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versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.10 n.18 São Paulo set. 2006
ARTIGOS
Acompanhamento terapêutico: dispositivo clínico-político
Therapeutic accompaniment: clinical-political device
Analice de Lima PalombiniI
RESUMO
Considerando que o acompanhamento terapêutico, no contexto da reforma psiquiátrica em curso, torna-se uma função emblemática da mistura e contágio das disciplinas psi com o espaço e tempo da cidade, o artigo toma inicialmente como base a noção de dispositivo, tal como a define Michel Foucault, para abordar os elementos que constituem condição para que o acompanhamento terapêutico possa operar como dispositivo clínico-político em apoio à consolidação e colocação em análise do processo da reforma psiquiátrica. Em um segundo momento propõe como problematização para a clínica do acompanhamento terapêutico, fundada em Lacan, Winnicott ou Deleuze-Guatarri, sua operação no espaço múltiplo e aberto da cidade, onde a conflitualidade e o imprevisto inevitavelmente têm lugar.
Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico, Dispositivo clínico-político, Reforma psiquiátrica, Clínica, Cidade.
ABSTRACT
In the context of the psychiatric reform, the therapeutic accompaniment becomes an emblematical function of the mixture of psychological disciplines and contagion with the city, space and time. Initially, this article takes the notion of device, as Michel Foucault defines it, to approach the elements that constitute such conditions so that the therapeutic accompaniment can operate like a clinical-political device in support of the process of psychiatric reform. In a second moment, the article question the therapeutic accompaniment clinic, founded in Lacan, in Winnicott or in Deleuze-Guatarri, its operation in the open and multiple space of the city, where the conflict and the unexpected take place.
Keywords: Therapeutic accompaniment, Clinical-political device, Psychiatric reform, Clinic, City.
Introdução: um colóquio em dois tempos
Ao longo do ano de 2005 estivemos envolvidos com a organização e realização do Colóquio em dois movimentos: de Porto Alegre a Niterói Acompanhamento Terapêutico e Políticas Públicas de Saúde. O evento, ocorrido em dois momentos outubro de 2005, em Porto Alegre, e janeiro de 2006, em Niterói , assinalou a parceria entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a Universidade Federal Fluminense, pela afinidade encontrada entre os Projetos de Acompanhamento Terapêutico desenvolvidos por ambas no ensino, extensão e pesquisa no campo da psicologia, articulados com a rede pública em saúde mental1. Em Porto Alegre e em Niterói, estudantes, professores, pesquisadores, profissionais e gestores em saúde, dentre outros atores sociais, estiveram reunidos para consolidar uma rede e estabelecer interlocuções a respeito do tema do acompanhamento terapêutico no âmbito da reforma psiquiátrica, mantendo aceso o necessário debate entre clínica e política, entre universidade e redes de serviços de atenção em saúde, entre a dimensão pública e a dimensão privada da clínica. O espírito crítico dos debates e intercâmbios propostos levou a problematizar o dispositivo do acompanhamento terapêutico, seja em sua potência clínica de intervenção com usuários, familiares e redes sociais, seja em sua potência analisadora do próprio movimento da Reforma Psiquiátrica2.
O texto que aqui se apresenta condensa nossa participação em duas mesas-redondas, uma em Porto Alegre e outra em Niterói, sob o mesmo tema: o acompanhamento terapêutico como dispositivo clínico-político.
Uma rede de idéias, afetos, trabalho
Queremos, de início, chamar a atenção para a forma coletiva como esse evento aconteceu, onde somente o esforço e a gana de muitos possibilitou sua realização. Entre Niterói e Porto Alegre constituiu-se uma rede feita de idéias, afetos, trabalho, sustentada no exercício do que Derrida (2003) pôde nomear de hospitalidade, que diz de uma abertura incondicional ao outro, ao estrangeiro. De fato, os acompanhantes terapêuticos de Niterói e os de Porto Alegre nunca haviam estado juntos antes. E são diferentes as realidades sóciopolíticas de uma cidade e de outra. Também as teorias em que baseiam sua clínica não são as mesmas. Como se isso não bastasse, em Porto Alegre há um rio, e em Niterói, o mar. Em que pese, porém, tudo o que difere em nós, dispusemo-nos a esse encontro, que se foi tecendo ao longo de um ano de trabalho. E nele nos lançamos dessa forma tão aberta porque apostamos na potência do encontro para a construção de algo que, para nós, coloca-se além de nossas diferenças, e que o folder do evento já assinalava: “o compromisso ético-político de invenção de uma clínica pública, singular e coletiva, clínica que se quer reinventora de si e do mundo”.
