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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.10 n.18 São Paulo jun. 2005
DOSSIÊ
Para uma antropologia clínica do encontro pedagógico
For a clinical anthropology of the pedagogical meeting
Françoise HatchuelI; Inesita Machado (Trad.)
Universidade Paris X
RESUMO
A partir de diferentes pesquisas em torno da relação com o saber dos alunos e das interações professor/aluno, a autora focaliza aqui a noção do encontro pedagógico, isto é, de encontro em torno de um saber a ser adquirido num dado momento, de vários indivíduos portadores, cada um, de uma história e de uma vivência que os conduz a interpretar, em termos de expectativas e esperanças, as informações recebidas do outro. Numa dupla perspectiva de pesquisa e de formação, ela se esforça, por um lado, em identificar alguns indicadores do modo como se negocia esse encontro e, por outro, em compreender o que poderia facilitá-lo.
Palavras chave: Interações, Encontro pedagógico, Perspectiva antropológica, Abordagem clínica, Autonomia, Relação com o saber.
ABSTRACT
This article is based upon different research by the author concerning relation with knowledge and interactions between teachers and pupils. It is centred on the notion of pedagogical meeting, that is to say the meeting, with a knowledge to get and in a precise moment, of several people carrying their own experience, which bring them to interpret informations taken from each other in terms of waiting and hope. In a double view of formation and of research, the author tries on one hand to see how this meeting is negotiated, and on the other hand to show what could make it easier.
Keywords: Interactions, Pedagogical meeting, Anthropological view, Clinical approach, Aautonomy, Relation with knowledge.
No quadro de uma abordagem etnográfica que visaria uma exploração mais fina do interior da "caixa preta" que ainda é a classe, interesso-me mais particularmente pela relação entre professores e alunos1, tal como é vivida e construída no dia-a-dia pelos protagonistas. O que sabemos a respeito do que se passa a cada instante, sobre o modo como professores e alunos organizam-se no cotidiano para conseguir "se suportar" e, se possível, definir e realizar um projeto comum de aprendizagem? O que sabemos sobre seus ritos, códigos, valores e sobre o estabelecimento de práticas aceitáveis e aceitas por todos e todas? Como se negociam os compromissos?
Mal, seríamos tentados a dizer. Sabemos bem que os debates verdadeiramente instituintes são raros. Ainda que existissem (e existem, pelo menos em algumas classes inspiradas em Freinet ou com pedagogia institucional) isto não bastaria. Pois não são somente as grandes instituições da classe que devem ser negociadas, mas certamente as micro-instituições permanentes, o direito de tomar a palavra, o dever de ouvir, a importância dada a uma palavra, mais do que a outra, o estatuto de tal ato de trabalho, os olhares, os sorrisos, as entonações, permanentemente a definir. Todos esses códigos, esses saberes das profissões de aluno e de professor que possibilitam a cada um compreender e negociar seu lugar, principalmente em termos de relação com o saber no espaço comum assim construído.
Essas profissões estão longe de se definir. E como poderiam elas se definir, quando as próprias instruções oficiais são contraditórias? A lei Jospin de 1989 coloca o aluno, de fato, "no centro do sistema educativo", impondo-lhe programas extremamente detalhados que devem ser seguidos, de preferência, dentro do prazo. Como podemos, como professores, estar atentos a cada aluno e, ao mesmo tempo, respeitar as prescrições às quais estamos submetidos? Do ideal de Jules Ferry (em que cada jovem francês de uma certa idade faça o mesmo ditado na mesma hora), às pedagogias ditas "inovadoras", a contradição está longe de ser resolvida. Quando o texto livre deve ser "para amanhã, e, se possível, sobre o outono", como o diz bem Charlot (1993), ou que a "descoberta" do aluno recaia invariavelmente sobre a parte prevista do famoso programa, como o analisa Baïetto (1982), é preciso antes questionar as injunções paradoxais de uma instituição que colocaria os protagonistas em sério risco psíquico se eles e elas não desenvolvessem sólidas defesas... De Ranjard (1984 e 1997) a Blanchard-Laville (2001), numerosos autores mostraram as posições dificilmente sustentáveis nas quais se encontravam os professores, bem como as soluções de compromisso estabelecidas com eles mesmos e com a instituição. Resta ver hoje de que modo esses compromissos pessoais articulam-se com os dos alunos, estando os protagonistas presos em obrigações tanto internas quanto externas. Como fazem os professores e professoras para decidir sua ação no cotidiano? Que efeito tem sua prática sobre os alunos?
