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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.3 no.4 São Paulo 1998
ARTIGOS
Pelo fim das dicotomias entre os saberes sobre a criança1
For the end of the dichotomies in the knowledge about the child
Gislene Jardim
Psicanalista, coordenadora dos assuntos acadêmicos e dos ateliês de Artes e de Ofícios da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida. Mestre em Psicologia Escolar - IPUSP
RESUMO
Este artigo aborda alguns pontos referentes ao processo de escolarização de crianças. Partindo da teoria psicanalítica sobre a constituição do sujeito na criança, articula-se construção da subjetividade da criança neurótica e a presença de sintomas de ordem escolar, bem como articula-se a constituição subjetiva de crianças autistas e psicóticas e a exclusão escolar. Tendo como referência o trabalho da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, propõe-se a prática da interdisciplinaridade entre os profissionais da infância na abordagem dos problemas apresentados por uma criança.
Escolarização; subjetividade; psicose.
ABSTRACT
This article discusses some aspects regarding the educational process of children. According to the psychoanalytic theory on the constitution of the subject in the child, the article discusses the construction of the subjectivity of the neurotic child and the scholar symptoms, as well of autistic and psychotic children and their scholar outcast. The work at the Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida is a reference mark that leads to the proposition of the interdisciplinary approach to the child problems among the professionals concerned.
School education; subjectivity; psychosis.
O tema "distúrbios de aprendizagem" coloca em cena sérias dificuldades quanto à limitação do campo de investigação sobre o problema, uma vez que há controvérsias acerca do objeto de investigação. As controvérsias existem dado o caizamento entre as áreas da educação e da saúde da criança, áreas representadas pelo saber pedagógico e pelo saber médico e psicológico incluindo, neste último, o saber psicanalítico. É muito comum encontrarmos professores explicando os fracassos escolares de uma criança por um déficit neurológico ou então pelo reconhecimento, mesmo que de modo impreciso, de uma síndrome na criança; ao mesmo tempo, é comum encontrarmos pediatras explicando os mesmos problemas da criança como problemas "de ordem ou fundo emocional". O entrecruzamento de saberes sobre a infância pode favorecer a produção de um emaranhado de idéias e opiniões sobre o que se passa com uma criança que não aprende, idéias que, por serem pouco discutidas entre os profissionais envolvidos, tornam-se pouco operativas na transformação da condição de uma criança que atravessa problemas na escolarização.
Nesta discussão proponho abordar alguns pontos pertinentes à problemática do processo de escolarização de crianças, partindo do pressuposto de que existe uma ampla rede de relações que envolve a criança, os pais, o professor, o pediatra e o psicanalista.
Sabemos que na clínica com crianças as queixas escolares aparecem em porcentagens crescentes entre os sintomas específicos da infância. Não podemos esquecer que a catalogação de sintomas referentes à escolarização - como a dislexia, a dispraxia, a dislalia, entre outros - é efeito de uma certa visão que se tem da criança na modernidade. Através dos estudos de Aries (1973), sabemos que até a Idade Média a criança não tinha um lugar social reconhecido; é na modernidade, com a organização social em torno de um núcleo familiar, que a criança sai do anonimato e passa a ter um lugar social, lugar daquele que precisa aprender a ser um adulto. É neste período histórico que surgem as primeiras escolas e o sentido da educação. Desde esta época, a escola passa a ser o lugar social da criança, por excelência, apesar de constatarmos, atualmente, que nem todas as crianças têm uma escola para freqüentar e onde aprender. Supomos que a exclusão escolar compromete, sobremaneira, a própria subjetividade da criança excluída. Do ponto de vista da psicanálise, as relações propiciadas no ambiente escolar interferem na constituição da subjetividade da criança, uma vez que ela retira deste espaço social significantes, marcas simbólicas, que repercutirão no investimento narcísico dos pais em relação à ela. Podemos deduzir daí que a entrada na escola, bem como o aproveitamento escolar em sentido amplo, ou mesmo a exclusão de uma instituição escolar provocam efeitos sobre a imagem subjetiva que a criança tem a respeito de si mesma. Podemos imaginar o quanto desastroso pode ser um diagnóstico feito por um professor sobre as dificuldades de uma criança, diagnóstico este descontextualizado da ação prevista a um professor, na medida em que os diagnósticos fazem parte da prática clínica e não da prática pedagógica. Talvez