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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.15 no.1 São Paulo  2010

 

DOSSIÊ
EXPERIÊNCIAS INCLUSIVAS

 

Movimentos transitivistas em um contexto de inclusão: uma transmissão entre pares

 

Transitivist movements in an inclusive context: a transmission between pairs

 

Movimientos transitivistas en un contexto de inclusión: una transmisión entre pares

 

 

Mônica Maria Farid Rahme

Docente do curso de Psicologia do Centro Universitário UNA (Belo Horizonte-Minas Gerais). monicarahme@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo discutir questões referentes à transmissão simbólica que pode ocorrer entre crianças na escola, quando algumas delas percebem que um colega não consegue expressar como os outros suas necessidades ou não se insere do mesmo modo que os outros no dispositivo escolar. Dialoga-se, para tanto, com a noção de transitivismo, articulando-a a dados extraídos de uma pesquisa de campo, realizada com uma turma de crianças na faixa etária de seis e sete anos, em uma escola pública, de tempo integral, que se orientava pela perspectiva inclusiva.

Descritores: educação inclusiva; transmissão simbólica; transitivismo.


ABSTRACT

This article aims to discuss issues related to the symbolic transmission that may occur among children at school , when some of them realize that a classmate is not able to express his/her needs or cannot adjust himself/herself to the school patterns as the other. In doing so, it discusses the notion of transitivism, articulating it with data obtained from field research performed with a group of children aged six and seven years in a full time public school which adhere to inclusive practices.

Index terms: inclusive education; symbolic transmission; transitivism.


RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo discutir cuestiones referentes a la transmisión simbólica que puede ocurrir entre niños en una escuela, cuando uno de ellos se da cuenta que un compañero no logra expresar como los otros sus necesidades o no se incluye de la misma manera que los otros en el dispositivo escolar. Se dialoga, por lo tanto, con la noción de transitivismo, articulándola a datos extraídos de una investigación de campo, realizada con un grupo de niños en una edad entre seis y siete años, en una escuela pública, de tiempo integral, que se orientaba por la perspectiva inclusiva.

Palabras clave: educación inclusiva; transmisión simbólica; transitivismo.


 

 

De meados da década de 1990 até os dias atuais, a proposição de uma Educação Inclusiva, por vezes reduzida ao verbete inclusão, tem-se tornado uma expressão capaz de condensar, não sem conflitos, tanto posicionamentos de denúncia e de contraposição às práticas de exclusão de determinados grupos da escola comum, quanto experiências de reinvenção desse espaço, buscando, para tanto, o redimensionamento de seus propósitos pedagógicos, institucionais e políticos.

A partir do campo da Psicanálise, um número crescente de trabalhos tem focalizado dimensões em geral pouco discutidas nesse contexto, como, dentre outros, os mecanismos de transmissão simbólica que uma convivência em comum na escola pode significar para sujeitos que apresentam questões relacionadas à constituição do laço social (Kupfer, 2000; Fráguas & Berlinck, 2001; Ormelezi, 2006).

Tendo em vista esse apontamento, discutiremos neste artigo o quanto uma transmissão simbólica podese operar entre crianças que partilham um contexto escolar comum, superando por vezes o que é genericamente designado como socialização no campo educacional.

Essa discussão é parte de uma investigação que desenvolvemos sobre laço social e educação,1 e que compreendeu basicamente uma leitura psicanalítica dessa noção, entendida como discurso, uma problematização dos elementos que constituíram a Educação Especial e a Educação Inclusiva como modalidades discursivas e, por fim, a análise de dados levantados a partir de uma pesquisa de campo, realizada em uma escola pública, de tempo integral, de uma capital brasileira, que nos possibilitou detectar movimentos das próprias crianças (de seis e sete anos de idade) no sentido de produzir laço com um colega, Davi,2 que apresentava o amplo diagnóstico de Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (Rahme, 2010). Davi recorria pouco à fala para se expressar e fazia um apelo constante a objetos, os quais manuseava com considerável habilidade e de modo estereotipado.