Políticas da clínica
Em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e em Niterói, no Rio de Janeiro, a experiência em torno do acompanhamento terapêutico na rede pública somente pôde surgir no contexto de uma política de saúde mental que pôs em obra a construção de uma rede de serviços substitutivos ao manicômio (Palombini, Belloc e Cabral, 2005). Essa política, malgrado as conjunturas que lhe são ora mais ora menos adversas, tem se sustentado do esforço de cada um dos que por ela militam, sejam gestores, trabalhadores ou usuários dos serviços de saúde mental, que vêem como inaceitáveis as condições de isolamento em que foi concebida em seus primórdios, e perdurou durante séculos, uma terapêutica da loucura. A cidade, e não mais o asilo, é o espaço em que a experiência da loucura requer ser acompanhada.
Nesse contexto, o acompanhamento terapêutico torna-se uma função emblemática da mistura e contágio das disciplinas psi com o espaço e tempo da cidade. E seu exercício que se dá entre lugares, entre o serviço e a rua, entre o quarto e a sala, fora de lugar, a céu aberto presentifica uma exigência que a reforma psiquiátrica vem colocar aos seus profissionais, seja qual for o dispositivo em causa: o fato de que uma clínica a serviço dos processos de desinstitucionalização coloca em jogo a desinstitucionalização da clínica mesma.
Não é algo simples, uma vez que a instituição encontra-se na origem mesma da clínica. É no interior do asilo que a psiquiatria tem nascimento, e a partir dela as demais disciplinas psi, que em suas diferentes formas têm dificuldade de se desvencilhar do ideal isolacionista que o asilo põe em causa: a idéia de que a constituição de uma sociedade à parte da sociedade geral, uma sociedade idealmente organizada, permitiria aos loucos, na convivência entre si, superarem a desrazão em benefício da razão que também os habitaria (Gauchet e Swain, 1980). E mesmo o acompanhamento terapêutico não está livre do risco de constituir a rua como um espaço segregado, um novo dentro absolutizado, como escreve Sueli Rolnik (1997), por força de nosso encarceramento nessa espécie de manicômio mental (Pelbart, 1997), que nos acompanha para além dos muros do hospital. Ainda assim, as experiências que pudemos acompanhar (na UFRGS e na UFF, com os estudantes de graduação em psicologia e extensionistas, na Escola de Saúde Pública, com trabalhadores de nível médio dos serviços de saúde mental dos municípios do RS, e no Hospital Psiquiátrico São Pedro3, com a equipe que então se preparava para acompanhar a passagem dos moradores do hospital para o espaço da cidade/Projeto Morada São Pedro), mostraram a potência do uso do dispositivo do acompanhamento terapêutico na construção de redes capazes de superar o manicômio. Porque é um dispositivo no qual o cotidiano mesmo da vida citadina, no qual a relação entre acompanhante e acompanhado encontra-se imersa, convoca ao abandono das certezas próprias a um sistema fechado, pouco permeável à variabilidade dos jogos de força presentes no território da cidade, aos sentidos inesperados e inconclusos que emergem do uso de seus objetos, ao traçado desviante de suas ruas (Palombini, Belloc e Cabral, 2005).
Dispositivo: o que quer dizer?