Para fazer uma abordagem do modo mais fino possível das vivências e percepções, várias técnicas de coleta de dados (entrevistas, observação direta ou indireta etc.) podem ser utilizadas. Mas, se quisermos captar o sentido das práticas e dos discursos ao mesmo tempo para a micro-sociedade que constitui a classe e para os indivíduos, ganha-se, qualquer que seja o material, com a articulação de uma grade dupla para a análise, antropológica e clínica, com orientação psicanalítica. A Antropologia possibilita a construção do enquadre, a clínica com orientação psicanalítica contribui para a análise da subjetividade de cada um, substituindo-a neste enquadre; o conjunto dá algumas pistas de compreensão geral do funciona mento de uns (umas) e outros(as) em situação pedagógica. Darei aqui alguns exemplos pela releitura de meus trabalhos, ilustrados com minha própria prática como professora universitária.
O ideal da relação pedagógica: entre espaço transicional e mimesis
O início foi a defesa de uma tese com orientação clínica em que entrevistei alunos e professores(as) numa prática voluntária de matemática fora da sala de aula (Hatchuel, 1997a)2. Nessa tese, demonstrei a necessidade, ou pelo menos a utilidade, para a apropriação do saber, de um espaço potencial, no sentido de Winnicott (1975 e 1978), permitindo a ligação entre o si e o saber, isto é, de um espaço em que o aluno possa experimentar e se enganar sem risco psíquico, nas direções que ele terá escolhido livremente. Parece-me hoje, retomando essa noção, que o espaço potencial criado pelo professor para cada aluno, oferecendo-lhe uma garantia mínima de conscientização do que ele é, é o que lhe permitirá, a partir de sua posição, enfrentar o mundo do saber, do mesmo modo que a criança pode investir o mundo exterior a partir de e em função do que o adulto cria à volta dela. Mendel (1999) utiliza a imagem bastante descritiva de Atenas e Ulisses: Atena fala a Ulisses sobre a realidade do mundo exterior e dos perigos que ele terá que enfrentar. Mas ela confia em sua engenhosidade e em sua capacidade de encontrar sozinho os meios de enfrentar esses perigos. Então é ele que constrói seu caminho, em função daquilo que ele é, do que ele deseja e do que lhe convém, e do qual ele poderá obter confiança e benefício, mas ela o impede de se iludir e previne-o sobre aquilo que ele não poderia perceber sozinho. Ela representa um filtro entre Ulisses e a realidade, mas um filtro que não oculta e que, ao contrário, ajuda Ulisses a adquirir plena consciência dessa realidade, selecionando para ele os elementos mais marcantes.
Se aplicarmos essa imagem ao par professor/aluno, veremos que o papel do professor seria o de apresentar ao aluno a realidade do saber a ser adquirido e o caráter incontornável dessa aquisição (bem simbolizada pelo programa), deixando-lhe uma margem de manobra suficiente para poder investir, isto é, levar a seu mundo interior esse saber a priori externo a ele mesmo.
Os processos de investimento são longos e complexos, requerem acompanhamento de perto, deixando que o aluno trabalhe sozinho tanto quanto puder, intervindo antes de mais nada para encorajar, eventualmente para (re)orientar o trabalho, e em último caso (re)fazê-lo em seu lugar. Nesse caso, segundo Wulf (1999), podem iniciar-se "processos miméticos", a partir do conceito de mimesis (ou imitação criadora) de Aristóteles. Nos processos miméticos, a criança repete e imita mas, ao fazer isso, e porque o que lhe é proposto não é muito prescrito, ela capta aos poucos o sentido do que faz e o adapta a seus próprios projetos.
