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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.19 no.2 São Paulo ago. 2014

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v19i2p294-308 

DOSSIÊ

 

Espelhos no autismo: alicerces para a criação de um estofo imaginário

 

Mirrors in autism: pillars of the construction of an imaginary padding

 

Espejos en el autismo: pilares de la constitución de un relleno imaginário

 

 

Marina Bialer

Psicóloga. Doutora em Recherches en Psychopathologie et Psychanalyse pela Université Paris 7 – Denis Diderot e doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto aborda o papel dos espelhos como alicerces para a criação de um estofo imaginário no autismo. Por meio da literatura de Tito Mukhopadhyay, demonstra-se a função psíquica do espelho como alicerce para uma alienação imaginária a um outro não humano, evidenciando a viabilidade da invenção de um estofo imaginário no autismo que pode ser o apoio para a construção do ego e da imagem de si próprio.

Descritores: psicanálise; autismo; gozo; imaginário; espelho.


ABSTRACT

This paper discusses the role of mirrors as foundations for the creation of an imaginary padding in autism. Through the literature written by Tito Mukhopadhyay, we show the psychic function of the mirror as a foundation of a transfer to another imaginary non-human, demonstrating the feasibility of the invention of an imaginary padding in autism that can be the support to build the ego and the self-image.

Index terms: psychoanalysis; autism; jouissance; imaginary; mirror.


RESUMEN

En este trabajo se aborda el papel de los espejos como bases para la creación de un relleno imaginario en el autismo. A través la literatura de Tito Mukhopadhyay se discute la función psíquica del espejo cómo base para una transferencia a otro imaginario no humano, mostrando la viabilidad de la invención de un relleno imaginario en autismo que puede ser el apoyo para construir el ego y la imagen de sí mismo.

Palabras clave: psicoanálisis; autismo; goce; imaginario; espejo.


 

 

INTRODUÇÃO

Tito Mukhopadhyay, um jovem diagnosticado com um quadro severo de autismo, com uma sintomatologia manifesta de comportamentos característicos do autismo de baixo-funcionamento, não-verbal, começou uma produção literária para expressar seus pensamentos e sentimentos. Desde os 8 anos de idade, Tito tem escrito estórias, poemas, contos e reflexões autobiográficas, nos quais se encontram objetos com função de espelhamento.

Acho interessante utilizarmos a imagem de um GPS imaginário, ideia desenvolvida por Verdick e Reeve (2012), para pensarmos, no autismo, a necessidade da invenção de uma compensação imaginária pela falta de um GPS significante em decorrência da não incorporação do significante primordial estruturante. Esta dificuldade no campo imaginário tem sido abordada por outras vertentes não psicanalíticas por meio da análise de anomalias do funcionamento dos neurônios espelhos. Apesar das divergências teóricas, ambas as elaborações apontam para um campo imaginário com alicerces frágeis no autismo. A necessidade de um apoio compensatório, encarnado nos personagens duplos e nos espelhos, é uma constante na clínica do autismo e uma característica marcante na literatura de vários autistas. O autista precisa realizar compensações imaginárias que deem consistência a seu ego e à criação de uma imagem do corpo próprio e do pequeno semelhante. A construção de uma identificação imaginária compensatória que permita ao autista adquirir um estofo no campo imaginário é o percurso de construção de consistência imaginária que pretendo abordar no presente texto, por esta invenção literária realizada por Tito.

 

A instabilidade no campo imaginário: o derretimento das imagens no espelho, o aparecimento de transparências e o medo da perda da sombra

No conto "The window of my world" (Tito, 2011c), a sombra surgiu como um personagem que aparecia durante o dia, produzindo um sentimento de segurança e de companhia para Tito. À noite, no entanto, Tito perdia sua companhia-sombra, que desaparece na escuridão, e ele era invadido por um sentimento de desespero, ao se encontrar sozinho, em lugar nenhum. No texto autobiográfico "Shadow the color of my scream", Tito (2011a) relata que, quando tinha entre 2 e 3 anos, o desaparecimento de sua sombra, com a escuridão, originava nele o temor de perder a própria existência pois ele vivia tal perda como a perda de uma parte do corpo próprio. Quando, por incentivo da sua mãe, Tito começou a desenhar as sombras de seu corpo no chão, ele sentiu alívio dessa angústia após a descoberta de que a sombra desenhada de seu corpo permanecia existindo independentemente da presença do corpo em si. O traço da sombra, persistindo independente do objeto de origem, originou o que Tito descreve como a emergência do sentimento de uma história pessoal.

