SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.3 número4Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é: o saber não sabido do desejoA psicanálise, a educação e a escola de Bonneuil. A (à) lembrança de Maud Mannoni índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.4 São Paulo  1998

 

DOSSIÊ

 

Crônica de um trajeto em Bonneuil

 

Chronicle of a trajectory at Bonneuil

 

 

Cecília Aiello

Psicóloga formada pela Universidad Nacional de Rosário. Atua em clínica psicanalítica e na formação contínua de educadores especializados em Mar del Plata, Argentina

 

 


RESUMO

Relato de como se desenvolveu a experiência de estágio de uma psicóloga argentina na École de Bonneuil. Assinala-se o fato de que as próprias características da instituição levam o estagiário a se deparar com a necessidade de ter de encontrar um lugar para si. A legalidade singular que rege essa escola leva adultos e crianças a se encontrarem numa atividade, no desenvolvimento da capacidade de cada um para fazer laços, bem como no jogo da criatividade.

Bonneuil; psicose; análise institucional.


ABSTRACT

This is an Argentinean psychologist's report on her experience as a trainee at Bonneuil. Because of the very characteristics of the school, trainees are faced with the necessity of finding their own place. The singular legality that is the school's rule makes adults and children meet in different activities, in the developing of each one's capacity to create rapports, as well as in the game of creativity.

Bonneuil, psychosis; institutional analysis.


 

 

Se tiveres a sorte de ter vivido em Paris quando
jovem, Paris te acompanhará, estejas onde estiveres,
todo o resto de tua vida, uma vez que Paris é uma
esta que nos acompanha.
De uma carta de E. Hemingway
a um amigo
1

 

INICIO: A EMERGÊNCIA DO DESEJO

Novembro de 1991. O primeiro momento em que pus os pés no 63 da rua Pasteur resume muito bem o que é a vida cotidiana em Bonneuil. Ainda era muito cedo quando entrei no edifício. Troco palavras em francês com alguém que por acaso é chileno. Em Bonneuil as línguas têm uma relativa importância. Três pessoas adultas e várias crianças andam pela cozinha.

- Quer um café? - pergunta-me uma mulher.

- Sim, obrigada.

- Com açúcar?

- Não. Assim está bem - respondo.

Nessa mesma noite assisti ao seminário de Maud Mannoni. Então compreendi que tinha sido ela que me havia oferecido café naquela manhã. Assim começou minha estada em Bonneuil.

Durante a primeira semana este tipo de situações um tanto confusas era freqüente. Foram dias de inquietude, de insegurança, que me provocavam às vezes uma certa angústia. Foi, como já é previsto por eles, uma verdadeira semana de prova. O começo de um stagtaire2 em Bonneuil pode ser comparado ao que acontece às crianças que moram e transitam por lá. Para ambos, adultos ou crianças, o processo de integração à instituição tem características similares.

Com o ingresso a Bonneuil, quem faz um estágio é convidado a integrar-se às oficinas, às atividades escolares, ao acompanhamento das crianças e adolescentes em algumas tarefas, e assim por diante. Mas nada disto é prefixado, ninguém diz quando ou como, para isso é preciso relacionar-se com outros, perguntando, olhando, criando laços. Cada um dos novos que vão se incorporando todas as semanas precisa tomar suas próprias decisões. Precisa descobrir se lhe interessa ou não participar de uma oficina de pintura, teatro, música, jardinagem, etc. Fica-se de certa forma livre para fazer o que se quiser ou o que se puder, o essencial é que se queira. A instituição em abstenção deixa fazer sem converter isso em abandono. O importante é que cada um possa manejar os tempos e as formas. Mas nunca se cai em desalento porque existem outros adultos dispostos a ajudar a quem tenha momentaneamente perdido o rumo na constante oferta da instituição para que o pedido se constitua. O processo que se inicia e que deve acontecer para que o stagiaire encontre seu lugar é ir experimentando em que atividade se acha mais à vontade, com que crianças, ou com que outros adultos você pode partilhar essa atividade. Encontramo-nos numa instituição diferente das que fizeram parte de toda a nossa vida como aluno, estudante, professor ou psicólogo, porque não tem essa forma instituída que possui a maioria das escolas, centros diurnos ou hospitais, onde os atores cumprem um determinado papel inerente ao funcionamento dessa instituição com o risco de se perderem em sua dimensão subjetiva e histórica. Em Bonneuil, um psiquiatra pode lavar os pratos e um psicanalista, fazer a comida.

