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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.17 no.2 São Paulo dez. 2012
DOSSIÊ
A CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS: DESAFIOS E RESULTADOS
Clínica da prevenção: o olhar sobre o corpo do bebê1
Prevention clinic: the look over the baby's body
Clínica de la prevención: la mirada sobre el cuerpo del bebé
Ana Lunardelli Jacintho
Psicóloga. Doutoranda pelo Centre de Recherches Psychanalyse, Médecine et Société da Université Paris Diderot - Sorbonne Paris Cité, Paris, França. 5 Rue Froidevaux 75014 - Paris - França. analunardelli@gmail.com
RESUMO
Neste artigo abordamos a questão do olhar sobre o corpo do bebê como perspectiva para refletir sobre a noção de prevenção. A partir de nossa prática em um espaço de acolhimento, defendemos a hipótese de que o olhar do acolhedor pode servir de suporte ao olhar sustentado pela mãe sobre o corpo de seu bebê. Concluímos que a clínica da prevenção opera no sentido de acompanhar a constituição psíquica do sujeito, na qual se inscreve a construção do corpo erógeno e em que o olhar materno assume um papel fundamental.
Descritores: bebê; prevenção; acolhimento; olhar; corpo.
ABSTRACT
This paper aims to discuss the look over the baby's body as a perspective to reflect on the notion of prevention. From our practice in a welcoming place, we defend the hypothesis that the welcoming person's look can serve as a support for the look sustained by the mother over her baby's body. Thereby we conclude that the prevention clinic operates in the sense of following the psychic constitution of the subject in which the construction of the erogenous body is inscribed and where the mother's look plays a fundamental role.
Index terms: baby; prevention; welcoming place; look; body.
RESUMEN
En este artículo abordamos la cuestión de la mirada sobre el cuerpo del bebé como perspectiva para reflexionar sobre la noción de prevención. A partir de nuestra práctica en un espacio de acogida, defendemos la hipótesis de que la mirada del acogedor puede servir como soporte a la mirada sostenida por la madre sobre el cuerpo de su bebé. Concluimos que la clínica de la prevención opera en el sentido de acompañar la constitución psíquica del sujeto, en la cual se inscribe la construcción del cuerpo erógeno y donde la mirada materna asume un papel fundamental.
Palabras clave: bebé; prevención; acogida; mirada; cuerpo.
Examinamos no presente trabalho, a questão do olhar sobre o corpo do bebê na clínica da prevenção, apoiando-nos em nossa prática em um espaço de acolhimento2- lieu d'accueil parents-bebés - que recebe bebês e crianças de até três anos acompanhados de um adulto. Trata-se de um dispositivo criado a partir da experiência da Maison Verte, inaugurada por Françoise Dolto, situando-se, assim, numa perspectiva psicanalítica da prevenção.
Consideramos a problemática do olhar sobre o corpo do bebê como ponto de vista para uma reflexão sobre a prevenção e a pertinência desta noção na clínica com bebês. O aparecimento hoje de determinados projetos de prevenção evidencia o uso da medicina como instrumento de controle social, ao servir de base às novas políticas em saúde mental infantil, que visam à adaptação da criança às normas sociais. Deste modo, a prevenção dita psicológica sofre, nessas políticas, desvios no sentido da predição, suscitando diversos debates e ponderações por parte de profissionais que questionam tais modelos. Por outro lado, a prevenção constitui, atualmente, um aspecto importante da clínica psicanalítica com bebês. Em psicanálise, porém, esta é uma questão controversa, que já se coloca para Freud quando ele interroga a possibilidade de uma profilaxia de neuroses (1923/1982). Desta forma, torna-se pertinente averiguar os limites e alcances de uma intervenção preventiva na clínica com bebês.
Nesse contexto, a fim de abordar a questão de uma prevenção possível, procuraremos indagar mais especificamente o modo como o olhar sobre o corpo do bebê está em jogo na clínica da prevenção, diferenciando-o do olhar médico. Com efeito, o corpo do bebê aparece nessa clínica como elemento central. Dado que ainda não fala, o corpo do infans serve de modo privilegiado de expressão psíquica e é através dele que o bebê se apresenta como ativo na sua relação com o outro semelhante. Voltar nosso olhar sobre o corpo do bebê na clínica da prevenção supõe, então, que consideremos o papel do olhar materno na constituição psíquica do sujeito. Assim sendo, defendemos, neste trabalho, a hipótese de que, numa instituição de acolhimento, o olhar do acolhedor pode servir de suporte ao olhar sustentado pela mãe sobre o corpo de seu bebê. Trata-se, portanto, de um olhar que permite acompanhar a instauração do olhar materno.
