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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.17 São Paulo jun. 2006

 

ARTIGOS

 

Sobre a necessidade de crer1

 

On the necessity to believe

 

 

Sophie de Mijolla-MellorI

Universidade Paris VII. Escola Doutoral de Pesquisa em Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, espécie de introdução ao livro A necessidade de crer, publicado recentemente no Brasil pela editora Unimarco, a autora expõe os eixos principais de sua obra, mostrando a complexidade da crença na obra freudiana e no trabalho psicanalítico, assim como sua atualidade no mundo contemporâneo.

Palavras-chave: Crença, Necessidade, Idealização, Religião, Criatividade.


ABSTRACT

This work introduces the main themes and axes of my book, The necessity to believe, recently published in Brazil by Unimarco, pointing to the complexity of the issue of faith in the Freudian work, its clinical and theoretical importance, and the various psychoanalytical aspects of its actual relevance in our society.

Keywords: Faith, Necessity, Idealization, Religion, Creativity.


 

 

O livro A necessidade de crer (Mijolla-Mellor, 2004) não foi escrito como resposta à ascensão do fundamentalismo no mundo, uma vez que essaquestão vem me preocupando há um certo tempo. Digo de início que minha perspectiva é laica, e como filósofa de origem, a questão coloca-se como uma daquelas que exigem explicação. Encontrei a noção de crença na qualidade de filósofa, aceitando a tranqüila certeza de Freud de conceber a religião como uma ilusão em oposição a uma visão científica do mundo. Tornei-me psicanalista, dediquei muito tempo aos meus pacientes e passei a me interessar pelo fenômeno da crença – não apenas da crença religiosa, mas a partir basicamente de uma indagação sobre a depressão e os antidepressivos de todo tipo. Daí porque me refiro a uma necessidade, e não a um anseio ou a um desejo de acreditar.

A conotação vital que envolve o termo necessidade faz-me pensar na busca de sentido, como a que encontramos de uma maneira bastante dramática na psicose, essencialmente, mas também de modo talvez um pouco mais banal e mais freqüente nos questionamentos da adolescência, no ingresso na idade adulta, na crise dos quarenta anos e em outras circunstâncias, que tendem a motivar a busca pela análise. Com isso, voltei a uma indagação antiga acerca da dúvida; eu havia abordado a questão da dúvida sob outro aspecto em meu primeiro livro, O prazer de pensar, e ela continua a aparecer sob esse ângulo, como condição dentro de um processo de subjetivação, para se ter acesso àquilo que chamo o prazer de pensar. Uma necessidade, portanto, de abandonar aquilo que descrevo como o paraíso das certezas – que é preciso perder para que possa ser reconstituído em outro lugar e de outra forma – e, portanto, de encontrar o prazer. A dúvida apareceu-me em uma certa seqüência, talvez nas ligações da reflexão sobre a depressão, em um ângulo totalmente diferente, basicamente em seu valor deletério, sob outra face, a do perigo. Qual perigo? Aquilo que identificamos como desinvestimento vital, em que o sujeito é impelido a diversos comportamentos auto-destrutivos – alcoolismo, drogas ou condutas de risco –, que podem resultar também em um imobilismo, ausência de anseios, desejo de não desejo; ou seja, como expressão da pulsão sob a sua forma não vinculada.

A crise das ideologias e seu desabamento, como a que minha geração dos anos 60 conheceu, provavelmente foi uma motivação subjacente eficiente nessa trajetória, que me levou à vontade de interrogar a crença de forma diferente daquela empregada por Freud. Temos o costume de lembrar de Freud. Existe uma simetria entre meus dois livros, que foram redigidos com dois anos de diferença – A necessidade de saber e A necessidade de crer –, na medida em que tento mostrar que não existe uma oposição entre saber e crer, a não ser em uma perspectiva cientificista. É a tal perspectiva cientificista que nós, psicanalistas, temos que responder hoje, uma vez que é a partir dela que a psicanálise é atacada atualmente. Portanto, o que tentei demonstrar é que razão e crença podem se combinar, e não se deve considerá-las opostas, que acarretaria um desencadeamento fatal.