Durante essa pesquisa de campo, a presença de movimentos de alguns colegas de sala no sentido de responder por Davi, de indicar seus quereres e sua própria imagem refletida, bem como de supor possíveis sentimentos de incômodo físico, mostraram-se significativamente relevantes e nos conduziram à hipótese de que elementos de uma operação transitivista – de uma báscula entre sujeito e outro – encontravam-se presentes nas tentativas de estabelecimento de laço entre essas crianças.

Diante disso, abordaremos, neste artigo, a questão do transitivismo, tal como detectada em nossa pesquisa, o que em muito pode contribuir para a discussão de uma possível transmissão simbólica, entre pares, na escola. Partiremos inicialmente de uma breve apresentação desse conceito, para, em seguida, enfocarmos seu delineamento no trabalho de campo.

 

Transitivismo: "espelho instável entre a criança e seu semelhante"3

A noção de transitivismo foi introduzida pelo neurologista e psiquiatra Karl Wernicke (1848-1905) no fim do século XIX, referindo-se, especificamente, a um fenômeno próprio da psicose. Diante da impossibilidade de o paciente compreender o outro por uma comparação que não estivesse diretamente relacionada consigo mesmo, transferia para o exterior (outro) o princípio de sua própria ação.

Posteriormente, Wallon (1934/1971) propõe uma releitura desse conceito, diferenciando o transitivismo, dito psicótico, de um transitivismo próprio da vivência da criança com o outro. Para o autor, o transitivismo se refere a um momento que precede "o instante em que a criança irá distribuir, sem erro, entre ela e o outro, os estados ou atos percebidos" (p. 242).

Em Lacan, a referência ao transitivismo se articula inicialmente à sua elaboração sobre o Estádio do Espelho como momento central na estruturação do sujeito, demarcando a passagem de um corpo inicialmente fragmentado ao corpo unificado. Essa discussão traz à tona a identificação da criança com uma imagem que, ao mesmo tempo, a constitui e a aliena.

No Seminário A angústia, Lacan (2005) situa a função do Estádio na instituição do campo do objeto, indicando, no primeiro tempo, a "identificação com a imagem especular" e o "desconhecimento original do sujeito em sua totalidade" (p. 103). Em seguida, em relação ao segundo tempo, explica a referência transitivista que ocorre na relação da criança com seu semelhante, o outro imaginário, fazendo com que sua "identidade seja sempre difícil de discernir da identidade do outro" (p. 103).

Nesse sentido, a criança se identifica de tal modo com o outro que seu eu se confunde com o do outro e a faz, por exemplo, chorar quando uma outra criança cai. Lacan (19621963/2005) situa nesse segundo momento a entrada em cena da mediação de um objeto comum, de concorrência, cujo estatuto decorre da ideia de posse e da qual resultam objetos partilháveis e os que não o podem ser.

Em vários de seus escritos e em lições de seus seminários, Lacan situa o transitivismo como um movimento que indica uma equivalência entre a criança e seu semelhante, o qual desencadearia outros mecanismos mais específicos, como o despotismo, o ciúme e o mimetismo (Jalley, 1999).

Partindo da consideração de que a origem do transitivismo se situa na relação especular, Bergès e Balbo (2002) produzem uma profunda investigação em torno dessa operação, propondo um diálogo entre o conceito de transitivismo e as ideias desenvolvidas por Lacan sobre o simbólico, o real e o gozo. Esses autores conduzem de modo peculiar sua discussão, privilegiando suas particularidades e implicações no laço mãe-criança.

Bergès e Balbo (2002) partem do princípio de que a função transitivista se funda na divisão materna, permitindo à mãe falar da dor ou de outro afeto que supõe no filho como se fosse ela que o sofresse: "o dizer da mãe, ao substituir o sofrimento que ela supõe ter sido experienciado pelo filho, torna simbólico esse sofrimento e sua experiência; é nesse sentido que a fala da mãe é recalcante e impõe limites" (p. 25).

Embora a referência à dor seja o exemplo de afeto mais frequente, os autores sublinham que não é o único, pois há manifestações como gosto, sede, fome, calor, frio e incômodo físico, dentre outros, considerados também como elementos que podem dar origem a operações transitivistas entre a mãe e a criança.

De acordo com esses autores, o transitivismo remete às relações primordiais da criança com o outro materno, quando a mãe, marcada pela lei simbólica, demanda ao filho que se identifique com o que ela diz. Ao fazêlo, a mãe parte da suposição de que ele sabe e que, portanto, há aí um sujeito a quem ela pode dirigir uma demanda.