Após a realização desse destacamento da imagem do objeto real, Tito começou a desenhar a sombra de inúmeros objetos. Se por um lado, após realizar esse tratamento imaginário dos objetos, ele pôde começar a imaginar estórias das imagens-sombras desenhadas, por outro lado, surgiu, no entanto, uma confusão dessas sombras, que se tornaram indiscriminadas, e Tito não podia mais diferencia-las. Nesse momento, Tito se questionava se as sombras se olhassem no espelho, poderiam se reconhecer nas próprias sombras como singulares.

A questão do não reconhecimento da própria sombra retrata uma não consistência do campo imaginário de Tito, embora possamos notar um importante destacamento progressivo das imagens em relação aos objetos reais. Por outro lado, se as sombras não tinham voz por falta de cor, quando traçadas por Tito, a emergência do traço permitia que surgisse uma voz e que Tito pudesse contar estórias sobre elas. Pode-se apontar um importante trabalho subjetivo tanto na marcação de um traço singular quanto na retomada da possibilidade imaginativa e narrativa de Tito. Por meio das sombras, Tito ressona, para além dos objetos, suas próprias marcações singulares, inscrevendo seus traços na apreensão do real.

Em "Shadows don't tell stories", Tito (2011a) descreve a sombra no papel de duplo, inspirador de confiança e segurança, cujas ações eram previsíveis, e relata suas reflexões sobre o porquê da sombra não poder contar estórias. Tito deduz que isso ocorre porque a sombra não ter uma cor própria. Ele conclui que as sombras precisam pegar emprestado dos objetos as cores para depois transformá-las no escuro-padrão, sem direito à marca original da cor de cada objeto singular. Além disso, Tito ressalta que sua própria sombra sobre um objeto poderia retirar dele a possibilidade de ser escutado, apagando sua cor singular. Este processo de silenciamento das cores originais produzido pelas sombras, inclusive a do próprio Tito, pode sinalizar o apagamento da dimensão do traço unário, singular, dificultando a imbricação com o campo simbólico significante. Por outro lado, a sombra também emerge como o alicerce, duplo imaginário, que pode apoiar compensações no campo imaginário, permitindo o surgimento de estórias. Tito começa a se interessar cada vez mais pelo jogo de imagens que podem ser criadas nas interpelações entre as várias reflexões entrecruzadas por múltiplos espelhos, origem de segredos entre os espelhos e origem de histórias familiares, o que aponta uma modalidade de tratamento imaginário que desemboca em um acesso ao campo simbólico, englobando a invenção narrativa.

Outra faceta das sombras é relatada por Tito (2011c) no conto "All through the rainbow path". Diante da escuridão, surgiu um fantasma que permanecia existindo apesar do desaparecimento da luz e com quem o narrador (encarnando o próprio Tito em terceira pessoa) estabeleceu uma relação de intimidade. O fantasma produzia um sentimento de familiaridade e de proteção, em oposição à total escuridão noturna. É interessante apontar que o fantasma parece permitir a Tito uma localização do gozo, em um enquadramento-encorpamento do objeto escópico no duplo-fantasma, o que lhe produz uma tranquilidade, em uma estabilidade ainda muito frágil do campo imaginário.

Ainda nesse conto, o narrador colocou um grande espelho na frente do fantasma para que ele pudesse ver sua imagem refletida no espelho. O espelho, no entanto, não mostrou a imagem do fantasma ou o fantasma não conseguiu se reconhecer em sua sombra. A opacidade do espelho e a impossibilidade de reconhecer a imagem como própria são relatadas em concomitância com o fato de o rosto de Tito ser percebida como transparente, o que sinaliza a não consistência do campo imaginário. Tito relata sua angústia com a vivência do derretimento de sua própria imagem refletida no espelho, concomitante à transformação do espelho real em uma mera parede totalmente oca. Nesse conto, há fenômenos frequentes da transformação dos objetos e das imagens refletidas em substâncias transparentes. Além da percepção escópica de transparência, Tito experiencia um mundo sem corpo, paralelamente à percepção de si mesmo, principalmente de sua face, tornar-se transparente.

As palavras também podem sofrer essa transformação, tornando-se transparentes como bolhas de sabão. Essas palavras sem cores podem, no entanto, ser sentidas por um trabalho de inspiração e expiração que as coloca no sangue de Tito. Já as palavras coloridas não são sentidas pela respiração, mas transmitidas ao se ligarem umas às outras. Quando transparentes, sob a forma de bolhas de sabão, as palavras criam uma cobertura sobre o coração de Tito, o que lhe faz rir de prazer, sinalizando a viabilidade da dimensão de prazer no manejo da linguagem, desde que não direcionada à comunicação com os outros.

