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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  n.21 São Paulo dez. 2005

 

A Abordagem Centrada na Pessoa na história da psicologia no Brasil: da psicoterapia à educação, ampliando a clínica*

 

Person centered approach in the history of psychology in Brazil: from psychotherapy to education, amplifying the clinic

 

El abordaje centrada en la Persona en la historia de la psicología en Brasil: de la psicoterapia a la educación, ampliando la clínica

 

 

Ronny Francy Campos

Doutor em Psicologia Clínica pela PUC/SP e professor de História da Psicologia da PUC/MG - Campus de Poços de Caldas. Psicoterapeuta e professor de História da Psicologia da PUC/MINAS - Campus de Poços de Caldas. E-mail: ronnycampos@pucpcaldas.br

 

 


RESUMO

Partindo, prioritariamente, de entrevistas realizadas com alguns profissionais (psicólogos e educadores) que trabalham ou já trabalharam com a Abordagem Centrada na Pessoa, discorro sobre como está organizada a proposta rogeriana de psicologia no Brasil. As questões principais a serem consideradas neste artigo dizem respeito à entrada, no Brasil, da proposta de uma psicologia como a rogeriana e a que tipo de subjetividade ela possibilita constituir. Dialogo, especialmente, com uma tese muito difundida no Brasil: a de que os psicólogos rogerianos brasileiros deixaram (ou evitaram) de considerar fatores cruciais como o "social" e o "político" e que, portanto, a psicologia por eles praticada é distante da realidade, sendo, em termos gerais, a-histórica.

Palavras-chave: psicologia clínica e educacional; história da psicologia no Brasil; Abordagem Centrada na Pessoa.


ABSTRACT

Starting, primarily, from interviews with some professionals (psychologists and educators) who work or have already worked with the Person-Centered Approach, I discuss how the Rogerian proposal of psychology is organized in Brazil. The main issues to be considered in this article are to do with the introduction, in Brazil, of a proposal of psychology such as the Rogerian and the kind of subjectivity it makes possible. I discuss, especially, a widespread thesis in Brazil: that in which Brazilian Rogerian psychologists have given up (or have avoided) considering crucial factors such as "the social" and "the political" and that, consequently, the psychology they practise is away from reality and, broadly-speaking, non-historical.

Keywords: Clinical and Educational Psychology; The History of Psychology in Brazil; The Person-Centered Approach.


RESUMEN

Empezando primeramente, con entrevistas realizadas con algunos profesionales (psicólogos y educadores) que trabajan o ya trabajaron en el abordaje centrado en la persona, discurriré sobre como está organizada la propuesta rogeriana en Brasil. Las cuestiones principales que se considerarán en este artículo tratarán sobre la entrada en Brasil de la propuesta de una psicología como la rogeriana y que tipo de subjetividad, ella posibilita constituir. Dialogo especialmente con una tesis muy difundida en Brasil: la de que los psicólogos rogerianos brasileños dejaron (o evitaron) considerar factores cruciales como el "social" y el "político" y que, por lo tanto, la psicología practicada está distante de la realidad, siendo, en terminos generales, no histórica.

Palabras clave: Psicología Clínica y Educacional; Historia de la Psicología en Brasil; Abordaje Centrada en la Persona.


 

 

Nos anos 60, o movimento cultural nos EUA e os movimentos políticos e culturais brasileiros questionavam a desumanização e os poderes em geral. Os jovens dos mais variados lugares denunciavam o que eles consideravam os "podres poderes", as verticalidades, as opressões, as diversas formas de violências no mundo. Segundo Boanaim Jr. (1998, p. 28):

Muito do extraordinário sucesso da Terceira Força da Psicologia se deve ao Zeitgeist desse momento histórico, ao qual, de várias maneiras, suas propostas eram ressonantes e coincidentes, a ponto de, em diversos sentidos, ter sido o movimento da psicologia humanista abarcado como uma das facetas da contracultura. A própria posição geográfica de alguns dos principais centros de desenvolvimento e de difusão da psicologia humanista, como o quase lendário Instituto Esalen, colocava-os no centro dos acontecimentos, na Califórnia, Meca e terra prometida da contracultura americana.

No Brasil, particularmente, foi também num momento político-social e cultural bastante conturbado que a psicologia humanista passou a fazer parte do cenário nacional. Estávamos no auge da ditadura militar. A palavra de ordem naquele momento do país era: "Brasil, ame-o ou deixe-o". Os militares, no final da década de 60, estavam pouco tolerantes com novidades. Contudo, as psicoterapias, de um modo geral, surgiram, no Brasil, exatamente nesse período.

As psicoterapias, provavelmente, foram ganhando força nesse momento específico do país, especialmente, por serem entendidas como uma espécie de refúgio psíquico para os ainda descontentes com o sistema, com as alternativas que até aquele momento haviam sido encontradas para os problemas sociopolítico-emocionais decorrentes do enfretamento do regime.1 Era, de algum modo, a subjetividade individual ganhando espaço num universo predominantemente político. Segundo Almeida e Weis (1988), naquele momento, no Brasil dos militares, havia a máxima: "o pessoal é político".

