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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.10 n.18 São Paulo jun. 2005

 

DOSSIÊ

 

Um olhar clínico na sala de aula: uma nova metodologia pedagógica?

 

A clinic's view in the class-room: a new pedagogical method?

 

 

Francisco MouraI

Universidade Federal de Ouro Preto

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é refletir sobre a importância dos fenômenos inconscientes nos processos educativos. Durante a construção da psicanálise Freud indagou por várias vezes sobre os reais efeitos da função psíquica face aos múltiplos espaços sociais em que o ser humano está inserido: o contexto educacional é um deles. Discutimos de que forma o processo de aprendizagem, nos seus múltiplos entraves, pode fazer o sujeito manifestar-se, levando em conta aspectos subjetivos e intersubjetivos implícitos na relação professor, aluno e conhecimento. Defendemos a idéia de que um olhar clínico sobre o fenômeno educacional escolar é um recurso possível para fazer eclodir o sujeito.

Palavras-chave: Educação clínica, Clínica, Psicanálise da educação, Intersubjetividade, Subjetividade.


ABSTRACT

The aim of this paper is to reflect on the importance of the unconscious phenomena in the educative processes. During the construction of the psychoanalysis, Freud asked himself several times about the real effect of the psychic function faced to the multiple social areas where the human being is: the educational context is one of them. We believe that it forms the learning process, in its multiple impediments that can make the subject manifest, taking in account implicit subjective and inter-subjective aspects in relation to the teachers, pupils and knowledge. We defends the idea that a clinical view on the pertaining of the school educational phenomenon, is a possible way to reveal the subject.

Keywords: Clinic's education, Clinic, Psychoanalysis of education, Inter-subjectivity, Subjectivity.


 

 

Educar hoje

Os fenômenos psíquicos colocados em evidência pela psicanálise sempre influenciaram qualquer prática educativa. A importância da psicanálise nesta área está presente na vasta produção de Freud (Cifali & Imbert, 1998; Filloux, 2000) e, reagrupá-la, requer uma leitura minuciosa da sua obra e dos trabalhos produzidos a posteriori por profissionais da área de educação. Filloux (2000, pp. 21-26) apresenta um quadro suscinto dessas produções. Destacam-se ainda as inúmeras correspondências que Freud estabeleceu, entre 1909 e 1939, com o Pastor Oscar Pfister e com o educador Hans Zulliger sobre a educação escolar. Já em 1925, quando Freud escreveu o prefácio do livro Jeunes en souffrance, de August Aichhorn (1925), um arsenal teórico já havia sido moldado dentro da sua concepção psicanalítica o que lhe permitiu apontar diretamente o que a psicanálise poderia oferecer à educação, apesar do caráter conciso desse prefácio.

São múltiplas as dimensões para compreender o processo educativo, e nossa hipótese é que pela psicanálise esse vasto campo de "relação de humanos" pode ser descrito, principalmente se for levada em consideração a égide do funcionamento inconsciente nessas relações. Acreditamos que a "célula social" chamada Escola é sem dúvida um campo de aplicação da psicanálise. No Prefácio a Aichhorn, Freud (1925) o introduz afirmando que "entre todas as aplicações da psicanálise, nenhuma suscitou tanto interesse, despertou esperança e, em conseqüência, trouxe tantos colaboradores competentes, quanto a sua aplicação na teoria e na prática da educação com crianças"1. Sem dúvida, ele faz referência à instituição escolar.

A abrangência da aplicação da psicanálise nesse campo pode ser vista ainda na leitura da prática pedagógica psicanalítica na instituição (Moll, 1989), na psicosociologia da educação (Ardoino, 2000) e numa descrição do processo intelectual visto pela lógica do desejo (Ferreira, 1998; Kupfer, 2001; Mijolla-Mellor, 2002), além das múltiplas imbricações subjetivas e intersubjetivas implícitas no momento da transmissão de conhecimentos (Imbert, 2004).

Seria possível falar de uma metodologia contemporânea _ originária da experiência psicanalítica _ nesse campo minado de múltiplos saberes e de múltiplas verdades que denominaríamos Educação Clínica? É nesse contexto que investigaremos o papel da "Clínica" sustentada pelos conhecimentos psicanalíticos na educação contemporânea.