Um outro eixo de minhas pesquisas, que está fortemente presente em meu livro, mas que não vou desenvolver aqui, refere-se à psicose, a qual, evidentemente, é bastante relevante em função da dúvida, da preocupação constante em se indagar e se interrogar sobre a possibilidade de diferenciar a certeza da convicção. A partir daí, desenvolvi algumas reflexões acerca daquilo que chamei de “próteses de certeza”. As teorias delirantes fornecem, então, os modelos mais importantes. Uma outra perspectiva, que finalmente permeia meus textos, é a questão do lugar em que se dá a morte, ou mais especificamente, o pensamento sobre a morte. É ao redor dessa necessidade, e ao mesmo tempo dessa impossibilidade de pensar a morte, que me voltei para a descoberta freudiana das “teorias sexuais infantis”, ou seja, esse momento em que a criança com três ou quatro anos de idade começa a perguntar como nascem as crianças. Em outro lugar eu já havia postulado, notadamente a partir da clínica, que vejo aí algo arcaico de uma construção de um mito sexual, mais do que uma teoria. Penso tratar-se de uma espécie de atividade com fortes elementos sensoriais, que se constituem como excitação de ordem sexual, porém como prolongamento do narcisismo infantil. Eis aqui o núcleo arcaico da necessidade de crer matizado em uma modalidade mítica pessoal sobre o começo e o fim da vida. Parece-me que Freud negligenciou aí algo importante: a questão da origem da vida e, concomitantemente, do final da vida. Não há como questionar o nascimento sem indagar, simultaneamente, sobre a morte. A maioria dos mitos reporta-se às origens, porém sempre em associação ao fim, ao final da vida.

A pesquisa que empreendi em torno da necessidade de crer tomou três eixos de desenvolvimento. O primeiro volta-se para a fonte desta necessidade: as fontes afetivas daquilo que pode levar à crença, e ao mesmo tempo à representação que se faz de Deus. As fontes afetivas relacionam-se a duas noções freudianas. A primeira é o sentimento oceânico que surge no diálogo com o escritor Romain Rolland. Freud afirma nunca tê-lo experimentado, e Rolland tenta persuadi-lo de que a existência desse sentimento oceânico é a prova de um apelo no homem para alguma coisa que seria externa. Freud aceita, então, a existência desse sentimento, mas alega que se reporta a algo interno, tratando-se de uma percepção obscura do Isso, do Id. O Deus no argumento de Rolland converte-se em Freud na percepção do interno, do Id, e, portanto, do sentimento oceânico.

Outra fonte afetiva atrela-se à noção de nostalgia, incitada no dialogo com Jung. O texto de Freud evolui do anseio à mãe, da angústia que o bebê sente na separação da mãe, para uma nostalgia ao pai, à proteção deste. Isso vai ao encontro daquilo que Freud retoma como hipótese dos antropólogos do seu tempo sobre o assassinato original do pai pela horda primitiva e a culpabilidade que ela acarreta em relação ao pai morto, transformando na assunção dos deveres ante um Deus. Tal concepção só se coaduna com o monoteísmo na tradição judaico-cristã, não esgotando a relação afetiva do sentimento religioso, e ainda menos as fontes gerais da espiritualidade. Questiono, portanto, as afirmações de Freud, não somente em sua crítica da religião, quando lança uma nova luz sobre o tipo de vivência compulsiva nos ritos, mas também sobre o sentimento religioso, quando se apodera dessa questão sob o prisma judaico-cristão, excluindo assim as demais religiões. As religiões ou as sabedorias orientais possuem uma relação com o divino que não envolve a culpabilidade. No Islã, por exemplo, a noção de Deus não se confunde com uma referência à paternidade.

Quanto à representação de Deus, tentei estabelecer sua relação com a irrepresentabilidade da morte, o que nos lança para os meandros da análise freudiana sobre o pensamento anímico, as origens do pensamento humano. O que se depreende dessa retomada é que a abordagem psicanalítica da religião mutila-se ao reduzir a última a uma ilusão ou aos ritos obsessivos. Ao contrário, nota-se que desde os totens até o Moisés, a questão da religião não parou de preocupar e perseguir Freud, conferindo a ela uma importância maior do que se tende a pensar. Por outro lado, existe uma ligação, um vínculo entre o patriarcado e a maneira pela qual Freud define o aspecto religioso. Se Jung a define de uma maneira diversa é porque no matriarcado a religião das mães desempenha para ele um papel totalmente diferente.