Quaisquer que fossem os valores e o estilo de vida efetivo dos intelectuais, profissionais liberais e estudantes de oposição, a vida política se derramava sobre a rotina diária e as relações pessoais, de forma ora sutil ora brutal. Mesmo quando o envolvimento com a oposição se limitasse à solidariedade aos oposicionistas de tempo integral, o cotidiano se alterava. Dentro de casa, nem tudo podia ser dito (...). (Ibid., 1988, p. 405)

Nesse sentido, as psicoterapias no Brasil surgem também como um dos poucos espaços de privacidade "total" para os adversários do regime; em seu setting havia a possibilidade de serem geradas novas formas de percepção de mundo, novas maneiras de freqüentar o mundo, novas formas de se viver melhor neste mundo. Nesse microespaço era possível, com liberdade e segurança, "contestar" as relações políticas, educacionais, familiares, amorosas, etc. Com isso, a psicoterapia foi se constituindo entre os brasileiros como um lugar de possíveis mudanças. Nelas, era potencialmente possível a produção de novos sujeitos, de novos modos de ser; ali era viável tratar - através do exercício do pensamento e da expressão verbal - de várias insatisfações existenciais, sem concretamente correr grandes riscos de vida. Enfim, a forte censura e a repressão a vários assuntos impostos pela força do regime acabaram possibilitando que a psicoterapia surgisse no Brasil como mais uma brecha ou espaço de resistência, especialmente, para as pessoas das classes média e alta brasileira daquele momento.

Contudo, segundo Michel Foucault, é preciso não esquecer que a psicologia, como dispositivo político e social, sempre foi responsável pela produção de subjetividades. E a produção de subjetividades, para esse autor, deve ser entendida como formas de pensar, sentir, perceber e agir, não como da natureza, da essência dos indivíduos, mas como produções históricas, datadas e localizáveis.

Em síntese, a contestação, sem dúvida nenhuma, em escala mundial, foi o denominador comum dos anos 60. Os diferentes aparatos de repressão (e de resistência) - no Brasil e no mundo - foram os principais responsáveis pela produção em massa de certas formas de subjetividade. Os brasileiros, especificamente, da segunda metade da década de 60 em diante passaram, de acordo com as experiências vivenciais de cada um, a experimentar processos de subjetivação caracterizados sobretudo por uma maior valorização da interioridade psicológica. As pessoas passaram a dar menos importância ao que ocorria fora delas e a se voltarem mais para o que acontecia dentro delas mesmas. De um momento para o outro, as categorias políticas foram transformadas em categorias psicológicas, surgindo com isso a necessidade de se repensarem as relações entre a política e a subjetividade.

A importância do consumismo, a busca da ascensão social como decorrência dos méritos pessoais, a sobrevalorização da intimidade psicológica são algumas das balizas desse [novo] modo de viver. O íntimo e o familiar tornam-se o refúgio derradeiro contra os terrores sociais, já que a política era entendida como pertencente ao governo, e a competência das pessoas deveria estar restrita ao trabalho, ao estudo, enfim, ao subir na vida. (Ferreira Neto, 2002, p. 97)

Fortalecia-se o "mergulho" para dentro de si, de sua família. Segundo Costa (1984), em seu estudo sobre a geração AI-5, constata-se que, junto com o estilo militar de governar, criaram-se as condições políticas e econômicas que em muito contribuíram para a desestruturação do núcleo da família burguesa brasileira, levando cada um de seus membros a buscar uma nova definição para as suas identidades privadas.

O importante era o autoconhecimento e, como efeito disso, a ênfase dada ao privado, ao intimismo e à desqualificação de tudo que fosse público ou político, principalmente político. Para os jovens da classe média, já que não era possível mudar o mundo, que se mudasse individualmente. (Coimbra, 1995a, p. 57)

A partir daí, segundo Ferreira Neto (2002), um grupo considerável de pessoas passou a ser freqüente consumidor dos serviços psicológicos prestados pelos profissionais da psicologia. As pessoas, e, especialmente, as "famílias em crise" passam a contar então com esses novos especialistas brasileiros, propiciando assim o chamado boom das psicoterapias no país.

(...) ao lado do profundo intimismo, houve também a produção do familiarismo, quando foi intensificada a importância da família no bem-estar e estruturação de seus membros. Duas categorias de acusação foram muito difundidas no Brasil e no mundo nos anos 70: a do drogado e a do subversivo. Dois perigosos inimigos, pois se colocavam contra a família, a pátria, a religião, o trabalho, tendo claras conotações patológicas. Deviam ser reprimidos, bradavam muitos, mas argumentavam, deviam ser também tratados. (Coimbra, 1995a, p. 57)

A proposta de psicoterapia, mais especificamente, a "rogeriana" surgiu, no final da década de 1960, em várias capitais brasileiras. Contudo, segundo Tassinari e Portela (1996), o surgimento mesmo das idéias de Carl Rogers se deu primeiramente no Rio de Janeiro, através do trabalho de Mariana Alvim, provavelmente a primeira pessoa que estudou e apresentou as noções de Rogers para psicólogos e educadores brasileiros. Segundo essas pesquisadoras, Mariana Alvim conheceu "Rogers em 1945, em Chicago, quando foi estudar as 'boas' instituições nos EUA, que trabalhavam com delinqüentes desvalidos. Aprendeu o que na época se denominava 'entrevista não-diretiva'" (ibid., 1996, p. 21). Em entrevista concedida a essas pesquisadoras:

Mariana nos relata que se sentiu bem recebida pela maneira afetuosa e interessada expressada por Rogers, que já naquele ano mostrou interesse em vir ao Brasil. Em 1947, Mariana foi chamada para organizar o ISOP (Instituto de Seleção e Orientação Profissional)/RJ, quando passou a usar efetivamente a "técnica não-diretiva". Ela também foi parcialmente responsável pela inserção de Maria Constança Villas Bowen na Abordagem. Mariana teve oportunidade de participar de vários workshops nos EUA e no Brasil, tendo mantido contato estreito com Rogers e partilhado de suas idéias de maneira viva, aplicando-as em seu trabalho, sem, contudo, ter criado um grupo específico de disseminação. (Ibid., 1996, p. 22)

Já em Belo Horizonte, as idéias de Carl Rogers começaram a ser discutidas na primeira turma do primeiro curso de graduação em Psicologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que teve seu início em 1963.

