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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.4 no.6 São Paulo jul. 1999
ARTIGO
A articulação entre as crenças e o processo de aprendizagem: uma perspectiva psicossocial
The articulation between beliefs and the process of learning: a psychosocial viewpoint
Dora Laino
Professora titular da Universidad Nacional de Córdoba, Argentina
RESUMO
A partir de uma dimensão psicossocial, podemos afirmar que as convicções de fundo (Habermas) familiares - às quais acrescentam-se as profissionais (médicas ou pedagógicas) -formam o conjunto de crenças compartilhadas, ou seja, a doxa (Bourdieu), a partir da qual se significa o sujeito e seus sintomas. Assim fica definido seu horizonte e seu mundo da vida: em função das crenças compartilhadas pelos outros referenciais, a eficácia simbólica decide os resultados de sua aprendizagem.
Crenças; mundo da vida; aprendizagem
ABSTRACT
From a dimension psychosocial, it can be affirmed that the familiar basis convictions (Habermas) - to those that the professionals are added (medical or pedagogic) -, they conform the group of shared beliefs, the doxa (Bourdieu) from the one that is meant to the person and their symptoms. It is this way defined their horizon and their world of the life: in function of the beliefs shared by the other relating, the symbolic effectiveness decides the results of its learnings.
Beliefs; world of the life; learnings
"O progresso do conhecimento supõe, no caso da ciência social, um progresso no conhecimento das condições do conhecimento; exige deste modo retornos obstinados aos mesmos objetos..."
"(...) Se conhecemos a dificuldade e a lentidão com as quais o modo de pensamento relacionai (ou estrutural) se impôs na matemática e na física, assim como os obstáculos específicos que se opõem, no caso das ciências sociais, à sua colocação em funcionamento, poderemos medir o ganho que representa ter ampliado aos sistemas simbólicos 'naturais', língua, mito, religião, arte, a aplicação desse modo de pensamento."
(Bourdieu, 1991, pp. 13, 17)
Os autores cognitivistas, atualmente em expansão, deixam de lado muitas perspectivas, uma delas é o estudo das crenças (Bruner, 1991; Gardner, 1988; Norman, 1987), conceito trabalhado - entre outros - por P. Bourdieu (1991). Vou referir-me, a partir da perspectiva da dimensão psicossocial dos processos cognitivos, à articulação entre as crenças e o processo de aprendizagem. Com este objetivo, mencionarei, a título de exemplo, alguns dados da história de vida de um menino chamado João.
João nasce em 1985, em um lar muito humilde. É filho único. Seu pai trabalha em uma quitanda; sua mãe é dona de casa.
Aos 6 anos, os pais decidem inscrevê-lo em uma escola com duas modalidades: comum e especial. O departamento psicopedagógico da instituição realiza um estudo de admissão, em função do qual o menino é recusado. Encaminham-no, então, ao Serviço de Saúde Mental do Hospital de Crianças local, e lá diagnosticam nele oligotimia com traços psicóticos, e recomendam aos pais que o menino realize tratamento psicológico e psicopedagógico.
No ano seguinte, novamente, os pais solicitam a inscrição de seu filho na mesma escola, mas também não é admitido. Sugerem que participe de um ateliê de expressão.
Passado mais um ano, os pais insistem - pela terceira vez -em inscrevê-lo no mesmo estabelecimento; nesta ocasião, João é aceito.
Apresenta nesse momento um QI de 75 no Wise e um protocolo de Bender com menor expansividade e maior hipertonia, mais estruturado que nas aplicações anteriores.
Desde o início, as profissionais do departamento psicopedagógico observam no pai uma atitude corporal que transparece - a seu ver - dificuldades intelectuais e de expressão. João reproduzia esta hexis corporal, razão pela qual a psicopedagoga refere-se ao menino dizendo: "Parecia um débil mental".
A psicóloga da escola, por sua vez, considera que a mãe não se vincula com o menino de uma maneira espontânea e natural. Está sempre muito preocupada e geralmente demonstra uma atitude mais enérgica e autoritária que o pai. Sem dúvida, é - a seu ver - a pessoa forte da família.
