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Boletim - Academia Paulista de Psicologia
versão impressa ISSN 1415-711X
Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.38 no.95 São Paulo jul./dez. 2018
TEORIAS, PESQUISA E ESTUDOS DE CASO
Os sinais traumáticos presentes nos comportamentos sexuais de risco de homens que fazem sexo com homens vivendo com HIV
Traumatic signs present in the sexual risk behaviors of men who have sex with men living with HIV
Signos traumáticos en los comportamientos sexuales de riesgo de hombres que tienen sexo con hombres que viven con el HIV
Roberto Garcia1; Denise Gimenez Ramos2
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
RESUMO
Embora os tratamentos associados à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) tenham avançado, existem lacunas a serem compreendidas nas dinâmicas de diversos comportamentos sexuais. Esta pesquisa teve como objetivo, identificar e compreender os sinais traumáticos nos comportamentos sexuais de risco de homens que fazem sexo com homens (HSH) vivendo com HIV. Para o desenvolvimento deste estudo de métodos mistos em uma amostra de conveniência, utilizou-se a Barrett Impulsivity Scale (BIS-11), a Escala de Compulsividade Sexual (ECS); um Formulário Sociodemográfico e de hábitos e uma entrevista semiaberta. Foram entrevistadas 178 pessoas com método quantitativo, e dentre eles, 81 também participaram de uma etapa qualitativa. Como resultados, foram encontrados comportamentos sexuais de risco, indícios de impulsividade e compulsividade, uso de substâncias psicoativas e baixa adesão ao preservativo. Entre os elementos associados ao trauma, foram observados altos índices de ideação e comportamentos suicidas, falta de regulação do afeto, baixa modulação para as excitações pulsionais, exposição ao risco, comportamento autodestrutivo, aspectos dissociativos, culpa e desesperança, dentre outros. Este estudo colabora no entendimento em profundidade das dinâmicas emocionais traumáticas envolvidas nos comportamentos sexuais de HSH HIV+.
Palavras-chave: Homens que fazem sexo com Homens, HIV/Aids, Trauma, Comportamento destrutivo.
ABSTRACT
Although the treatments associated with Acquired Immunodeficiency Syndrome (AIDS) have advanced, there are gaps to be understood in the dynamics of various sexual behaviors. This research aimed to identify and understand the traumatic signs in the sexual risk behaviors of men who have sex with men (MSM) living with HIV. For the development of this study of mixed methods in a convenience sample, we used the Barrett Impulsivity Scale (BIS-11), the Sexual Compulsivity Scale (ECS); a Sociodemographic and Habits Form and a semi structured interview. 178 persons were interviewed with a quantitative method, and among them, 81 also participated in a qualitative stage. As results, sexual risk behaviors, signs of impulsivity and compulsiveness, use of psychoactive substances and low condom adherence were found. Among the elements associated with trauma, high ideation indexes and suicidal behaviors, lack of affect regulation, low modulation for impulse excitations, risk exposure, self-destructive behavior, dissociative aspects, guilt and hopelessness, among others, were observed. This study contributes to the in-depth understanding of the traumatic emotional dynamics involved in the sexual behaviors of MSM living with HIV+.
Keywords: Men who have sex with men; HIV/AIDS; Trauma; Destructive Behavior.
RESUMEN
Aunque los tratamientos asociados al Síndrome de Inmunodeficiencia Adquirida (SIDA) han avanzado, existen lagunas a ser comprendidas en las dinámicas de diversos comportamientos sexuales. Esta investigación tuvo como objetivo, identificar y comprender los signos traumáticos en los comportamientos sexuales de riesgo de hombres que tienen sexo con hombres (HSH) viviendo con VIH. Para el desarrollo de este estudio se utilizaron métodos mixtos, en una muestra de conveniencia, se utilizó la Barrett Impulsivity Scale (BIS-11), la Escala de Compulsividad Sexual (ECS); un Formulario Sociodemográfico y de hábitos y una entrevista semiabierta. Se entrevistaron a 178 personas con método cuantitativo, y de estos 81 también participaron en una etapa cualitativa. Como resultados, se encontraron comportamientos sexuales de riesgo, indicios de impulsividad y compulsividad, uso de sustancias psicoactivas y baja adhesión al preservativo. Entre los elementos asociados al trauma, se observaron altos índices de ideación y comportamientos suicidas, falta de regulación del afecto, baja modulación para las excitaciones pulsionales, exposición al riesgo, comportamiento autodestructivo, aspectos disociativos, culpa y desesperanza, entre otros. Este estudio colabora en el entendimiento de la profundidad de las dinámicas emocionales traumáticas involucradas en los comportamientos sexuales de HSH VIH +.
Palabras claves: Hombres que tienen sexo con hombres, VIH / SIDA, Trauma, Comportamiento destructivo.
Introdução
Segundo boletim epidemiológico da secretaria de vigilância em Saúde (Brasil, 2017) no período de 1980 a junho de 2016, foi identificado no Brasil, 842.710 casos de AIDS, com uma média de 41,1 mil casos nos últimos cinco anos.