Antonio Quinam relata sobre a constituição do primeiro grupo de estudos da Abordagem Centrada na Pessoa em 1970, que posteriormente se constituiu em sociedade civil designada Cenep - Centro de Estudos de Psicoterapia, dissolvido em 1978, ainda que alguns de seus integrantes continuem até hoje, como um grupo de estudos. Temos notícias do Primeiro Grupo de Formação de Psicoterapeutas, coordenado por Antônio Luiz Costa, no final da década de 60, período em que ocorreu grande divulgação da Abordagem, inclusive no meio acadêmico. O grupo mineiro foi, de certa forma, influenciado por Pierre Weil, Max Pagés, Maria Bowen, Maureen Miller. (Ibid., 1996, p. 8)

No Recife, também na década de 60, segundo pesquisa realizada por Tassinari e Portela (ibid.), as faculdades de Psicologia dessa capital passaram a oferecer disciplinas obrigatórias na graduação, relacionadas às idéias de Rogers; a partir daí, vários cursos de formação de psicoterapeutas acabaram sendo realizados, "todos por iniciativa de Lúcio Campos, Maria Auxiliadora Moura e Maria Ayres". O resultado da dedicação desses profissionais acabou proporcionando um núcleo considerável de pessoas interessadas pela psicologia rogeriana em diversas cidades do Nordeste. Segundo Tassinari e Portela (ibid., p. 22)

Realizamos várias entrevistas no Nordeste, onde evidenciou-se [principalmente] a forte influência do Lúcio Campos como psicoterapeuta, professor e supervisor de várias gerações de psicólogos desde a década de 60, quando fundou o Instituto de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco. A formação de Campos foi feita nos Estados Unidos, onde se tornou psicólogo, aprofundando seus estudos na "Terapia Rogeriana" (...). Sua influência foi tão fortemente sentida que muitos nordestinos lhe atribuem o declínio dos estudos teóricos e práticas, na década de 70, após seu afastamento das instituições universitárias.

Em Porto Alegre, também no final dos anos 60, a proposta de psicologia rogeriana encontra boa acolhida, tanto no espaço universitário quanto em grupos de estudos. Segundo Ir. Henrique Justo, um dos principais representantes da proposta rogeriana no Rio Grande do Sul, o primeiro contato que ele, particularmente, teve com as idéias de Carl Rogers, foi em 1955/1956, através do livro de um psicólogo italiano que estagiou com Rogers nos EUA.

Na época, eu tinha também um amigo que estava morando nos Estados Unidos, que aos poucos foi me enviando os livros de Rogers. Eu já era professor da PUC/RS, e aos poucos fui me tornando "rogeriano". Institucionalmente, eu comecei a trabalhar com essa proposta de psicologia, após uma temporada de estudos em Paris, com seguidores de Rogers, sobretudo com André Peretti. Quando voltei, em 1968, comecei a apresentar as idéias de Rogers, inicialmente nos cursos da PUC de Porto Alegre, e depois no Centro de Estudo da Pessoa, também na capital gaúcha. Em 1969, Vili Bocklage e eu criamos esse centro de estudos, pelo qual passou uma centena de psicólogos. Como, naqueles anos, ainda não havia nada de Carl Rogers traduzido para o português, eu preparei uma apostila, e logo em seguida redigi um texto, que, depois de algumas remodelações, foi, em 1973, publicado com o título Cresça e faça crescer, que está atualmente, na sua sexta edição. (Ir. Henrique Justo, entrevista pessoal concedida ao autor do presente artigo na cidade de Socorro/SP, em outubro de 2002)

Contudo, foi sobretudo no eixo Rio-São Paulo que a proposta rogeriana de psicologia acabou sendo mais difundida, inclusive, tendo aplicações distintas em cada uma dessas capitais. No Rio de Janeiro, por exemplo, o enfoque rogeriano voltou-se inicialmente, quase que exclusivamente para as práticas pedagógicas. Já em São Paulo, as idéias de Rogers foram, num primeiro momento, melhor aproveitadas no campo da clínica psicológica.

Em São Paulo, mais especificamente, a difusão das idéias de Rogers aconteceu a partir de 1964, através dos cursos de "Aconselhamento Psicológico"2 realizados na USP pelo professor Oswaldo de Barros. De acordo com Coimbra (1995a), a USP, e, com menos intensidade, a PUC-SP e o Sedes Sapientiae foram as instituições brasileiras que mais contribuíram para a promoção e divulgação das idéias desse autor.

De acordo com Fonseca (1983), vale lembrar também que essa proposta de psicologia, surgida inicialmente como uma produção voltada para a classe média norte-americana, acabou sendo, em seguida, transplantada para outros países, inclusive o Brasil, praticamente sem qualquer alteração.

A proposta de psicologia rogeriana, assim que chegou ao Brasil, contou imediatamente com a adesão de pessoas que eram tidas como de vanguarda, especialmente por suas militâncias políticas. Algumas, inclusive, estavam literalmente engajadas nas lutas de resistência contra a ditadura militar, como era o caso, por exemplo, de Iara Iavelberg. Em São Paulo, as principais representantes dessa recém-surgida proposta de psicologia foram Rachel Rosemberg e Iara Iavelberg, ambas alunas regulares dos cursos de Oswaldo de Barros. Iara Iavelberg, particularmente, esteve também envolvida na luta armada contra o regime militar.