Prevenção, predição: pré-visão?
A prevenção é um tema de atualidade, em especial, na clínica da primeira infância. Nosso intuito é discutir, primeiramente e numa perspectiva crítica, as derivas do modelo de prevenção de tendência preditiva presente nas novas políticas de saúde mental infantil, buscando examinar o discurso médico que o fundamenta e suas ideologias de adaptação e controle.
A especificidade do olhar da medicina moderna sobre o corpo consiste em torná-lo sujeito aos princípios de objetivação e erradicação de sintomas próprios a essa disciplina (Detrez, 2002). Isto nos leva a questionar a relação entre o olhar médico e a prevenção, bem como indagar de que modo estaria ele ligado à tendência preditiva da prevenção dita psicológica existente nas atuais políticas. Além disso, seria também pertinente interrogar a repercussão do olhar médico sobre o campo do psíquico e, mais especificamente, na clínica com bebês.
A origem da noção de prevenção está articulada à doutrina higienista do século XIX, responsável por sua introdução no discurso médico. Essa lógica da prevenção médica foi também aplicada ao domínio dos transtornos mentais, culminando na ideia de que a "prevenção mental" poderia ser assegurada através de uma "boa organização social" (Gerber, 1991).3
As atuais políticas de prevenção em saúde mental infantil estão ainda marcadas por uma abordagem médica do sofrimento psíquico. Podemos, assim, constatar sua presença em diversos relatórios da Organização Mundial da Saúde (OMS) - órgão também responsável pela produção de uma classificação internacional de transtornos mentais. Neles, a noção de prevenção obedece a uma lógica de fatores de risco e de proteção, os quais sustentam uma concepção adaptativa da criança às normas sociais segundo interesses econômicos (OMS, 2001). Nesse contexto, existe hoje na França uma tendência à prevenção específica que visa particularmente a erradicar a delinquência. Os diferentes relatórios ministeriais que pudemos analisar apoiam-se no documento do Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale (INSERM, 2005), segundo o qual a origem da delinquência pode ser localizada na primeira infância. Com base nisso, preconiza a detecção precoce de transtornos de conduta a partir dos 36 meses de idade, a ser realizado massivamente e tratado por medicação, iniciativa que suscitou a reação de diversos profissionais que atuam com crianças, culminando na criação de um coletivo, denominado Pas de zéro de conduite (2008), para lutar contra o primeiro projeto de lei referente à prevenção da delinquência. Salienta-se, assim, o aspecto ideológico presente em tal projeto, já que ele responde ao princípio de controle social em nome da segurança coletiva, colocando a saúde mental a serviço da justiça (Perrusi, 2006). Além disso, Giampino (2010) atenta para os efeitos nocivos que o anúncio sobre a presença de um "risco" pode ter sobre a criança e sua família, modificando o olhar dos profissionais e dos pais sobre aquela.
Podemos, dessa forma, questionar as repercussões do olhar médico sobre a subjetividade, principalmente no que concerne à clínica com bebês, já que essa perspectiva de objetivação do corpo, quando aplicada ao campo do psíquico, reduz a criança a seus comportamentos visíveis. Para Gori (2005), trata-se de uma lógica que medicaliza o sofrimento psíquico, transformando-o, ao mesmo tempo, em um desvio do comportamento. Respondendo à demanda social de adaptação e normalização, essa concepção quantitativa e estatística da saúde mental infantil, presente nas classificações internacionais de psicopatologias - que as denominam "transtornos" -, exclui a singularidade do sujeito. E já que abordamos, neste trabalho, a questão do olhar voltado sobre o corpo do bebê, podemos afirmar que a prevenção de tendência preditiva aparece como uma forma de pré-visão sobre o futuro de crianças pequenas, buscando sua predeterminação e controle.
