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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.3 no.4 São Paulo 1998
DOSSIÊ
Desventuras de uma estagiária em Bonneuil
Misadventures of a trainee at Bonneuil
M. Cristina M. Kupfer
Psicanalista, professora doutora do Instituto de Psicologia da USP, co-líder do grupo de pesquisas USP/CNPq "Estudos Psicanalíticos e Educacionais sobre a Infância", diretora da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, do IPUSP
RESUMO
Depoimento de uma psicanalista em sua passagem como estagiária por Bonneuil. Narrativa das desventuras pelas quais passou, ao ter idealizado aquela instituição. Discute a questão da transmissão da experiência de Bonneuil para outras instituições de tratamento.
Transmissão - Psicanálise - Bonneuil
ABSTRACT
Witness of a pychoanalist about her trainee program at Bonneuil. She tells about the misadventures she has experienced because of the idealization of Bonneuil she has brought out with her. She discusses the transmission problem of Bonneuil experience to other care institutions.
Não. Decididamente, meu estágio em Bonneuil não foi uma boa experiência pessoal.
Carregava em minha bagagem as mais variadas idealizações. Bonneuil e Mannoni haviam sido erigidos como mestres todo-poderosos, capazes de transmitir a mim e à equipe do recém-criado Lugar de Vida um saber absoluto sobre a psicose e o autismo infantis. Havíamos lido avidamente seus livros e nossa instituição, inspirada desde o início naqueles textos a ponto de ter sido batizada com o nome de um deles, depositava esperanças espetaculares no estágio que a sua coordenadora iria fazer lá. Era beber diretamente da fonte, iluminar-se com o que se supunha ser a solução para os impasses criados pela difícil conjunção Psicanálise e Educação, já que Bonneuil era uma escola psicanaliticamente orientada.
Nada mais previsível, então, que o desmoronamento de um ídolo que, como é da natureza de todos os ídolos, tinha os pés de barro. Supunha que as pessoas da equipe de Bonneuil eram todas psicanalistas, no entanto, deparei-me com a absurda realidade - a meus olhos, naturalmente - de que algumas delas não sabiam quase nada de Psicanálise, pouco sobre psicose e coisa nenhuma sobre psicanálise lacaniana. Como é que se podia trabalhar com psicóticos sem nunca ter ouvido falar de Robert e Rosine Lefort? Além do mais, não havia em Bonneuil uma opinião única sobre o que faziam lá. "É claro que nosso alvo é terapêutico", disse-me um dia, com ar escandalizado, uma das pessoas da equipe. "De modo algum visamos a algo terapêutico", garantia M. José Lérès1 na reunião de estagiários.
Logo que cheguei, fui submetida a um teste, no qual fracassei fragorosamente. Em um passeio com um jovem autista e com Gregorio de Vito, um dos profissionais de Bonneuil, vi-me observada por esse último enquanto buscava fazer contacto com o jovem. Ao final do passeio, Gregório me disse que eu agira exatamente do mesmo modo que todos os que se viam diante de um autista. Um modo, é claro, igualmente tolo, já que, hoje eu sei, é tola qualquer tentativa de aproximação de um autista - ele entenderá o gesto como demanda de exclusão, e a relação não se fará. Não sabia disso e esperava que Gregorio me ensinasse algo a respeito. Ele não o fez, já que sua posição não era a do mestre, mas a do cientista interessado em pesquisar o modo como as pessoas se aproximam dos autistas. Eu queria aprender, mas era ele quem buscava "aprender" comigo. Já de entrada, um mal-entendido, junto com a impressão de que eu fizera feio.
À noite, reunião geral, da qual participavam todos da equipe e ainda os muitos, muitos estagiários. Quase 50 pessoas. Uma delas apresentou um caso, Mannoni comentou, e depois, silêncio. Ninguém ousava abrir a boca. De Vito se pôs então a falar da necessidade de Bonneuil enfrentar seus problemas institucionais (Como? Aquela maravilhosa instituição enfrentava problemas institucionais? E a Psicanálise não os desamarrara?) Era preciso, ele dizia, que o vigor e a frescor da proposta de Bonneuil, presentes após tantos anos de fundação, não desaparecessem, engolidos pelas lutas intestinas (ele não usou essa expressão, permitam-me a licença poética) que a dilaceravam naquela ocasião.