Percebe-se, então, que, apesar da proposta rogeriana de psicologia ser muitas vezes acusada, segundo seus críticos mais ácidos, de não considerar os fatores históricos e culturais, estando, portanto, completamente desvinculada da realidade brasileira, ela se instala no Brasil por meio de pessoas nada apolíticas e muito menos desvinculadas da história do país. Inclusive, segundo Justo (2002), quando interrogado sobre a possibilidade de os simpatizantes da proposta rogeriana estarem alienados da realidade política e social brasileira desde o surgimento dessa proposta de psicologia no Brasil, ele me responde da seguinte maneira:

Eu, particularmente, nunca lutei com os militares, não do jeito deles. Eu pensava assim: como eu não posso enfrentar, desarmado, homens que andam de fuzil e baionetas. Contudo, sempre acreditei na possibilidade de enfrentá-los de outras maneiras. Tanto é que no auge da ditadura militar eu orientei uma dissertação de mestrado sobre o Paulo Freire. (Trecho da entrevista concedida por Ir. Henrique Justo ao autor do presente artigo, em Socorro, SP, em outubro de 2002)

Vale lembrar, que tanto Paulo Freire quanto Rogers apresentam como motivo principal, tanto de suas idéias quanto de suas propostas de trabalhos, a busca plena de liberdade para as pessoas através da conscientização histórica e social.

Mesmo assim, façamos a seguinte pergunta: como os psicólogos, e alguns historiadores da psicologia interpretam ou podem interpretar essa "acolhida", no final dos anos 60, à psicologia humanista, em especial, no caso do tema deste artigo, à proposta rogeriana de psicoterapia?

Segundo Coimbra (1995b), por exemplo, com a ditadura militar já totalmente instalada no Brasil, ficava a sensação de que entrar para a clandestinidade através da luta armada ou de outra forma de resistência, como muitos fizeram, apesar de ser uma alternativa de enfretamento e manifestação das insatisfações com o regime, não era, talvez, o melhor caminho. Para ela, havia na época o entendimento de que as pessoas que se dedicavam à militância política eram, não somente irresponsáveis, pois colocavam em risco suas vidas e as de suas família, mas também desestruturadas emocionalmente.

Para essa autora, a resistência ao regime e à opressão, assim como as insatisfações e o questionamento, tão vivos nos anos 60, colocavam, para os psicólogos, de um modo geral, a necessidade de buscar formas alternativas voltadas para o fortalecimento do indivíduo, de modo a reforçar sua capacidade de resistência, sem no entanto deixá-los tão expostos à fúria do regime:

(...) [Era] fundamental a acumulação de forças e para tanto a atuação em seus locais de trabalho, como uma forma de resistência (...). A psicologia humanista, a metodologia não-diretiva e, enfim, as terapias "alternativas" aparecem para muitos como uma resposta. (Coimbra, 1995b, p. 264)

Com isso, a psicologia humanista proposta por Carl Rogers pode, na minha interpretação, ser perfeitamente entendida como uma aliada nas lutas contra a desumanização, as opressões, as injustiças; como uma das possíveis formas de resistência aos abusos do regime.

É preciso reconhecer que Rogers ganha maior evidência na história da psicologia, especialmente a partir do momento em que apresenta uma nova proposta de abordagem humana. Suas idéias indicam que, diante das dificuldades da psicologia em lidar com os problemas políticos e sociais, uma alternativa pode ser trabalhar centrando-se exclusivamente na pessoa.

Segundo Mondin, são várias as definições propostas para o termo pessoa.

[Têm-se] as definições psicológicas, que são aquelas apontadas por Descartes, Hume, Fichte e que identificam a pessoa com a autoconsciência. Há também as definições dialógicas, que são aquelas de Mounier, Ricoeur, Levinas, Buber, que afirmam consistir a pessoa na capacidade de dialogar com os outros, e as definições ontológicas, que sugerem ser a pessoa a própria essência, a substância, ou mesmo, o ser do homem. (Mondin,1998, p. 25)

Veremos, no decorrer deste artigo, que a proposta rogeriana contempla nitidamente esses três grupos.

Segundo Moreira (2001), por exemplo, é a partir da idéia de homem como pessoa que o pensamento rogeriano se organiza em uma proposta de psicoterapia.

A revisão cronológica dos escritos rogerianos mostra como ele vai se constituindo, se ampliando e se reformulando ao longo dos anos. Da teoria não-diretiva à Abordagem Centrada na Pessoa existe um longo percurso, em que idéias vão sendo superadas, pontos de vistas complementados e reelaborados. Entretanto, é interessante notar como a concepção de homem de Carl Rogers se mantém, ao longo de toda a sua teorização, ligada à noção de pessoa como centro. (Leitão, 1990, p. 57)

Para Carl Rogers, a realidade deveria passar, no contexto da psicoterapia, a ser analisada pela subjetividade privatizada. Esse autor sempre foi um apaixonado pela subjetividade humana. Segundo Rogers, toda pessoa existe num mundo de experiências em constante mutação, do qual ela é o centro. Com isso, seguindo a sua proposta de psicologia, "as coisas" passariam a ser interpretadas de acordo com a lógica interna e individual de cada subjetividade. Foi assim, no meu entendimento, que começou, na história recente do Ocidente, a se trabalhar mais efetivamente com os homens, fazendo com que a realidade passasse a ser visualizada, também, pelo viés psicológico.

Para Carl Rogers, definitivamente, o homem não é uma máquina, nem, muito menos, um ser guiado por forças inconscientes, mas uma pessoa em vias de autocriação. Diante do contexto histórico, político e social de sua época, Rogers apresenta, como tese central para a sua proposta de psicologia, uma outra concepção de homem, fundamentalmente construtiva e auto-reguladora. Para esse psicólogo, "toda pessoa possui dentro de si os recursos necessários para o seu próprio crescimento". Porém, esses recursos só estarão ao alcance se um clima definido de atitudes psicológicas for oferecido por uma outra pessoa. A psicologia que Carl Rogers procura validar, naquele momento, tem como pano de fundo básico uma visão de homem como um ser em busca constante de si mesmo, que vive um contínuo processo de vir a ser e que apresenta uma tendência natural para se desenvolver.