As distribuições proporcionais de casos de aids por região identificados neste período, mostra a maior concentração nas regiões Sudeste e Sul, cada qual com 53% e 20,1% do total de casos; seguida das regiões Nordeste, Centro-Oeste e Norte, com 15,1%, 6,0% e 5,9%, respectivamente. A análise por razão de sexo demonstra que de 1980 até junho de 2015, foram registrados 548.850 (65,1%) casos de aids em homens e 293.685 (34,9%) em mulheres, sendo que de 2003 a 2008, a relação entre o número de casos de aids manteve-se em 15 casos em homens para cada 10 casos em mulheres; e em 2015, este quadro manteve-se no caso das mulheres, e aumentou para 21 casos em homens. Nos últimos dez anos os casos têm apresentado tendência de crescimento, em 2006 era de 24,1/100 mil hab., e em 2015, 27,9/100 hab., representando um aumento de 15,9%. Entretanto, entre as mulheres, observa-se tendência de queda dessa taxa nos últimos dez anos, de 15,8/100 mil hab. em 2006, para 12,7 em 2015, com redução de 19,6%. No que diz respeito à categoria de exposição, a principal via de transmissão em indivíduos com 13 anos ou mais foi a sexual, tanto em homens (92,9%) quanto em mulheres (82,2%) em 2015; e entre os homens, observou-se uma preponderância da categoria de exposição heterossexual, embora, com uma tendência de aumento percebida na proporção de casos em homens que fazem sexo com homens (HSH) nos últimos dez anos, de 35,3% em 2006 para 45,4% em 2015.
As doenças sexualmente transmissíveis (DST) estão atualmente entre os mais graves problemas de saúde pública em todo o mundo, tornando o organismo potencialmente mais vulnerável a várias infecções, entre elas o HIV/Aids; e no Brasil este panorama é confirmado com as estatísticas alarmantes da Organização Mundial de Saúde sobre as infecções de transmissão sexual de Sífilis, Gonorreia, Clamídia, Herpes genital, e HPV (Brasil, 2013). A compreensão para os comportamentos de omissão e recusa do uso do preservativo de HSH com parcerias circunstanciais e/ou estáveis, que têm sido objeto de investigação científica contemporânea, sobretudo nas últimas décadas do século XX, faz parte de um processo histórico-social mobilizado em grande parte, com o surgimento da Aids. Um levantamento da literatura demonstra que a conjuntura dos efeitos do estigma e discriminação no contexto dos HSH – duplamente vulneráveis por seu comportamento sexual não heteronormativo e pela infecção do HIV – os deixaria, consequentemente, mais propensos a desenvolver vulnerabilidades e comportamentos de risco. Sentimentos como a hipervigilância, o estresse contínuo e a enorme "tensão" entre a percepção do desejo sexual interno e as barreiras externas para a sua realização, devido aos padrões socioculturais determinantes e normativos, são fatores que os tornariam mais fragilizados. De acordo com Baraka (2013), em relatório de estigma e discriminação a respeito da comunidade de HSH, a discriminação contribui para o aumento da vulnerabilidade dos homossexuais à infecção pelo HIV; além disso, o estigma do HIV/Aids afeta a autoestima, o que pode levar a comportamentos sexuais de risco. Assim, observa-se que o estigma do HIV/Aids assume diversas formas e que pode incorporar aspectos de exclusão social, preconceito e discriminação com base em aparência física, estado de saúde, e comportamentos sexuais, dentre outras questões. Este processo precisa ser entendido e combatido com ações de saúde pública para que possamos avançar, diminuindo assim, as consequências, observadas nas violências física, psicológica e social às pessoas vivendo com HIV (PVHIV), cujo desdobramentos são significativamente danosos aos envolvidos.
Diante do exposto, este estudo teve como objetivo, identificar e compreender os sinais traumáticos presentes nos comportamentos sexuais de risco de HSH vivendo com HIV.
As vicissitudes emocionais dos sinais traumáticos
Independentemente das diversas concepções que vêm sendo construídas sobre a explicação para um trauma psicológico, existe algo em comum permeando-as, dentre elas, a de que se trata de uma percepção atemporal oriunda de um acontecimento traumático, real ou imaginário e no caso da fantasia, Freud (1917/1987) mostra o quanto esta dinâmica se trata de memórias reais para o indivíduo, pois o acomete de igual forma , que pode mobilizar inúmeras reações disfuncionais e implicar em comprometimentos das defesas de nossos sistemas psiconeuroendocrinoimunológicos. Em outras palavras, entre a funcionalidade e complexidade da (inter) relação desses sistemas, pode existir disfuncionalidades em decorrência de um ou vários acometimentos traumáticos, manifestados muitas vezes por pesadelos, pensamentos intrusivos, flashbacks, obsessões, hipervigilâncias, e inúmeras alterações emocionais e de comportamentos, dentre eles, isolamento, ideação suicida, depressão, dissociação, impulsividade, dentre outros. Ou seja, entre as questões observadas em decorrência de um processo traumático, existe uma alteração de como os fatos são percebidos e dos significados atribuídos a ele, uma disfuncionalidade entre a realidade psíquica do indivíduo a determinados eventos externos. Além dos episódios traumáticos que acontecem oriundos dos processos históricos, sociais e culturais, também existem aqueles a que por consequência desses processos, estamos expostos diariamente e que, de igual forma, trazem implicações emocionais bastante significativas, tais como, os processos traumáticos transgeracionais e os característicos de violências físicas, morais e sociais (relações abusivas, estupros, roubos, assaltos, acidentes, doenças, separações, mortes, dentre outros).