No que se refere à transmissão de conhecimentos e aos seus efeitos, sabemos que a ação de uma pessoa sobre a formação de outra é bastante antiga. Basta citar a influência da sabedoria de Sócrates sobre Platão. Garcia (1998) afirma simplesmente que "Platão assumiu a tarefa de registrar o ensino de Sócrates graças aos famosos diálogos. Platão, o professor, teria aceito transmitir a verdade contida nas intervenções de Sócrates, verdade formulada em ocasiões em que alguma demanda lhe era feita" (p. 15). Lacan (2001), por sua vez, dedicou um ano de seus seminários, entre 1960 e 1961, para decifrar os fenômenos subjetivos implícitos no Banquete, de Platão (1964). Destaque-se que a implicação no processo de escrita causado sobre o último foi considerável: o que sabemos finalmente nesse processo de transmissão é que um saber, ou melhor, retomando o termo que o professor Garcia toma emprestado de Sócrates, que uma verdade foi construída. Este era o ideal socrático! Nossa indagação é sobre o fenômeno subjetivo que ocorre quando há transmissão de um conhecimento e que isto faz o outro pensar, agir e produzir um novo conhecimento, uma verdade, no processo educacional de forma geral. O texto de Lacan (2001) enfatiza o conceito psicanalítico da Transferência, que, por sinal, é o conceito central no processo de cura na clínica analítica. Iremos investigá-lo posteriormente, principalmente no que concerne à sua aplicação no campo educacional. Não é por menos que esse conceito remete os historiadores ao texto de Platão (1964), pois que o seu Banquete é, na verdade, uma alusão ao discurso sobre o amor assim como toda transferência é também, no campo da psicanálise, transferência de amor.

No que se refere à psicanálise, observa-se que ela avançou fronteiras e invadiu outros territórios do "campo social". Na sua Sexta Conferência, Freud (1933) esclarece que a psicanálise pode ser aplicada em outras ciências, sobretudo sobre aquelas do espírito, e "suscita novos trabalhos e novas pesquisas" (p. 191). Por mais fundamental que seja o estudo e a análise da função psíquica, é indissociável falar sobre o sujeito sem falar do social e da cultura. Mesmo os campos mais ortodoxos dentro da psicanálise já efetivam sua aplicação no campo do social. Confira principalmente os Travaux de l'École de la cause freudienne, dirigidos por Miller (2003); sem, contudo, desprender-se da postura clínica.

A noção de clínica, que foi estritamente médica até um certo tempo, teve o sentido de "acompanhar o enfermo ao lado de seu leito" alterado para um novo sentido. Charcot, Binet e Janet são personagens importantes nesse processo, como nos mostra Barus-Michel (2002) no seu artigo Clinique et sens. Agora, passou a significar preocupação de acompanhar o sujeito na sua trajetória: seja na cura, na mudança de postura, ou simplesmente compreendendo-o (Ardoino, 2000, p. 60) nas imbricações intersubjetivas da relação em que ele está inserido. Desfaz-se uma intervenção positivista que crê na produção em série de indivíduos, como máquinas, para dar ênfase ao sujeito implícito por detrás de cada indivíduo. Observe-se que este é também um dos sentidos que a etimologia da palavra educação conota, ou seja: conduzir o indivíduo para além da situação em que ele se encontra (p. 108).

Essa nova forma de abordar o processo educativo nos tempos atuais mostra que a compreensão desse processo não está voltada somente para a transmissão e o acúmulo de conhecimentos. Reconhece-se que o aprendiz é algo mais que um simples receptor desses conhecimentos que a sociedade e a cultura adquiriram historicamente. Sabemos pela história que os valores sociais são mutáveis e que a maioria dos processos educativos aplicados no campo escolar tendem a acompanhar essa adequação aos valores que a sociedade veicula. De fato, a educação escolar é uma educação para o social e o impressionante de se constatar é que nesses processos muito pouco se enfatizam os aspectos implícitos nos indivíduos aprendentes. Por exemplo, a noção de subjetividade e de intersubjetividade do ensinante e do aprendente não são levadas em consideração nos processos de transmissão e de aquisição de conhecimentos. Nas diretrizes educacionais, não há espaço para discutir sobre a subjetividade e a intersubjetividade do professor e do aluno. Veicula-se a necessidade de atender a currículos ricos em informações e condensados em espaços de tempo restrito. Nossa hipótese aqui é que tal procedimento é pouco efetivo numa perspectiva de educação clínica.

De fato, Freud (1933) apontou que "a infância é um período da vida difícil para atravessar porque a criança deve em pouco tempo assimilar toda uma civilização que foi elaborada em milhares de anos" (p. 194). Nas práticas escolares, tudo é apresentado como se "o mundo fosse acabar" e todos devessem sair contentes ao final de cada ano letivo: o aluno deve provar que conhece tudo o que o professor lhe transmitiu naquele tempo e o professor, preencher os seus formulários e fichas de classe, provando que conseguiu transmitir todo o programa e o conteúdo previsto para aquele período. Esta é a máquina educativa dos tempos modernos, que por sinal, está sendo fortemente criticada.