Tal atitude é evidentemente um ideal a ser atingido. É preciso que o professor tenha clareza sobre seus determinantes para que eles não parasitem excessivamente o encontro pedagógico e permitam uma maleabilidade de reação e de adaptação à realidade do aluno. É um trabalho permanente e nunca definitivamente adquirido, o de elaboração de nossas reações como professores, conforme o testemunho de Laville (op. cit) a partir dos grupos de análise de prática com inspiração Balint com que ela trabalha, e de entrevistas e gravações de sessões de cursos com os quais ela trabalha há 20 anos.
Na realidade, temos muita dificuldade em separar nossas próprias questões do trabalho do aluno. Irritamo-nos diante de um aluno muito lento porque não suportamos nossa própria lentidão e esperamos por um exercício perfeito para nos assegurarmos de nossa perfeição como professores. Gostaríamos que o aprendizado fosse mais fácil para não termos que confrontar o outro com a dificuldade etc. Instalam-se então o que chamo de "pares psíquicos epistêmicos", isto é, fortes encontros entre um professor e um aluno em torno do saber, porque o professor faz ao aluno através do modo como ele mesmo se coloca e coloca o aluno em cena; um discurso inconsciente sobre o saber que vai ter uma ressonância no que o aluno deseja ouvir. Na medida em que esse discurso conforta o aluno em suas ilusões, mostra-lhe um caminho mais ou menos balizado, ou mais ou menos encorajador; ele irá auxiliá-lo ou não a comprometer-se nesse espaço (ver Hatchuel, 1999a e 2000a).
A instauração de uma iniciativa de etnografia clínica: o estudo de um exemplo de interações aluno/professor
As entrevistas com alunos nos dizem que são antes de tudo nossas práticas, no cotidiano, que são ou não estimuladoras, e que irão permitir, pelo encontro com o professor, o encontro com o saber. Assim, desejando ir mais além neste trabalho de compreensão da interação, para captar in situ os compromissos que poderiam se instalar, pude aproveitar o trabalho realizado numa equipa dirigida por Blanchard-Laville (2000) dentro de uma perspectiva que chamamos de "co-disciplinar" sobre gravações em vídeo de aulas de matemática.
O trabalho co-disciplinar tem como objetivo aproximar o material comum, por paradigmas disciplinares diferentes e confrontar os diferentes pontos de vista. Duas obras (1997 e 2002) resultaram desse trabalho. A primeira relata uma aula sobre os grandes números no CM1 [terceira série]. Adotei um caminho que pode ser qualificado como etnográfico, pois consiste em tentar captar o ponto de vista de cada autor ou autora a partir de seu comportamento e de suas interações com o ambiente. Isto me levou a estabelecer, para cada aluno, uma ficha reunindo as informações sobre eles (Hatchuel, 1997b). Comecei com a transcrição das interações com a professora (as fichas das interaçõe entre os alunos infelizmente não estão disponíveis) e a minutagem (duração e repartição na seqüência). A partir de uma perspectiva clínica, fiz ressoar em mim cada diálogo como eu o vivia do ponto de vista do aluno, para aproximar-me do que poderia ser a percepção de cada um durante essa sessão. Alguns pontos comuns surgiram e completei-os com as posições sócio-escolares dos alunos (profissão dos pais e resultados das provas de matemática trimestrais) para reuni-los em sete categorias, às quais voluntariamente atribuí qualificativos que exprimiam o aspecto subjetivo dessa construção.
No plano metodológico, trata-se não de administrar uma "prova" qualquer, mas de fazer com que apareça um ponto de vista identificatório com os alunos: o que teria eu pessoalmente sentido, se eu estivesse em tal situação? Como teria eu me situado? De modo coerente com uma iniciativa clínica (ver, por exemplo, Blanchard-Laville 1999), o objetivo é o de analisar e de transpor em palavras meus próprios movimentos transferenciais para dar sentido (um sentido, seria preciso dizer) para uma situação.
Chegamos assim a uma tipologia cujo valor é antes de mais nada heurístico e visa a construir não apenas certezas que descreveriam o alfa e o ômega numa situação, mas o que eu chamo de um "saber de vigilância": às vezes, em algumas classes, pode ser que alguns alunos percebam o que eu descrevo e talvez seja útil prestar atenção nisso.