Diante de tudo o que vinha ocorrendo nos anos 60 e, principalmente, após a experiência de duas grandes guerras mundiais,

(...) as pessoas estavam ficando cada vez mais resistentes a estabelecer vínculos mais profundos e duradouros, vivendo cada vez mais o vazio afetivo, a angústia, o desespero e a desesperança. As pessoas vinham, dia após dia, despotencializando-se, desumanizando-se cada vez mais. (Escípio da Cunha Lobo, entrevista pessoal concedida ao autor do presente artigo na cidade de Belo Horizonte, em setembro de 1998)

Rogers busca discutir, incessantemente, a criação daquilo que ele definiu como as condições apropriadas para o afloramento de potências e essências existentes em cada indivíduo. Acrescente-se que, ao longo dos anos, essa orientação para o "crescimento pessoal" se fundiu com os training groups (T. Group)3 e, conjuntamente, formaram o que veio a ser o núcleo do Movimento Grupalista, que acabou se espalhando pelos Estados Unidos na década de 60 e na primeira metade da década seguinte, expandindo-se também para vários países da Europa e da América Latina, propondo e ajudando a organizar os chamados "Centro de Desenvolvimento do Potencial Humano".

(...) O T. Group e o grupo de base rogeriano são um marco, o dispositivo em que se injeta a nova cultura, na qual convergem contribuições da contracultura enquanto ideologia e experiência, mas também a influência das novas formas de psicoterapia. (Lapassade, 1980, p. 62)

Rogers propõe mudanças gerais nas relações de poder, entendendo que as relações de poder próprias do sistema capitalista anulam a liberdade de escolha ou de decisão das pessoas. Para ele, essas relações, quando ocorrem assimetricamente, como vem ocorrendo, reforçam ainda mais os laços de dominação. Os relacionamentos humanos, para esse psicólogo, estão bastante comprometidos com um modelo já falido de relações. Segundo ele, os modelos de relacionamento, da maneira como vêm se efetivando, impossibilitam a libertação das pessoas. São relações por demais autoritárias, pautadas exclusivamente em verticalidades, e funcionando, principalmente, por meios opressivos. Diante dessas reflexões, uma "saída", segundo Rogers, seria que se procurasse viabilizar com alguma urgência novos modos de relacionamento, de organização e condução das pessoas. Segundo Leitão (1990), não é que Rogers pretenda dar poder às pessoas, ele apenas sugere que não o tirem.

Coerente com esses pressupostos, sua proposta de psicoterapia está totalmente respaldada na idéia de encontrar algum refúgio psíquico para as pessoas e na crença que ele tem no próprio poder de cada um para resolver mais efetivamente suas próprias questões. Rogers não acredita na eficácia de um macropoder capaz de mudar todas as pessoas ou toda sociedade e, sim, num micropoder, num poder de mudar a si mesmo, num poder pessoal.

Segundo Holanda (1998), o termo "centrado na pessoa", inclusive, para ser mais preciso, surgiu por volta de 1976, mas só se formalizou realmente a partir de 1977, com a publicação do livro de Rogers sobre o Poder Pessoal, onde ele amplia a filosofia da terapia centrada no cliente para outras áreas, tais como administração, supervisão e educação.

Sua idéia era que "através do poder pessoal, as pessoas pudessem combater a ordem social vigente, indo em busca de um mundo mais justo" (Leitão, 1990, p. 66). Rogers aposta na capacidade que as pessoas têm, desde que sejam oferecidas algumas condições psicológicas básicas, para se conduzirem por conta própria, para "se governarem". Através do seu projeto de psicologia, procura discutir questões referentes às liberdades individuais e às potencialidades presentes em cada pessoa.

Rogers enfatizou que o maior potencial da mudança residia na surpreendente capacidade do cliente (denominação que passou a adotar em oposição à conotação de passiva capacidade implícita na designação paciente) para organizar sua própria experiência, por meio de insights propiciados pela estrutura permissiva da consulta, em configurações mais sadias e adaptativas. (Boanaim Jr., 1998, p. 80)

Aí se tem, segundo alguns intérpretes de Rogers, uma das razões do forte impacto de suas idéias no cenário brasileiro, sobretudo das propostas de psicoterapias que surgiam no Brasil. Acompanhando a história das propostas de psicologias recentes nascidas nos Estados Unidos, nos anos 60, também no Brasil, a psicologia rogeriana vai se colocar como um contraponto às propostas da psicanálise e do behaviorismo. Para Rogers, é preciso fazer com que as pessoas passem a acreditar que não estão entregues às forças do inconsciente e muito menos dos ambientes. Para ele, é preciso devolver às pessoas os poderes que cada um tem sobre si mesmo.

Para Boanaim Jr. (1998), Rogers propõe simplesmente que os terapeutas passem a acreditar mais no potencial existente em cada pessoa e que parem de fazer quase tudo o que vinham fazendo na condução dos processos psicoterapêuticos. Ou seja, propõe que parem de interpretar, diagnosticar, orientar, analisar, aconselhar, prescrever, enfim, dirigir o processo, tendo em conta, especialmente, a sua condição de especialista que sabe o que é melhor para o outro.

Para Rogers, as pessoas, de um modo geral, apresentam em comum a característica de serem capazes de se autodesenvolverem, sempre em direção ao melhor de si, tendo em vista as capacidades próprias inerentes a cada indivíduo. Segundo ele, todo ser humano tem um potencial de crescimento pessoal natural, que lhe é inerente para desenvolver todas as suas potencialidades e para desenvolvê-las de maneira a favorecer sua conservação e seu enriquecimento.

Rogers acredita, portanto, que todo ser humano tem um potencial de crescimento pessoal natural, que lhe é inerente e que ocorrerá desde que lhe sejam dadas as condições psicológicas adequadas para tal. Seu pensamento enfoca o homem como uma totalidade, um organismo em processo de integração. (Leitão, 1986, pp. 66-67)

A aceitação desse potencial de crescimento pessoal natural e a idéia de autorealização favorecem o posicionamento do terapeuta antes como um facilitador do que alguém que atua sobre o outro.