Há de se acrescentar que o discurso de "zelar pela qualidade do ensino" é corrente entre os professores e os dirigentes da educação. Será que o acúmulo de conhecimentos é a garantia de que o processo educativo foi de qualidade? É isto que se espera de um aprendiz que concluiu uma formação, seja ela de ensino técnico, de ensino superior em humanidades ou outra área? O que a educação clínica como método de ensino pode oferecer aos educadores para que, além do acúmulo de conhecimentos, o processo de educação possibilite uma real transformação do aprendiz? E qual é a real força que uma educação voltada para uma postura clínica tem para promover essa transformação? Como avaliar o efeito do processo educativo no après-coup? São essas as questões que nos impulsionam atualmente.

Em linhas gerais, no sentido clínico da intervenção educacional, entendemos que é necessário "prosseguir, nesta educação escolar (o grifo é nosso), um objetivo diferente, mais elevado, fora das convenções sociais prevalentes" (p. 198), a fim de romper com a idéia de formar indivíduos para as necessidades emergentes da sociedade da produção versus capital. Retomando a fala da professora Cifali (2004a), pode-se afirmar que "em nome da eficácia e da rentabilidade anulamos o psiquismo na formação das pessoas"2.

Então, o que é a clínica e como ela se enquadra dentro da perspectiva de intervenção? De que forma um educador pode usufruir desses ensinamentos para ampliar o horizonte da sua intervenção? Freud (1933) lançou como sugestão que "convém procurar o optimum dessa educação, ou seja, uma maneira para que ela seja mais proveitosa e menos perigosa" (p. 196). E, no Prefácio a Aichhorn (1925), constatamos que o ideal da aplicação da Psicanálise à educação começa a se concretizar. Nesse caso, o olhar do educador atravessa os limites dos muros da escola e se preocupa com o sujeito na sua íntegra.

Para Cifali (2001), "trata-se de conceber uma formação inicial autorizando a construção de uma atitude clínica face à classe, à instituição, a uma criança; uma formação na base de uma atitude de intervenção e de pesquisa a ser desenvolvida ao longo do tempo de trabalho, que permite tanto a produção de conhecimento quanto a sua transmissão" (p. 125). Entendemos, nessa intervenção formativa, que a noção de clínica já ultrapassou o campo da medicina e agora se transformou em uma ferramenta ou "um método das ciências humanas", como afirma Barus-Michel (2002, p. 314), e que um olhar clínico é extremamente pertinente no campo educacional, como um espaço social e de intervenção das ciências humanas.

O que é esse campo educacional? O que os pedagogos têm feito para possibilitar uma verdadeira educação? Levamos em consideração aqui neste contexto que o fato de ensinar um conteúdo específico das ciências "duras" ou "humanas" não isenta o professor de uma postura pedagógica. Atualmente podemos afirmar que todo educador é também um pedagogo: é aos educadores que os pais delegam a função de conduzir seus filhos em direção à conquista dos múltiplos conhecimentos que são veiculados neste campo escolar.

Fazer uma revisão da ambigüidade dos conceitos Educação e Pe dagogia tornaria longo e cansativo nosso debate; isto é desnecessário. Optamos por apresentar a posição de Ardoino (2000) sobre a questão. No seu livro Les avatars de l'éducation o autor retoma a polêmica quanto à etimologia dos termos Educação e Pedagogia de forma distinta, sem, contudo, querer dizer que pretende separá-las como "a arte e a técnica". Esses termos necessitam de uma melhor conceitualização com o objetivo de uma otimização da ação (conferir principalmente as páginas 101-114, 183-189 e 229-234).

Na Jornada européia de estudos sobre a formação e a pesquisa (2002) do professor, houve um longo debate sobre a "clínica educativa e a intervenção terapêutica" mostrando o quanto o tema é atual. De fato, a idéia de Educação Clínica no contexto educacional amplo não difere da proposta de Educação Terapêutica, utilizada por Kupfer (2001) no contexto "das práticas da pré-escola terapêutica Lugar de Vida, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo"; seu objetivo, dentre outros, é atender às crianças com graves distúrbios (pp. 83-116). No Lugar de Vida, a intervenção clínica acompanha o processo educacional, levando em consideração as dimensões institucional, familiar e educacional. É um campo da educação especial atravessada pela psicanálise. Diríamos que a Educação Clínica é uma célula desta última. Entretanto, no contexto da educação regular adotar a intervenção clínica _ terapêutica _ como uma praxis é um risco. Por isso concordamos com Freud (1933), quando afirma que devemos "renunciar à idéia de analisar todas as crianças" (p. 195). Posicionar-se com um sensor clínico no contexto educacional é uma ferramenta interessante para os professores. Nesse sentido, Freud (1933) afirma que "conhecer as particularidades constitucionais da criança, saber adivinhar, graças a pequenos indícios, o que se passa dentro da sua alma ainda inacabada, lhe testemunhar sem excesso o amor que lhe é dado, conservando a autoridade necessária, é a tarefa desconcertante que se impõe ao educador e, querendo, dizemos que somente o estudo aprofundado da psicanálise é capaz de constituir uma preparação suficiente para o exercício de tal profissão" (p. 197).