De acordo com Schestatsky et al (2003), se obser varmos os acontecimentos que marcaram o século XX, dentre eles as duas grandes guerras mundiais e a do Vietnã, diversos fenômenos psicológicos emergiram e contribuíram para a estruturação da compreensão ampla do Trauma, dentre eles, a evolução do conceito do Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT). Acrescentam ainda, que as diversas pesquisas que aconteceram neste período, buscavam uma compreensão de uma possível integração entre as dimensões intrapsíquica e ambiental, dentre elas, destacam-se a dos mecanismos de dissociação, traumas e histeria das pesquisas de Janet; as que exploraram as conexões psicológicas entre trauma e sintomas de histeria de Charcot e Freud; e a das "neuroses traumáticas", apresentadas pelos veteranos de guerra e pesquisadas por Abram Kardiner. Neste processo, não se pode deixar de evidenciar a importância da contribuição da "Teoria do Apego" de Bowlby, trazendo à tona a importância ao pensamento científico sobre a complexidade e magnitude do vínculo mãe-bebê, e suas implicações desastrosas para o desenvolvimento infantil e para a constituição psíquica das crianças e adultos, quando privadas desses vínculos afetivos fundamentais estabelecidos na primeira infância (Bretherton, 1992). Esta questão foi corroborada por diversos autores, dentre eles, Schore (2001), que evidencia a importância para o desenvolvimento emocional da criança, os vínculos afetivos iniciais com seus pais e/ou representantes próximos. E em caso de falha deste processo que é fundamental para a estruturação psíquica, Siegel (2003) relata enormes consequências que serão manifestadas por uma percepção disfuncional ocasionada pela introjeção dos vínculos afetivos iniciais. Se estes foram apreendidos com distanciamentos e eminência de risco, a criança se utilizará destas referências quando necessário para modulação de seus sentimentos e das excitações pulsionais, apresentando comportamentos emocionais agressivos e de maior propensão ao estresse, déficits no desenvolvimento cognitivo e falta de flexibilidade diante de situações inesperadas e desconhecidas. Schestatsky et al (2003) demonstraram no levantamento do histórico da conceituação do TEPT, inserido como critério de classificação diagnóstica pela primeira vez no DSM-III, que inicialmente levou-se em consideração um sintoma de reexperimentação, dois sintomas de embotamento emocional e um sintoma inespecífico sem critérios de duração (observados em veteranos de guerra, no estupro, espancamento à mulher, e abuso de crianças); e em seguida, quando estes foram revisados para o DSM-IV, o TEPT passou a ser entendido com um agrupamento e sintomas classificados, como manifestações de reexperimentarão, evitação ou hiperexcitação, sem mencionar, ao contrário do anterior, o critério de "anormalidade" do acontecimento.
Diferentemente de outras abordagens, para Van der Kolk (2016), o trauma psicológico é aquilo que constitui a existência de algo real, único, que envolve uma complexidade expressa no corpo-mente, de uma comunicação de elementos que não podem ser ditos, mas que são manifestados através de tensões e excitações corporais. Neste sentido, uma das características mais intrigantes do trauma psicológico é o seu aspecto duradouro e o quanto as manifestações sensoriais oriundas deste permanecem apreendidas e aprisionadas na experiência vivenciada e vice-versa; e por consequência, os desdobramentos psíquicos, biológicos e danos nas diversas formas de interrelações. Van der Kolk et al (1991) evidenciam, ainda, que estas respostas prolongadas podem explicar qualitativamente os processos da reação fisiológica envolvida no trauma, e o quanto que alterações nesses mecanismos observados através das respostas de um indivíduo frente a determinados estímulos, são decorrentes de alterações no sistema psicológico e biológico. Balizando-se pela revisão da literatura deixada de Pierre Janet, Van de Kolk identifica um dos elementos mais significativos do trauma e que de certa forma, dá uma explicação para este processo, que é a hiperexcitação, desencadeando um processamento disfuncional das memórias, afastando-as da consciência e guardando-as como imagens visuais ou sensações corporais. Segundo Van de Kolk et al (1989) esses fragmentos retornarão e transformar-seão em reações fisiológicas, estados emocionais, pesadelos, flashbacks, dentre outros. Além dos impactos bastante significativos deste processo, Van de Kolk e Fissler (1995) e Van der Kolk (2005) alertam ainda para uma forma mais acentuada da manifestação do trauma, em casos de crianças submetidas a exposição contínua e prolongada de situações traumáticas no seu processo de desenvolvimento, denominada de "trauma complexo", quando vivenciam negligência, abandono, agressões físicas e/ou sexuais; e que, dependendo de sua extensão e periodicidade, poderão acarretar consequências indeléveis a dinâmica de sua personalidade. No levantamento desta literatura feito por Viola et al (2011) foi demonstrado que nos casos de vitimização de abusos psicológicos crônicos e negligência prolongada na infância, estas pessoas poderão apresentar implicações psicopatológicas e um conjunto de sintomas cuja extensão abarcaria os de características somáticas e/ou dissociativas e/ou afetivas.
Materiais e métodos
Esta pesquisa realizada com métodos mistos que segundo Creswell (2007, p.27) "é uma abordagem de investigação que combina ou associa as formas qualitativa e quantitativa" -, demonstra a importância de ambos os componentes para o estudo no campo do HIV/Aids e do trauma, e o quanto que eles podem colaborar para as evidências e contradições. Esse estudo foi projetado e reportado de acordo com o COREQ (Critérios consolidados para reportar pesquisa qualitativa) (Tong et al, 2007).
Aspectos éticos
Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Pontifícia Católica de São Paulo (PUC -SP) sob o Parecer nº 835.981 em 17/10/2014, e da Plataforma Brasil. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi explicado e assinado por todos os participantes antes do início do estudo. As entrevistas foram conduzidas pelo primeiro autor (RG), que é Psicólogo e possui Especialização, Mestrado e Doutorado na área de Psicologia Clínica. No momento das entrevistas, ele estava trabalhando como Pesquisador em tempo integral neste projeto de doutorado.