Em "Through the miror", Tito (2011a) relata a importância de um espelho que havia em sua casa, quando ele tinha entre 2 e 3 anos de idade. Ele gostava de olhar o espelho, não em busca de sua imagem refletida ou da imagem dos objetos do mundo refletidos através da janela, mas para procurar suas próprias estórias-histórias refletidas. Através do espelho, Tito podia ouvir as vozes silenciosas, o que incluía tanto sua própria voz, quanto a voz dos objetos, das paredes do cômodo e do chão. A partir do espelhamento, as bordas do espelho enquadram o objeto pulsional voz, permitindo que, pelo efeito de reverberação dos sons das palavras das estórias que eram contadas, Tito pudesse se apropriar parcialmente do objeto voz.

O objeto pulsional olhar também era parcialmente localizado nas bordas do espelho, uma vez que as vozes silenciosas se comunicavam em uma linguagem de cores. As estórias espelhadas eram coloridas e os sons tinham diversas cores que se comunicavam entre si.

O espelho sempre podia ouvir as vozes silenciosas, mas Tito somente conseguia ouvir as vozes quando ficava frente ao espelho e ia para o outro lado, atravessando o espelho em direção às imagens coloridas. Esse objeto tinha a propriedade de, em alguns momentos, retirar as cores dos objetos, tornando transparentes os objetos cujas cores foram absorvidas.

Ao contrário das vozes feitas de silêncio, havia vozes feitas de sons, que não podiam atravessar o espelho e adentrar o mundo do reflexo, porque, não tendo cores, não podiam ser refletidas. Por exemplo, quando Tito tentava dizer mentalmente para o espelho as palavras que sua mãe queria lhe ensinar, como ele não sabia qual cor essas palavras tinham, não podia senti-las e o espelho era incapaz de refleti-las. Podemos apontar nesse fato uma das consequências da retenção do objeto voz que não é colocado no campo do Outro, o que alicerça as dificuldades de Tito quanto à posição enunciativa e às palavras do Outro da linguagem materna.

Em outro conto, intitulado "Following the belief", Tito (2011a) realiza a descrição do método inventado por sua mãe, quando ele tinha 3 anos de idade, que consistia em refletir em um pequeno espelho portátil os objetos pelos quais Tito se interessava. Ao mesmo tempo em que o espelho refletia a imagem desses objetos, a mãe de Tito narrava algo sobre o que viam. É interessante apontarmos o deslocamento do real em direção ao imaginário introduzido pela mãe de Tito, ao espelhar os objetos, concomitantemente às palavras ditas, ao campo da linguagem marcado por meio de suas narrações e comentários.

No conto "The window of my world", Tito (2011a) descreve sua dificuldade em mover seus lábios diante da própria imagem. Ele queria dizer algo, ou imitar a verbalização de sua mãe, mas ordenava a seus lábios que falassem e eles permaneciam inertes. Havia uma inacessibilidade dele ao próprio corpo e ao dinamismo, o que buscava compensar na imagem, procurando nela uma fonte de energia, mas a imagem de si próprio permanecia inerte.

Em seu relato, Tito narra que as imagens no espelho tinham uma vida própria e viviam em um mundo separado do mundo que elas refletiam. Quando ele viajava para dentro do mundo das imagens, encontrava um espelho silencioso, porque era um mundo que excluía a voz. No transcorrer desse conto, Tito relata sua decisão de saída do isolamento autístico, correlativa à sensação de que valia a pena viver a vida e contar as estórias das palavras e dos números. Surge a ideia de que todas as palavras e números têm uma vida própria, o que se desdobra na imaginarização dessas estórias e vidas. Tito começa a ler e, posteriormente, aprende a escrever e a falar. Após a escrita da primeira parte do livro The mind tree, intitulada "The voice of silence", Tito (2011c) escreve um epílogo no qual relata ter adquirido o sentimento do "eu", ter tecido uma unidade do que ele vivia como suas partes fragmentadas e ter encontrado um método para utilizar sua voz, embora persistisse uma incapacidade da modulação do tom da vocalização. O trabalho de imaginarização permitiu a Tito um ganho significativo da consistência imaginária, o que lhe permitiu a aquisição do ego e um destacamento do real por um tratamento imaginário, que se imbrica a uma invenção simbólica.