Muitas pistas estão presentes na escrita de Freud sobre a importância da psicanálise para a Educação. Apesar de ter concentrado seu esforço para descrever o inconsciente do indivíduo nisto que lhe é o mais peculiar, o que vimos emergir de suas definições é que o sujeito é antes de tudo um ser de relação, um sujeito social. O sujeito não existe sem estar atrelado a um grupo social e cultural. Além do mais, o seu inconsciente não é cunhado sem a presença do Outro: uma relação que se passa no real e que se configura no après-coup, no representacional, no imaginário.

O processo educacional é um campo de relações entre o professor e o aprendiz atravessado por um conhecimento que se pretende transmitir ou adquirir. A clínica é relação pura, sem intermediários, ou seja, a palavra ou a passagem ao ato assumem o papel do intermediário. É nesse campo de relações subjetivas, no contexto educacional, que o inconsciente do sujeito social se manifesta e é onde, constantemente, uma ação no real emerge.

Retomar o termo freudiano sobre o Agieren é pertinente pois _ traduzido por mise en acte, na língua francesa e, por "passagem ao ato", na língua portuguesa _ ele é uma modalidade "do retorno do recalcado e apóia-se sobre a transferência, mas ele [o Agieren] é um comportamento, uma ação, lá onde a rememoração está dentro do campo da palavra, da lembrança e da representação. No Agieren o sujeito desconhece a presença da repetição" (Pechberty, 2000, p. 16). Não nos resta dúvida que, por via da transferência, o Agieren do aprendiz se atualiza na figura do professor, nas relações com os outros alunos da escola e com a instituição. A leitura clínica do social, do institucional e do ato educativo é, aqui, uma tentativa de reconstituir neste campo o que é da ordem da repetição e dos resíduos inconscientes que se atualizam, danificando as relações inter-humanos.

 

O ato clínico no ensino

O termo clínica, precioso para a área médica, passa a ter uma importância em outros campos de intervenção inter-humanos. Ele "não pertence a uma única disciplina nem é um terreno específico; é uma approche que visa uma mudança, se sustenta dentro da singularidade, não tem medo do risco e da complexidade, e co-produz um senso do que se passa", afirma Cifali (2001, p. 121). A clínica se caracteriza por uma produção de efeito nas pessoas envolvidas diretamente nos processos de relação de humanos. A psicanálise, sem dúvida, se enquadra nessa perspectiva.

Atualmente, no contexto educacional, essa leitura é verdadeiramente modesta, porque se observam casos isolados de ação nesse campo, nos últimos anos. Talvez a mudança de século venha marcar a mudança de paradigma, principalmente nos campos das ciências humanas e sociais. Nos tempos atuais, observamos que a formação do indivíduo no contexto educacional não visa somente "formatar" o indivíduo para atuar nas indústrias: Charles Chaplin no filme Tempos Modernos denunciou explicitamente os prejuízos de uma capacitação industrial dos indivíduos.

A noção de clínica ultrapassa e transgride essa necessidade de formar "indivíduos máquinas"; leva em conta o sujeito em questão e interpreta os sinais que se manifestam no ambiente educacional (Barus-Michel, 2002, p. 313).

Para Paul Cotta (Journées européennes d'études, 2002), "existe clínica a partir do momento que é levada em conta a existência do inconsciente e a produção do sujeito que se manifesta. Mas produz-se então um alargamento do conceito e passamos à clinica educativa" (p. 69). Essa noção vai no mesmo sentido da nossa proposta que enfatiza a força do inconsciente.

Ardoino, citado por Cifali (2001), nos apresenta esta definição acerca da clínica: "é propriamente clínica, hoje, isto que pretende apreender o sujeito (individual e/ou coletivo) através de um sistema de relações constituído em dispositivo, ou seja, no seio do qual o profissional, ou o pesquisador, como os seus pares, se reconhecem efetivamente implicados, seja para visar a evolução, o desenvolvimento, a transformação de um tal sujeito ou a produção de conhecimentos, em si-mesmo e nele ou para nós" ou ainda uma "sagacidade (perspicácia) de acompanhar durante um tempo, intimidades partilhadas " (p. 121).