Entrevistas
A estrutura teórica para análise qualitativa seguiu a abordagem de métodos mistos, combinando dados quantitativos e qualitativos. A codificação de conceitos emergentes foi realizada pelo primeiro autor (RG), sendo que a codificação para os Discursos do Sujeito Coletivo (DSC) foi elaborada através do software QualiQuantiSoft. Foi utilizado o método do DSC como um dos processos de análise qualitativa, que descreve como os participantes percebem, refletem e atribuem significado de experiências que viveram, permitindo expressarem suas opiniões diante de cada questão. Como resultado, os significados expressos que são atribuídos às questões investigadas, foram agregados em um discurso único, destinado a representar uma opinião coletiva (Lefevre et al, 2005; 2010).
Seleção de participantes
Os participantes foram selecionados no Centro de Referência e Tratamento DST/HIV/Aids (CRT DST/ HIV/Aids) da grande São Paulo, SP Brasil. Não serão fornecidos mais detalhes sobre este CRT para garantir a confidencialidade dos entrevistados. Neste estudo foi utilizado, tanto para a pesquisa quantitativa quanto para o subconjunto qualitativo um método de amostragem por conveniência. Após ser claramente explicado o projeto para a equipe de profissionais de saúde deste CRT, foi solicitado a eles que encaminhassem os sujeitos para as entrevistas, com base nos critérios de inclusão. Os indivíduos que demonstraram interesse em participar, foram encaminhados para o primeiro autor (RG). O perfil dos participantes para este estudo foi do sexo masculino, maior de 18 anos, com comportamentos sexuais HSH e/ou HSHM (Homens que fazem sexo com Homens e Mulheres), e HIV+. Em caso de necessidade todos os cuidados do CRT DST/HIV/Aids estavam disponíveis, e após leitura e explicação dos detalhes do projeto, foi assinado as duas vias do TCLE, sendo uma devolvida ao pesquisador e outra permanecida com os participantes. Foram esclarecidos também aos participantes, o histórico do entrevistador e os detalhes questionados. Dos 178 participantes que concordaram em participar desse estudo, todos participaram da pesquisa quantitativa, e entre esses, 81 também participaram da entrevista de caráter qualitativo (45,5%).
Configuração do estudo
Os dados foram coletados em duas etapas. A primeira, referente ao componente qualitativo deste estudo, foi realizada em uma sala privada do CRT DST/ HIV/Aids. As únicas pessoas presentes durante a coleta de dados nesta etapa, foi o primeiro autor (RG) e o participante do estudo. A segunda, referente ao componente quantitativo, devido à logística do CRT não foi possível que as entrevistas fossem realizadas em sala privada, sendo, portanto, realizadas na sala de espera, onde os pacientes aguardavam os atendimentos previamente agendados. Neste caso, foram tomadas todas as precauções para a manutenção da privacidade e sigilo das informações.
Coleta de Dados
Pesquisa quantitativa
A pesquisa quantitativa incluiu duas escalas e um formulário sociodemográfico e de hábitos dos entrevistados. A primeira escala, Barrett Impulsivity Scale (BIS-11) (Patton, Stanford et al, 1995), foi traduzida e adaptada para o Brasil (Malloy-Diniz et al., 2010; Vasconcelos, 2012). A BIS-11 é uma escala de autopreenchimento, que mensura três subconstruções relacionadas à impulsividade: (a) Motora, relacionada a não inibição de respostas incoerentes com o contexto, (b) Atencional, relacionada a tomada de decisão imediata, e (c) falta de planejamento, englobando comportamentos orientados para o presente. A BIS-11 apresenta aos participantes uma escala de Likert, de itens que vão de "raramente/nunca", a "quase sempre/sempre "; na qual as maiores pontuações indicam um nível mais alto de comportamento impulsivo. A segunda, a Escala de Compulsividade Sexual (ECS) (Kalichman & Rompa, 1995), foi traduzida para o português (Carvalho & Nobre, 2011, In: Guerra, 2012), e posteriormente traduzida, adaptada e psicometricamente validada para uso no Brasil (Scanavino et al., 2016). A ECS, mensuram os comportamentos sexuais compulsivos, preocupações sexuais e repetição pensamentos intrusivos. É composta de 10 itens em uma escala de Likert, no qual cada item é medido em uma escala de 4 pontos, variando de 1 (Nada) a 4 (Muito), com pontuação mínima de 10 e máxima de 40 pontos. O Formulário sociodemográfico e de hábitos dos entrevistados, incluiu questões relativas a gênero, idade, etnia, estado civil, educação, ocupação, renda, hábitos e hábitos de rotina sexual, bem como, percepções em relação às suas famílias e relacionamentos. Além disso, informações associadas a infecção do HIV foram coletadas, incluindo o tempo de infecção, comorbidades e uso associado de substâncias psicoativas, dentre outras.
Entrevista qualitativa
Quanto ao componente qualitativo, foram apresentadas histórias fictício-projetivas, com o objetivo dos participantes projetarem suas experiências pessoais nessas narrativas. Inicialmente, foi assegurado aos participantes que se a entrevista mobilizasse algum desconforto, o processo seria imediatamente interrompido, e fornecido apoio psicológico do CRT DST/HIV/Aids.
A entrevista qualitativa, composta de questões abertas e semiestruturadas, abordou o contexto das experiências com HIV, uso de preservativos, impulsividade e comportamento de risco. Após o preenchimento do formulário e das duas escalas, foi consultada a permissão para a utilização da gravação de áudio, cujo arquivo foi destruído após a transcrição dos conteúdos. A média de duração de cada entrevista foi de uma hora. A coleta de dados continuou até atingir o ponto de saturação, sendo este definido como uma série de entrevistas que não resultem em novos conceitos emergentes identificados pela equipe de pesquisa. Nenhuma transcrição foi devolvida aos participantes para revisão.
Análise de dados
Relatórios qualitativos
Diante dos resultados, o material bruto referente as citações das entrevistas foi utilizado para ilustrar descobertas e temas emergentes, sendo identificadas por números para diminuir a risco de violação de privacidade. Após este processo, foi utilizado o método quantitativo para triangulação.