Essa demanda, em torno da qual o apelo materno circula – como um desejo de conhecer o desejo do outro –, pressupõe que o filho esteja identificado ao seu discurso, o que indica a articulação entre transitivismo e acesso ao simbólico. Há, nesse sentido, uma antecipação do sujeito na operação transitivista, pois é suposto que as hipóteses dirigidas à criança se enlacem a um saber que ela já possui. Além disso, é por não supor uma recusa por parte do filho que a mãe pode lhe dirigir sua hipótese (Bergès & Balbo, 2002; Balbo & Bergès, 2003).

O transitivismo se aproxima, assim, de um processo de forçagem, pois esse saber atribuído ao filho funciona como um golpe de força que impele a criança ao enodamento borromeano, permitindo-lhe tomar posse, no plano simbólico, de um bem que ela já possui.

Bergès e Balbo (2002) definem como condição primordial para a operação transitivista o fato de a mãe operar no registro simbólico. Para os autores, é por funcionar nessa lógica que entrelaça o imaginário, o simbólico e o real, que ela pode construir suas hipóteses sobre o filho, introduzindo, por conseguinte, tanto esse afeto quanto suas bordas.

Tal como desenvolvem a discussão sobre o transitivismo, Bergès e Balbo (2002) consideram a identificação transitivista como uma identificação simbólica por considerar que a fala proferida pela mãe é simbólica e, nesse sentido, passível, em última instância, de incertezas.

O transitivismo é, portanto, um processo pelo qual a criança acede ao afeto – um jogo de afetação – porque a mãe, a partir de uma vivência julgada dolorosa, atribui tanto um corpo a seu filho quanto a possibilidade de experimentar corporalmente um afeto. Bergès e Balbo (2002) lembram que, por meio do transitivismo, a criança pode libertar seu corpo do imaginário para inscrevê-lo no simbólico, o que traz desdobramentos também para o corpo materno.

O transitivismo funciona, portanto, como um mecanismo de bordejamento do próprio corpo e do que isso irá significar para o reconhecimento do corpo do outro, como corpo que agrega sentimentos e que sofre afetações.

Trata-se de um corpo ativo e simbólico: "Quando a criança é transitivista com seu semelhante, quer ela sofra com o golpe que o outro se deu, por exemplo, quer atribua ao outro a violência que acabou de exercer sobre ele, o que está em jogo não é somente uma reatualização do que há aí de seu desconhecimento concernente à ligação ao corpo interessado, mas também o reencontro de alguma coisa do gozo que ela não pôde reter: sendo transitivista com o outro, ela exibe um comportamento em que se encontram enredados temor e... satisfação" (Bergès & Balbo, 2002, p. 60).

Resguardadas as peculiaridades entre a vivência transitivista, tal como presente na relação mãe e filho e como vivenciada entre crianças, é possível indicar que quando a criança transitiva em relação ao seu semelhante, coloca em funcionamento um mecanismo similar. Para isso, a criança se vale de um jogo de posições entre ela e o outro, marcado por uma "competência simbólica" para lidar com as situações nas quais as manifestações do outro parecem convocála a intervir.

Como indicam Bergès e Balbo (2002), quem transitiva parte do pressuposto de que o corpo do outro tem necessidades e que esse outro se encontra por vezes incapaz de fazer demandas para o que sente. A criança que transitiva formula, assim, essa demanda, ao mesmo tempo em que evidencia o fato de o colega ter um corpo: "A criança não imita o outro, mas compara o que percebe do outro com o que já sabe, a partir da percepção passada por seu próprio corpo." (p. 101).

Portanto, do mesmo modo como a mãe pode operar de modo transitivo com o filho, resgatando de seu corpo algo que experimentou como seu, a criança que transitiva em relação ao seu semelhante coloca em funcionamento um mecanismo similar, valendo-se, para tanto, desse jogo de posições entre ela e o outro.