Prevenção e psicanálise no espaço de acolhimento
No campo da psicanálise, Françoise Dolto foi pioneira da prevenção na primeira infância, principalmente com a criação, em 1979, do primeiro espaço de acolhimento, que recebeu o nome de Maison Verte. Segundo sua concepção, o trabalho realizado nessa instituição não se confundiria com o do tratamento psicanalítico. Em seu Projeto de Centro da Infância, podemos ler: "Um espaço de encontro e acolhimento para todas as crianças que não seria nem médico, nem pedagógico, nem psicoterápico, mas essencialmente atrativo, vivo" (Dolto, 1977/2009a, p. 110). Deste modo, crianças de zero a três anos encontrariam aí um espaço de socialização que se realizaria na presença dos pais, preparando-as para a vida em sociedade. Além disso, essa estrutura ocuparia uma função de escuta e de trocas para os adultos cuidadores, no contexto do cotidiano, sem que precisamente houvesse demanda dos pais e com a garantia do anonimato. O princípio de reconhecimento da criança enquanto sujeito está na base desse projeto, devendo ser ela "respeitada, escutada, acolhida como um ser de desejo capaz de se exprimir" (Dolto, 1977/2009a, p. 112, grifo da autora). Nesse espaço é dada à criança a liberdade necessária para que ela possa conquistar sua autonomia, e o psicanalista ocupa uma posição particular, pois ele é, de acordo com a autora, "psicanalista na cidade".
Outra função importante dessa instituição seria a de favorecer a prevenção, em que o acento é colocado sobre uma intervenção precoce: "Parece-nos agora que está aí a melhor das profilaxias das neuroses infantis e da violência adaptativa, sofrida ou agida, de crianças pequenas à sociedade" (Dolto, 1980/2009b, p. 216). Os diferentes transtornos dos quais podem sofrer essas crianças, tais como problemas de sono, alimentação ou comunicação, se beneficiariam da verbalização de conflitos promovida nesse espaço.
No entanto, a prevenção é uma noção controversa em psicanálise e necessita uma abordagem mais aprofundada, principalmente no que se refere à sua pertinência na clínica da primeira infância. Em dado momento de sua teoria, Freud (1907/1976) considerou a possibilidade de uma profilaxia de neuroses através de uma educação que garantisse "uma certa liberdade sexual". Essa perspectiva, porém, foi mais tarde abandonada, pois, como afirma o autor: "Nós já sabemos que as condições determinantes das neuroses são muito mais complicadas e não se encontram sob a influência de um único fator... As vantagens da profilaxia sexual da infância são então mais do que duvidosas" (Freud, 1923/1982, p. 392).
Para Freud, portanto, a profilaxia das neuroses já se apresentava como uma ideia questionável. Com efeito, intervir antes da aparição de um sintoma corresponde a uma concepção psicomédica da criança, segundo a qual seria possível evitar seu sofrimento agindo sobre suas supostas causas. Giampino e Vidal (2009) defendem uma prevenção do sofrimento psíquico, mas uma prevenção generalista, que não tenha como alvo determinadas populações e que seja criativa. Já para Perrusi (2006), na clínica da primeira infância, não é possível saber o que devemos prevenir ou curar:
Nosso objetivo é vir adiante do nascimento psíquico do sujeito, mas não nos deixar tentar pela rapidez dos remanejamentos psíquicos da criança, que nos fariam crer que nós sabemos o que curamos e, logo, que tipo de prevenção deve-se utilizar (p. 133).
Assim, numa visão psicanalítica, a prevenção não se confunde com a predição, devido à impossibilidade de prevermos o futuro do bebê. Entretanto, dada a importância desse momento inicial de nascimento psíquico do sujeito, qual seria a prevenção possível? Como conceber nossa intervenção em prevenção num espaço de acolhimento para pais e bebês? Com o objetivo de refletir sobre as especificidades dessa clínica da prevenção não preditiva, tomamos como perspectiva o olhar sobre o corpo do bebê, que, em psicanálise, não corresponde ao corpo objetivado da medicina. A partir deste ponto de vista, poderemos, inclusive, questionar a própria noção de prevenção. Para isso, introduziremos, primeiro, o campo teórico relativo às questões do corpo e do olhar; em seguida, trabalharemos nossas situações clínicas.
A (co)construção do corpo em psicanálise
O corpo do bebê está no centro do trabalho em prevenção, mas de que corpo se trata? Devido ao fato de ainda não falar, o corpo do infans constitui um modo privilegiado de expressão: através dele, o bebê se apresenta como ativo na sua relação com o outro semelhante.
A originalidade da noção freudiana de corpo é mostrar que, por ser marcado pela pulsão, ele não se confunde com o organismo. Como esclarece Lacan (1973), pelo fato de aparecer como força constante, a pulsão não pode ser assimilada a uma função biológica. Pela pulsão, o registro do somático se converte em registro erógeno (Birman, 2009). Lacan indica também que a passagem do organismo ao corpo se produz a partir da inscrição do significante, o que se dá na relação do sujeito com o Outro Primordial, através da qual o corpo é marcado pela pulsão. Segundo o autor: "as pulsões são o eco, no corpo, pelo fato que há um dizer" (Lacan, 2007, p. 18).