Que efeitos esse dispositivo produz no campo da clínica e da política? Pudemos afirmar, em outra ocasião (Palombini et al, 2004), que o acompanhamento terapêutico em geral tem uma incidência muito significativa, permite uma aproximação extremamente rica junto àqueles usuários que se mostram inacessíveis ou pouco permeáveis às formas tradicionais de tratamento, ou mesmo às propostas de oficinas e outros dispositivos dos serviços substitutivos. Mas não apenas isso. O acompanhamento terapêutico produz efeitos notáveis também no processo de formação profissional daqueles que se dispõem a ser acompanhantes. No contexto da graduação em psicologia, na UFRGS, tornou-se comum escutar dos alunos a afirmação do quanto essa experiência marcou todas as suas incursões posteriores no campo da clínica, e mesmo em outros campos das práticas psi.
Já no que diz respeito aos trabalhadores da rede, a continência oferecida pelos espaços de supervisão possibilitava que se lançassem de modo novo no trabalho, arriscando-se a despir das velhas formas e aprendendo a cada passo dado junto com o acompanhado. Além disso, o acompanhamento terapêutico também tem uma incidência que se pode chamar de institucional: as incursões do acompanhante pelo fora, a céu aberto, possibilitam uma outra visão, uma outra experiência de encontro com o acompanhado, que é distinta da experiência vivida no serviço. O acompanhante terapêutico trata de fazer chegar essa diferença à equipe, trazendo-a, como um mensageiro, para dentro da instituição, o que termina por exigir da equipe um reposicionamento em relação ao caso, abandonando estratégias que se tornaram rotina, requisitando a intervenção de outros profissionais, fazendo-se cargo de novas frentes de trabalho, inventando formas inusitadas de ação (Palombini et al, 2004). Por fim, há outra incidência, que se poderia chamar de política (ainda que a política atravesse todos esses âmbitos a que nos referimos acima): acompanhando o usuário, tanto em seus percursos pelos serviços e outros dispositivos próprios às políticas públicas, quanto na experimentação de uma sociabilidade que se exerce em espaços variados da cidade, é o próprio processo de implementação da reforma psiquiátrica que é assim acompanhado, pondo em análise o funcionamento da rede e as formas como as comunidades locais, a começar pelas famílias, respondem à desinstitucionalização da loucura.
Mas o que significa dizer que o acompanhamento terapêutico é um dispositivo? Reportamo-nos aqui à concepção de dispositivo de que nos fala Foucault:
[como] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas (...) [de forma que] o dito e o não dito são os elementos do dispositivo (1986, p. 244).
O dispositivo, diz Foucault (p. 244), “é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos”. O acompanhamento terapêutico, então, é essa rede que articula os elementos desse conjunto, que os põe a funcionar.
Com base nas experiências em torno do acompanhamento terapêutico que temos podido acompanhar no projeto de AT da UFRGS e no da UFF; na Escola de Saúde Pública, até 2002; na constituição do projeto Morada São Pedro , gostaríamos de destacar, desse conjunto heterogêneo que constitui o dispositivo do AT, alguns elementos que nos parecem chave para que ele funcione na perspectiva apontada acima, em relação aos quatro âmbitos que destacamos e dizem respeito à sua dimensão clínico-política:
• o primeiro elemento remete à presença da reforma psiquiátrica, na forma de discursos, leis, medidas administrativas, entre outros, e a adesão aos seus princípios por parte dos atores envolvidos cada uma das esferas do governo, por parte do serviço, da equipe, dos profissionais atuantes em cada caso.