Em 1994, João ingressa na primeira série da escola especial. Mas no "primeiro final", dado que esta série é dividida em "primeiro" e "primeiro final".
O menino é incorporado a um grupo pequeno, no qual começam a ensinar-lhe a série silábica ma-me-mi-mo-mu. Com aplicação e docilidade, reproduz em seu caderno a série silábica. Depois de permanecer dois meses neste "primeiro final", a professora descobre que sabe ler e escrever mais do que se previa para esse curso, motivo pelo qual passam-no para a terceira série da mesma escola especial, série que - finalmente - completa.
No decorrer da escolarizaçâo, João começa a ter bons resultados em matemática; recebe felicitações, as quais, somadas a sua capacidade de resolver situações nesta matéria, aumentam sua segurança e auto-estima. É notável, neste momento, a mudança de atitude que experimenta.
Na quarta série, as profissionais do departamento, junto com a condução da escola, decidem transferi-lo para a escola comum. Nesta quarta série comum participa das aulas semanais de teatro e atua com êxito em uma obra teatral. Durante a representação desta última, o grupo o aplaude: está - neste momento - muito contente e satisfeito. Gradualmente, João deixa de reproduzir a hexis corporal paterna.
Em 1998, o menino está na sexta série da escola comum e mostra-se particularmente hábil para a resolução de equações. Podemos afirmar que o narcisismo dos pais sustenta-se, em grande medida, no desempenho escolar de João. E se a professora menciona qualquer problema em sua caderneta, imediatamente eles aparecem na escola para falar com a docente. A relação da mãe com ele, e também com a escola, modificou-se notavelmente, à medida que melhorava o desempenho de João. Hoje ficaram distantes no passado - e até mesmo surpreendem - aqueles momentos nos quais a instituição escolar não aceitava matriculá-lo como aluno.
A partir dessas referências a respeito de um menino, inicialmente incluído na educação especial, pretendo fazer alguns comentários, dentro da perspectiva psicossocial dos processos cognitivos.
Desejo referir-me, resumidamente, para precisar o conteúdo que dou ao termo crenças,a:
□ o mundo da vida e as convicções de fundo, segundo Habermas;
□ a eficácia simbólica, segundo Lévi-Strauss.
Também vou mencionar, mais resumidamente ainda, e uma vez que constituem um aspecto intimamente vinculado às crenças, os habitus, segundo Bourdieu.
As pessoas entendem-se desde e a partir de um mundo da vida que lhes é comum. O conceito de "mundo da vida" trabalhado por Habermas em sua teoria da ação comunicativa1 permite-nos dar conta desse pano de fundo, desse solo familiar da vida cotidiana no qual são integradas diversas convicções comuns com as de outros sujeitos que compartilharam socializações semelhantes. As certezas provenientes desse saber pré-temático definem o horizonte das experiências vitais dos indivíduos. Esse mundo da vida, que a partir de seu acervo de saber permite interpretar situações e referências, é mantido e reproduzido através da ação comunicativa estabelecida com esses outros, que constituem enunciadores reconhecidos e reconhecedores de nossa realidade.
Na ordem das convicções de base, na das crenças, tal como as concebia Peirce quando afirmava que "as crenças são regras para a ação", são gerados os limites e as possibilidades dos sujeitos. Em qualquer sujeito, na singularidade de suas necessidades e expectativas, serão definidas possibilidades e limites a partir das crenças dos outros, e das próprias crenças sobre si mesmo. É por isso que Peirce queria encontrar um método que desse conta das condições, em geral, para a aquisição das crenças estáveis que regulam a ação humana em qualquer situação e por qualquer objetivo. Sua perspectiva é reconstruída por Habermas, em seu giro lingüístico, quando nos diz que a rede da prática comunicativa cotidiana é o meio pelo qual se reproduzem a cultura, a sociedade e a pessoa. Esse saber de fundo que é compartilhado e reproduzido define horizontes aos sujeitos, abre ou reduz mundos da vida. Essas convicções de fundo, compartilhadas, são um suporte para a participação no mundo simbólico, mas também delimitam ou circunscrevem as possibilidades simbólicas do sujeito e, como conseqüência, sua disponibilidade cognitiva.