 

O espelhamento através do vidro do relógio

No conto "All through the rainbow path", Tito (2011c) descreve sua identificação com um relógio quebrado, fixado na parede de um cômodo. Ninguém esperava nada do relógio, mas Tito descobre que, ao olhar o vidro-face do relógio, ele podia refletir outros objetos do mundo. Apoiado no espelhamento do espelho-vidro do relógio, Tito se transforma em um contador de estórias.

Com esse relógio, Tito aprende e apreende como nascem os reflexos (as imagens) e junto com ele inventa uma zona mista de imagens e imaginações: são estórias refletidas em mão-dupla entre Tito e o vidro do espelho, ressonando o mundo, as ideias, os pensamentos e os sentimentos.

O relógio se torna um Outro compensatório para Tito. É ao relógio que o narrador (encarnando Tito em terceira pessoa) dirige suas questões: é nele que busca informações, estórias e histórias, transformando o relógio em um outro que lhe oferece interlocução e palavras de conforto diante de situações difíceis. Além disso, o vidro do relógio oferece a Tito uma imagem antecipadora, ilusória, que inclui as potencialidades de Tito, que o dota de flores narcísicas. Nessa imagem refletida, Tito pode se ver no futuro, o que lhe desperta tanto o sentimento de esperança quanto a vontade de poder mudar e de se realizar nessa imagem narcísica. É da imagem e da fala que lhe vem do relógio que Tito pode pegar um traço do campo imaginário do Outro – a cor verde – que ele usa para ver a si mesmo e sonhar um mundo no qual possa estabelecer laços com os outros e romper com o sentimento de solidão.

É por meio do relógio que Tito escuta as histórias da humanidade, por meio dessa fonte não humana dos tesouros de linguagem. No transcorrer do conto, Tito tece seus pensamentos sobre questões como o nascimento, a vida, a morte, a inveja, a competição, a alegria e a tristeza. Além disso, há um esboço de apropriação de uma imagem de si próprio, a qual será abordada pelo conto "The broken miror"(Tito, 2011b).

 

O espelho quebrado como apoio para a extensão dos pseudópodes

No início do texto "The broken mirror", o espelho quebrado é a única possibilidade de interlocução existente entre o cômodo solitário e o mundo. No cômodo, há também outros objetos além do espelho quebrado, mas são objetos mudos, observadores, presos na inércia de movimento, no tempo pausado, aprisionados dentro do cômodo. Existe a dinâmica do tempo que passa, do espaço fora do cômodo, mas eles só podem ser apreendidos por meio do reflexo do espelho.

O espelho quebrado é a face do cômodo que permite a Tito se ver e poder se dar conta de suas próprias mudanças com o passar do tempo. O espelho quebrado é um espelho esquecido na maior parte do tempo, ocupando, no entanto, um lugar estável e uma posição central nesse ambiente esquecido, nessa casa ancestral, que só se dá conta da passagem do tempo e da dinâmica do mundo externo pela imagem que o espelho reflete. É o espelho quem "escuta" o relógio que marca a passagem do tempo, ao mesmo tempo em que tudo permanece imutável no ambiente.

A localização do espelho quebrado no cômodo implica algumas singularidades sobre as possibilidades e limites do que pode ser acessível a sua apreensão. Há nele um ponto-cego cuja reflexão de uma imagem é impossível porque está fora do campo de visão do espelho. Como o cômodo só pode ter acesso à sua imagem por meio do espelho, o ponto cego do espelho implica uma inacessibilidade do cômodo a uma parte de si mesmo. Além do ponto cego, na parede, encontram-se duas fadinhas fixando o olhar uma na outra. Tito explica que elas nunca precisam se olhar no espelho por já terem acesso à imagem uma da outra em seu entreolhar.

Nesse ambiente, embora os outros objetos sejam silenciosos, todos têm uma intensa vida psíquica: um objeto "tira sarro do outro", os objetos têm orgulho, conspiram uns contra os outros, em conluio com o espelho. O espelho, todavia, é o único que pode "escutar" e refletir uma dimensão existencial de dor, de prazer e de indiferença. Podemos apontar, neste sentido, o fato de que o espelho tem uma complexa função de espelhamento, reflexivo da imagem, mas também de reverberação de todos os sentidos, ecoando vozes, fazendo vibrar sensações e pensamentos, que, por seu reflexo, ganham uma nova dimensão.