Para Barus-Michel (2002), a "postura clínica supõe-se uma sensibilidade particular ao outro, aos outros instituídos como sujeitos, isto quer dizer seres de desejo e de linguagem, sem reconhecimento e sem senso, mas esta postura exige uma atenção metodológica rigorosa, um trabalho do clínico consigo mesmo" (p. 315). A seguir, ela acrescenta que a clínica interessa ao sujeito, na sua condição de indivíduo ou de coletividade (p. 316). Nesse mesmo sentido, Kupfer (2001) desenvolveu amplamente a noção de uma educação para o sujeito no último capítulo de sua obra. À luz desses trabalhos, nossa convicção de que uma educação clínica é possível e se torna cada vez mais real.

Freud (1916-1917), que rejeita a idéia de que o analista ocupe a função de mentor, sustenta que o seu desejo é ver o doente assumir suas próprias decisões (p. 410). No campo educacional, essa idéia pode ser traduzida da seguinte forma: "ao verificar no aprendiz uma mudança de sentido em que a conquista do conhecimento deve partir dele mesmo"; "o desejo de aprender tem que se manifestar nele". A noção de clínica aplicada no campo educacional vai nesse sentido, como pode ser observado em vários trabalhos atuais (Cifali, 2004b; Imbert, 2004).

Por exemplo, as mais recentes publicações (Travaux de l'École de la cause freudienne, 2003) sobre a importância da psicanálise e de seus conceitos aplicados na instituição e, especificamente no nosso caso, no campo educacional (Imbert, 2004), mostram a pertinência de uma tal perspectiva. Os resultados dessas intervenções confirmam o quanto o ato clínico tem força de transformação do sujeito. É o fenômeno que se opera no campo da clínica psicanalítica que se observa no contexto educacional: o sujeito sai da posição de objeto _ passivo _ da relação a dois e começa a questionar e a inferir no espaço que ele ocupa. Como afirma Barus-Michel (2002), "a clínica não define mais somente uma prática médica; ela caracteriza as práticas de psicólogos, da psicologia social, da sociologia e, sem ser nomeada como tal, as práticas de pesquisadores em ciências humanas saem do laboratório à escuta do sujeito mais do que de observação de objetos" (p. 313).

Por outro lado, agir com uma postura clínica permite ao professor demarcar os limites de sua ação, pois "reconhecer nossas implicações psíquicas na nossa profissão nos faz menos nocivos", afirma Cifali (2001, p. 122). Este último ato, merece destaque, pois que no campo dos saberes acadêmicos o reconhecimento de suas implicações psíquicas no processo de transmissão do conhecimento demonstra postura ética no ato educativo do professor. A clínica é então uma ética da ação educativa (p. 120) porque é questão do campo educacional.

Independente do campo de atuação do profissional das áreas humanas e sociais, uma postura clínica será aquela de possibilitar ao sujeito manifestar-se no campo em que ele estiver inserido e que este local passe a ter um sentido para ele. Para Barus-Michel (2002), é "abrir um espaço de interrogação disto que ele é do `ser no social', é permitir ao imaginário, essas produções que sempre tentam fazer compromissos, de se manifestar e de se desdobrar. O trabalho clínico assinala suas significações […]. Supõe-se um efeito de reapropriação pelos indivíduos de seus juramentos […]. O trabalho do educador com uma postura clínica deveria possibilitar, além da aquisição de conhecimentos, esta postura em que o sujeito assume o seu `ser no social'". Enfim, por que nem sempre isto acontece?

Como enunciamos acima, quanto às posturas pedagógicas como um reflexo das práticas sociais, observamos que a ação educativa numa perspectiva clínica reflete também mudanças amplas que passam ao contexto social. Por exemplo, a Declaração de Salamanca (1994) que prevê uma modelização de sociedade inclusiva, em que todo cidadão pode encontrar o seu lugar no espaço social. Essa mudança de postura no contexto educacional requer, sem dúvida, que o professor tenha um olhar mais refinado sobre o seu aluno, sobre a sua prática e, por que não, sobre si mesmo. Uma prática clínica é uma possibilidade "de tirer le monde de l'enseignement hors del'enfermement où il s'est parfois construit"3, afirma Cifali (2001, p. 135).