Para demonstrar que Bonneuil estava viva e continuava a interessar ao mundo, ali estava - disse Gregório, olhando especialmente para Mannoni - a directrice de uma instituição brasileira, vinda para beber daquela ainda vivida proposta. E apontou-me no meio da platéia. Olhei sorrindo para Mannoni, à espera de que seu olhar se dirigisse à minha pobre figura, e torcendo ao mesmo tempo para que um cataclisma universal qualquer irrompesse na sala para interromper a reunião. Não houve, obviamente, cataclisma algum, e tampouco o olhar de Mannoni. Ela continuou a fixar impavidamente o horizonte, ignorando o gesto de Gregório.
É claro que Mannoni não podia dar atenção à pregação de Gregório, já que Bonneuil se encontrava em meio a um furacão político, cuja discussão não cabia naquela reunião. E eu lá sabia disso?
Reunião com estagiários e Mannoni, às quartas-feiras de manhã. Como toda instituição que se preze, Bonneuil tem seus rituais, e a gente tem de aprendê-los na marra. Naquelas reuniões, nem se tentava perguntar uma coisa diferente de "fale-me sobre fulaninho". Esta é (ou era, não sei se essas reuniões prosseguem agora com outra pessoa) a senha para que Mannoni se pusesse a falar, depois de separar a pastinha da criança na berlinda. É claro que fiz a besteira de perguntar outra coisa, e é claro que não obtive resposta.
Entrevista com Mannoni para a revista "Percurso"2. Junto com as idealizações, levara na minha bagagem uma metralhadora de perguntas, que eu não tive nenhum cuidado em disparar. Mas é possível - a distância no tempo me permite ver melhor - que Mannoni tenha ficado mais com o lado "metralhadora" do que com o lado "perguntas" de minha expressão. O fato é que ela pareceu sentir-se atacada e se fechou em copas. Embora dali tivesse resultado uma entrevista interessante, foi, de outro lado, desastrosa. O ponto nevrálgico foi o fato de eu lhe ter perguntado o que pensava das críticas que lhe faziam os psicanalistas do Campo Freudiano, críticas que apontavam uma ausência de formalização teórica da experiência de Bonneuil. Respondeu-me - visivelmente irritada - que seus livros aí estavam para testemunhar o contrário. Mas justamente, eram os seus livros. A exigência de formalização dizia respeito à possibilidade de transmissão da experiência de Bonneuil. Se outras pessoas da equipe não escreviam, ou escreviam pouco, será que Mannoni estava efetivamente transmitindo?
Prosseguiam as trombadas. A impressão era a de um abandono, já que cabia ao estagiário grande parte da iniciativa no engajamento das atividades. Precisei ensinar gramática francesa a um garoto - o que são mesmo os adjectifs partitifs? Tive que garimpar a resposta no fundo da memória da escola francesa da infância! Diziam que isto fazia parte da experiência do estágio. Uma ocasião, conversando com uma profissional da equipe, disse-lhe que me sentia dépaysée, desenraízada de minhas origens. Ao que ela retrucou: mas é justamente esse o efeito buscado; assim, vocês poderão avaliar o sentimento de dépaysement que toma conta de uma criança excluída , como acontece com as crianças psicóticas, autistas e as excluídas da escola. Mas seria mesmo necessário viver na própria carne o modo como se sente um psicótico, para poder educar ou tratar dele? Será que é possível sentir como sente um psicótico? Será que é possível sentir como sente qualquer outro?
Evidentemente, pode-se dizer que aquela era a visão particular daquela profissional. Mas, então, temos um outro problema: as visões dos profissionais de Bonneuil parecem todas muito particulares. Embora a diferença deva ser bem-vinda em uma instituição para psicóticos - uma pluralização do Um, como diz Virginio Baio3 - isto não quer dizer ausência de norte ou de orientadores gerais que funcionem como polo de atração das idéias. Os grandes eixos teóricos de Bonneuil estariam ainda vivos e presentes para funcionar como norte para a equipe e seus estagiários?
Minha experiência na França junto às instituições que trabalham com crianças psicóticas culminou com uma conversa que tive com o diretor de uma outra instituição francesa. Tratava-se de uma petite école tbérapeutique, que eu pretendia visitar. Preveniram-me para que fosse extremamente objetiva ao falar com ele. Eis nosso diálogo:
- Gostaria de lhe dizer quem sou, o que faço em meu país e o que gostaria de obter do senhor.
- Comece imediatamente pelo terceiro ponto.
- Gostaria de visitar sua instituição.
- Minha instituição é uma bagunça. Venha quando quiser. Nossa entrevista está encerrada.
De fato, era uma bagunça. Fui a uma reunião e não voltei mais. O significante "bagunça" (bordel em francês) ficou ecoando, e supus, por algum tempo, que ele podia resumir o conjunto da minha experiência com as instituições francesas.