Os dois alunos mais "visíveis" dessa tipografia são dois meninos que ocupam o palco quase que permanentemente (o tempo máximo em que podem ficar em silêncio é de 10 minutos) e de algum modo, fazem seu "show". Qualifiquei-os então de "showmen", antes de constatar que os dois estavam numa posição sócio-escolar alta. Quase em espelho (na mesma posição sócio-escolar, mas de sexos diferentes), duas meninas se caracterizam por uma "conduta" (em todos os sentidos do termo) impecável, intervindo apenas quando questionadas e sempre lembrando a memória didática da classe; para mim, são as menininhas "comportadas". Sete alunos numa posição sócio-escolar mediana ou até mesmo medíocre vêem-se constantemente ignorados(das) ou rejeitados(das) quando pedem a palavra: isto me levou a qualificá-los como "desclasssificados". Considero como "repescados" alunos tímidos solicitados pela professora no fim da aula, uma vez que o essencial das noções do dia parece ter sido adquirido, e que permaneceriam, sem isto, silenciosos. Uma aluna com muita dificuldade é questionada várias vezes para uma ve rificação do seu nível de compreensão e regular o progresso da classe. Com isso ela presta grande serviço à professora e à classe; utilizei portanto a expressão de "nula de serviço", antes de estimar que quatro outros alunos poderiam mais ou menos encaixar-se nesta categoria (com nuances e hesitações de que não falarei aqui). Enfim, cinco alunos não têm quase nenhuma interação com a professora: qualifiquei-os assim de "inexistentes".
Em função de seu modo de construção, essas categorias devem evidentemente ser tomadas como tendências, indicações e não como modos de funcionamento rígido de que se deveria acusar a professora. Mas permitem perceber de que modo a professora tende a se posicionar diante de cada aluno e quais poderiam ser alguns dos princípios organizadores de sua relação com os alunos (afastar os que a solicitam, com algumas exceções, solicitar os silenciosos e silenciosas etc.). Restava saber em que medida essas categorias seriam "transponíveis" e qual seria seu grau de contingência. Os mesmos alunos, com a mesma professora e com professores diferentes, encontram-se na mesma categoria? Como se passa de uma a outra, como se constrói uma identidade de aluno e assim uma relação com o saber? Foi dentro desse espírito que elaborei a abordagem que segue.
Terceiro estudo: uma reflexão sobre eventuais invariantes antropológicas
O mais flagrante na segunda lição estudada (uma aula sobre a multiplicação das frações na sexta série) reside na diferença de clima em relação à classe de terceira série , em que os alunos iam e vinham do quadro negro, num balé efervescente que os conduzia, às vezes três ou quatro, sem que a professora percebesse imediatamente. As classes de sexta série são muito mais submissas a um professor que deixa uma margem de manobra extremamente reduzida. Sua atividade é cuidadosamente controlada nos mínimos detalhes, trate-se de usar o caderno correto, ou de usar a calculadora no momento oportuno e não antes, da escolha da cor do giz ou da resposta estrita esperada. Constantemente o professor utiliza um aluno na função que qualifico como “porta-giz”, consistindo em escrever, em ditado, sem dizer nenhuma palavra. Enfim, todos ficamos surpreendidos, e foi isso que nos fez escolher essa seqüência, por um episódio um pouco longo (em relação ao curto tempo que os outros alunos passam no quadro negro), entre o professor e uma aluna que chamamos de Mélanie, escolhida como título do livro resultante deste trabalho (Blanchard-Laville, 2002). Essa aluna é chamada no quadro negro, no fim da aula, para corrigir uma multiplicação de quatro frações simplificadas, ou seja, um exercício relativamente difícil. Certamente, trata-se apenas de duas regras previamente aprendidas (multiplicação de duas frações simplificadas, ensinada no início da aula, e simplificação usual das frações). Mas sabenos bem que tal trabalho de transposição está longe de ser simples, e o aluno que precedeu M'rlsnie no quadro negro, considerado como melhor aluno da classe, havia disposto de um mínimo de tempo e de margem de manobra para refletir e integrar a nova situação. É o único que se permite o que pode ser considerado como um luxo durante esta aula.