 

Uma órbita psíquica

Mesmo antes do início do nascimento, o sujeito já está representado dentro dos fantasmas familiares. Em linhas gerais, no campo psíquico, entendemos que o nascimento é apenas a materialização de desejos arcaicos dos pais. Sendo assim, o recém-nascido já está inserido na "órbita" das representações familiares desde o início. Seu nome e sobrenome vêm introduzi-lo numa trama de ligações sociais originais. Na medida que se desenvolve e cresce, essas tramas originais irão ganhar consistência até o seu amadurecimento no campo psíquico. Esse amadurecimento seria o tornar-se sujeito. As relações em família, orquestradas pelas sucessivas relações de objeto, o Édipo e a castração ditam as justas dimensões gravitacionais que cada membro ocupa nesse espaço de relações. No artigo Les complexes familiaux, Lacan (1938) enfatiza os complexos que se organizam em torno dessas relações. A identificação e a ambigüidade do amor e do ódio nas figuras familiares irão determinar "naturalmente" qual é a distância ideal de funcionamento dos indivíduos a posteriori; isto dá uma estrutura às relações e aos indivíduos.

Os indivíduos se constituem dentro de uma órbita psíquica entre os diferentes campos espaciais da malha do contexto social. O campo educacional é mais um dentre tantos outros vividos pelo aprendiz; quando ali chega, o aprendiz estabelece novas relações tendo em vista o que ele já vivenciou em momentos anteriores. São os lançamentos dos seus "tentáculos psíquicos" no mundo humano, onde se operam as projeções, as identificações, a transferência etc., que faz deste indivíduo um "sujeito social". Os valores sociais com suas amálgamas culturais não estão isentos no processo de inserção nessa órbita psíquica.

Na prática educacional, a relação entre os colegas de classe, a relação com os professores e com os conteúdos a serem ensinados sofrem influências diretas dessa configuração psíquica original. A relação de grupo foi extensamente trabalhada por Freud (1921) em seguida, a partir de sua compreensão das relações existentes entre os indivíduos pertencentes a um grupo. Outros psicanalistas aplicaram essa compreensão do fenômeno de grupo às ligações que se estabelecem no contexto educacional e suas múltiplas interações (conferir, principalmente, Cifali & Imbert, 1997).

A instituição escola e, principalmente, o professor e colegas de classe são personagens substitutos da "órbita familiar" em que a criança passará a depositar resíduos de situações incompletas _ os Complexos, retomando o termo de Lacan (1938) _ vividos no contexto familiar. Para Pechberty (2000) "certos desejos, certas pulsões se atualizam, sobre a forma do agir sem que o paciente [ou o educando, o termo é nosso] possa ou deseja reconhecer a origem inconsciente" (p. 16). Agora, segundo Freud, citado por Pechberty (2000), ele continua demonstrando a influência do inconsciente sobre o indivíduo: "formas psíquicas particulares, uma grande parte inconsciente (...) novas edições, cópia de tendências e de fantasmas que devem ser acordados e entregues à consciência através do progresso da análise, e o traço característico é de substituir uma pessoa anteriormente conhecida pela pessoa do médico. Dito de outra forma, um número considerável de estados psíquicos anteriores retornam, não como as formas passadas, mas com relações atuais com a pessoa do médico" (p. 16).

Uma vez que o professor faz parte da nova rede de relações atuais com que o aprendiz vai interagir, ele também passa a circular pelos personagens que representam essa órbita psíquica, motivo pelo qual os fenômenos psíquicos se atualizam sobre ele. Uma postura clínica é saber posicionar-se face a essa situação e reconhecer as forças subjetivas implícitas nas relações inter-humanos. Nesse contexto, num ensino de massa, com salas de aula repletas de alunos não é possível ler esse fenômeno. Esta postura clínica requer quase que um acompanhamento individualizado. Um modelo de educação para todos de forma "industrial", sem a capacitação dos professores, sem repensar os espaços físicos da escola, sem rever arelação quantidade de aluno versus professores não é o ideal para uma postura clínica em sala de aula.

A justa distância é, então, esta distância "gravitacional" que permite ao outro _ o aprendiz _ existir sem causar prejuízos no seu desenvolvimento integral. Por outro lado, essa distância permite também que o professor não saia danificado na relação. Cifali (2001) afirma que "todo o trabalho do profissional é efetivamente e continuamente de se colocar a boa distância, sem sonhar de ser distanciado a priori" (p. 121). Contudo, acrescente-se que essa noção de "distância" não é um conceito estático, como afirma Paul Fustier (Journées européennes d'étude, 2002, p. 73). Sendo assim, as relações inter-humanos no contexto profissional são alimentadas por essa energia psíquica interna que os indivíduos possuem dentro de si mesmos. Acreditamos que, através de uma leitura clínica, é possível descrever esses movimentos psíquicos.