(...) Rogers dá uma ênfase toda especial ao papel dos sentimentos e da experiência como fator de crescimento. Para ele, a experimentação dos sentimentos é o caminho para a integração e o desenvolvimento pleno do ser humano. É a experiência do momento e a vivência plena dos sentimentos que ocasionam a manifestação ativa do potencial de desenvolvimento existente na pessoa. (Ibid., pp. 66-67)

Para Rogers, a matriz, tanto do conhecimento como da afetividade, é a experiência. Segundo ele, todos os aspectos da experiência peculiarmente humana são levados em consideração pela sua proposta de psicologia: o amor, o ódio, o medo, a esperança, a felicidade, a responsabilidade, o sentido da vida, etc. Carl Rogers estava convencido de que as pessoas devem confiar em seus próprios exames e nas interpretações de seus próprios sentimentos e experiências. Ele também acredita que as pessoas podem melhorar conscientemente a si mesmas. Essas idéias, inclusive, vão se tornar primordial para a sua proposta de não-diretividade em psicoterapia.

A não-diretividade ou a ênfase em formas de atuação permissivas, não-autoritárias, avaliativas ou direcionais no processo terapêutico tornou-se, inclusive, o traço mais comum de identificação dos psicólogos rogerianos. A não-diretividade é um conceito que atravessa, participa e permanece em todas as fases da constituição da Abordagem Centrada na Pessoa. Na proposta rogeriana de não-diretividade, a idéia básica é mesmo a de não direção, ou seja, a abstenção "total" por parte do psicoterapeuta de ações ou intervenções que possam vir a servir como guia no processo de crescimento da pessoa.

Rogers estava fazendo, de fato, uma espécie de proposta, ou melhor, antiproposta revolucionária e desconcertante para o psicoterapeuta de então: pare de fazer tudo o que esteve fazendo, pare de atuar sobre o outro, pare de tentar dirigir seu processo de mudança; apenas ouça, apenas seja sensível, apenas entenda, apenas confie nessa pessoa, apenas esteja com ela, apenas lhe permita ser, e descubra, nesse processo, as surpreendentes direções de mudança, auto-reorganização e crescimento a que isso pode levar. (...) A essa radical mudança de orientação e de atitude, em oposição às tendências diretivas e centradas no terapeuta que dominavam o cenário de então, Rogers denominou orientação "centrada no cliente" ou "não-diretiva". (Boanaim Jr., 1998, pp. 80-81)

Rogers procura não mais privilegiar tanto as questões ligadas ao psicodiagnóstico, não privilegiar os temas que reforçavam ainda mais o poder do terapeuta em relação ao cliente; busca, sim, que os psicoterapeutas ousem voltar ao máximo possível a sua atenção para as potencialidades inerentes a cada pessoa. Sua proposta é que os psicólogos se concentrem mais no crescimento e no desenvolvimento da pessoa, deixando seus clientes mais livres para se autoconduzirem. A proposta rogeriana sugere aos terapeutas que eles procurem, simplesmente através das suas atitudes, ajudar seus clientes a viverem melhor, terem melhores condições para lidar com os embates da vida e que promovam novas formas de relacionamento humano para que as pessoas que, porventura, eles venham a atender, possam adquirir mais confiança em si mesmas.

Na orientação não-diretiva, acredita-se que existe em todo ser humano um processo natural e permanente de desenvolvimento, onde o indivíduo está em busca de sua auto-realização, autonomia e ajustamento. Quando estes resultados não são alcançados é porque alguma barreira esta impedindo o processo. Desta maneira, a melhor forma de ajudar alguém é contar com a força natural e permanente que ele já tem dentro de si. É criar condições favoráveis para que ele liberte o seu desenvolvimento, identificando e reiterando os obstáculos que o estão impedindo. (Rudio, 1999, p. 17)

A idéia da não diretividade foi, originariamente, aplicada na psicoterapia proposta por Rogers. Com o decorrer do tempo, essa proposta de método psicoterápico foi progressivamente se estendendo a outros setores do relacionamento humano como o educacional, familiar, empresarial, etc. Segundo Kinget (1975), vale ressaltar que o método é não-diretivo, o que não significa que ele não tenha direção. "Toda situação psicoterápica está impregnada de direção - isto é, de significação orientada - por mais não-diretiva que seja a atitude do terapeuta".

Segundo Holanda (1998, p. 103):

(...) é nesta atmosfera de permissividade que surgem as mais contundentes críticas direcionadas ao papel pouco ativo que o terapeuta exerceria, o que levou a uma série de mal-entendidos e de mitos sobre a figura do terapeuta "que não fala" em terapia. Na realidade, seu esforço era uma tentativa de desarticular a conotação de autoridade relacionada ao terapeuta.

A proposta de não-diretividade está associada, não à idéia de um novo método para os psicoterapeutas, mas a uma nova postura de relacionamento humano, completamente diferente do que vinha ocorrendo nos consultórios de um modo geral. Sua intenção era que essa proposta fosse levada para outros espaços, além dos gabinetes de atendimento psicológicos. Em verdade, o que Rogers estava propondo era uma nova postura, um novo modo de ser para trabalhar com as pessoas. E isso poderia acontecer, tanto nos consultórios como nas salas de aula, nas empresas, nas igrejas, etc.

Do ponto de vista educacional, de acordo com Almeida, é notório, na década de 70, que uma série de escolas brasileiras passaram a se organizar pedagogicamente, baseando-se na psicologia rogeriana, visando, sobretudo, à proposta não-diretiva na educação.