coubesse ao professor pensar novas estratégias para abordar e ensinar uma criança com dificuldades em aprender. Poderosos são, também, os laudos técnicos psicológicos elaborados a partir de testes que pouco dizem sobre a particularidade de uma criança diante dos objetos do conhecimento, uma vez que os testes estão à disposição dos psicólogos para medir e comparar funções e aptidões de uma criança em relação à outra. De acordo com os estudos de Machado (1997), um laudo psicológico feito às pressas - quer dizer, sem aprofundamento das inúmeras variáveis envolvidas na relação da criança com a aprendizagem - pode estigmatizar uma criança em torno de significantes como "burro", "incompetente", "repetente" ou "atrasado". Ela propõe que a avaliação de uma criança que não aprende seja conduzida pelo psicólogo a partir do pressuposto da existência de "múltiplas determinações" do problema (Machado, 1997, p.147), e que tais determinações estejam encadeadas em torno da história de vida absolutamente subjetiva e particular da criança. Dessa forma estaríamos evitando reducionismos e generalizações em torno do problema apresentado pela criança, generalizações do tipo "a Mariazinha não tem limites em sala de aula porque tem um pai ausente", ou então, "a separação dos pais fez com que o Joãozinho ficasse distraído em sala de aula". Torna-se necessário desfazer os raciocínios que simplificam uma investigação clínica. Se por um lado não podemos negar que um pai ausente ou a separação dos pais marcam a história de uma criança, por outro sabemos que nem toda criança que tem um pai realmente ausente ou que acompanha a separação dos pais sofre de problemas escolares. Ou mais, nem toda criança que apresenta problemas na escolarização tem, em sua história, episódios da realidade que poderiam justificar seus transtornos escolares. A visão que busca uma causação direta para os problemas escolares faz reduzir, em muito, a problemática enfrentada pela criança. Os estudos de Patto (1990) revelam que ainda hoje encontramos profissionais da infância explicando os fracassos escolares de uma criança pela "carência cultural", pela "condição social precária" ou pela "pouca estimulação". Estes estudos denunciam, também, que tal como se apresentam as instituições escolares, estas fabricam uma dura realidade para algumas crianças que dela fazem parte.
Kupfer (1997) reconhece nos discursos de educadores a dicotomia entre afetividade e cognição. Ela aponta que, para alguns educadores, a criança está dividida em duas metades - a afetiva e a cognitiva -, o que explicaria os problemas de aprendizagem como um "desequilíbrio" entre uma parte e outra, ou então como resultado de uma "alteração" em uma das partes. Na tentativa de fazer desaparecer a dicotomia entre afetividade e cognição podemos recorrer à psicanálise - através das noções de constituição do sujeito, inconsciente e recalque - como eixo para uma leitura sobre a questão dos distúrbios de aprendizagem. Apesar de Freud não ter se detido em investigações acerca da aprendizagem, podemos inferir, a partir do trabalho de psicanalistas pós-freudianos - como Jacques Lacan, Françoise Dolto e Maud Mannoni - que os distúrbios de aprendizagem têm a forma de um sintoma analítico. E o que vem a ser um sintoma analítico?
Para a psicanálise, um sintoma tem o estatuto de uma substituição. Seja de qual ordem for, um sintoma aparece no lugar de algo que não pode ser dito pelo sujeito, através da palavra, em determinado momento de sua história. De acordo com Lacan (1964), o sintoma é uma metáfora, uma linguagem a ser decifrada, uma substituição realizada pelo recalque, em que parte de um conteúdo fica inconsciente ao sujeito e parte manifesta-se fora de uma ordem na história de um sujeito, não importa ser ele uma criança ou um adulto. São considerados sintomas tanto as trocas de letras na língua escrita, como a enurese, a encoprese e a fobia, entre outras manifestações sintomáticas na infância. Todo o tratamento analítico se desenrolará no sentido do desvelamento do sintoma; dito de outro modo, o tratamento acontecerá na direção do encadeamento de sentido de determinado sintoma para aquele sujeito em questão. Deste ponto de vista, um sintoma é uma formação do inconsciente, o que implica relação entre sujeitos; ou seja, um sintoma analítico diz algo da relação inconsciente entre subjetividades. Se considerarmos o fato de o bebê humano nascer completamente dependente de um outro - não só quanto aos cuidados fisiológicos, mas principalmente no que tange à sua inclusão no mundo da linguagem - podemos reconhecer que a formação da subjetividade está completamente atrelada às vicissitudes da relação inconsciente com o Outro, na maioria as vezes, os próprios pais. Como afirma Mannoni (1965), a criança está alienada aos desejos e fantasmas parentais, respondendo a eles, inconscientemente, com seus sintomas.