 

A transferência na escola

A transferência como um fenômeno próprio do inconsciente não é exclusiva à relação médico-paciente, pois "é falso que a transferência seja, numa análise, mais excessivo, que fora dela", afirma Freud (1912, p. 53). O fundador da psicanálise já a imaginava sendo aplicada em outros campos, como nos relata Pechberty (2000) no capítulo intitulado Une problématique qui s'ouvre: psychanalyse et éducation: "a obra do fundador da análise testemunha um movimento próprio do campo do inconsciente que consiste em se descentralizar e se articular com outros setores da Cultura" (p. 88). É nesse sentido que seus conceitos fundamentais devem ser utilizados em outros campos. Tendo isto como regra central, a transferência como élan central no processo de cura torna-se, na prática educacional, uma ferramenta indispensável para promoção do sujeito ao saber veiculado pela escola.

No espaço institucional-social chamado escola, as relações de dependência se estabelecem sob múltiplas óticas: aquela da relação dos alunos com a instituição, dos profissionais que ali trabalham com a instituição e suas respectivas relações, do culto ao saber que a priori circula dentro da instituição e de valores culturais que os indivíduos carregam consigo nos espaços que freqüentam.

O aprendiz entra nesse emaranhado de relações sem se dar conta, de início, das regras implícitas na escola. Seu apego inicial é forçosamente à professora _ ou, ao professor _ que se incumbirá de acolhê-lo e criar as condições mínimas para que se instaure, nele, a aquisição de um conhecimento. Deixamos de lado a questão do gênero. A posição categórica de Freud (1912) nos informa que "todo indivíduo ao qual a realidade não traz a satisfação inteira de sua necessidade de amor se dirige inevitavelmente, com uma certa esperança libidinal, em direção de novos personagens que entram dentro de sua vida e é mais que provável que as duas partes de sua libido, esta que é capaz de aceder ao consciente e aquela que continua inconsciente, irão ter um papel nesta atitude" (p. 51).

Que aspecto subjetivo se instaura nessa relação cordial do início da relação professor-aluno? E que importância é dada pelos professores a esse processo de acolhida? Ele tem alguma importância no que vai se passar a posteriori na vida escolar da criança? Se para o professor não há ainda convicção de que o cenário é tão importante quanto a relação que irá se estabelecer em classe, para a criança o ambiente acolhedor tem uma importância naquilo que a psicanálise vai chamar de estabelecimento de transferência.

O fenômeno da transferência não tem sua inscrição no plano da racionalidade e para Freud (1912) o aspecto particular da transferência é que ela se distancia disto que comumente consideramos como normal no sentido racional. Em outras palavras, a relação subjetiva inconsciente inter-humanos é fundamental porque uma postura clínica não pode ser estabelecida fora de uma relação de transferência (Barus-Michel, 2000) em que sujeitos se encontram; principalmente a figura do professor é um objeto a ser investido no transcorrer da relação que irá se estabelecer entre os indivíduos de uma mesma classe.

Esse processo vivido entre o aprendiz (ou a classe) com o professor é uma espécie de transferência de amor de um lugar para outro: são "protótipos" que se atualizam igualmente aos clichês precedentes (Freud, 1912, p. 51). Para melhor compreender essa relação dos indivíduos com o amor transferencial, Lacan esboça no Seminário sobre a transferência, à luz de Freud, o que move o sujeito a amar um objeto (2001). Essa busca de objetos completos é, no nosso entendimento, o que os aprendizes estabelecem na relação com seus professores e professoras.

Neste sentido, a relação professor-aluno pode ser entendida como um renascimento _ dentro de cada um dos sujeitos da relação _ de experiências vividas anteriormente por eles, o que faz "reativar as imaginações infantis", como afirma Freud (1912, p. 54). As mais ativas, todavia, vêm por parte do aprendiz que se insere na relação uma posição de subordinação ao outro, que possui o saber a ser transmitido. Como falar em eficácia da transmissão nesse modelo de relações justapostas? Será que já não existe no aprendiz quando chega à escola potencialidades in germe que possam favorecer a aquisição de conhecimentos? Não seria o princípio da transferência um reducionismo extremo à construção de conhecimento, levando em consideração as múltiplas variantes na constituição do sujeito? Sem dúvida, o que se pretende com uma postura clínica não é reduzir o sujeito exclusivamente à relação inter-humanos. O que não se pode afastar dessa prática educacional é a importância dos aspectos subjetivos que são veiculados pela relação transferencial.