 

INTEGRAÇÃO: REPETIÇÃO CRIATIVA

A segunda semana é diferente. Quando as rotinas se constituem e as atividades se tornam regulares no tempo e no espaço, é possível encontrar na repetição algo em que se espelhar. Ao se tornarem conhecidas, as imagens em que alguém se reencontra passam a ser pontos de referência ao mesmo tempo de surpresa e de questionamento. O novo e o imprevisto passam a ser elementos cotidianos. Assim, a criação se constitui em suporte de uma prática. As atividades nas oficinas não são planejadas, improvisa-se uma melodia, cria-se uma pintura, modela-se uma escultura, unicamente a partir dos elementos possuídos: os materiais e o desejo. Podemos ser pintor, músico ou escultor conforme o desejo o determinar. Seguindo essa linha analítica mas olhando as coisas por outra ótica, podemos dizer que, nessa outra forma de pensar, a criação não existe apenas no interior das oficinas mas também no próprio princípio que rege a organização de todas as tarefas que se fazem na instituição. A criação é também a possibilidade que existe de modificar algumas das coisas que são propostas, contribuindo com nossa própria criatividade, seja no trabalho no exterior, nas atividades escolares ou no campo. Os stagiaires também escolhem somar-se ao trabalho escolar ou às atividades da vida cotidiana na escola, assim como acompanhar um adolescente em seu trabalho numa tipografia. Aqui é importante observar a diferença fundamental existente entre um conjunto de atividades variadas à la carte, num estilo prêt-à-porter, com o único propósito da ocupação, e as atividades que se desenham quase sob medida em cada caso. Aqui o que conta é que tanto as crianças como os adultos encontram na instituição um lugar que é tão criativo e variado quanto a vida.

Nem sempre se consegue a integração em Bonneuil nos primeiros dias do stage. A partir do momento em que a pessoa sente como próprias as responsabilidades, ela pode dizer que faz parte da instituição. Consegue-se isto à medida em que se constrói um lugar diferenciado, podendo uns se diferenciarem dos outros na emergência do desejo, baseado na diferença constitutiva que permite a qualquer um tornar-se um ser humano. Assim como o bebê começa a formar seu eu, com sua fonte no imaginário, no espelho que a mãe lhe apresenta devolvendo-lhe sua imagem, aqui é a regularidade temporal das atividades, a trama do tecido delas que se constitui no espelho em que alguém pode se refletir, se identificar com outros, além de ser um espaço em que cabem as diferenças que propiciam o encontrar a própria palavra. As produções individuais inscrevem-se como mediações, trata-se de superá-las num intercâmbio simbólico. A atividade situa-se entre o adulto e a criança. Neste ponto homologam-se também as experiências de um adulto e de uma criança em Bonneuil, no que toca à criação, em encontrar-se um lugar, no não-parasitismo. Não se permite ficar sem fazer nada. Cada um de nós faz sua experiência de stagiaire em Bonneuil.

Novembro de 1991. Segunda-feira, 14 horas.

Todos os participantes da oficina têm uma novela em suas mãos. Alguém se oferece e lê em voz alta. Mesmo os que não sabem ler. Eu também me proponho e sou aceita.

- Cecília ainda não terminou a escola! - diz uma das crianças cada vez que me atrapalho.

- Terás de voltar para que te ensinem! - diz outro.