As breves considerações abordadas acima sobre o conceito de transitivismo nos auxiliam a enfocar a presença dessas operações entre as crianças da pesquisa. Muitas vezes, os colegas se dirigiam a Davi como alguém que tinha necessidades, embora não conseguisse expressá-las, investindo em seu corpo uma série de leituras e intervenções que, curiosamente, pareciam funcionar no laço com ele.

Tecendo nosso trabalho como uma pesquisa de orientação psicanalítica em extensão (Lacan, 2003), investigamos, durante um ano letivo, um grupo de crianças que, com Davi, integravam uma turma de primeiro ano do Ensino Fundamental: Carolina, Renata, Miguel, Evelin, Cláudio, Guigui, Juninho, Rodner, Flávia e Liliane.4 Acompanhamos esses alunos, dentro e fora do ambiente da sala de aula, fazendo registros escritos, entrevistas e utilizando, também, em alguns momentos exteriores à sala de aula, o registro em imagens.

No próximo item, discutiremos como os movimentos transitivistas se evidenciaram durante essa investigação, na perspectiva de uma "maternagem", de um movimento de falar ou fazer certas coisas de um modo próximo ao de Davi, e do bater. Os dados extraídos do trabalho de campo nos permitiram apontar, ainda, que, a partir de certo momento, Davi também passa a realizar operações transitivistas em relação aos colegas.

 

Transitivismo e golpe de força: o corpo em questão

Durante a pesquisa, foi possível testemunhar o quanto duas colegas – Renata e Carolina – realizavam uma série de operações transitivistas em relação a Davi, no sentido de afirmar que ele precisava ir ao banheiro ou que estava "nervoso" e que seria melhor darlhe o bico para acalmar. Por vezes, podiam sair de onde estavam na sala de aula para fazer alguma intervenção junto ao colega, como ajustar sua carteira. Esses movimentos eram significados por elas como respostas a manifestações do que ele poderia estar querendo ou sentindo.

Em uma aula de Educação Física na qual Davi se encontrava envolvido na maior parte do tempo com o que era proposto, mas se mostrando irritado em outros momentos, Renata se aproxima do colega, tira suas sandálias e ele rapidamente se acalma. Quando lhe perguntamos os motivos pelos quais ela teria feito aquilo, responde apenas que "ele queria".

De sua parte não parecia haver dúvida de que o incômodo do colega era causado pelo uso das sandálias, hipótese reforçada pelo fato de ele se tranquilizar após sua interferência. Para quem acompanhava a cena, esse elemento, anteriormente imperceptível, evidenciava uma leitura/interpretação sobre o corpo de Davi, simultânea a uma ação por parte de Renata, no sentido de significar sua vivência, a partir do que era suposto lhe afetar.

Nessa cena, Renata se dirige a Davi inscrevendo seu corpo como um corpo de linguagem. Ao mesmo tempo, quando Davi aceita que a colega tire suas sandálias, sem se contrapor, parece identificar-se ao que ela o faz ouvir, reconduzindo ao seu próprio corpo um discurso que é a ele dirigido. Em outras palavras, quando Renata lê e comunica um suposto saber que se encontra no colega, Davi parece identificar-se a esse saber, "tomando posse, assim, simbolicamente de um bem que ele possui" (Bergès & Balbo, 2002, p. 12).

Os movimentos transitivistas realizados por Carolina e Renata evidenciaram uma forte posição de "maternagem" no estabelecimento de laço com o colega, o que era produzido, também, por outras crianças, ainda que em menor proporção.

Desse modo, Miguel e Guigui, por exemplo, não poupavam esforços para conduzir o colega até a pia, ajudando-o a lavar suas mãos, ou mesmo acompanhando-o na utilização do bebedouro, quando apertavam o botão por onde saía a água, ainda que Davi já houvesse dado indícios de que podia fazê-lo sozinho.

Um segundo movimento presente no convívio entre as crianças refere-se ao falar ou fazer determinadas coisas de um modo próximo ao que Davi fazia.

Alguns meninos pronunciavam frases ou faziam coisas que lembravam o jeito de Davi, indicando, a nosso ver, uma tentativa de estabelecimento de laço com o colega. Frases como "Quer correr?", "Vão correr?" eram frequentemente proferidas pelos colegas com a mesma entonação adotada por Davi: "Qué coê?", "Vão coê?", e pareciam surtir efeitos, chamando a atenção do colega para o que era proposto, como abordaremos a seguir.