O espelho demonstra ser um importante auxílio para a extensão dos pseudópodes em direção aos outros objetos e pessoas. O uso desse objeto no conto é um apoio autoinventado que permite o contato com o mundo e personifica vivências psíquicas, possibilitando o contato com o afeto espelhado no outro. Por essa personificação, há uma identificação mimética que possibilita uma dinamização subjetiva, e o favorecimento da aquisição de uma vitalidade por meio desses apoios imaginários. O cômodo pode, pelo espelho, realizar a extensão dos seus pseudópodes em direção aos objetos e pessoas.

É interessante apontarmos o fato de que Tito manifesta intensa dificuldade em se comunicar oralmente com as outras pessoas, o que nos permite considerar o presente texto como retrato de uma laço viabilizado com os outros, ainda que haja a necessidade para Tito da manutenção de um encapsulamento psíquico parcial, ao menos no que diz respeito à necessidade de retenção parcial do objeto pulsional voz, que não é situado no campo do Outro.

O espelho alicerça pontes com os outros, desde que preso dentro do cômodo, porque estabelece bordas, fronteiras de segurança, que exercem a função de um apoio egoico de defesa. Se, por um lado, o cômodo personifica uma fortaleza, a existência do espelho que reflete a imagem, através da luz e das estórias que entram pelas janelas, torna o espelho o responsável por permitir as entradas e saídas do espelho para fora da casa. Se não fosse o espelho, o cômodo seria uma prisão, um mundo totalmente isolado. Desse modo, a personificação no espelho permite à voz narrativa ter um contato por procuração com a vitalidade espelhada, viabilizando o estabelecimento de uma ponte com o mundo compartilhado.

Ao mesmo tempo em que permite o contato com o mundo e realiza o registro do que é percebido, o espelho realiza uma função de escudo, de proteção e filtragem do que não será registrado. Outra importante função exercida pelo espelho de Tito é a mnemônica, registrando fatos e sendo capaz de pensar sobre eles, estabelecendo um arcabouço de fatos e lembranças pessoais.

Como tudo passa pelo crivo do espelho antes de atingir o cômodo, ele exerce o importante papel de porteiro ou guardião da casa. Nessa função de segurança, o espelho é responsável por prevenir qualquer tipo de overload sensorial e afetivo, por meio de uma reverberação que trata e elimina eventuais tsunamis perceptivos e afetivos.

Se, por um lado, o espelho ameniza o gozo em excesso por falta do tratamento significante, por outro lado, reflete sensações e percepções que seriam inaudíveis sem sua presença, o que retrata o outro lado da moeda da falta da crochetagem do gozo no significante no autismo. Nesse sentido, o espelho torna visível, audível e sensível aquilo não conseguiria ser percebido e traduzido em decorrência da ausência da ancoragem significante. O espelho, dessa forma, está na origem de uma permeabilidade do cômodo ao campo sensorial, favorecendo o registro e tradução de estímulos externos e internos, em sua importante função de apoio egoico.

 

O espelho como alicerce para a construção do ego e da imagem do corpo próprio

O espelho, portanto, é um espelho encorpado que retrata um apoio egoico que desempenha várias funções: de proteção, filtrando o que vem do exterior, de motricidade, permitindo uma dinamização do mundo antes inanimado, de detecção do campo perceptivo e de tradução deste, de reflexão de uma imagem dos outros semelhantes e de si mesmo e de estabelecimento de pontes de contato entre o mundo real e o imaginário.

A formação do espelho de Tito está imbricada ao surgimento de uma unidade gestáltica alienada à alteridade da imagem especular do outro. A imagem refletida dos objetos-outros no espelho lhe serviu como apoio para a constituição da imagem de si próprio e para a apreensão de si mesmo e das próprias funções corporais.

No ser humano, há a necessidade de uma alienação à imagem de um outro para a constituição do ego, sendo que podemos observar no espelho da literatura de Tito este processo de alienação do cômodo que só pode ser apreendido através do espelho a partir do momento em que ele surge no aparelho psíquico. A constituição do ego permite uma modalidade de apropriação do corpo próprio e de novas funções psíquicas, tal qual evidenciamos em Tito, nesse espelho que reflete muito mais do que o campo escópico.

No âmbito da tessitura da imagem do corpo próprio, podemos apontar a importância do espelho para o contato do cômodo consigo próprio. Pelo espelho, não só o cômodo pode construir uma imagem de seus outros objetos, mas também uma coletânea refletida de cheiros, de sentimentos, de ideias e pensamentos das outras partes do cômodo. A descrição, que Tito realiza do espelho, remete à função do olhar abarcando um espelhamento de imagens, de ressonâncias afetivas e das ideias dos outros, o que estabelece um ego ancorado nas várias facetas da apreensão do corpo próprio.