Mélanie não tem essa sorte. Rapidamente ela é ridicularizada ("você perdeu a língua") e estigmatizada por sua lentidão. É preciso dizer que ela manifesta uma má vontade evidente, levando o professor à sua própria aramdilha: como tudo está prescrito ela espera tranqüilamente as instruções que ela executa com fidelidade. Mas, vê se aí a perversidade do sitema, as instruções pressuõe um mínimo de iniciativas de sua parte, sabendo-se que essas iciativas devem colocar-se às expectativas do professor. "Faça o que você tem que fazer", ele lhe diz por exemplo, quando ela propõe agrupar as frações duas a duas, para encontrar-se numa situação conhecida e é impedida. "Eu não entendo senhor," responde Mélanie, presa na aramdilha de uma injunção magnificamente contraditória. Então, fica bastante difícil de desembaraçar a situação. Mélanie, qualificada de "decepcionante" pelo professor, e que mostra ostensivamente, desde o início da aula, seu desinteresse pelo que se passa, não toma outras iniciativas porque ela sabe (ou pensa) que suas iniciativas serão rejeitadas, ou suas iniciativas serão rejeitadas porque não são adaptadas e denotam de modo evidente sua não-implicação na situação? As duas verdades são evidentemente aceitáveis, de acordo com o ponto de vista em que nos colocamos, e constitui um dos grandes determinantes da pesquisa mostrar de que modo esses "mundos vividos"3 se aceitam e coabitam.
As categorias precedentemente evocadas não se encontram aí: tendo sido o espaço invadido pelo professor, logicamente não se vê aí nenhum “showman”; nenhuma das meninas da classe parece ser tratada diferentemente por sua capacidade em revelar o saber adquirido; o professor não parece estar particularmente atento a certos alunos e se certos alunos são particularmente estigmatizados, não se pode dizer que são os mais fracos da classe, nem que os mais fracos são utilizados para regular o desenvolvimento do curso em função de sua compreensão. A compreensão dos alunos, de todo modo, nunca é verificada com o objetivo de uma eventual remediação e, sim, constantemente numa perspectiva de acusação do aluno que não compreendeu. Finalmente, há quase somente a categoria dos “inexistentes” e, em menor medida, a dos “desclassificados” que encontramos realmente nos dois casos.
Mas, por outro lado, o que se encontra é o que poderíamos qualificar como "meta-categorias" de agrupamento de categorias. Trate-se aí de fazer seu show ou de simplesmente permitir-se pensar, ou trate-se de repetir o saber ou de não poder progredir, a questão é saber que lugar é reservado ao aluno e que lugar ele se reserva a si mesmo, que papel lhe atribui o professor e se ele aceita representar e como, a partir desse lugar e com esse papel que pode ou não fazer parte da aprendizagem.
Se é evidente que todo professor trata seus alunos de modo diferente, vemos que as formas adquiridas por essa diferenciação dependem da situação-classe e das características pessoais do professor: na aula sobre os grandes números há os "desclassificados" e os "repescados" porque a professora desclassifica e repesca e, na aula sobre as frações, há os "souffre-douleur" e os "porta-giz", porque são modalidades particulares de interação desse professor. Mas, além dessas contingências, trata-se de aceitar ou de rejeitar, de ajudar ou permitir, encorajar ou ignorar, isto é, de modalidades de encarnação, na situação, dos arquétipos antropológicos do início de uma relação que são o medo, a ajuda, o encorajamento, o conflito, a ignorância, a dominação etc. As categorias precedentes seriam então modalidades contingentes de expressão dessas meta-categorias, que poderíamos também abordar em termos psicanalíticos: que espaço cada modo de relação reserva ao aluno, e às diferentes instâncias de seu psiquismo (Eu Ideal/Supereu/Ideal do Eu)?