No refeitório, algumas crianças da sala começam a falar repetidamente "eu" antes de serem servidas, como, sistematicamente, era feito por Davi. Em outras situações, Evelin e Davi proferem, com a mesma entonação, a frase "Cabô recreio!", quando chega o momento de subir para a sala.

As tentativas de falar de um modo mais próximo possível ao de Davi chegavam, por vezes, a provocar disputas entre as crianças, como ocorreu entre Renata e Flávia, por ocasião de um momento de entrevista:

Flávia: Ele [Davi], ele fala: "Vou coê, vou coê, vou coê"!
Renata: Não é "vou coe", é "vamo coe"...

A tentativa de estabelecer um laço com Davi, falando como ele falava, ou mesmo repetindo seus movimentos, foi visível quando da entrada de Miguel na escola. Nas primeiras semanas, Miguel tinha várias atitudes que lembravam Davi, como o jeito de esfriar a comida, de fazer certas caras, de afastar a blusa do corpo. Durante uma das atividades em sala, a turma cantava uma música e fazia movimentos de girar o próprio corpo. Davi, que participava da brincadeira, ora acompanhava o que os colegas faziam, ora balançava seu corpo de um jeito peculiar. Miguel sai, então, de onde se encontrava e se instala ao lado do colega, movendo seu corpo do mesmo modo como Davi o fazia.

As aproximações de Miguel nesse sentido foram recorrentes nos primeiros meses. Um dia, durante o recreio, vendo Davi arrancar os matinhos e jogá-los para cima, Miguel se assenta ao lado do colega e começa a fazer o mesmo movimento. Em seguida, pergunta a Davi: "Como é o nome dessa brincadeira sua?".

Em uma outra situação, na sala de aula, Davi joga compulsivamente uma folha para cima – como se brincasse de caixotinho – enquanto diz em terceira pessoa: "Pega, Dadá! Pega, Dadá! Pega, Dadá! Pegou!".5

Alguns colegas participam da brincadeira com ele e também repetem a mesma frase. Algumas vezes, Davi joga a folha para cima e, olhando para Miguel, diz: "Óia, óia, óia!". Miguel fala, então, como ele, acompanhando detidamente seus movimentos.

Atento ao que faz Davi, é Miguel quem associa pela primeira vez esses movimentos do colega à brincadeira do "caixotinho".

Em meio a esses jogos, verificamos que Davi passa a fazer algumas coisas como os colegas, fato por eles também assinalado, como ocorre quando Davi desliza seus pés no chão, do mesmo modo como fazia Guigui. Ao percebê-lo, o colega assinala: "Eu fiz assim ó [deslizado os pés].... Aí ele vai lá e fica me imitando...".

Essa forma particular de tecer um laço ocorre ainda entre Davi e uma das professoras. Em um momento no qual ela falava de modo rígido com algumas crianças, colocando o dedo em riste, é seguida por Davi, que começa a falar palavras incompreensíveis, e pondo, também, seu dedo em riste.

Um último movimento transitivista, destacado do trabalho de campo, refere-se ao modo como a questão do bater emergia em diferentes circunstâncias, parecendo indicar tanto uma confusão no sentido especular entre Davi e o outro, quanto, por vezes, uma possível tentativa dele de marcar, com esse gesto, seu próprio corpo. Em outros momentos, o modo como Davi se posicionava em relação aos colegas parecia apontar para o fato de que as posições transitivistas dos colegas haviam desencadeado, nele também, operações transitivistas.

Durante uma das entrevistas, assistimos uma cena referente às filmagens, na qual Miguel segura a mão de Davi. Miguel diz, então, que gosta do colega e, nessa hora, Davi dá um tapa na pesquisadora. Quando perguntamos a Miguel porque ele gosta de Davi, Davi se volta para a pesquisadora, fazendo, nesse instante, um movimento de abraçá-la.

Nesse momento, Davi parece procurar se situar na dinâmica dos significantes proferidos, ao mesmo tempo em que balança entre a presença e as palavras do colega e a proximidade da pesquisadora. Do bater ao abraçar, é como se Davi se esforçasse, a seu modo, para se ordenar em uma abstrata lógica, presente na relação eu-outro.