A introdução de um adulto em Bonneuil se produz num movimento dialético, um interjogo entre o que a instituição prescreve e a pessoa propõe. Implica certa capacidade para identificar-se com a criança (sem desconhecer as dificuldades próprias das psicoses), à maneira de uma instauração de não-segregação na relação do adulto com ela. É um intercâmbio simbólico que seria impossível se desaparecesse a reciprocidade no reconhecimento mútuo.3

"A criança precisa viver com pessoas que falem de forma natural", diz Maud Mannoni (1982, p.228), parafraseando um deles. Ela se refere ao valor da palavra dada por parte do adulto ao responder em momentos críticos, partindo dos próprios pontos de referência. Difícil posição onde se salienta a importância da impossibilidade de separar essas respostas do problema pessoal. Poderíamos diferenciar estas de outras intervenções que se fazem de acordo com esta ou aquela técnica, que só serviriam de couraça à pessoa, protegendo-a de mostrar-se, amparada numa estratégia que a defenderia da angústia de suportar a loucura de outros e talvez até a sua própria.

 

OS ESPAÇOS: UMA QUESTÃO SIMBÓLICA

Março de 1992. Estação de Lyon. Paris.

Chegamos com tempo antes da partida do trem. Pierre, o adolescente que estou acompanhando, está muito ansioso para ir para o campo. Está feliz por viajar sozinho e não resiste à tentação de esperar dentro do vagão vazio. Quando todos os passageiros já chegaram, Pierre fica em pé e vai de banco em banco mostrando a todo mundo seu relógio novo. Observo-o da plataforma. Quando vejo que uma mulher com um bebê faz um gesto que julgo de aborrecimento, intervenho e subo para dizer-lhe para voltar a seu lugar. No dia seguinte fico sabendo que Pierre chegou muito bem.

A instituição constitui-se em um marco simbólico, com suas leis claras e não restritivas outorgando a cada um seu lugar. Estas leis precedem o ingresso tanto de crianças e adolescentes como adultos. Entendemos que a Lei dá um lugar e, na medida em que nos apropriamos dele, o simbólico nos organiza. Esse lugar que se ocupa e que inevitavelmente relaciona uma pessoa com outra, mediado pela lei preexistente, é o desafio permanente no trabalho cotidiano com a psicose. Nós nos espelhamos no outro, não para nos igualarmos, mas para nos assemelharmos, com espaço para a diferença. O que distingue Bonneuil de outras escolas, instituições ou centros de dia que acolhem crianças e adolescentes psicóticos ou débeis mentais é essa possibilidade de que cada um forje para si um caminho singular e que isso não fique apenas no registro do meramente possível. Supera-se a arbitrariedade de que suceda ou não, porque pela mesma instituição isso tem o estatuto de necessário. A ordem é distinguir-se. A prescrição é não prescrever. A história singular é uma escritura única que cada um deve realizar acompanhado por outros que lhe permitam um rápido exame. As instituições clássicas anulam a possibilidade de uma historicidade própria, colocando os indivíduos no papel de atores de uma história na qual a cena se situa fora, em outra parte.

Desse modo a situação em Bonneuil não se reduz a uma pura relação imaginária. A lei da instituição intervém de modo que o adulto não se transforme para a criança num ser de puro desejo ao mesmo tempo que num ser de destruição, ficando a criança psicótica protegida de ficar à mercê do outro.

Outro fator importante no projeto de vida é que as crianças e os adolescentes passem períodos no campo ou realizem trabalhos no exterior. Por quê? Porque esses períodos em famílias de proprietários rurais ou no exterior funcionam como corte, fazem com que as crianças participem da vida real, enriquecendo-se ou modificando-se com o que a gente comum propicia no intercâmbio. A alternância entre a ausência e a presença, se modulada, opera como corte simbólico, como "possibilidade de representar a ausência do que se sente falta". O que está fora constitui-se em objeto que relança permanentemente a articulação entre desejo e demanda. Sobre um fundo de permanência abrem-se brechas para o exterior. A instituição fendida aberta a transformações pode escapar de um empobrecimento próprio a toda instituição.

 

O JOGO, A CRIAÇÃO E A PSICOSE

Janeiro de 1992. Sexta-feira, 14 horas.

Adultos, crianças e adolescentes sentados em volta dos dados e tabuleiros preparados para jogar o "jogo dos números".

- Todo mundo deixou suas bobagens à porta? - pergunta o responsável pelo ateliê.