Análises quantitativas e qualitativas para métodos mistos
A análise exploratória incluiu todos os indivíduos que completaram o levantamento quantitativo, para descrever a amostra completa deste estudo como população estudada enquanto identificação de contradições; bem como a subamostra de 81 indivíduos que também passou por uma entrevista qualitativa. Para o componente quantitativo, a análise começou pela avaliação das distribuições, frequências e percentuais para cada uma das variáveis numéricas e categóricas. As variáveis categóricas foram avaliadas para uma variação de quase zero (Kuhn & Johnson, 2013). Exibições gráficas amplas foram elaboradas para análises de associações univariadas e bivariadas, juntamente com testes mais amplos, como o de Coeficiente Máximo de Informação (Reshef et al., 2011), e de Fatorização de Matriz Positiva (Paatero & Tapper, 1994) com algoritmos para variáveis numéricas. Os dados faltantes foram explorados utilizando uma combinação de gráficos e exibições, envolvendo métodos univariados, bivariados e multivariados.
A análise qualitativa por sua vez, foi elaborada utilizando as transcrições das entrevistas. A codificação qualitativa de dados foi realizada pelo primeiro autor (RG), com conceitos emergentes, sendo progressivamente agregados em categorias. Estas categorias foram amplamente discutidas com a outra autora, e realizadas posteriormente uma auditoria de dados para eliminar os vieses na codificação. Desta forma, o conjunto de dados para análise de métodos mistos foi organizado de forma que os componentes quantitativos e qualitativos fossem incorporados em um quadro único de dados.
Resultados
Componentes quantitativos
1) Entre os principais resultados da etapa quantitativa realizados com os 178 participantes, destacamos: (a) distribuição da faixa etária: 25,3% entre 27 a 35 anos, 22,5% de 36 a 44 anos, e 21,3% de 45 a 53 anos, 20,8% com menos de 27 anos, dentre outras; (b) frequência sexual: 45,5% de 1 a 3/semana, 10.7% diariamente, dentre outras; (c) relacionar-se com múltiplas parcerias 16.9%, e duas parcerias 9%, dentre outras; (d) motivo da escolha da parceria: pela aparência (30.3%), por atração (24.7%), dentre outras; (e) uso o preservativo: nunca usa (17.4%), às vezes usa (36.5%), e PNR (5.1%); (f) prática de sexo alto risco: frequentemente (15.2%), sim (43.8%), às vezes (7.9%) e PNR (10.1%); (g) uso de substâncias psicoativas nas relações sexuais: sim (28.7%) e às vezes (14.6%), sendo: álcool (26.4%); cocaína (6.7%); maconha (5.6%), PNR (10.1%), dentre outras; e (h) terem sido vítimas de abuso sexual (16.9 %) e PNR (5.1%).
1.1) Nos resultados comparativos obtidos nas escalas Barratt Impulsiveness Scale (BIS-11) e de Compulsão sexual (ECS), observados através do grupo total (Amostra T = 178) subdividido entre as subamostras: S-1 (97 participantes da etapa quantitativa), e S-2 (81 participantes da etapa quantitativa + qualitativa), foram detectados fatores de significância para os subitens de impulsividade BIS-11 Motora e Atencional, e para o item da ECS.
1.2) Os resultados encontrados neste subitem corroboraram os do item anterior (1.1). Foi realizado um levantamento das escalas BIS-11 e ECS, estratificadas com a variável "uso do preservativo", com a subdivisão dos os seguintes conjuntos: Grupo A-1.2: dos que declararam "sempre usar o preservativo" = 73(41%) e Grupo B-1.2: "dos que usam às vezes 65(36,5%) + nunca usam 31(17,4%) + PNR 9(5.1%) = 105(59%). Foram encontra dos índices de significâncias em impulsividade nos subitens BIS-11 Motora e Atencional, e para o item da ECS.
Inicialmente, ao avaliar os resultados de ambas as escalas, observou-se que eles permaneceram na média, tanto para o item como para os subitens de impulsividade (BIS-11), como para o de compulsividade (ECS). Entretanto, quando os resultados foram avaliados sob a perspectiva da subdivisão entre os grupos, S1= dos que somente participaram da etapa quantitativa e, S-2 = dos que participaram das etapas quantitativa e qualitativa, foram encontrados indícios de significâncias para BIS-11 Motora e Atencional, e para ESC. Esses dados foram corroborados, quando avaliados com o critério de estratificação, associadando-os à variável do "uso do preservativo". Neste processo foram detectados indícios de significâncias para dois subitens de impulsividade da BIS-11 nos comportamentos dos entrevistados, dentre eles, a associação com a não inibição de respostas incoerentes com o contexto, e a relação com a tomada de decisão imediata (Patton, Stanford et al, 1995, Malloy-Diniz et al., 2010; Vasconcelos, 2012); e por último, os indícios de compulsividade sexual na ECC (Kalichman & Rompa, 1995; Carvalho & Nobre, 2011, in: Guerra, 2012; Scanavino et al., 2016). No contexto deste estudo, estes indícios são bastante significativos, pois apontam para características de vulnerabilidade de alguns comportamentos sexuais, que ao contrário das pessoas agirem na perspectiva do autocuidado e autoproteção, podem estar atuando com uma dinâmica imediatista e compulsiva para a obtenção de prazer. Vale acrescentar que, neste estudo, estes indícios passam a adquirir resultados mais significativos quando correlacionados com outros indicativos, conforme apresentados a seguir:
1.3) Estratificação "uso do preservativo" (Amos tra T): Grupo A-1.3: dos que declararam que "sempre usam o preservativo" = 73(41%), e Grupo B-1.3: dos que "usam às vezes 65(36,5%) + nunca usam 31(17,4%) + PNR 9(5.1%) = 105(59%). Dos 178 en trevistados, do Grupo A-1.3, 73 demonstraram as seguintes significâncias: (a) os que menos usam o preservativo foram os infectados há menos de 1 ano (5,5%), os de 8 a 10 anos e os PNR (6.8%); (b) o uso de substâncias psicoativas durante as relações sexuais somaram (32%, incluindo os 13.7% que PNR), e a sua falta de controle do uso (1,4%); (c) o uso da internet na busca por parcerias sexuais e a frequência sexual; (d) a motivação da escolha da parceria sexual relacionada a aparência, atração e circunstância; (e) o medo de perder a parceria circunstancial; (f) o relacionamento superficial; (g) falta de controle da excitação sexual; (h) a falta de controle da impulsividade sexual; e (i) o sexo de alto risco frequente.