• o segundo diz respeito à construção de um espaço de continência e pertença dos acompanhantes terapêuticos, que seja externo ao serviço onde realizam seu trabalho, preservando essa dimensão do fora que o caracteriza. Nas experiências que temos produzido, os espaços de estudo e supervisão na universidade, na Escola de Saúde Pública e na assessoria externa à equipe do Projeto Morada configuram essa dimensão de exterioridade de que se alimenta o trabalho de acompanhamento terapêutico;
• terceiro elemento: a utilização de uma teoria da clínica como caixa de ferramentas para o trabalho. Não a teoria, mas uma teoria, somada a outras, do campo da história, ciências sociais, artes, geografia... Uma teoria da clínica pautada necessariamente pelos seguintes princípios norteadores de uma concepção de subjetividade: primeiro, a idéia de que a subjetividade constitui-se na relação a uma alteridade; segundo, a idéia de que se trata de uma subjetividade não transparente a si mesma, que não se deixa apreender integralmente por um saber; uma subjetividade que guarda uma dimensão de resistência, inconsciente, que não se deixa capturar pelo poder do estado, os poderes da ciência, das tecnologias de saúde;
• o quarto refere-se à disponibilidade para o encontro com o outro, tanto da parte do acompanhante como da pessoa a ser acompanhada. Há uma dimensão de risco nesse encontro, de entrega ao outro, de abertura ao desconhecido e ao inesperado, de onde pode emergir a invenção, de que nem sempre se é capaz.
Qual política opera a nossa clínica?
Retomemos aqui o encontro de que se falava no início deste texto, entre Porto Alegre e Niterói, encontro que aceitou o risco da entrega ao outro e o fez com paixão. Lembremos, por contraste, de uma expressão bastante invocada em anos não tão longínquos, a da dita neutralidade profissional, expressão fraudulenta, forjada para apagar os vestígios que ligam a proveniência das disciplinas psi a um mandato político que as torna indissociáveis de um certo exercício do poder. É preciso que conheçamos de onde provêm e quais são as condições de emergência de nossas práticas para podermos desconstruí-las, reinventando nossos fazeres, nossa clínica. O que não significa, de forma alguma, abdicar da política, pois não há clínica que não seja ao mesmo tempo política, exercício de poderes. A questão é: qual política, qual exercício de poder, opera nossa clínica?
Se a clínica que operamos por meio do acompanhamento terapêutico aposta em uma dimensão não transparente da subjetividade, que resiste à captura, que se afirma como resistência; se nossa clínica abandona a pretensão de transparência, mantendo aberto o campo da conflitualidade próprio a essa subjetividade definida como resistência, então nossa política, conforme a essa aposta, tomará distância da perspectiva de governo das almas, disciplinarização dos corpos, de que o estado moderno incumbe seus profissionais. Nossa política caminhará na direção nômade que segue os caminhos desviantes da invenção.
Contudo, em que medida essa direção é capaz de pautar não apenas (o que já é bastante) nosso fazer profissional, nossa relação com as pessoas a quem se destinam nossos serviços, mas também as formas como nos engajamos na vida e as relações que estabelecemos com o outro? Em que medida não nos deixamos descansar à sombra dos poderes instituídos, afrouxando os laços com tantos outros coletivos, deixando de exercitar na vida nosso poder de resistência, esse poder que mantém firme e tensa a relação entre instituído e instituinte, entre governo dos outros e governo de si, entre formas estratificadas e modos nômades de habitar a polis?
Penso que a rede que fez acontecer nosso Colóquio ensina-nos a fazer valer mais em nossas vidas a mesma aposta que fazemos na vida daqueles a quem se dirigem os nossos serviços: os loucos, os tortos, os torpes, os feios, os pobres, os pardos, todos esses desviantes que habitam também em nós e que podem nos conduzir por caminhos que ainda não ousamos explorar.
Uma clínica na cidade
Voltemos nossa atenção, agora, para o terceiro elemento do dispositivo que referimos acima, ou seja, a utilização de uma teoria da clínica como caixa de ferramentas para o trabalho de acompanhamento terapêutico. A julgar pela bibliografia existente hoje no Brasil acerca do tema, é majoritariamente no pensamento de Lacan, ou no de Winnicott, ou no de Deleuze-Guattari, que a prática clínica do acompanhamento terapêutico encontra sua sustentação teórica4. Nesses autores, sem exceção, podemos identificar os mesmos princípios norteadores de uma concepção de subjetividade, cuja síntese apresentamos acima: a idéia de que a subjetividade se constitui na relação a uma alteridade; a idéia de que se trata de uma subjetividade não transparente a si mesma, que não se deixa apreender integralmente por um saber, guardando uma dimensão inconsciente de resistência que não se deixa capturar.