O desenvolvimento freudiano da espiritualidade a partir do totemismo parece ser de grande relevância. Como analistas, sabemos que o arcaico nunca é ultrapassado, mas está agindo no presente e com um efeito extraordinariamente perturbador. E seja qual for nossa reflexão teórica sobre a religião, é importante, na prática da análise, interrogar-se sobre o tema da crença e sua relação com a depressão de um lado, e com relação a todos os antídotos produzidos para combater a depressão de outro. Os antídotos constituem o centro de meu livro como modalidades profanas e sagradas da necessidade de crer. A partir de minha experiência como psicanalista, quis pesquisar o fenômeno da crença, mas desejei atribuir-lhe um lugar um pouco diferente daquele dado por Freud, quer o de uma ilusão, quer o de construção coadjuvante como meio para suportar a vida.

Freud situa-se dentro de uma reflexão filosófica, quer se trate de Marx ou de Nietzsche. Minha tese, diferente dessa perspectiva, poderia ser resumida da seguinte forma: a necessidade de crer confunde-se com a de encontrar um sentido e, portanto, não se opõe à necessidade de saber. Não há, portanto, uma franca oposição entre ilusão e razão.

Aqui, centrei-me em certas figuras que foram retomadas recentemente: a do herói e a do mártir. Figuras que almejam realizar o ideal, constituindo-o sob a forma de um modelo, oferecendo-o como um vetor para outros. Freud discorre longamente sobre o tema do herói, unindo, aliás, certas análises de Hegel, quando, por exemplo, este explica que o herói é quem dá luz aos demais, uma verdade que eles possuem à sua revelia. Essa figura do herói adquire sua força do vínculo entre ele e a mãe, e deve ser refletida particularmente nos períodos onde ela tende a se impor sob a forma dos terroristas mártires. Conseguir entender a que demanda atende essa loucura faz-se necessário do ponto de vista político e social, mas também do psicopatológico. Nesse sentido, tentei comparar tal entrega com outras da vida privada, por exemplo, na paixão amorosa, mais passional do que amorosa, da forma como se inflama de certeza em seu investimento, o qual nasce claramente contra um movimento depressivo que está em sua base, ou seja, o da perda e da nostalgia por não ter formado uma só unidade com o ser amado.

Em seguida desenvolvo o que denominei como embriaguez sagrada. O significante da embriaguez percorre minha análise o tempo todo; retomo esse conceito de Freud colocando-o à prova. Seria o caso de opor a embriaguez da crença à sobriedade da razão? Acho que não, pois há maneiras mecânicas e frias de crer, ao passo que a razão pode embriagar tanto quanto a crença quando sob a forma do êxtase. Então retomei essa questão de forma parcial, já que seriam necessários vários livros para adentrar o universo da mística, partindo de textos religiosos, principalmente de Santo Agostinho e São Paulo, e também de textos de religiões pagãs gregas, retomando a noção da hieronímia como traço de união com o divino. Interessei-me também por textos atuais de teólogos cristãos sobre a noção de mistagogia e a questão do amor crístico. Freud nos diz que a característica do amor é a de fornecer um molde para nossa aspiração à felicidade. O amor crístico é dotado de uma dimensão suplementar que é extremamente perturbadora, pois a sublimação desse amor leva esse afeto até um ponto onde é ele que fornece o sentido para além do racional. Esse é o sentido da famosa frase de Tertuliano, que aliás Freud cita de forma inexata: “Credo qui absurdum”, ou seja, creio porque é absurdo. Na verdade, Tertuliano diz: creio porque é inepto. É próximo, mas não é a mesma coisa. Inepto, ou seja, inacessível ao sentido. Essa superação do racional não existe apenas na religião – penso que podemos encontrá-la tanto na dimensão do sagrado quanto na arte. Não desenvolverei essa noção aqui, mas o que está em causa é toda a questão da vivência da evidência e do gozo do ver – ver através do pensamento. De uma forma totalmente diferente, o delírio também tem em sua vivência algo desta convicção. O delírio inventa um sentido que o sujeito sente e apresenta como clarividência de uma verdade velada aos outros. Saber distinguir o delírio místico de um êxtase religioso é muito difícil, pois a vivência parece semelhante, embora o discurso delirante seja totalmente diferente. Penso também que o que pode distinguir o delírio da teoria é que a teoria encontra-se em uma permanente auto-gestação, nela encontrando seu prazer.