Os indícios encontrados no levantamento dos resultados demonstram como os participantes lidam com o preservativo, e explicam parte da dinâmica do comportamento sexual impulsivo e compulsivo.
1.4) Estratificação "Vítimas de Abuso Sexual" (T=178) Grupos: A-1.5, dos que declararam ter sido Vítimas de abuso sexual (30), e Grupo B-1.5: Não vítimas de abuso sexual e PNR (138). Dentre os 30 que afirmaram ter sido vítimas de abuso sexual, 18 têm nível educacional de 2º Grau Completo, 2 são aposentados; 7 têm frequência sexual diária; 12 preferem múltiplas parcerias nas relações sexuais; 13 às vezes usam objetos durante as relações sexuais, 14 fazem uso de substâncias psicoativas durante as relações sexuais (6,7% crack), e 28 justificam a influência de substâncias psicoativas como sendo responsáveis pelo comportamento de recusa do preservativo; 16 já tiveram DST após o diagnóstico de HIV; 9 fazem tratamento psiquiátrico; 28 afirmam se relacionar sem preservativo por não portá-lo no momento; 10 relatam não ter controle da excitação sexual, corroborado pelos índices de impulsividade encontrados no item BIS-11 Fator único. Também foram detectados índices de significância para ideação suicida, e 28 deles, demonstraram que não se planejam com o preservativo.
Os resultados demonstram parte da psicodinâmica deste grupo e o quanto a experiência de ter sido vítima de abuso sexual pode influenciar diretamente nos comportamentos (Van der Kolk et al (1989); Van de Kolk e Fissler (1995) e Van der Kolk (2005). Neste cenário, conforme afirmado por Baraka (2013), as consequências dos estigmas associados podem contribuir para o aumento da vulnerabilidade à infecção do HIV e, consequentemente, acarretar baixa da autoestima e um descuido nos comportamentos de autocuidado e autoproteção, elementos importantíssimos no contexto do HIV/Aids.
Componentes Qualitativos
2) Abaixo seguem os exemplos e análises dos principais resultados desta etapa qualitativa.
Ex: 2.1) medos
Tenho medo que alguém descubra... tenho medo, do amanhã. Tenho muito medo, de tudo. Medo de contaminar a família, de conviver. Sou completamente reservado e com medo... por um deslize, vou ficar marcado para sempre. Antes de ter eu sentia muito medo, quando o HIV confirmou me desesperei. Quero morrer, estou sem chão, confuso, amedrontado, preocupado, com muito medo, insegurança, quanto ao futuro. Tenho muito medo, inclusive de desistir e me entregar. Às vezes penso que tá tudo perdido, que é muito difícil viver assim... você se sente sozinho, desamparado.... desorganiza muito... você entra num processo assim de autodestruição, depressão.
Neste relato, observa-se uma estrutura com poucas defesas emocionais, com característica bastante regredida e destrutiva. É como se os indivíduos não tivessem um registro emocional que os ajudassem a modular as situações ameaçadoras e intrusivas, e se vissem diante de uma situação de desespero e de aniquilamento (Van der Kolk et al (1991); Bretherton (1992); Siegel (2003)). A dinâmica emocional traumática pode ser observada no desamparo, isolamento, e na falta da regulação afetiva (Viola et al, 2011). Este discurso remete-nos a conjeturar associações de uma estrutura emocional e um desamparo de uma criança desprotegida e negligenciada em seu terror do abandono, fornecendo-nos alguns indícios de registros vinculares bastante ausentes ou ameaçadores (Siegel, 2003).
Ex: 2.2) Comportamento Suicida.
Eu pensei em tentar suicídio... cheguei a tomar 32 comprimidos pra me matar. Quando soube, me joguei embaixo de um ônibus, infelizmente ele parou e não me matou! Quando eu descobri, eu saí lá fora e eu me joguei embaixo do ônibus, saí daqui louco não dá pra segurar a onda cara, às vezes dá vontade de acabar com tudo. Pensei em me dar um tiro. Eu vou ser sincero para você eu prefiro morrer queimado, ou atropelado por um caminhão, cair no metrô, mas jamais eu vou lidar com essa carga, porque é muito pesada não consigo mais dormir, trabalhar e me relacionar com ninguém. Ah, sei lá, a vida acabou. Tenho medo que as pessoas olhem pra mim, descubram que tem uma coisa errada e me julguem, acusem. É uma maldição, segredo. Tem muito preconceito!