Sem dúvida, podemos reconhecer em Freud a matriz inspiradora dessa concepção de subjetividade que permeia as três teorias. Mas, isto posto, cada um desses autores lerá Freud à sua maneira, fazendo avançar ou subvertendo um ou outro aspecto da obra que é, por definição, assistemática e plural. Daí se originam concepções distintas de inconsciente, de sujeito, e formas distintas da clínica; e caberia interrogarmo-nos se as conseqüências ético-políticas seriam também distintas. Mas não são essas diferenças o foco do nosso interesse neste momento.
Ainda que tenhamos reunido em nosso Colóquio um grupo de pesquisadores e profissionais que poderiam ser alinhados, se assim o quiséssemos, cada um a uma das três concepções de clínica que acabamos de referir, com certeza não o fizemos na intenção de produzir uma polêmica, que só poderia se afigurar estéril, e na qual, seguindo as palavras de Foucault (1984), cada um trataria de fazer triunfar a justa causa da qual se julgaria, desde o início, o portador manifesto, em rivalidade com os demais. Tomamos o pequeno texto Polêmica, política e problematizações (Foucault, 1984) como guia naquilo que gostaríamos de colocar em debate. Ou seja, não se trata de jogar nossos recursos e esforços no exercício de uma polêmica que teria como resultado a consagração daquela que se poderia designar a boa clínica, conforme a boa política. Interessa, antes, poder situar a problemática comum, que desafia hoje qualquer uma dessas teorias, e que se apresenta de forma emblemática na prática clínica do acompanhamento terapêutico. Qual o problema a ser enfrentado, qual o desafio que nos reúne numa rede de interlocução e que regeu a organização, o ideário desse colóquio? Em quê estamos sendo provocados a buscar respostas? Quais são os fatos, práticas e pensamentos que colocam questões no campo em que nos movemos, que denominaremos genericamente campo da reforma, da saúde mental, do qual o acompanhamento terapêutico é uma das estratégias clínico-políticas?
É como conseqüência, como resultado dessas questões, resultado incerto e provisório, que se torna possível a formação de um “nós”, essa terceira pessoa do plural em que nos aglutinamos. O “nós”, diz Foucault (1984), não deve ser prévio à questão, mas justamente, ao elaborar a questão, deve tornar-se possível sua formação futura, um “nós” constituído a partir do trabalho realizado, capaz de formar uma comunidade de ação.
Dissemos que o acompanhamento terapêutico configura-se uma das estratégias clínico-políticas requeridas pelo processo de desinstitucionalização da loucura, sendo emblemático da interpenetração, da mistura, do contágio das disciplinas psi com o espaço e tempo da cidade. Mas se voltarmos o olhar um pouco atrás na história de novo com a ajuda de Foucault (2003) , veremos que quando Pinel livrou os loucos das correntes, sem contudo livrá-los do internamento, impingiu-lhes uma dívida a ser paga por meio da obediência à vontade do médico. Assim, o que antes de Pinel era uma certa relação de poder veiculada pela violência (a prisão, a cela, as correntes) foi transformada em uma relação de assujeitamento própria a essa outra forma de poder, que é o poder disciplinar. Tendo isso presente, podemos perguntar: e quando a reforma psiquiátrica propõe-se a livrar os loucos do internamento, instituindo uma rede substitutiva de serviços, o que acontece com as relações de poder estabelecidas nesse campo? A passagem do espaço fechado do hospital para o território aberto da cidade seria suficiente para subverter a relação de poder instituída entre médico e paciente, que se encontra na origem do manicômio? (Palombini, 2005).