Devido ao seu estado de desamparo primordial, o bebê humano depende de um outro para satisfazer suas necessidades, expressas por meio de seu corpo. Dor (2002) explica que essas manifestações corporais resultam de um movimento de descarga, mas terão valor de signo para um outro que lhes atribuirá sentido. Elas se constituem, assim, como demanda, dando início à "comunicação simbólica com o Outro" (p. 187). Cullere-Crespin (2007) denomina "encontro inaugural" este momento em que uma resposta emerge do chamado do bebê e a partir do qual o significante poderá se inscrever em seu corpo, permitindo-lhe passar do estatuto de "ser de necessidade" a "ser de desejo".
Logo, ao interpretar as manifestações corporais do bebê como a expressão de uma demanda, a mãe se endereça a ele como sujeito. C. Vanier (2010) defende, seguindo a célebre frase de Winnicott, que o bebê não é uma pessoa ao nascer, pois para isso é necessário que se suponha nele um sujeito: "O sujeito está antes no Outro" (p. 70). Aulagnier (1975/2010) descreve a violência que representa a interpretação da mãe sobre as vivências da criança, já que, através dessa operação, o desejo daquela se transforma na demanda desta. No entanto, esta é uma violência necessária para que o sujeito possa advir. A função materna, que inclusive não é necessariamente encarnada pela mãe, pode ser assim caracterizada como atributiva, pois ela confere ao bebê seus conteúdos psíquicos. Neste sentido, Winnicott (1956/1999) descreve o estado de "preocupação materna primária" em que se encontra a mãe no início da vida de seu bebê, e a partir do qual sua identificação a ele se torna um elemento fundador da vida psíquica da criança. O autor introduz, ainda, a noção de espaço potencial (Winnicott, 1971/1975) enquanto espaço intermediário que se estabelece mais tarde entre mãe e bebê e que é também, para Lippi (2010), espaço do desejo e, portanto, do pai. Efetivamente, a importância da função paterna está na interdição de gozo operada por ela, permitindo à criança não ser tomada como único objeto materno e advir, assim, como sujeito de seu próprio desejo.
No processo de constituição psíquica do bebê, que passa necessariamente pelo corpo, o Outro aparece então como elemento central. Graças ao investimento libidinal da mãe sobre o corpo de seu bebê, este último deixa o registro funcional para aceder ao estatuto de corpo erógeno. Segundo Cullere-Crespin (2007), a circularidade da pulsão se refere a uma transmissão entre o sujeito e o Outro, pois é principalmente da relação com este que ela se satisfaz. Como afirma a autora: "a circulação das trocas - que retoma bem a questão do circuito da pulsão - assegura uma coconstrução entre o recém-nascido e seu Outro da relação" (p. 58). A construção do corpo pulsional no bebê não pode, por isso, ser concebida fora da situação relacional, devido ao lugar ocupado pelo investimento materno, através de seus gestos e palavras portadores de seu desejo. Além disso, é necessário considerar também o papel ativo do bebê nesse processo. Cullere-Crespin (2007) descreve o apetite que ele apresenta pela relação com o Outro - o que ela designa "apetência simbólica" -, e que visa tão somente à troca relacional.
Portanto, se o papel do Outro é primordial para o nascimento psíquico do bebê, este participa ativamente da relação: ele se narra (Golse, 2006) no contato com sua mãe. A antecipação materna é, de fato, essencial para a inscrição do bebê na ordem simbólica, mas este processo tem o corpo dele como suporte: é a partir do que o bebê exprime através do próprio corpo e seu apelo que serão colocados em andamento os mecanismos do desejo e da demanda. Deste modo, o corpo do bebê aparece como espaço de encontro entre o sujeito e o Outro, encontro que se estabelece por meio da circulação da pulsão entre ele e sua mãe. Podemos, por conseguinte, pensar o corpo erógeno como resultado de uma coconstrução entre o sujeito e o Outro.