Estas escolas não foram bem-sucedidas devido a uma série de deturpações no entendimento do que seria o não-diretivismo, que acabou se transformando numa espécie de laissez faire. Havia, por parte dos críticos, um tom bem jocoso quando se dizia adotar a proposta nãodiretiva: "ah, então vocês são os que deixam os alunos fazerem o que quiserem?". (Laurinda Ramalho de Almeida, entrevista pessoal concedida ao autor do presente artigo na cidade de São Paulo, SP, em agosto de 2001)

Contudo, a intenção da proposta rogeriana sempre foi a de ajudar as pessoas a procurarem fazer alguma coisa por si mesmas e aprenderem a se posicionar mais satisfatoriamente no meio em que vivem.

Nesse sentido, os psicólogos rogerianos consideram que a base necessária para as mudanças desejáveis do indivíduo é a plena compreensão e aceitação de si mesmo. Entendem que tanto a relação terapêutica quanto a educacional devem se apoiar essencialmente no respeito à pessoa do cliente. Acreditam que todo ser humano deseja, em qualquer circunstância, "ser ouvido atentamente, compreendido honestamente e respeitado incondicionalmente na sua condição de sujeito" (Cunha Lobo, entrevista pessoal concedida ao autor do presente artigo na cidade de Belo Horizonte, em setembro de 1998). Para isso, Rogers e seus colaboradores desenvolveram o conceito de consideração incondicional à pessoa como um dos princípios básicos4 da Abordagem Centrada na Pessoa. Para eles, a pessoa, quando entra em relação com um terapeuta ou professor, já vem com toda uma carga de experiências nas quais já fora, de algum modo, repelida pelas outras pessoas.

Neste sentido, o cliente [ou aluno] procura uma aceitação de si-mesmo quando do evento do encontro. A aceitação será, então, um respeito pelo cliente [ou aluno], por sua independência - com seus próprios sentimentos e experiências -, por seu sofrimento e sua dor (Holanda, 1998).

Segundo os psicólogos rogerianos, a partir do momento em que a pessoa passa a entrar em contato com eles, a atitude deles enquanto "facilitadores" será sempre de consideração incondicional à condição de vida e de expressão verbal dessa pessoa; aceitam, seja o que for, que partir da pessoa.5 Essa aceitação, evidentemente, refere-se ao campo da fala, das expressões da pessoa, considerando especialmente as suas experiências no campo da linguagem; é o que eles chamam de consideração incondicional a experiência de vida da pessoa.

Um dos psicoterapeutas entrevistados, Cunha Lobo, por exemplo, fez questão de acrescentar que:

(...) a aceitação incondicional no contexto da psicoterapia não é, decididamente, aprovação nem tampouco reprovação. Para mim, essa "postura facilitadora" tem muito mais a ver com a atitude compreensiva, que é um outro princípio que os "rogerianos" adotam em seus trabalhos. (Trecho da entrevista concedida por Cunha Lobo ao autor do presente artigo, em Belo Horizonte, em setembro de 1998)

A compreensão empática (ou atitude compreensiva)6 diz respeito à capacidade que o psicólogo tem de compreender a experiência que o outro está vivendo, sendo capaz de ouvir a descrição da experiência que está sendo relatada sem fazer qualquer juízo ou julgamento.

Junto ao tema principal da existência, com suas implicações de liberdade, escolha, responsabilidade, aparece também a idéia de coexistência, segundo a qual o interesse está totalmente voltado para a relação interpessoal, para a abertura ao outro. Para Rogers, o papel das outras pessoas, especialmente das pessoas consideradas mais significativas, sejam elas pais, professores, amigos, psicoterapeutas, etc., é de suma importância para a criação de um clima terapêutico onde sejam oferecidas as condições necessárias para o desenvolvimento humano se dar. Na linguagem de Rogers, essas "pessoas" que acabei de citar devem ser os facilitadores do processo de crescimento do indivíduo.

Segundo Rogers, tanto os pais como os professores, os terapeutas, etc. devem ser capazes de criar as condições existenciais necessárias, através das quais as potencialidades do indivíduo - filhos, alunos, clientes - possam emergir.

Em resumo, para Carl Rogers, o crescimento, o desenvolvimento e mesmo a aprendizagem são processos que dependem muito dos tipos de relacionamentos que se estabelecem com outras pessoas. Para a psicologia rogeriana, "o eu precisa do outro". Na realidade, essa proposta de psicologia se distingue das demais por dar uma ênfase toda especial ao encontro efetivo entre, no mínimo, dois seres humanos, ou seja, o encontro com o outro, desde que este crie ou possibilite as condições psicológicas adequadas para o desenvolvimento humano, esse encontro facilita a mudança e a aprendizagem das pessoas.

Segundo Holanda,

Carl Rogers (...) ao reposicionar o terapeuta na relação com o seu cliente, [ele] redimensiona o valor e o papel do ser humano nas relações humanas e na sociedade. Suas idéias primam pela presença e pelo sentido do humano nas diversas relações. (1998, p. 47)

O modo como os psicólogos rogerianos realizam os seus trabalhos vai mostrando nitidamente para eles mesmos que, na medida em que eles vão aceitando os seus alunos ou clientes, essas pessoas começam também a se aceitarem. Ao aceitarem a si mesmas, elas começam a se compreender melhor; compreendendo-se melhor, elas atingem um grau maior de conhecimento sobre elas mesmas e sobre as suas experiências.

Para Cunha Lobo, mais uma vez, a relação terapêutica, como ele costuma praticar, "parte sempre da congruência7 dele mesmo, visando fazer com que o seu cliente também conquiste a sua própria congruência" (trecho de entrevista).

Para Holanda, o estado de congruência do terapeuta delimita uma maneira de ser da pessoa na relação. Trata-se do que Rogers define por autenticidade, sinceridade.