A socialização e os processos de aprendizagem constituem normas e estruturações subjetivas, devido às quais a criança constrói uma identidade, na medida em que se forma para ela um mundo social ao qual pertence e, ao mesmo tempo, um mundo subjetivo singular. As convicções de fundo, como crenças pré-reflexivas (nos termos de Bourdieu, a doxa), fornecem o terreno de base sobre o qual se produzem as comunicações. Ações comunicativas geradoras do que Lévi-Strauss denomina "a eficácia simbólica".
Em uma descrição detalhada, o antropólogo francês relata o parto doloroso de uma jovem, levado a bom termo com a intervenção do xamã da tribo. Incorporando elementos míticos por meio de seu canto, este vai personificando as regiões desse corpo afetado e assim a experiência é resolvida entre espíritos protetores e malignos, monstros e animais mágicos. Desta maneira, "o xamã proporciona à doente uma 'linguagem' na qual podem ser imediatamente expressados estados não-formulados e não-formuláveis por outro caminho" (Lévi-Strauss, 1968, p.179).
O fato de essa mitologia carecer de realidade objetiva não tem importância; sua realidade consiste em formar parte de um sistema coerente que funda a concepção indígena do universo, e esta doente pertence a uma comunidade que lhe oferece suporte.
Da mesma forma, a concepção da realidade assimilada durante nossa socialização, a que sustenta aqueles interlocutores reconhecidos como revestidos de autoridade, é a que constitui nosso mundo da vida, a que gera nossas convicções de fundo. E é a concepção compartilhada com os outros que integram nossos próprios grupos de pertinência a que tem eficácia simbólica. Por isso o reconhecimento dos outros produz efeitos em cada um de nós. Assim, voltando a nosso exemplo, a João, é o reconhecimento dos outros, seja no teatro ou na matemática, o que o modifica e gera seu próprio conhecimento.
Por outro lado, os habitus, entendidos como sistemas perduráveis e transponíveis de esquemas de percepção, apreciação e ação resultantes da instituição do social nos corpos, implicam idéias, valores e também essas formas de manejo do corpo que Bourdieu denomina hexis corporal. E é essa hexis corporal que se modifica em João quando, a partir da eficácia dos intercâmbios simbólicos desdobrados durante o processo educativo, chega a modificar a atitude corporal adotada a partir da imagem do pai.
O já mencionado aspecto corporal remete-nos novamente a Lévi-Strauss (Mauss, 1971), que propõe, na introdução à obra de Marcel Mauss, que "os esforços 'irrealizáveis', as dores 'insofríveis', os prazeres 'extraordinários' estão em menor escala em função das particularidades individuais que em função dos critérios sancionados pela aprovação ou desaprovação coletiva", o que ressalta a incidência da ordem simbólica sobre o emprego e a expressão do corpo. O corpo acredita no que está jogando. O que se aprende pelo corpo não é algo que se possui, como um saber que alguém pode manter diante de si, mas algo que se é, afirma, por sua vez, Bourdieu.
Além disso, podemos dizer que cada sujeito está incluído em grupos e em processos de socialização e de aprendizagem, a partir dos quais significa a realidade e é significado por sua vez com e pelos outros. Esse grupos mantêm sua identidade na medida em que compartilham representações que se condensam em convicções de fundo. Sobre a base dessas convicções de fundo comuns, são obtidos entendimentos para reproduzir as significações existentes e para produzir as novas. Esse saber de fundo, que é comum e se recria, configura horizontes aos sujeitos, amplia ou diminui seus mundos da vida.
Vejamos agora algumas breves referências sobre uma menina que também passou por diagnóstico de profissionais do campo da saúde mental e foi incluída em uma escola especial:
□ Alice nasceu em 1987; pai: ex-operário da Fiat; mãe: dona de casa; irmão: um ano e meio mais novo que ela.