A regulação da troca: o exemplo de nosso grupo de trabalho
Foi a partir do estudo das instituições (no sentido da psicologia institucional) internas em nosso grupo de pesquisa co-disciplinar que pude desenvolver este ponto de vista. De fato, tentamos, ao longo de todo trabalho, estar particularmente atentos ao que tornava possível o encontro co-disciplinar e a uma verdadeira apreensão por cada um do trabalho do outro. Blanchard-Laville (2000) desenvolveu a importância do dispositivo de elaboração coletiva enquanto que eu me detinha no aprofundamento, a partir da questão de saber o que representava um texto escrito, dado, lido e comentado, as noções de troca, de doação e de dívida no quadro do trabalho intelectual. O que dou (e, portanto, o que espero em troca) e o que recebo quando escuto ou leio o outro? Quando produzo para um grupo? Quando me interesso pelo trabalho do outro? Etc. Sob que condições cada um pode sentir-se satisfeito e não lesado pelo funcionamento coletivo e irá poder construir-se nessa troca?4
Na problemática em que as categorias clássicas da antropologia se aplicam ao saber, as questões do ritmo e da espera aparecem como essenciais. Que tempo deixamos ao outro para apropriar-se de nossos trabalhos e para se reposicionar em função de seu próprio passado, de nosso passado comum e dessa novidade? Que expectativa preenche e cria cada novo texto? Como aceitar que o outro não trabalhe em seu ritmo? Muito lento(a), tenho o sentimento de estar sozinho(a) para fazer avançar o coletivo; muito rápido, que me sufocam com muita novidade (ver Hatchuel, 1999b).
Pareceu-me, então, que poderíamos aplicar essa grade de análise às relações professor/aluno. Da co-disciplinaridade, podemos apenas manter aqui o aspecto "disciplina" pois os alunos não são portadores de paradigmas conceituais precisos, mas a noção de "co-trabalho" ou de "co-pensamento" tal como definida, por exemplo, por Widlöcher (1994) pode nos ajudar a questionar o encontro pedagógico. Proponho então fazê-lo a partir da noção de confiança: o que funda a confiança entre o professor e seus alunos? Para quê e por quê vou confiar no outro? Quais são os sinais para que cada um estabeleça ou retire sua confiança, em função dos esforços previamente fornecidos e portanto dos retornos esperados? A partir de que momento estima-se que cada um tenha realizado sua parte do trabalho comum e arcado com o preço, psíquico e simbólico, do benefício esperado? Na falta da palavra, é através dos sinais codificados que essas questões se elaboram. Aborda-se aí a noção de cultura, que evidentemente ultrapassa amplamente a de etnia e até mesmo de grupo social. Poderíamos, no limite, dar uma definição pelo menos parcial da cultura como constituída justamente por esse conjunto de sinais e de códigos permitindo a cada um reajustar-se ermanentemente às expectativas e esforços, o que não estaria muito distante do habitus de Bourdieu (2000).
Imagina-se que esse reajuste tenha raramente uma adequação perfeita, sobretudo para os alunos com maiores dificuldades. Ora, sabemos que são precisamente esses alunos que têm mais dificuldade em dominar os códigos da escola já que, finalmente, podemos considerar um código como um saber integrativo, que possibilita compreender e negociar o lugar no mundo5. Portanto, é importante ajudar os alunos, sobretudo aqueles com dificuldades, a existir para aquilo que eles são no espaço da classe. O que pode passar pelo fato de dar-lhes, de um modo ou de outro, possibilidades para reagir àquilo que lhes é proposto, num quadro que permita garantir que essa reação, podendo ser imprevista e surpreendente, não poderia ser inadequada ou inadmissível.