Esse é o primeiro problema que o processo histórico de constituição das disciplinas psi coloca para todos o que se engajam em uma prática que se pretende como dispositivo clínico-político da reforma psiquiátrica, às voltas com o desafio da desinstitucionalização da loucura. Esse desafio, levado à radicalidade que o ideário que impulsionou a constituição dos serviços substitutivos permite imaginar, impõe uma exigência maior visando, para além do âmbito da clínica, a sociedade em que vivemos. Pois a prática em que nos engajamos, que busca a instauração de novas formas de atenção à saúde mental em uma perspectiva não tutelar, só pode operar na contramão de uma sociedade disciplinar, psiquiatrizada. Mais do que isso, na contramão de um mundo em que cada vez mais as neurociências, sobrepondo-se às práticas linguageiras e intensivas do campo psi, na ambição de disciplinar os corpos pelo apagamento do menor traço de resistência por meio de soluções neuroquímicas, determinam performances e prescrevem comportamentos. Não é no contrafluxo disso que se lança o acompanhante terapêutico com seu acompanhado pelas ruas? O que ele busca não é inventar, multiplicar, modular novas formas de relação, furando cercos e rompendo os códigos instituídos? E de que outra maneira seria possível, aos loucos que acompanhamos, constituir laço sem que isso implique o apagamento de sua subjetividade?
Escutamos dizer que o acompanhamento terapêutico é uma prática citadina, que só pode ocorrer em um espaço que é o espaço urbano. Dissemos em outra ocasião (Palombini, 2005), que o urbano hoje se apresenta como um entrecruzamento complexo de múltiplos territórios, que não se dá imediatamente a ler. Os dispositivos disciplinares do estado moderno não esgotam o jogo de forças, a guerra de lugares, as zonas de combate que compõem a vida plural e multifragmentada da cidade contemporânea. Sendo polissêmica e labiríntica, a cidade recusa a pura apropriação funcional de seus espaços, a planificação visando a um fim, e se oferece como campo de possibilidades imprevistas, produzindo espanto e desacomodação.
Tomemos, então, como questão para a clínica, essa idéia do imprevisto que pode emergir da rua, o imprevisto que a cidade protagoniza e que produz deslocamentos, e a idéia da guerra de lugares que o território múltiplo da cidade pode produzir (Arantes, 1994), e que não deixa de estar relacionada com a primeira, do imprevisto. Munidos dessas duas idéias, interroguemos o ideal de que falávamos antes ideal do qual a clínica não chega a se livrar, ideal do isolamento e, subjacente a ele, a pretensão iluminista de transparência, ou seja, de tudo explicar e controlar, a que a clínica pode ser tentada.
Prescindir desse ideal requer da clínica, de qualquer clínica, o reconhecimento e assunção de seus limites, de seu “não poder” (Gauchet e Swain, 1980), deixando aberto o campo da conflitualidade imanente a uma subjetividade que, na medida em que se apresenta opaca aos nossos olhos, concebe-se como resistência. Mas para isso é preciso deslocar-se do registro político do governo das almas para o registro da guerra em que as forças em conflito entram em cena e o imprevisto tem lugar (Birman, 2005).
O acompanhamento terapêutico constitui-se, então, em paradigma da direção clínico-política em que uma dada concepção da reforma psiquiátrica pretende mover-se. Ao dizer isso não se pretende afirmá-lo como mais um especialismo, a décima quinta profissão arrolada ao campo da saúde5, ou uma nova panacéia, última geração de um produto, uma tecnologia a ser adquirida nas boas casas do ramo. Estamos falando do acompanhamento terapêutico como uma ferramenta, ao alcance de qualquer um disposto a caminhar nessa direção. Sendo uma clínica que se faz a céu aberto, aberta aos múltiplos territórios que se intercruzam na cidade, a experiência suscitada pelo acompanhamento terapêutico desvela a possibilidade de operar a clínica nesse registro em que a guerra, a conflitualidade, o imprevisto têm lugar. É indiferente se o espaço da cidade toma aqui a forma de uma rua, uma praça, uma cama ou um quarto, quando se considera que cada um desses territórios pode revelarse poroso à matéria do mundo para além de suas fronteiras mais ou menos estreitas, e que se os habita na perspectiva em aberto, conflitiva, de um itinerário por vir (Palombini, Belloc e Cabral, 2004).