O último eixo de meu livro pode parecer totalmente diferente, na medida em que não trata mais da religião ou da arte, nem aparentemente da mística, mas das relações entre os psicanalistas – particularmente as de Freud com os colegas e discípulos. É muito interessante notar, a partir de suas correspondências, algo que podemos considerar como uma verdadeira paixão pelo pensamento – paixão essa cheia de esperanças, cóleras, sofrimentos, desânimos, dúvidas, inveja e destruição. Essas correspondências mostram que mesmo quando estamos situados no plano racional, não deixamos de habitar também o âmbito da crença. Freud precisava convencer, é claro, mas por outro lado precisava também ser acreditado, ou que se acreditasse nele. Suas relações com seus discípulos, e inclusive as comunicações que se seguiram, mostram isso muito bem.

Para resumir minhas principais hipóteses sobre a crença, sustento em primeiro lugar que o sagrado existe como sensação arcaica, independente de suas expressões na cultura. Ignorar essa dimensão em nome de uma crítica da razão seria ineficaz, e mais, arriscado, porque levaria a ressurgimentos selvagens, conforme o funcionamento sintomático do retorno do recalcado. Essa sensação do sagrado está ligada à perda das fronteiras narcísicas, e como mencionei acima, à noção do movimento oceânico. Seu movimento está ligado a Eros, porém a realização e a conclusão desse movimento, se pudesse ocorrer, desembocaria no nirvana da Tanatos freudiana. É preciso, contudo, esclarecer que Tanatos como desejo de não desejar provoca um curto-circuito na ilação narcísica, ou de forma mais banal, recorre a coadjuvantes artificiais que levem a isso sem esforço.

A segunda hipótese, a representação mais habitual do sagrado, é a da divindade que é afastada do homem por meio da distância da transcendência. O principal obstáculo à fusão no sagrado é a finitude humana, que se conjuga por meio do eixo morte-nascimento, que é indissociável. É por essa razão que encontramos sempre a idéia de um segundo nascimento, que nas religiões expressa-se pela promessa de ressurreição, sobrevida ou reencarnação cíclica. A presença da morte, necessária para a vida, encontra-se, portanto, no âmago das religiões. Contudo, pode ser interpretada pelas religiões de forma muito diversa. Pode ser interpretada como punição de um erro (eis a dinâmica da punição), do arrependimento, do resgate, e finalmente, do perdão dos homens piedosos. Essa dinâmica não é a totalidade do sentimento do sagrado, é apenas um aspecto. Ela certamente encontra-se nos grandes monoteísmos, e cria ao mesmo tempo uma religião no sentido do compartilhamento – compartilha-se tanto o erro, a falta, quanto a salvação.

A terceira hipótese é de que existem outras maneiras de se vivenciar o sagrado e a transcendência. Freud fala, por exemplo, em “nosso Deus”, o logos. E isso de maneira análoga à que se encontra na filosofia, como o amor intelectual de Espinosa a Deus, a alegria presente no próprio ato do pensamento. Da mesma forma, são conhecidos os diversos estados passionais de êxtase, místicos, delirantes ou o sentimento da imanência do sagrado na arte. Estados da vivência de transcendência sem passar pela religião, ou por esse laço de culpabilidade da religião monoteísta que Freud tem em vista quando critica o religioso. Nesse caso, a morte como acontecimento individual não faz mais sentido, na medida em que o sujeito afirma que graças ao transe ele está além da oposição entre vida e morte.