Um indicador da regulação: a noção de latência
Uma dessas possibilidades, que ao mesmo tempo parece-me constituir um indicador para a pesquisa, reside na noção de tempo de latência, isto é, micro-tempos que o professor deixa (ou não deixa) entre duas questões, duas prescrições, duas indicações. Encontramos, numa menor escala adaptada ao trabalho dos alunos, a importância da temporalidade evocada a respeito de nossa equipe. Na classe de sexta série, por exemplo, Mélanie não dispõe de absolutamente nenhum tempo de latência: tudo o que ela faz (ou não faz) é imediatamente comentado, esmiuçado, criticado, sem que ela jamais possa dizer alguma coisa. Essa noção me parece uma das chaves para compreender o que, nos rituais - de que Wulf (op. cit.) diz serem o suporte da mimesis - torna justamente possível essa imitação criadora: se o ritual garante o quadro e, portanto, uma certa adequação, ele deve permitir tambéma criação pessoal. E talvez seja quando eles deixam um tempo de latência, quando eles estão de algum modo "estirados" que os rituais se tornam suportes da criatividade e, portanto, da construção de si para cada um. Os rituais só podem permitir a imitação criadora se, num dado momento, eles forem estabelecidos por nós mesmos, apropriados. É um jogo sutil em torno de "transformo, apropriando-me, aproprio-me porque transformo, transformo porque me aproprio" que podemos aproximar da noção de ato de poder de Mendel (1985): percebemos e recuperamos o poder dos próprio atos sob condição de ter poder sobre os próprios atos. Poderíamos falar, portanto, em ritual exógeno ou heterônimo (que vem de fora) e de ritual endógeno, auto-centrado, que vem de si ou, num outro registro, de rituais opressivos opostos aos rituais criativos. Um ritual criativo pode, finalmente, ser considerado como o resultado de um compromisso e ele se recompõe em permanência em função das circunstâncias, sendo portador do passado dos indivíduos e do grupo. Porque ele transforma, mas lentamente, ele permite constituir e manter o quadro, possibilitando que cada um encontre seu lugar.
Contribuir para construir rituais criativos: espaços de elaboração
As condições de construção e de transformação dos rituais (que incluem as instituições no sentido da pedagogia institucional, mas não se limitam a ela) surgem então como essenciais. Podemos permitir sua ação no cotidiano sob a condição de, como vimos, não "restringi-las" muito, mas é preciso também ressaltar o interesse e a pertinência de espaços de elaboração e/ou de palavra em que cada um possa aprender sem perigo e/ou compreender algo daquilo que pode esperar do outro e aquilo que ele ou ela pode oferecer-lhe em retorno. Pois tais espaços de elaboração individual e/ou coletiva permitem favorecer uma verdadeira consciência do outro e um encontro respeitoso das diferenças com consciência de sua irredutibilidade. Trata-se, no fim das contas, de aceitar a idéia de que o outro não fará necessariamente aquilo que acreditávamos estar no direito de esperar dele. Tal trabalho não é simples, demanda tempo (aqui também) e dispositivos adequados. De acordo com o ponto de vista em que nos colocamos, e o ponto de vista é privilegiado, poderemos pensar em práticas diversas: os grupos de análise de prática, com inspiração Balint, tais como conduzidos por Blanchard-Laville (2000), centrados sobre a elaboração individual de cada participante, contribuem para desatar as repetições que funcionam em cada indivíduo; os grupos de palavra de estudantes que estabeleci para o ano preparatório à licença em ciências da educação em Paris X, ajudam esses estudantes que retomam os estudos (e, portanto, constantemente com uma relação complexa com a própria idéia de retomar um trabalho universitário) a definir-se e situar-se como estudantes, não somente na universidade, mas também no resto de suas vidas; o dispositivo de expressão coletiva dos alunos estabelecido pelos conselheiros de orientação psicológica, a partir dos trabalhos de Mendel (Rueff, 1997), permite a um coletivo de alunos construir um mínimo de concordância sobre o que se deseja transmitir aos adultos encarregados e permite aos adultos responder igualmente de modo coletivo; os estágios de formação contínua de professores, ditos "in loco" (cf. Hans, 1999), isto é, no próprio estabelecimento, conduzem os professores a trabalhar juntos, através de questões tais como a autoridade, a lei etc, em torno de sua identidade, de seus estatutos e de seus papéis.
Mas também é preciso pensar, ainda que possam parecer muito distantes desses dispositivos mais ou menos inspirados na psicanálise e/ou da psicologia social clínica, em todos esses lugares de debate e de confronto dos estatutos e papéis de cada um, desde que as condições sejam requeridas (o que não ocorre por si só) para que as demandas e as expectativas não apareçam como exigências. Pode tratar-se de lugares tão variados quanto encontros com os pais de alunos, conselhos de classe ou de administração, acordos entre professores, encontros militantes ou sindicais e até mesmo inspeções ou debates nacionais em torno do sistema escolar.