É justamente aí que se encontra o impasse entre o que Freud (1925) anunciou no Prefácio de Aichhorn: por um lado, existe uma parte que jamais poderia ser educada no sujeito, por outro lado, o que a sociedade, por meio da escola, pretende enquadrar os aprendizes não encontra ressonância com os desejos implícitos no sujeito. Ou seja, na corrida pela "boa qualidade dos serviços prestados pela escola à comunidade", a garantia da eficácia é medida pela quantidade de respostas corretas que uma pessoa é capaz de apresentar na execução de uma avaliação. Não se avalia e não é dada a devida importância aos múltiplos deslocamentos da função de sujeito em que é substituído por um desejo de saber por si-mesmo (pelo aprendiz), o desejo do outro (do professor). Para Mariage (2003), esse deslocamento é uma condição indispensável para que a prática da psicanálise se aplique além das suas fronteiras (p. 75); não se avalia se aquele processo educacional teve um sentido para o aluno ou se foi um processo de alienação imposto do exterior. Nessa perspectiv, um modelo de avaliação cumulativa, por exemplo, tende ao fracasso.

No seu artigo Clinique et sens, Barus-Michel (2002) dedica algumas linhas à importância de conduzir o sujeito para produzir sentido naquilo em que ele está inserido: "a produção do sentido repousa sobre este encadeamento voluntário de elementos significantes (representações letivas) elaboradas pelo sujeito (individual ou coletivo) para se subtrair ao caos das coisas e às construções impostas, escapar às lógicas implacáveis que colocam a seu serviço (...), o trituram, fazem dele uma unidade quantificável, em todo caso comparável aos outros e assim estrangeiro a ele-mesmo" (p. 319).

Finalmente, no contexto educacional contemporâneo, a substituição do modelo de intervenção de um indivíduo quantificável por um outro modelo que leve em consideração a singularidade dos personagens presentes no teatro da escola está muito longe de se concretizar. Apesar de serem percebidas mudanças significativas nas posturas educacionais dos últimos anos, nenhuma delas demonstra uma vontade em resgatar a singularidade intrínseca a cada um e diferente do todo. Um olhar qualitativo que pretende resgatar o sujeito implícito dentro de cada indivíduo é sempre mal visto e, por conseqüência, um olhar clínico que se preza por uma postura que permite a manifestação dos sujeitos singulares, ainda está longe de se concretizar. Resta um grande trabalho a fazer.

Trabalhar com a noção de transferência no contexto educacional é, sem dúvida, poder usufruir da intersubjetividade presente na relação para possibilitar que o sujeito se desprenda das alienações que o amarram, que o alienam. Uma postura clínica remete categoricamente a uma ética da ação. Em outras palavras, uma ética da ação educativa _ seja no agir, no falar ou no escutar _ é o fundamento da clínica na escola. Cifali (2001), citando Badiou, afirma que ele "proclama que há ética dentro da singularidade e dentro da intersubjetividade das situações do vivant. Ela é interrogação reflexiva mais que afirmação; guia e referência, mais que caminho traçado. Ela leva em consideração o indecidível da ação, onde a resposta deve ser buscada por si-mesmo e certamente não virá do alhures" (p. 125).

Isto possibilita ao aprendiz produzir uma identidade que não seja a cópia do outro, além de permitir que ele assuma o seu desejo face às questões escolares.

Despertar o desejo pelo saber no aprendiz é o auge que uma postura clínica pode almejar no processo educacional. Na clínica, a leitura que se faz do sujeito é sobre como assumir o seu desejo dequerer conhecer. No paradoxo da relação professor versus aluno, qualquer desejo de ensinar somente pode ser encontrado na obra de Freud no sentido de uma reparação de uma imagem narcísica fragmentada; o desejo de ensinar não está presente a priori ele deve ser desenvolvido no tempo. Por outro lado, de forma diferente, a pulsão de saber e a pulsão de pesquisar nutrem inconscientemente as ambições recalcadas dos aprendizes.

 

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Recebido em agosto/2004
Aceito em outubro/2004

 

 

NOTAS

1 Optamos por traduzir as citações dos textos consultados a partir dos originais em francês.
2 Seminário realizado em 02/06/2004, Université de Genève _ Suíça; Curso: Analyse de Pratique: approche psychanalytique et historique (2003/2004). Elle dit: "Au nom de l'éfficacité et de la rentabilité on annule le psychique dans la formation des gens" (sic).
3 "Levar o mundo do ensino para fora do enclausuramento em que ele foi por vezes construído". (N. do Ed.)
I Professor adjunto no Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto. Pós-doutorando na Universidade de Genebra. Área de atuação: Psicanálise, Psicologia da Educação e do Desenvolvimento

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