Por fim, lembro que a força da religião, como a da ideologia, está na capacidade de criar o laço social e provocar interpenetração entre o íntimo e o político. Não obstante, a necessidade de crer não se embrenha forçosamente nesse tecido social. É verdade que a análise freudiana da formação de coletivos e seus funcionamentos nos explica por que as religiões constituem vias mais fáceis para o exercício da necessidade de crer. Pode se dizer também que pelo fato dessas vias serem mais diretas, são mais fáceis de serem recuperadas e desviadas. Contudo, é aberrante afirmar que o fanatismo é o apanágio do religioso. O fanatismo envolve o pensamento teórico e a ideologia política. Para ser verdadeiramente eficaz, ele mistura os três ao mesmo tempo.

De que forma as questões abordadas referem-se à atualidade onde nos encontramos? O fato de que encontremos a morte como a apologia do assassinato e do suicídio por motivos políticos e religiosos certamente deve nos preocupar, como se estivéssemos assistindo ao retorno de uma barbárie que não soubemos prever nem prevenir. Toda época carrega sua própria barbárie, sangrenta ou não. Basta reler os textos de Freud sobre a guerra e a onipresença da crueldade para nos convencermos disso. O que nos perturba mais, do ponto de vista intelectual, é que em nossa ingenuidade ocidental poderíamos pensar que essas religiões haviam sido erradicadas pelos ideais laicos e republicanos, mas voltaram com toda a força, e colocam novamente em foco a questão da morte, dada e recebida no martírio, como um prelúdio e até uma garantia da vida eterna. Como psicanalista, não é a questão da violência individual ou do Estado que motiva essa pesquisa, mas a forma particular que ela assume no laço entre a morte e a religião. A compreensão psicanalítica desse fenômeno individual não explica o fato coletivo; em compensação, no máximo ela pode evitar que resulte em amálgamas inoportunos, segundo os quais haveria religiões mais apropriadas à geração do fanatismo.

Poderíamos ver nisso uma conseqüência da renovação da crença? Penso que há a equação segundo a qual a razão laica é compartilhada infinitamente e não comportaria intolerância ou rejeição do outro, ao passo que a crença religiosa seria acusada de trazer consigo todos os fanatismos e todas as violências. Isso por vários motivos. O primeiro é que a maior parte das religiões implica proselitismo e prevê a possibilidade de receber o outro, contanto que o outro junte-se ao grupo, a seus artigos de fé, a seus costumes e a seus ritos. Mas na lógica das massas, tal como Freud nos ensinou, isso equivale a confirmar o bom fundamento das diversas marcas significantes, portanto confirmando aqueles que já as adotaram.

No entanto, as ideologias laicas podem funcionar exatamente da mesma forma. No passado, o terror revolucionário foi feito contra a religião e em nome da laicidade. Então, é preciso procurar tanto na categoria laica quanto na religiosa o que poderia ser passível de gerar uma dupla espiral – por um lado a rejeição, e por outro o recolhimento. Esse fenômeno, a meu ver, está relacionado às próteses de certeza, tais como podem ser fornecidas pela idealização passional, por exemplo, quer esteja ligada a um indivíduo, a um grupo ou a uma idéia.

O elemento que gera a intolerância e o fanatismo é de fato um elemento específico e nos remete a uma interrogação sobre a pulsão de morte, sob sua forma muito específica que é a busca da pureza. Esta – seja qual for a área em que dá, quer se trate de teoria, de religião ou qualquer outro campo –, tende à entropia. Eu não diria que a violência fanática é a expressão da pulsão de morte. Isso pode parecer paradoxal, principalmente quando ela parece estar adotando a bandeira que proclama: viva a morte. No entanto, trata-se de uma força de vida, uma força vital que se expressa em todo o seu poder, mesmo se isso implica eliminar outras em seu curso. Por outro lado, a busca da pureza que é própria das religiões e das ideologias é autenticamente um produto da pulsão de morte. Tal como é usual das revoluções, a purificação exerce sua ação em primeiro lugar em direção ao exterior, e em seguida forçosamente ela volta-se para o interior. Esse procedimento lógico seria o de alcançar um elemento monádico, fechado em si. O terror revolucionário se auto-sufocaria caso não fosse interrompido na maior parte das vezes por uma reação que vem de fora.