Assim, a dimensão positiva da guerra, do conflito, da resistência, da qual o acompanhante terapêutico se aproxima, é o que pode retornar à clínica e interrogar seus sentidos, fazendo emergir, das fissuras que a experiência da clínica veio a produzir no seu interior, a guerra como potência, no abandono de qualquer pretensão de governo das almas. Merece menção, nesse sentido, a ultrapassagem da perspectiva de governo das almas no corpo da obra freudiana, que constitui o momento princeps na história da clínica. Por exemplo, quando Freud aproxima o conceito de transferência ao de resistência, ou seja, quando é da resistência ao analista que emerge a verdade do analisante (Freud, 1912).
Nós poderíamos buscar igualmente na obra dos autores a que fizemos referência, os conceitos, os enunciados que abrem brechas e iluminam caminhos nessa direção. Mas, mantendo o recurso ao texto de Foucault (1984), Polêmica, política e problematizações, apenas deixamos assinaladas as questões que apresentamos aqui como problematização à clínica de qualquer um, quando referida à prática política da reforma que se almeja.
Referências Bibliográficas
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Endereço para correspondência
Analice de Lima Palombini
Rua das Laranjeiras, 314 / bl.A / aptº 101 22240-002 Bairro Laranjeiras Rio de Janeiro/RJ
tel.: (21) 3235-641 3
E-mail: analicepalombini@uol.com.br
Recebido em 11/04/06
Aprovado em 30/05/06
Notas
IDocente do Instituto de Psicologia da UFRGS; Mestre em Filosofia UFRGS; Doutoranda em Saúde Coletiva UERJ; Psicanalista Membro da APPOA; co-autora de Acompanhamento terapêutico na rede pública: a clínica em movimento.
1O Programa de Acompanhamento Terapêutico na Rede Pública, vinculado ao Instituto de Psicologia da UFRGS, teve origem em 1996, junto ao CAPS CAIS Mental Centro, da Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre, consolidando-se como projeto continuado de extensão universitária a partir de 1998, sob minha coordenação, articulado à experiência de estágio curricular e à atividade de pesquisa, em parceria com serviços da rede municipal e estadual de saúde. Esse projeto resultou na publicação, em 2004, do livro Acompanhamento terapêutico na rede pública: a clínica em movimento e na criação de uma disciplina opcional de Introdução ao acompanhamento terapêutico no currículo da graduação em Psicologia, seguindo atualmente em funcionamento, com a participação dos professores Edson Luiz André de Sousa e Karol Veiga Cabral. O Projeto de Acompanhamento Terapêutico, ligado ao Departamento de Psicologia da UFF, esteve em funcionamento nos anos de 2003, sob a coordenação do prof. Eduardo Passos, e em 2005, com a coordenação da profª Regina Benevides, reunindo estagiários de psicologia e extensionistas na prática do acompanhamento terapêutico em serviços de saúde mental da rede pública. Em 2005, mediante convênio, o projeto contou com o apoio da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde e constituiu-se também como espaço de consolidação de pesquisas em nível de pós-graduação, em especial o projeto de mestrado em andamento de Laura Gonçalves, sobre o tema do acompanhamento terapêutico.
2Conforme o texto produzido para o folder de apresentação do Colóquio.
3Vinculado à Secretaria Estadual da Saúde do Governo do Estado do Rio Grande do Sul.
4Ver, a esse respeito: Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital-Dia A Casa (1991; 1997); Barretto (2000); Cauchick (2001); Palombini et alli (2004); Araújo (2006); Palombini, Belloc e Cabral (2005); Pitiá e Santos (2005).
5A Resolução n° 287, de 08/10/1998, do Conselho Nacional de Saúde, arrola catorze profissões de nível superior ao campo da saúde: assistência social, biologia, biomedicina, educação física, enfermagem, farmácia, fisioterapia, fonoaudiologia, medicina, medicina veterinária, nutrição, odontologia, psicologia e terapia ocupacional.