Observa-se neste depoimento, núcleos invasivos bastante arcaicos sendo mobilizados (Schore (2001); Bretherton (1992); Siegel (2003)). A manifestação de ideações ou tentativas de suicídio demonstra uma estrutura com poucos recursos de defesa para lidar com pulsões intrusivas e destrutivas, combinada com elementos dissociativos, alterações da percepção da realidade, elevação da culpa e de desamparo extremo (Viola et al, 2011). O aparecimento destes registros sensoriais de caráter bastante aniquilante (Van der Kolk et al (1991); Van der Kolk et al (1989); Van de Kolk e Fissler (1995) e Van der Kolk (2005)) evidenciam cicatrizes traumáticas muito arcaicas e de difícil acesso.
Ex: 2.3) ideação suicida.
"Ah, vou curtir o meu máximo... Ah, vou transar com todo mundo, vou fazer sexo com todo mundo! É a realidade... é a sensação de saber que tem AIDS, aí a pessoa, a primeira coisa que vem é o suicídio... porque pensa que não tem mais jeito. Já tentei suicídio, sabe... tomei um copo de remédios cheinho.... me via no caixão rindo... me debatendo... num vácuo, sem vida. É como uma morte na própria vida. A droga e bebida influenciam muito a gente se entregar e se levantar... perder o controle da situação e da gente mesmo...
Observa-se neste relato, uma atuação com características maníacas e de despersonalização, cuja elevada carga de excitação mobiliza núcleos traumáticos sequelados e terroríficos. É como se, nesta experiência, o indivíduo acionasse e atualizasse núcleos traumáticos ameaçadores (Siegel, 2003), e revivesse o distanciamento e risco no próprio corpo, do que foi apreendido em tempos bastante remotos (Van der Kolk et al, 1989). O conteúdo dissociativo e esquizóide, expresso com elementos muito sensoriais, não nomeados, e bastante fragmentados, demonstra a falta de simbolização de um processo vincular primário, que aparentemente, foi introjetado como sendo de risco e ameaçador (Bretherton (1992); Siegel (2003)). Neste relato observamos um processo de "revitimização", em que o indivíduo retroalimenta elementos aterrorizantes de desamparo e de abandono, encapsulados nos núcleos traumáticos muito rudimentares. A carga intrusiva desses núcleos, de elevada potência destrutiva, retira as poucas defesas existentes e faz com que o indivíduo tenha contato com registros de um vazio aterrorizante. As substâncias psicoativas são utilizadas como possibilidade de enfrentamento, anestesiando-o e deixando-o impotente e vulnerável às sequelas emocionais traumáticas.
Ex: 2.4) falta de modulação da excitação sexual.
É foda controlar o tesão... é muita loucura. Sempre gostei de sexo, de variar.... transar com várias pessoas... de boates, prostitutas, putaria, farra da pesada... Só farra mesmo, sem envolvimento. Sou insaciável. Penso muito em sexo, sou dependente... o tempo todo penso em sexo, sou impulsivo, compulsivo. Fico o dia todo no computador me masturbando, falando com muitos caras e ainda assim tenho que transar de manhã e à noite. Por mais que me masturbo não consigo me controlar, meu pensamento é só sexo. Você entra na internet e em questão de minutos você tá transando... Sei lá, camisinha é como saltar de paraqueda, você confia, mas não tem certeza... dá um frio na barriga, por mais que te consideram louco, te acham insano, é o máximo. É único, é vida. Te faz sentir-se um super-homem, o cara mais potente do universo! Muito tesão!
A potencialização da excitação sexual, manifestada com a identificação com o comportamento de risco e a demonstração de uma "onipotência narcísica", releva aspectos destrutivos e os possíveis indícios de sequelas traumáticas dessa estrutura psíquica (Van der Kolk et al (1989); Van de Kolk e Fissler (1995), Schore (2001), Siegel (2003)). A busca incessante por outro que possa lhe dar prazer e que, simultaneamente o destrói, associada a auto estimulação compulsiva, parecem ser as estratégias emocionais utilizadas como forma de retroalimentar a energia deste núcleo traumático pulsante. A eterna procura por um outro que lhe reconheça e que paradoxalmente não é reconhecido como inteiro, e como um sujeito de afetoe o investimento de energia psíquica empregado num processo autodestrutivo e emocionalmente desorganizado, delatam a impotência das defesas frente aos conflitos internos. Ao relatar a experiência sexual de risco e a sensações desafiadoras de pular de paraquedas num vácuo, resgatando elementos psíquicos sensoriais e arcaicos como estratégia de poder "ser e existir", parece ser a possibilidade de ação encontrada pelo indivíduo, para enfrentar as pulsões arcaicas intrusivas. Embora, pela característica destrutiva envolvida neste relato, parece ser mais uma forma deste conviver com registros psíquicos de experiências de falta de ajuda e de continência introjetadas em experiências muito remotas (Bretherton (1992); Siegel (2003)).
Ex: 2.5) uso descomedido de substâncias psicoativas.
Aconteceu... bebemos e transamos, foi assim... Depois do HIV faço muito sexo também... uma vez por dia... você necessita... já aconteceu! Na hora a excitação, você não mede consequências, você quer saber só de trepar. Com bebida, você age por impulso. Um impulso momentâneo... não tem local, não tem horário... se estiver na esquina, na rua, em qualquer lugar, no carro, vai acontecer. Você perde a noção de tudo...esquece, quer prazer... você repete tudo isso pra esquecer e vai se afundando... às vezes usa entorpecente, perde totalmente o controle e perde a noção do que está fazendo. Drogas e mais drogas e você perde o controle da situação... você acaba se entregando, baixa a guarda... curte o barato!