No tratamento analítico, ao tomarmos um distúrbio de aprendizagem como um sintoma a ser decifrado, particularizamos a história de cada criança, buscando o sentido daquela manifestação sintomática. Nesta perspectiva, como bem lembra Kupfer (1997, p.29), "os pais não são culpados pelos problemas de seus filhos, e sim responsáveis por esses problemas". Ela refere que, do ponto de vista da psicanálise, os pais participam da problemática apresentada pelo filho enquanto sujeitos também submetidos ao seus próprios inconscientes e às suas histórias.
Ao considerarmos os distúrbios de aprendizagem como um sintoma, estamos supondo que a escolha de um determinado sintoma - uma escolha inconsciente por parte da criança - diz respeito à formação de uma subjetividade. É neste sentido que a escuta dos pais acerca dos problemas da criança têm valor inestimável no tratamento, uma vez que são eles quem agenciam a constituição da subjetividade na criança.
Kupfer (1997) recupera dos estudos de Patto uma leitura do fracasso escolar da criança dentro mesmo do universo escolar, e reconhece que tal universo faz produzir, em seu interior, a desqualificação de certos aspectos da história de uma criança, tornando esta criança uma fracassada escolar; de acordo com Kupfer (1997, p.26), "a educação regular é, atualmente, uma máquina de excluir os diferentes (...) mais do que excluir, as práticas educativas adotadas em nossas escolas são, em realidade, fabricantes dessa nova categoria de crianças: as excluídas do sistema regular de ensino".
Até aqui, abordamos crianças que formaram suas subjetividades em torno de sintomas - que em psicanálise dizemos que são estruturalmente neuróticas, exatamente pela condição de fazer substituições. No entanto, existem crianças que, por estarem fora de uma neurose, são afetadas pelo fantasma da exclusão escolar. Refiro-me às crianças autistas e psicóticas, hoje reunidas no CID-10 sob a insígnia "distúrbios globais de desenvolvimento". Para estas crianças, poucas instituições de ensino estão previstas, pelo menos em nosso país. Sabendo da importância fundamental que é a escola para a constituição do sujeito na criança e reconhecendo a carência de programas integrados de tratamento e escolarização para crianças autistas e psicóticas, é que foi concebida e criada, em 1991, junto ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, a Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida. Norteada pelo saber psicanalítico acerca do autismo e da psicose infantil, a preocupação inicial do Lugar de Vida era a de abarcar crianças a quem foram negadas tratamento ou escolarização, por não fazerem parte das conhecidas "deficiências mentais leves ou moderadas", deficiências que são catalogadas através de testes psicológicos como permissão às classes especiais do ensino regular. Reconhecidas as diferenças entre as deficiências mentais e o autismo e as psicoses infantis, esta última população muito raramente tem lugar no ensino regular, dependendo, na maioria das vezes, da boa vontade de um professor em manter em sua sala de aula uma criança nestas condições. Muito comumente, as crianças com distúrbios globais de desenvolvimento demonstram dificuldades básicas na relação com o outro, dificuldades que vão desde a ausência de fala até a agitação motora acentuada, apresentando, apesar da problemática, algumas ilhas de inteligência, o que nos permite pensar que podem aprender.