Essa concepção do corpo pulsional, diferente daquela da medicina, está na base de nosso trabalho no espaço de acolhimento. Ao considerarmos sua construção como resultado do laço entre o bebê e o Outro, defendemos a existência de um olhar sobre o corpo do bebê que vai além de seus comportamentos visíveis. Isso nos permite orientar nossas intervenções no sentido de favorecer o estabelecimento desse laço. No entanto, se nosso olhar não se reduz a uma observação objetivante, como caracterizá-lo? Partiremos do papel ocupado pelo olhar materno na constituição psíquica do sujeito para pensar as especificidades do olhar sobre o corpo nessa clínica.
O olhar materno sobre o corpo do bebê
Lacan (1949/1999) denomina "Estádio do Espelho" o momento de reconhecimento fundamental que se opera quando a criança, entre 6 e 18 meses descobre com jubilação sua própria imagem, o que corresponde ao processo de identificação na origem do eu (moi). A prematuridade fisiológica de seu corpo fragmentado e sua dependência em relação a um outro semelhante marcam, porém, a defasagem entre o corpo real do bebê e a unidade da imagem que ele assume. Essa unidade decorre da mediação simbólica da mãe, que investe libidinalmente a imagem da criança, nomeando-a com os significantes do Outro (A. Vanier, 2006). Constatamos, deste modo, que a identificação à imagem se dá a partir do olhar materno.
Não obstante, a questão da especularidade na relação entre o bebê e seu outro semelhante está presente já muito antes, pois ele procura desde cedo o olhar deste último. A partir disso, a mãe poderá também olhá-lo e atribuir-lhe os objetos de seu desejo, o que inscreve o olhar como "função psíquica de comunicação" (Cullere-Crespin, 2007, p. 73). Tratase aí do terceiro tempo pulsional, em que o bebê busca ser ele mesmo objeto de satisfação para o Outro. No que concerne à pulsão escópica descrita por Lacan (1973), os três tempos pulsionais correspondem a olhar, se olhar e se fazer olhar. O bebê procura, portanto, ser olhado pela mãe, podendo identificar-se a esse olhar.
Segundo Winnicott (1971/1975), o olhar materno funciona como espelho para o bebê, ao lhe refletir seu próprio self. Esta noção não se confunde, porém, com a de eu, como afirma A. Vanier: "Lacan sublinha, aliás, que com a noção de self, Winnicott procura alcançar algo além do ego, a saber, o sujeito" (2010, p. 15). Para Winnicott, o olhar materno confere ao bebê uma unificação corporal num momento em que seu corpo não se encontra ainda integrado, articulandose ao holding enquanto função de sustentação, ao mesmo tempo física e psíquica, assegurada pela mãe sobre o corpo de seu bebê.
O olhar materno assume, consequentemente, um papel fundamental na constituição psíquica do sujeito. Com efeito, ele está ligado à função atributiva da mãe e seu investimento libidinal, participando da construção do corpo erógeno do bebê. Ressaltamos que o olhar do acolhedor deve considerar o lugar ocupado pelo olhar materno nesse processo e que nossas intervenções orientam-se no sentido de favorecer a instauração desse olhar, como forma de contribuir para o estabelecimento do laço entre o bebê e o Outro. Isso nos permite levantar a hipótese de que nosso olhar pode servir de suporte ao olhar materno sobre o corpo do bebê.
Clínica da prevenção: tempo, espaço e criação
"É na soma do seu olhar, que eu vou me conhecer inteiro."
(Chico Buarque, Tanto amar)
A partir de três situações clínicas,4 estabelecemos três eixos temáticos a fim de ilustrar a questão do olhar sobre o corpo do bebê na clínica da prevenção e mostrar de que forma o olhar do acolhedor pode servir de suporte ao olhar materno.
Abordaremos, em primeiro lugar, a questão do tempo nessa clínica. De acordo com Freud, a temporalidade psíquica não obedece à linearidade de causa e efeito. Esta é, porém, predominante no modelo de prevenção preditiva, que estabelece uma relação direta entre uma dificuldade apresentada pelo bebê no presente e um futuro rumo à delinquência. Com sua teoria do "sódepois", Freud argumenta que o caráter traumático de um acontecimento só aparece a partir da ação retroativa de um segundo evento, dando sentido àquele que havia sido reprimido. Seguindo a teoria freudiana, Cullere-Crespin (2007) ressalta que não há, então, como antecipar a maneira como o evento será tratado ou o que vai desencadear num determinado sujeito. Logo, a particularidade da questão do tempo em prevenção refere-se à impossibilidade de se prever o futuro do bebê ou o modo como ele vai se constituir psiquicamente a partir do que vive.