Mostrei em meu livro que a crença religiosa pode ser muito afastada, pode até estar nas antípodas dessa lógica da pureza doutrinária, e para tanto, recorri a vários exemplos. Não tentei considerá-los de forma comparativa em diversas religiões, mas interessei-me principalmente pela noção de mistagogia, a experiência do mestre interior, tal como decorre da teologia agostiniana. Por outro lado, a crença parece-me também ser um fenômeno que inclui a dúvida – a dúvida com sua antítese dialética, sem a qual não existiria. A pureza dogmática pode existir também em termos de psicanálise. Certamente não levará à eliminação física dos psicanalistas entre si – ao menos esperamos que não –, mas ela mostra que mesmo assim existe uma extrema repetitividade dos conflitos, sempre em nome da pureza dogmática. A indiscrição da história manifestada nas correspondências mostra essas paixões, a certeza de ser detentor da verdade, a angústia de ver a verdade saqueada, roubada, e também o desejo de fazer dela um instrumento de poder sobre outro. O que confirma, por sua vez, o que o próprio autor talvez fosse levado a duvidar. O Deus logos talvez pudesse ser similar aos deuses da religião. Paradoxalmente, todo o texto pode tornar-se o suporte de uma força e de uma restrição alienante.

Em conclusão, qual é o objeto desse trabalho sobre a crença? O de conferir um espaço à necessidade de crer, principalmente porque em uma leitura demasiado rápida dos textos de Freud, poderia ser interpretada como uma dimensão vã. Mas o que eu quis, principalmente, foi abrir uma série de questões sem a pretensão de trazer respostas para todas. Então, o que fazemos hoje da análise do fato religioso, tal como proposta por Freud? Poderíamos formular essa análise em outros termos? Será que as teorias antropológicas, nas quais Freud se apóia em grande parte, quando se tornam ultrapassadas carregam essas elaborações freudianas? Finalmente, se nós pudermos legitimamente considerar que o fenômeno religioso retomou, neste terceiro milênio, uma amplitude que havia parcialmente perdido no final do anterior, o que podemos manter, conservar e até prolongar da informação freudiana a esse respeito? É por essa razão que eu quis mostrar de que forma o fenômeno da crença infiltra forçosamente o processo teórico, e que a adesão às idéias nunca é de natureza apenas intelectual. Ela implica entusiasmo, onde aquele que descobre une-se ao artista ou ao crente, e até de forma mais fundamental, ao apaixonado. Esse amor, esse entusiasmo, seria o ponto de junção onde crença e conhecimentos podem se unir.

Igualmente podemos dizer que os mesmos riscos espreitam tanto a crença quanto a razão. Tais riscos resumem-se a uma imobilização dogmática, que capta o âmago da teoria quando é preciso ter os sequazes para os efeitos de poder, ou no desenvolvimento autístico de intuições que não seriam comunicáveis ou passíveis de comunicação. Se a descoberta pode prolongarse em teoria, seus efeitos podem, de acordo com as circunstâncias, incentivar novos focos de pesquisa concorrentes – mas concorrentes no bom sentido da palavra, ou seja, que correm na mesma direção, ou podem também transformar-se em dogma, em que temos que ver não a expressão, mas a perversão da necessidade de crer.

 

Referências Bibliográficas

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MIJOLLA-MELLOR, Sophie de. A necessidade de crer. São Paulo: Unimarco, 2004.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Sophie de Mijolla-Mellor
Université Paris 7
Denis Diderot/UFR Sciences Humaines Cliniques (SHC)
P120 107, rue du Faubourg Saint-Denis – 75463 – Paris CEDEX 10
Tel.: (01-53) 34-9058
E-mail: edoc.psycha@paris7.jussieu.fr

Recebido em 25/10/2005
Aprovado em 03/11/2005

 

 

Notas

I Psicanalista; Membro do Quarto Grupo; Professora de Psicopatologia e Psicanálise e Diretora da Escola Doutoral de Pesquisa em Psicanálise (Universidade Paris-VII, Sorbonne Denis-Diderot); Co-editora da Revista Topic; Autora, entre outros, de A necessidade de crer.
1 Este artigo é baseado na conferência “Metapsicologia: a necessidade de crer”, integrante de Universo do Conhecimento: o homem no mundo contemporâneo – impasses e perspectivas, proferida em 11/11/2004, na Universidade São Marcos.