A instituição Lugar de Vida está posta como uma rede de linguagem na qual a criança e seus pais são escutados em suas particularidades. No entanto, o trabalho com as crianças ocorre dentro de um panorama bastante parecido com o ambiente escolar. As crianças são atendidas em grupos, como forma de manter o laço social entre elas, grupos coordenados por psicanalistas que, diferentemente do enquadre clássico da psicanálise, põem-se a escutar as crianças e a intervir a partir de atividades diferenciadas: atividades educacionais, ateliês de artes, grupos de jogos e recreação. Importa-nos muito a condição da criança em estar com o outro produzindo relações, algo semelhante ao que se passa nas escolas regulares. Se as intervenções junto às crianças inovam uma certa prática clínica dentro do referencial psicanalítico, a leitura clínica de cada um dos casos atendidos é realizada pela equipe mantendo-se dentro dos princípios norteadores da psicanálise. No entanto, na equipe contamos com a participação de um pediatra e de uma fonoaudióloga que colaboram, a partir de suas especificidades, com as discussões diagnosticas colocadas pelos psicólogos e psicanalistas.
A experiência do Lugar de Vida é positiva no que tange à promoção do laço social entre as crianças e adolescentes ali atendidos, bem como no que tange à construção de um sujeito psíquico onde muitas vezes nada de subjetividade parece existir em algumas daquelas crianças. Outro ponto positivo desta instituição diz respeito à inserção ou à reinserção no ensino regular de algumas crianças que atingiram, através do tratamento, uma estabilização de seus quadros, o que implica dizer que, minimamente, apresentam condições de estar com o outro em uma relação de ensino e aprendizagem. Contudo, deparamo-nos com muitas dificuldades em encontrar escolas que aceitem crianças e adolescentes com distúrbios globais de desenvolvimento; neste sentido, propusemos uma assessoria para professores de classes especiais do ensino regular como forma de dar sustentação ao trabalho realizado com tais crianças em sala de aula, bem como forma de garantir a permanência das crianças nas escolas. Apesar de todas as dificuldades postas no diálogo com os professores - dadas as diferenças teóricas sobre a infância - o caminho da parceria nas discussões e intervenção a respeito de cada uma das crianças tem sido a melhor estratégia de tratamento. Também as discussões com profissionais da área da saúde que atendem as crianças em outros tratamentos enquadram-se nas parcerias feitas pelos profissionais do Lugar de Vida.
Isto posto, podemos questionar sobre qual seria o limite da intervenção do pediatra junto aos problemas de escolarização, já que esta é uma queixa freqüente nos consultórios? O que caberia ao professor? E ao psicanalista?
Reconhecendo que estas três ciências possuem um saber sobre a infância e reconhecendo, ainda, a impossibilidade de que tais saberes sejam reduzidos a um só, é que ressalto a importância da manutenção da especificidade de cada área para melhor atuação diante da problemática na escolarização. Eu arriscaria dizer que o limite entre a pediatria, a psicanálise e a pedagogia é dado pela exaustão interna de cada uma dessas áreas na busca de saídas possíveis ao problema apresentado pela criança. Neste sentido, finalizo convocando os pediatras à prática da interdisciplinaridade com os profissionais envolvidos em torno dos problemas de aprendizagem - antes mesmo que se realizem encaminhamentos - na tentativa de se configurar uma direção coerente ao tratamento, bem como de não fragmentar em vários tratamentos uma criança que sofre.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARIES, P. (1973). História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. [ Links ]
CID-10: Classificação de transtornos mentais e de comportamento (referência rápida). Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. [ Links ]
KUPFER, M. C. (1997). Afetividade e cognição: uma dicotomia em discussão. In: Idéias: os desafios enfrentados no cotidiano escolar. São Paulo: Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE). [ Links ]
LACAN, J. (1964). Seminário XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ]
MACHADO, A. M. (1997). A queixa escolar no alvo dos diagnósticos. In: Idéias: os desafios enfrentados no cotidiano escolar. São Paulo: Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE). [ Links ]
MANNONI, M. (1965). A primeira entrevista em psicanálise. Rio de Janeiro: Campus. [ Links ]
PATTO, M. H. (1990). A produção do fracasso escolar, histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T. A. Queirós. [ Links ]
NOTA
1 Trabalho apresentado no VIII Congresso Paulista de Pediatria, no colóquio Problemas freqüentes psicoafetivos na clínica pediátrica (sobre o tema específico "distúrbios de aprendizagem"), evento promovido pela Sociedade de Pediatria de São Paulo, entre os dias 28 de março e 1 de abril de 1998.