A hipótese é que quando o terapeuta se mostra presente na relação, quando não se esconde por detrás de uma condição de sábio ou de detentor do poder sobre seu cliente, mas simplesmente é ele mesmo na relação, com sua subjetividade e sua personalidade e consegue ultrapassar essas barreiras profissionais ou pessoais e se colocar realmente na relação, o cliente experimentará um sentimento de segurança que lhe possibilitará crescer positivamente. Esta condição é o primeiro momento para o evento de uma relação verdadeiramente existencial, é a abertura da pessoa do terapeuta para a pessoa do cliente. (Holanda, 1998, pp. 92-93)

Uma outra idéia comum entre esses psicólogos é o que eles consideram como o objetivo da proposta rogeriana por excelência. Para eles, as pessoas só serão responsáveis pelos seus atos a partir do momento em que tomarem consciência deles. Desse modo, a psicologia que eles praticam almeja, sobretudo, a tomada de consciência da pessoa por ela mesma através do encontro autêntico. Em outros termos, pode-se dizer que o objetivo da proposta rogeriana de psicologia, seja no consultório, seja na sala de aula, é levar (ou criar condições para) a pessoa a saber ou vir a saber quem ela é; a conhecer-se melhor e, a partir daí, poder expressar em linguagem simbólica os sentimentos por ela experienciados.

O trabalho dos "rogerianos", segundo os entrevistados, procura possibilitar para as pessoas algum tipo de abertura, querendo facilitar-lhes a entrada em contato com os seus próprios sentimentos, com as suas experiências e com o mundo circundante. As pessoas entrevistadas (tantos os que ainda são "rogerianos", quanto os que já deixaram de ser), foram unânimes em afirmar que todo o empenho nessa proposta de psicologia aponta para uma ampliação da consciência de si pela pessoa. Essa proposta de psicologia repousa na valorização dos aspectos intersubjetivos do relacionamento entre cliente e terapeuta, aluno e professor, filho e pais, etc. Para Rogers, a tarefa primordial do psicólogo é tentar criar as melhores condições psíquicas para que qualquer indivíduo possa "tornar-se pessoa".

Os psicólogos rogerianos procuram trabalhar numa concepção de desenvolvimento humano em que o fundamental é a qualidade da relação estabelecida entre as pessoas. Eles alegam que o objetivo da sua proposta de psicologia é contribuir sempre para o processo de humanização e (re)socialização do sujeito humano. Para eles, as suas estratégias de intervenção relacional estão voltadas exclusivamente para a possibilidade de desvelamento das potencialidades inerentes a cada pessoa. O que procuram como psicólogos é ampliar, de uma maneira geral, as potencialidades humanas, possibilitando que as pessoas se tornem cada vez mais conscientes de si mesmas e do mundo em que elas se encontram.

Em síntese, os psicólogos rogerianos procuram criar as condições favoráveis para a pessoa descobrir o seu próprio caminho e percorrê-lo por conta própria. O interesse desses profissionais - sejam educadores ou psicoterapeutas - é que a pessoa aprenda por si mesma. Que as pessoas aprendam de algum modo a confiar mais em si mesmas, nas próprias percepções e interpretações.

 

Referências

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Recebido em maio de 2005.
Aprovado em agosto de 2005.

 

 

* Dedico este texto aos meus entrevistados: Abigail Alvarenga Mahoney, Antônio Campos Neto, Diana Belém, Escípio da Cunha Lobo, Ir. Henrique Justo, Laurinda Ramalho de Almeida, Márcia Alves Tassinari e Vera Maria Nigro de Souza Placco; a eles meus sinceros agradecimentos por compartilharem comigo suas experiências e seus conhecimentos.
1 Naturalmente, o desaparecimento, a prisão ou morte de pais, mães, maridos, mulheres, irmãos, irmãs, filhos ou filhas transformavam o cotidiano das pessoas num verdadeiro pesadelo.
2 Para os rogerianos, de um modo geral, a Abordagem Centrada na Pessoa pode assumir, conforme o caso, a forma de aconselhamento ou psicoterapia. Há uma tendência, entre os psicoterapeutas que fizeram opção por essa abordagem, em utilizar o termo aconselhamento para designar entrevistas preliminares e superficiais, reservando o conceito de psicoterapia para contatos mais intensivos e com duração mais prolongada, nos quais é almejada uma organização mais sistemática da subjetividade. Segundo Rudio (1999), Carl Rogers utilizava esses termos, indistintamente.
3 Os training group (T.Groups) surgiram da dinâmica de grupo lewiniana. Eles colaboraram principalmente para a difusão dos conceitos de Kurt Lewin e também com outras noções vinculadas às investigações com pequenos grupos.
4 A descrição desses princípios, na ordem em que serão apresentados, terá apenas um caráter didático. Os rogerianos entendem que não há "maior" ou "menor" importância entre esses princípios, todos são igualmente importantes. Para esses psicólogos, as pessoas só vão abandonar suas defesas, e conseqüentemente possibilitar uma abertura, tanto para elas mesmas quanto para o outro, se essas condições ou princípios forem sendo oferecidos simultaneamente, dinamicamente nas relações.
5 Segundo Holanda (1998), a analogia de que Rogers lança mão para ilustrar essa condição é a do sentimento de um pai para com uma criança que é apreciada enquanto pessoa, e não em função de um comportamento em particular.
6 Esse conceito refere-se a um outro princípio - ou atitude facilitadora - segundo o qual se recorre diretamente à noção de intersubjetividade. A intersubjetividade pressupõe que o outro possa ser compreendido, que as experiências do outro possam ser reconhecidas.
7 Esse psicoterapeuta acrescenta que entende a congruência como a compreensão que uma pessoa possa ter ou vir a ter sobre si mesma.

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