Entretanto, podemos supor a existência de uma forma de pré-visão na mãe, no sentido da função materna de antecipação. Como efeito, ao introduzir o bebê no circuito da demanda, a mãe faz nele a hipótese de um saber e favorece, assim, sua entrada na linguagem. Para Bergès (2005), a palavra da mãe intervém enquanto elemento terceiro graças ao seu pensamento hipotético. Trata-se, portanto, de uma hipótese antecipada que permite a inscrição significante no corpo do bebê. Em prevenção, a única antecipação possível é aquela que opera a mãe sobre as produções de seu bebê.
Nossa primeira situação clínica é a de Gaspard e sua mãe, que começam a frequentar o acolhimento quando ele tem quatro meses. Constatamos de imediato a ausência de olhar dessa mãe sobre seu bebê, em contraste com o interesse apresentado por Gaspard pelo olhar dos acolhedores, que ele procura fixar com intensidade. Sua mãe o coloca sempre sentado de costas em relação a ela, e a ausência de tonicidade de seu corpo faz com que ele se curve em direção ao solo. Além disso, ela apenas lhe apresenta brinquedos que ele não consegue segurar e comenta, várias vezes, a frustração que ela lhe atribui de não poder brincar como as crianças maiores. Mas à medida que a mãe pode falar de sua dificuldade em saber o que Gaspard quer ou precisa, uma abertura parece se produzir, e momentos de encontro através do olhar são favorecidos. É o que acontece, por exemplo, quando ela se apropria de uma frase que dissemos certo dia a seu filho: "Você ainda tem tempo" - frase que ela passa a lhe repetir. A questão do olhar aparece nessa relação articulada com a antecipação e a hipótese maternas, pois seu impedimento de se estabelecer é acompanhado por uma dificuldade da mãe em lhe formular uma hipótese. Contudo, se antes o saber que ela lhe atribuía parecia muito próximo de suas próprias projeções, como se ele não pudesse precisar de algo diferente do que lhe era proposto por ela, essa mãe podia agora se colocar numa posição de questionamento em relação às necessidades de seu filho. Ao mesmo tempo, observamos uma mudança na instalação de Gaspard nesse espaço, que passou a ser colocado mais vezes pela mãe em posições que lhe permitiam dirigir-lhe o olhar.
Com base nisso, podemos refletir sobre o papel de nosso olhar enquanto terceiro para Gaspard e sua mãe. O olhar da mãe, que é primeiramente dirigido a nós - de fato, ela nos olha muito -, pode, enfim, ser colocado sobre seu filho. Parece-nos que, ao sustentar o olhar da mãe sobre seu bebê, favorecemos igualmente a função materna de antecipação e de formulação de uma hipótese. Deste modo, podemos afirmar que nosso objetivo nessa clínica não é antecipar ou interpretar no lugar da mãe, mas acompanhá-la na criação das condições de possibilidade para que ela possa estabelecer sua função interpretativa - nosso olhar é passível de reenviar à mãe, à maneira do espelho de que fala Winnicott, o que está em jogo na relação com seu bebê.
O papel de nossas observações nesses acompanhamentos consiste em partir do que é dado a ver, ao mesmo tempo pelo corpo do bebê e pelo que faz a mãe, para elaborar nossas intervenções. Tratase principalmente de um olhar que se situa no momento presente do que vivem mãe e bebê no espaço de acolhimento, que é igualmente o tempo inicial da constituição psíquica do sujeito, em que o corpo do bebê é marcado pelo significante. Podemos, com isso, situar nossas intervenções no presente para o futuro e conceber nosso olhar como uma forma de escuta.
A seguir, mediante a questão do espaço, buscamos refletir sobre o espaço físico do acolhimento e a maneira como a criança e a mãe o ocupam. Analogicamente, consideramos o espaço corporal do bebê e o modo como ele habita seu próprio corpo. Seria pertinente supor que a forma como o bebê ocupa esse espaço estaria ligada ao que ele vive na relação com sua mãe? Interrogaremos também a possibilidade de esse espaço assumir um papel continente, em articulação com o holding materno, a partir do qual seria possível sustentar o laço entre mãe e bebê.