O uso descomedido de substâncias psicoativas inicialmente já dá indícios de uma psicodinâmica "orálica", de processos de dependência vincular, de uma relação simbiótica com recursos psíquicos bastante limitados, e que são expressos neste discurso, de forma primária, sensorial, com pensamento operatório para buscar gratificação a qualquer custo. Isso demonstra a dificuldade em expressar em palavras, questões inomináveis, muito arcaicas. Os aspectos dissociativos e o distanciamento entre o que é dito e o que é apreendido, a baixa regulação do afeto e a falta da modulação da excitação sexual, são características da dinâmica do trauma (Viola et al, 2011). A entrega incondicional a um outro – sendo este representado pela droga, álcool, um corpo ou mesmo pelo sexo , na expectativa de que ele irá suprir todas as necessidades, demonstra o predomínio regredido desta organização psíquica (Bretherton, 1992).
Ex: 2.6) Vítima de abuso sexual.
O abuso sexual que sofri me tornou uma pessoa diferente, mais solitário... meio sofrido sabe... sexo é assim, um dia prazer, e outro dor... não tem que fazer... sempre fui requisitado, e querem repetir. Mas tem o outro lado, a vingança! Como se fosse uma vingança... Eu peguei de uma pessoa, então não estou nem aí... Já passaram para mim, então vou passar também, se morrer, morreu, acabou-se. Eu tenho essa fantasia... mas eu não vou pegar ninguém para fazer certo tipo de abuso, não é? Eles querem é só trepar....várias vezes.... se jogam, ficam doidos, não se controlam, só querem aquilo... várias vezes. Já vi caras apanhando, mas mesmo assim gostam, querem é trepar. Então é uma coisa que você vai atrás, você não se importa com quem, como, você vai atrás disso, mas você vai atrás até você se sentir realizado... Tesão, ninguém segura!
A situação de ter sido vítima de abuso sexual demonstra um dos efeitos mais danosos como expressão das sequelas traumáticas. Neste relato, há um processo de dissociação em que o amor está necessariamente associado a dor, portanto, a situações de auto e heterodestrutividade. A identificação com a dor física para superar a dor psíquica e o sentimento de autocomiseração e de vingança, demonstra uma atuação pautada em registros traumáticos arcaicos e bastante destrutivos, sendo mobilizados para que o indivíduo revivencie no próprio corpo a dor outrora experimentada e apreendida (Van der Kolk et al (1989); Van der Kolk et al (1991); Van de Kolk e Fissler (1995) e Van der Kolk (2005); Van der Kolk (2016)). O sentimento de possuir o destruidor e de "poder ser" quem o destruiu, demonstra o aprisionamento ao registro traumático, retroalimentando as feridas não cicatrizadas e se distanciando cada vez mais da possibilidade de enfrentamento.
Considerações finais
Neste estudo se observa diversos sinais traumáticos, sendo emocionalmente expostos em diferentes comportamentos, dentre eles: (a) os medos, cujos sinais traumáticos foram expressos pelo desamparo, isolamento, e falta da regulação afetiva; (b) o comportamento suicida, com uma estrutura com míseros recursos de defesa para lidar com elevadas pulsões intrusivas e destrutivas; (c) a ideação suicida, expressa por uma atuação com características maníacas e de despersonalização, de elevada carga de excitação pulsional; (d) falta da modulação da excitação sexual, e os processos de identificação com comportamento sexual de risco; (e) o uso descomedido de substâncias psicoativas, expresso por um comportamento dissociativo sem a percepção da destrutividade envolvida; e (f) o abuso sexual, sendo demonstrado como um dos efeitos mais danosos observados nas cicatrizes abertas do trauma, associados a elementos dissociativos, auto e heterodestrutivos, identificação com a dor física para superar a dor psíquica, sentimento de autocomiseração e de vingança, e identificação com o comportamento do agressor.
Os núcleos traumáticos possuem uma carga de excitação pulsional bastante potente demandando gratificação, e as poucas defesas construídas em sua volta, em grande parte das vezes, não são suficientes para livrar o indivíduo de uma atuação impulsiva, impensada e incoerente com o contexto. Observamos que os elementos traumáticos, disfuncionais e destrutivos, são parte da dinâmica psíquica, e ocasionam, quando ativados, enormes danos às estruturas emocionais. No caso dos sinais traumáticos observados nos comportamentos de HSH HIV+, essa realidade é bastante complexa, pois além do aspecto autodestrutivo trazer consequências físicas, afetivas, emocionais e sociais importantes, podem acarretar severas complicações ao andamento do tratamento. Sem contar no contexto das relações, que quando não é possível lidar com os elementos introjetados que estão encapsulados e bastante "protegidos" no núcleo traumático como garantia para não acessar os sofrimentos contidos, o indivíduo passa a projetá-los sem se dar conta e atuando desenfreadamente balizado por conteúdos "desconhecidos" e bastante disfuncionais.
Diante destas questões, observamos a necessida de do tratamento psicoterápico como condição para que estes indivíduos possam desenvolver mecanismos saudáveis para o enfrentamento dos elementos intrusivos presentes nestes núcleos traumáticos com elevadas cargas de excitação pulsional. A identificação dos sinais e dos núcleos traumáticos no processo psicoterápico é fundamental para ter a dimensão das defesas e resistências envolvidas e, para o manejo clínico necessário. Perceber a complexidade envolvida nestes processos, é entender a expressão das sequelas traumáticas como um pedido de ajuda para a estruturação de ações emocionais de enfrentamento.
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Recebido: 22.01.18 / Corrigido: 14.05.18 / Aprovado: 19.07.18
1 Ph.D. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica – Núcleo de Psicossomática e Psicologia Hospitalar da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Este trabalho foi financiado pela Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (BR). Contato: robgarc@uol.com.br . Fone: (11) 99103-0467.
2 Ph.D. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica – Núcleo de Psicossomática e Psicologia Hospitalar da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Contato: deniseramos@uol.com.br.