O que me parece importante, em cada nível de acordo consigo mesmo ou com os outros, colegas, parceiros, hierarquia ou alunos é poder dizer algo sobre esse acordo, pelo que nos responsabilizamos e aquilo que consideramos como da alçada do aluno, o que é obrigatório e o que não o é. Os estudantes a quem dou aulas sabem que devem realizar um trabalho de qualidade. Tento definir o mais precisamente possível o que é, para mim, um trabalho de qualidade em termos de questionamento, de rigor de clareza ou de recuo, fazer com que se apropriem desses critérios (por exemplo, trabalhando com os trabalhos dos anos precedentes), mas em seguida têm toda liberdade para escolher o tema e organizar-se. Ao mesmo tempo, sei que se não estou atenta aos mais tímidos e aos menos realistas, essa liberdade corre o risco de voltar-se contra eles, como bem o relata Boimare (1999) através das propostas de um adolescente para quem "às vezes os pais não dão expressamente coisas muito difíceis para que nos enganemos". O mais difícil é saber quando relançar, fixar ultimatos, dar conselhos e com que grau de abertura ou, ao contrário, de fechamento etc. É aí que se constróem os rituais, de modo suficientemente enquadrado para (tentar) garantir que o trabalho seja feito, suficientemente aberto para permitir que o que será feito pertença realmente aos estudantes.
Conclusão: em direção a uma cultura da responsabilidade?
Podemos então voltar à nossa questão de partida ("que lugar deixado `deixar?' ao aluno diante do programa?") e trazer um início de resposta em termos de autonomia "racional": uma autonomia "racional" seria a que pudéssemos assumir.
De fato, qualquer liberdade implica a responsabilidade das escolhas que ela gera e, se fizermos, cada um no seu nível, o que podemos, não se trataria de não nos solidarizarmos com as conseqüências de nossos atos. Definir o que é liberdade (e, portanto, responsabilidade) de cada criança, jovem ou adulto constitui, do meu ponto de vista, uma boa parte da reflexão coletiva para que cada um possa de seu modo, com seus próprios recursos, avançar no sentido que lhe parece mais desejável. Trata-se portanto, para cada um, de conquistar cada vez mais autonomia e não somente cada vez mais liberdade (e aqui a conquista se faz pelo exterior), mas também (o que é uma conquista sobre si), mais capacidade em gerar essa liberdade. A luta educativa é também, antes de mais nada, uma luta política.
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Recebido em agosto/2004
Aceito em outubro/2004
NOTAS
1 (N.do T.) A autora utiliza em todo o texto uma marcação do feminino quando se trata de professores(as) e alunos(as). Optamos aqui pelo gênero masculino plural referindo-se ao masculino e feminino.
2 A parte que diz respeito aos alunos resultou em um artigo (Hatchuel, 1999a) e um livro (Hatchuel 2000a), enquanto que a parte que diz respeito aos professores foi publicada numa obra coletiva (Hatchuel, 2000b).
3 No sentido de J. Habermas (ver por exemplo Cusset, 2001).
4 A partir da idéia de que é através da relação de dívida, de doação e de contra-doação que se formam ou se deformam as identidades (Godbout, 2000)
5 Fiquei particularmente chocada durante as minhas entrevistas com alunos para meu doutorado, pelo sofrimento de Aline, então com 26 anos, que depois de um percurso escolar caótico terminado com um BTS, tinha dificuldade em encontrar um trabalho e falava de sua incompreensão diante deste mundo empresarial que ela não compreendia. Ela descobria então até que ponto os códigos da escola, de que ela havia se apropriado com tanta dificuldade, não eram suficientes. Sem saber como se comportar no quotidiano, ela se encontrava extremamente desamparada, confusão que a remetia provavelmente às suas dificuldades de aluno, ao mesmo tempo em que ela acreditava tê-las superado.
I "Maîtraisse de conferences" em Educação - Universidade Paris X. Integra a equipe "Saberes e relação com o saber".