A segunda situação clínica é a de Marie, que vem ao acolhimento pela primeira vez aos dez meses, acompanhada por sua mãe. Nossa primeira impressão é de que há uma grande distância corporal entre as duas. Marie se afasta rapidamente da mãe para ir brincar, enquanto esta se instala em um canto da sala, onde passa todo o acolhimento lendo revistas. Ela chega a dizer: "Se ela não me procura, eu também não vou procurá-la". Marie parece, assim, mostrar-nos, com seus deslocamentos, o espaço que se interpõe entre ela e sua mãe. Conversando com esta última, ela pôde nos contar sobre sua difícil situação na França. De origem argelina, veio a este país cheia de sonhos - "Mas quando a gente casa, tem que ter filhos", diz. Ao começar a falar sobre o fato de que sua filha não se interessa por ela, a mãe de Marie parece poder voltar-se mais para esta, olhando-a e interpelando-a com mais frequência. No entanto, Marie não responde a seu chamado, de início, e será necessário algum tempo para que ela possa vir ao encontro da mãe e brincar com ela. Durante um longo período, foi preciso acompanhá-las separadamente, sustentando o laço a partir da posição de cada uma, bem como pelos mínimos gestos de interesse de Marie por sua mãe. Num dado acolhimento, Marie começa a esvaziar uma grande caixa de brinquedos, atirandoos para fora com força. Sua mãe vai ao seu encontro para fazê-la parar, pegando-a pela mão e levando-a para o tapete onde estava. Ela lhe oferece uma bola; um jogo se instala entre as duas e um verdadeiro prazer parece se esboçar. Em outros momentos, elas brincam também em um túnel e com um telefone com fio - elementos que parecem tecer o laço entre Marie e sua mãe. Mas este é um laço frágil, que deve ser sustentado através de palavras que nomeiem esses gestos.
O que Marie parece indicar-nos desde o início, com seus deslocamentos, é a dificuldade da mãe em investir libidinalmente a filha e sua relação com ela. Esse investimento corresponde ao descentramento narcísico efetuado pela mãe sobre seu bebê, o que está na base do prazer que ela experimenta em seu contato corporal com ele (Boukobza, 2007). Acompanhamos, nesse caso, a passagem da ausência de interesse da mãe ao princípio de uma procura de contato. O que pode ter favorecido esse movimento em direção à sua filha?
Evocamos, acima, a importância do holding, de que fala Winnicott, enquanto função ao mesmo tempo física e psíquica por meio da qual a mãe sustenta seu bebê. Allione (2005) salienta a necessidade de um ponto de apoio para que uma mãe seja capaz de sustentar seu bebê, o que ele chama de "holding do holding". O autor situa essa noção como função da instituição terapêutica que favorece um "espaço psíquico". Nesse mesmo sentido, Boukobza (2007) defende uma "clínica do holding" numa unidade de acolhimento para mães e bebês, cujo foco seria acompanhar as mães no cotidiano dos cuidados dispensados a seus filhos.
Deste modo, podemos conceber nosso dispositivo no espaço de acolhimento como uma oferta de holding à mãe. Ocupamos, nessa relação, o lugar de um terceiro capaz de sustentar o estabelecimento do laço, favorecendo o holding materno, bem como a retomada do prazer compartilhado na relação. Em tal contexto, nosso olhar se caracterizou como continente, no sentido de sustentar o olhar da mãe sobre sua filha e servir de suporte à situação. Pudemos, também, considerar o corpo da criança como lugar de encontro, sendo a pulsão o que faz o laço entre ela e sua mãe, a partir do investimento materno.
O terceiro elemento observado neste trabalho é o espaço potencial que se estabelece entre mãe e bebê e que abordamos mediante o eixo da criação, em referência à experiência criativa do brincar. Articulada a este, a separação constitui uma problemática muito presente na clínica com bebês e aparece nela sob diversas formas. A partir da especificidade de nosso trabalho no espaço de acolhimento, interrogaremos nossas intervenções no tocante a essa questão. Examinaremos a separação em sua relação com a instauração do espaço do brincar entre a criança e sua mãe, o qual está no centro de nossa prática.
