, podendo compartilhar seus saberes com os demais membros da comunidade em que vivem e a sociedade em geral, coloca por terra suposições falsas a respeito das características juvenis, que acabam criando situações artificiais e esvaziam suas iniciativas.

Em resumo, a partir desta experiência, é importante trazer para a discussão o fato de educadores não se darem conta das estratégias de participação criadas espontaneamente pelos jovens que são desencadeadas por meio de relações informais na trama institucional. Como é relatado por Zibas

...o caso de uma proposta de oficina (centro de participação), que escolheu um tipo de música jovem para motivar os alunos. No entanto, para grande parte dos estudantes da instituição, o tema musical escolhido não tinha qualquer apelo, ao contrário, era associado à marginalidade. (Zibas, Ferretti & Tartuce, 2006, p. 66)

Conforme ensinado por Mitjáns-Martinez (2005), o psicólogo atento às demandas contemporâneas se depara com três desafios: mudanças de representações e concepções (ênfase nos contextos; espaço educativo caracterizado pela diferença; valorização da singularidade em sintonia com o grupo); trabalho em relação à subjetividade social (sentidos; valores; crenças); compromisso social (implicação; motivação). Esta postura parece contribuir para minimizar dificuldades que a escola tem de lidar com a diversidade do alunado, baseando-se muitas vezes em estereótipos que impedem a desejada identificação do jovem com a instituição.

 

Referências

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Recebido em: 03/04/2008
Revisado em: 25/11/2008
Aprovado em: 19/12/2008

 

 

Sobre a autora:

* Leila Dupret (leiladupret@ufrrj.br) profª Adjunta do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
1 www.wikipedia.org
2 www.educabrasil.com.br
3 www.periferiattiva.org
4 Princípio registrado em todos os documentos da Fundação Gol de Letra.

Observação da autora
O artigo reflete o trabalho da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro junto a comunidades de jovens, em parceria com a Fundação Gol de Letra. Os dados coletados foram apresentados e discutidos em dois momentos: no V Congresso de Psicologia Norte-Nordeste realizado em Maceió em 2007, sob o título: 100% Graffit: psicologia e educação na arte de rua. E no VIII Congresso Nacional de Psicologia Escolar/ Educacional de 2007, realizado em São João del Rei, como título Ação educativa e subjetividade: 100% Grafite - Arte de Rua.