- Eu não - diz Martin, enquanto se dirige para fora do salão para se livrar delas com um sacudir de braços. Logo após começam os trabalhos, que se transforma para muitos num jogo com muita paixão.

Em Bonneuil, seguindo e avançando na linha de trabalho da escola inglesa de antipsiquiatria, deixa-se à loucura a possibilidade de falar. Esta prática articula-se com a idéia freudiana que dá ao delírio um estatuto de restituição na cura das psicoses, o que permite que o delírio ingresse numa dimensão simbólica de intercâmbio e atravessamento do discurso, numa não-coagulação de morte à pessoa. A expressão usada pelo coordenador do ateliê de jogos conforme o exemplo que encabeça esse ponto, mostra que não existe um limite claro entre o normal e o anormal. A pergunta é feita a todos, de modo que ninguém está especialmente designado como "louco". Forma clara de que a loucura pode ser falada enquanto se fala da loucura a partir de um discurso não medicalizado, não psiquiatrizado e não pedagogizado. Assim, o jogo funciona como um dispositivo perfeito quando se faz agir a premissa de que se pode dizer qualquer coisa mas não se pode fazer qualquer coisa. Num jogo há lugar para o prazer, encontrar-se com algo do próprio desejo e dar-lhe rédea solta, mas tudo isso com uma regra em que se enuncia que algo está proibido. O que não se permite é que, com o desenvolvimento da própria loucura, o outro, ou os outros, se vejam impossibilitados de estar ali também, sem considerar isto como um pedido aos loucos para que se adaptem ao mundo dos "normais". O jogo como espaço para a imaginação constitui-se em mediador, situa-se entre um adulto e uma criança. Principalmente no caso das crianças psicóticas, que vivem a relação com o mundo de um modo mortífero, o jogo converte-se no dispositivo por excelência para criar um lugar de tranqüilidade e repouso. O adulto intervém de seu próprio "jardim interior" para armar outro, o espaço de ilusão da criança sem o qual nenhum contato é possível entre a pessoa e o meio.

 

PARA FINALIZAR: O CORTE

Desafiando a epígrafe deste trabalho digamos que nem sempre Paris é uma festa. A experiência de conviver com os habitantes da École Expérimentale de Bonneuil-sur-Marne acompanha minha vida profissional desde então. Ter participado no interior da luta permanente pela integração dos psicóticos e débeis mentais à vida, num esforço muitas vezes superior à própria fortaleza de quem escolhe esse caminho, deixou suas marcas. As condições políticas, sociais ou dos mesmos participantes da instituição nem sempre são as mais favoráveis para a realização dessa empresa. Participei também de momentos difíceis, em que a instituição precisou aceitar a idéia de ter sido enganada por uma criança que jogou a ilusão dos adultos de ser a criança ideal, quando se descobriu sua real dificuldade no escolar, escondida sob a aparência de um discurso crítico coerente e vivaz próprio de um filho de intelectuais progressistas. Não foi a derrocada. A análise, a crítica e a interrogação propiciaram a restituição subjetiva e a abertura da relação imaginária, que permitiu a essa criança recolocar-se em via de encontrar seu próprio caminho. Em Bonneuil sempre está presente a idéia de que as crianças e adolescentes são recuperáveis.

Também acabou meu stage, mas não minha passagem por Paris e por outros lugares distantes que nunca poderia ter imaginado em minha infância. Continua e mantém-se acesa a chama da vivência, reatualizada neste escrito, após seis anos, de ter sido testemunha de que um tratamento diferente das psicoses e do retardamento mental é possível.

Bonneuil me acompanhará, vá eu aonde for, todo o resto de minha vida, embora Bonneuil não seja uma festa...

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MANNONI, M. (1982). Un lugar para vivir. Barcelona: Crítica Grijalbo. [1976]         [ Links ]

 

NOTAS

1 Paris era una fiesta, Barcelona, Seix Barrai, 1985, p.5. Original: 1950.
2 Devido ao fato de que minha experiência de estágio teve lugar em francês, prefiro me valer do termo stagiaire a despeito de qualquer tradução possível.
3 Essas considerações foram apresentadas por Mannoni em Un lugar para vivir.