Em outro momento, Davi dá um empurrão nas costas de Flávia – que tem o mesmo tamanho dele e que costumava ser alvo de suas batidas. Ao fazê-lo, diz: "Ele bateu!", parecendo evidenciar o movimento de uma identificação imaginária em relação à colega, ao mesmo tempo em que opera, de modo transitivo com o bater, em terceira pessoa.

Em outras situações de entrevista, Davi passa a bater em si mesmo, quando alguma menção ao ato de bater é feita. Em um desses momentos, Renata fala que ele tinha batido e que isso doía. Davi dá um tapa, então, na própria mão, dirigindo seu olhar, em seguida, para a colega.

Quando Davi bate em si mesmo, a operação transitivista parece se desdobrar em uma marcação do próprio corpo, como se algo ali devesse ser delimitado. Esse mesmo procedimento se evidenciou nas falas de Davi em torno da palavra dói, quando, de algum modo, parecia estabelecer para ele, ainda que de modo inicial, uma articulação entre o bater e a dor.

Ao longo do ano, Davi passa a repetir, ininterruptamente, frases que lhe tinham sido provavelmente ditas como "Tchau, Dadá!", "Dói, dói procê vê!", "Dadá tá brincando!", "Vai, Dadá, passeá!", "Joga a peteca pra mim, Dadá!", ou outras construções que podiam não se ligar diretamente ao contexto escolar.

Nesse transitivismo entre Davi e os colegas, talvez, possamos apontar como hipótese que o fato de ele bater em si mesmo, quando uma referência ao seu bater em outra pessoa era feita, assim como a presença de uma fala em terceira pessoa, indiquem a possibilidade de ele estar se tomando como um outro, o que seria, do ponto de vista clínico, um indício importante no que se diz respeito à sua constituição subjetiva.

Assim, embora não tenhamos tido como objetivo realizar uma análise propriamente clínica do caso de Davi, julgamos importante assinalar os efeitos que seu percurso na escola parece ter-lhe possibilitado, no sentido de obter uma maior organização subjetiva, o que pode ser observado a partir dos próprios movimentos transitivistas que ele passa a realizar em direção aos colegas.

 

REFERÊNCIAS

Balbo, G. & Bergès, J. (2003). Psicose, autismo e falha cognitiva na criança. Porto Alegre: CMC.         [ Links ]

Bergès, J. & Balbo, G. (2002). Jogo de posições da mãe e da criança: Ensaio sobre o transitivismo. Porto Alegre: CMC.         [ Links ]

Fraguas, V. & Berlinck, M. T. (2001). Entre o pedagógico e o terapêutico: algumas questões sobre o acompanhamento terapêutico dentro da escola. Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, 6 (11), 7-16.         [ Links ]

Jalley, É. (1999). Freud, Wallon, Lacan: L'enfant au miroir. France: Epel.         [ Links ]

Kupfer, M. C. M. (2000). Educação para o futuro: Psicanálise e educação. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Lacan, J. (2003). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In J. Lacan, Outros escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 248-264). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

______ (1993). O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. (B. Milan, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

______ (2005) O seminário, livro 10: A angústia, 1962-1963. (V. Ribeiro, trad.), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Ormelezi, E. M. (2006). Inclusão educacional e escolar da criança cega congênita com problemas na constituição subjetiva e no desenvolvimento global: uma leitura psicanalítica em estudo de caso. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

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Wallon, H. (1971). As origens do caráter na criança. São Paulo: Difusão Europeia do Livro. (Trabalho original publicado em 1934).         [ Links ]

 

NOTAS

1 Esta pesquisa foi orientada pela Profa. Dra. Leny Magalhães Mrech (FE-USP).

2 Todos os nomes apresentados neste trabalho são fictícios.

3 Referência de Lacan (1953-1954, p. 196) ao conceito de transitivismo. Neste artigo pautaremos apenas algumas das menções do autor a essa noção.

4 Neste artigo, trabalhamos com dados de algumas dessas crianças.

5 Brincadeira similar à pipa, mas feita com uma folha de papel ofício e lançada com um pedaço de barbante. Davi se autonomeava Dadá.

 

 

Recebido em abril/2010.
Aceito em maio/2010.

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