Alice freqüenta o jardim-de-infância e, devido a suas inibições, não realiza as atividades escolares. A professora diz à mãe que sua filha apresenta problemas de integração, não fala nem participa e, quando lhe perguntam algo, responde sempre "não posso, não sei". Por este motivo, Alice é levada por seus pais a um serviço de saúde, no qual a psicóloga e a psicopedagoga que fazem o diagnóstico chegam à conclusão de que possui um QI normal (QI de 98 no Wise). Afirmam que seu problema radica em sua grande insegurança. A psicopedagoga, nessa ocasião, sugere uma consulta fonoaudiológica. A partir do momento em que é realizada a consulta fonoaudiológica, a menina começa a gaguejar. Diz a mãe, referido-se a sua filha: "É um menina frágil, muito doente, não come bem... dediquei-me tanto, preocupando-me em se ela tinha olheiras, diarréia, se engordava, se emagrecia. Quando me disseram que não falava bem, foi como se me tirassem uma venda dos olhos, como se me despertassem. Não a inscrevem na primeira série porque tem problemas de linguagem... Ela não pronunciava bem, mas não gaguejava, mas, quando começa com a fonoaudióloga, sim... Que erro!, disse a psicóloga. Agora gagueja muito".
As profissionais encarregadas da matrícula caracterizam a mãe como uma senhora que pratica a religião católica e vive os acontecimentos de sua história vital enquanto marcados pelo sofrimento. O pai de Alice não trabalha e, devido a um problema de saúde, deve fazer hemodiálise regularmente.
Na segunda série da escola especial, Alice começa a experimentar mudanças positivas, evidentes, em seu rendimento escolar. Até a terceira série freqüenta a escola especial. A partir da quarta, é integrada na escola comum, momento em que é realizado outro diagnóstico, cuja conclusão é que o problema de linguagem não é importante. A partir do referido diagnóstico, já não apresentará dificuldades de linguagem. Agora manifesta algumas dificuldades em aritmética, mas seu rendimento é, em geral, mediano. Atualmente está na quinta série da escola comum.
Novamente encontramos nesse exemplo os efeitos da eficácia simbólica a partir da intervenção de um outro que se supõe que sabe. O enunciado problema de linguagem e o encaminhamento à fonoaudióloga desencadeiam a gagueira. A insegurança (mencionada pela psicopedagoga), por outro lado, pode ser explicada e compreendida inferindo o mundo da vida da menina a partir de seu contexto familiar. Um mundo doméstico que gira em torno da doença e do sofrimento, no qual desde pequena foi tratada como doente. A passagem para a escola comum e, posteriormente, a palavra qualificada que diminui a significação do problema de linguagem levam a que os históricos problemas de expressão verbal deixem de ter significação. Mas é muito difícil que nessa trama familiar todos os problemas da menina desapareçam. É por isso que persistem alguns inconvenientes em seu desempenho escolar.
Tem sido destacada por numerosos autores a importância do grupo doméstico de pertinência, nas consultas psicológicas sobre crianças. Esta consideração é potencializada quando falamos de debilidade mental ou de psicose. No débil mental e/ou no psicótico, o corpo fica afetado porque estes sujeitos não dispõem de uma ordem simbólica2 (nem de um desejo próprio) que permita processar as significações das quais são objeto, para que não fiquem aprisionados nos limites que lhes traçam. Às convicções de fundo familiares, são acrescentadas as profissionais, médicas ou pedagógicas. Em uma dimensão psicossocial, todas elas formam o conjunto de crenças compartilhadas, ou seja, a doxa - nos termos de Bourdieu -, a partir da qual se significa o sujeito e seus sintomas. Estas crianças são percebidas como "especiais", tanto por seus pais e professores, como pelos demais agentes com os quais se vinculam; reciprocamente, constituem sujeitos psíquicos especiais, tanto pela interiorização das convicções do outro, como pela construção de seus habitus,com as características derivadas destas relações estabelecidas em sua trajetória vital.
A partir dessas convicções de fundo, ficam definidos o horizonte do sujeito e seu mundo da vida. Ou seja, para além da proposta pedagógico-didática ou do nível intelectual diagnosticado por meio de testesmentais, em função das crenças compartilhadas por esses outros referenciais, a eficácia simbólica decide os resultados de sua aprendizagem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NOTAS
1 Inicialmente enunciado por E. Husserl e trabalhado também por A. Schütz.
2 No sentido de J. Lacan.