Seis anos depois, pergunto-me o que me faz editar uma revista dedicada a Bonneuil. O que me faz insistir na experiência do Lugar de Vida, que prossegue chamando-se assim e ainda tem em sua estrutura muito do que trouxe em minha bagagem na volta do estágio.
A metáfora de uma bagagem que se leva e outra que se traz não vem à toa, já que o ponto nevrálgico é a pergunta pela transmissão. O que Bonneuil transmitiu? E, mais ainda, o que de uma experiência pode ser transmitida?
O sabor amargo que ficou em minha boca por alguns anos diz respeito ao fato de que a experiência de Bonneuil, aquela mesma que se desenrolava diante de meus olhos, não me fora transmitida porque - supunha eu - não tinha havido disposição para isso, pois quase todos pareciam muito indiferentes com os estagiários - exceção feita a M. José Lérès, que se importava com a nossa pilotagem clínica e teórica, e nos fornecia parâmetros de trabalho.
Depois, supus que o problema era ainda mais grave: a experiência estava terminando, Bonneuil não formava um corpo institucional bem concertado e estava às voltas com uma espécie de ameaça de dissolução.
Uma ameaça que parecia bastante séria. Bonneuil havia sido criada em plena efervescência política dos anos 68, e trazia consigo uma força de renovação, uma sacudida nas estruturas de ensino e de saúde francesas que estavam sofrendo de esclerose múltipla. Mais que isso, fora trazida junto com os ventos de uma Psicanálise que saía dos consultórios para varrer os muros dos hospitais psiquiátricos sem contudo psicologizar demais - as crianças estavam recebendo excessos de banhos psi, dizia Mannoni.
Passados mais de 20 anos, porém, aquela luta parecia ter arrefecido, e estava cedendo lugar a outras cristalizações, próprias de qualquer instituição com mais de 20 anos. Não era à tôa que uma das perguntas recorrentes era: o que será de Bonneuil quando Mannoni morrer? Naquela ocasião, uma psicanalista e psicopedagoga de renome internacional, radicada em Paris, comentou, em uma conversa informal, que em Paris não havia mais nada de novo sendo realizado, e que as instituições estavam velhas, pois não se haviam renovado fazia já muito tempo.
Hoje é possível dizer que Bonneuil está resistindo bravamente. Quanto à transmissão, talvez se possa falar de seu caráter paradoxal. De um lado, a experiência de Bonneuil não pode ser transmitida, e esse é um impedimento estrutural. Não pode ser transmitida no sentido em que a experiência de uma análise não se transmite de um analista para outro; cada análise que começa é uma nova análise. A experiência da Psicanálise não é cumulativa - ela é um começo que não cessa de começar, como diz Octave Mannoni4 - e assim também são as coisas quando se trata de instituições. Alguns ensinamentos, dicas, poderão ser colocados na bagagem de volta, mas aprender com Bonneuil é refazer, de modo diferente e único, o seu percurso. Nessa perspectiva, perdem completamente importância as suposições de indiferença, os embates, as trombadas, os mal-entendidos vividos na trágica particularidade de cada um.
No entanto, alguma coisa sobra, ficam marcas. Sobram as marcas de um estilo - esse que Lacan diz poder ser transmitido. Essas marcas são os significantes que estão agora no lugar do mestre, funcionando para nós como SI, pois são eles que dirigem a feitura diária de uma instituição - lugar de vida, improviso e imprevisto, instituição estourada, instituição como ferramenta terapêutica, alternância. São nossos, agora. É desta transmissão que somos agora tributários, e é essa que faz valer a pena que uma instituição faça seu percurso.
Tive de ler os textos de meus colegas falando sobre Bonneuil para fechar esta edição. Foi muito bom revisitá-la deste jeito!
NOTAS
1 M. José Lérès é responsável pela orientação aos estagiários. Ver entrevista com ela nesta edição.
2 A entrevista foi publicada no número 09 da revista Percurso, no segundo semestre de 1992.
3 "Sou forçado a constatar, e portanto a testemunhar, que para os sujeitos psicóticos, crianças ou adultos, um Outro pluralizado, uma pluralização do Um - é neste sentido que se deve entender a 'instituição' onde somos muitos - é necessária". BAIO, Virginio. De la necessite de l'institution. Préliminaire, n.7, 1995, p. 123.
4 Refiro-me aqui ao título do livro de Octave Mannoni, Un commencement qui n'en finit pas (Um começo que não termina de começar).