Em nossa terceira situação clínica, a dificuldade da mãe em se separar de Adam aparece desde o início. Adam tem oito meses e, durante muito tempo, eles virão ao acolhimento várias vezes por semana, sendo com frequência os primeiros a chegar. Nesses momentos, sua mãe nos procura para conversar sobre assuntos do cotidiano, enquanto Adam se afasta, movimentando-se cada vez mais rápido. Assistimos, ao lado dela, seu filho se distanciar, ao mesmo tempo que a escutamos falar de sua "independência" em relação a ela, o que não parece ser vivido sem dificuldade. Essa mãe nos conta que o espaço do acolhimento é o único lugar em que ele pode se afastar, pois fora dali ele está sempre colado a ela. Alguns dias depois, Adam chega ao acolhimento acompanhado pelo pai, com quem ele brinca longamente. Sua mãe vem encontrá-los mais tarde e, ao entrar, pega o filho nos braços dizendo que sentiu sua falta. Ela explica que esta foi a primeira vez que eles se separaram durante o dia e afirma que não foi fácil. Nos acolhimentos seguintes, essa mãe parece aceitar cada vez mais facilmente o distanciamento de Adam. Este se afasta para brincar, depois se volta em sua direção para olhá-la, o que podemos constatar ao lado dela. Sua mãe continua a observá-lo de longe e ele vem, às vezes, ao seu encontro; depois, se afasta novamente. Aos poucos, ela começa a se interessar por outras coisas e olhar em outras direções, enquanto Adam parte em suas explorações.
Podemos supor que o espaço do acolhimento funcionou com terceiro nessa relação, servindo de suporte à função paterna para a mãe, enquanto função responsável por desviar a libido materna de seu bebê. No que concerne à construção do corpo pulsional no laço com o Outro, a presença de um terceiro é fundamental. A função paterna, cujo valor está em sua presença no discurso materno, é responsável pela operação de corte que ela introduz entre a criança e a mãe. É através dela que o corpo do bebê pode receber a inscrição significante do Outro, permitindo à criança aceder ao registro simbólico.
Nosso dispositivo se constituiu, por conseguinte, como um espaço intermediário, que está no centro de nossa prática e que equivale também ao espaço do desejo. Para Lippi (2010), o brincar, em Winnicott, diz respeito à função paterna em Lacan, pois são ambos espaços potenciais. Deste modo, a entrada no brincar corresponde à entrada na ordem do significante, implicando uma perda de gozo.
Assim, servindo de suporte ao olhar da mãe, pudemos favorecer, nesse caso, uma "separação em presença" (Jacintho, 2010). Entendemos a separação como operação psíquica que não se confunde com a separação física entre mãe e bebê. Portanto, o que consideramos a partir dos deslocamentos de Adam não é apenas a distância física instaurada entre eles, mas o que esse distanciamento evoca para sua mãe em relação à separação e a forma como ela o vivencia.
O corpo do bebê está no centro desse trabalho, e as idas e vindas de Adam atestam o fato de que ele se utiliza de nossa oferta de um espaço terceiro. O suporte conferido ao olhar dessa mãe lhe permitiu fazer face à distância instaurada por Adam, assegurando, ao mesmo tempo, o laço entre eles, de modo que a separação não fosse vivida como ruptura. O olhar do acolhedor pode assim favorecer a constituição de um espaço intermediário, que permita à criança advir como sujeito do desejo.
Considerações finais
Concluímos, desta forma, que se podemos falar em olhar preventivo, é no sentido de um olhar que serve de suporte ao olhar materno. No entanto, ele é preventivo apenas na medida em que sustenta a pré-visão efetuada pela mãe, ao interpretar as expressões corporais de seu bebê como uma demanda que lhe é endereçada. Além disso, ao concebermos o corpo erógeno como resultado de uma coconstrução entre o sujeito e o Outro, podemos orientar nossas intervenções visando a sustentar o estabelecimento desse laço e favorecer a instauração do olhar materno.
O trabalho em prevenção passa, então, necessariamente pela escuta e por um certo olhar sobre o corpo do bebê, procurando promover espaços de desejo e possibilidades singulares de experiências criativas. A prevenção assim concebida opera no sentido de acompanhar a constituição psíquica do sujeito a partir do seu laço com o Outro, no qual se inscreve a construção do corpo erógeno e em que o olhar materno assume um papel fundamental.
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NOTAS
1 Artigo baseado no Mémoire de Recherche realizado na Université Paris Diderot, sob a orientação de Alain Vanier, e intitulado Clinique de la prévention: quel regard sur le corps du bébé? (2011).
2 Chamado L'îlot-Bébés e situado no 13º arrondissement de Paris.
3 Todas as citações cujos textos originais estão em francês são de tradução livre da autora.
4 Falamos em situações clínicas devido à impossibilidade de desenvolver no presente artigo os casos clínicos apresentados em nosso Mémoire de Recherche, sendo eles aqui abordados apenas de forma ilustrativa.
Recebido em julho/2012.
Aceito em setembro/2012.