O acesso via o espelho permite a aquisição de uma consistência imaginária por meio dessa personificação dos outros nesse registro imaginário. O destacamento do real e da imbricação desse com o imaginário, viabilizado pelo espelho de Tito, alicerça uma maior encarnação egoica do espelho, que se apropria das vivências de seus pequenos semelhantes. Além disso, há um ponto opaco do espelho de Tito, o qual, no entanto, não escapa à lógica imaginária, limitando-se a um tratamento imaginário do ponto cego. Desse modo, o ponto invisível no conto permanece colado ao espelho e às características de produção de duplos, e não de alteridades, não se inscrevendo na condição de um objeto (a) estruturante da construção do corpo próprio.

Se por um lado o cômodo pode ter acesso a sua imagem pelo espelho, e possui um importante ponto cego que assegura a estabilidade relativa da imagem e um ponto de inacessibilidade do cômodo a uma parte de si mesmo, por outro lado, o espelho permanece preso à ressonância direta do que vem da imagem, do que é refletido, e não pode se destacar dessa imagem. Podemos ilustrar tal característica pelas duas fadinhas no cômodo, que estão fixas na parede, olhando uma a outra. Elas não olham nada além da imagem, ficando presas em um espelhamento real. As fadinhas retratam uma impossibilidade da procura do sinal de prazer e de consentimento do Outro; a apreensão de si mesmas fica restrita ao olhar do outro (igual a si mesmo) refletido. Mas há um prazer nesse entreolhar, o que indica um importante fato clínico: Tito é susceptível ao campo do narcisismo. Ao contrário de um autoerotismo inacessível aos outros, Tito é suscetível ao investimento narcísico de outras pessoas. Nesse âmbito, a produção literária e a história clínica de Tito corroboram com a hipótese de sua suscetibilidade ao investimento narcísico dos outros semelhantes, embora não tenha instaurado o circuito pulsional, de marcação do Outro em seu circuito.

Nos casos de autistas sensíveis ao campo narcísico, Laznik (2010) aponta a importância de distinguirmos o existente campo do narcisismo em oposição à ausência da instauração do circuito pulsional, especificamente pela falta do terceiro tempo deste, aquele caracterizado pelo fisgamento do gozo no campo do Outro. Nesse sentido, podemos apontar em Tito um trabalho de construção do campo imaginário, que lhe possibilita o investimento na imagem do corpo e do outro, a construção do eu e a aquisição de funções do corpo próprio por essa Gestalt, embora não possa se oferecer como objeto ao gozo do Outro e nem crochetar esse gozo no corpo próprio, precisando recorrer ao investimento em bordas, como nas bordas do espelho, para manejar o campo do gozo. Por falta da instauração do circuito pulsional, Tito necessita encontrar apoios compensatórios, que lhe permitam a localização do gozo no campo imaginário e uma modalidade de tratamento do gozo, pela localização do gozo nas bordas do espelho.

 

O espelhamento e a ancoragem de uma maior consistência imaginária: considerações finais

Podemos conjecturar que o espelho quebrado de Tito não permite a inscrição de um ponto de olhar Outro no qual se espelhar para além de si mesmo e de sua imagem refletida, embora alicerce uma encarnação egoica e uma localização do gozo que pode se alocar na imagem e nas bordas fronteiriças que marcam o contato entre o real e a imagem.

O espelho da literatura de Tito é um organizador, sendo uma Gestalt, uma unidade ilusória dos reflexos e ressonâncias do cômodo e das interfaces deste com os demais objetos do mundo e concretiza bordas nas quais o gozo pode ser localizado. A consistência imaginária, viabilizada pela construção de uma imagem do corpo própria e dos outros, assim como a apropriação de funções egoicas, permite ao espelho de Tito estabelecer pontes mais sólidas com os outros e construir seu estofo imaginário, destacando-se do real, mas não há a inscrição do Outro no campo imaginário.

No presente texto, demonstrou-se como a apreensão de si mesmo, através do espelho, aponta para a existência de um ego constituído e da existência de uma imagem do corpo próprio. Não há a identificação com o traço unário, mas uma identificação imaginária, não simbólica, com a imagem do outro, que permite a inscrição de uma alienação imaginária estruturante para a constituição do estofamento imaginário de Tito. A assunção da imagem de si próprio não é, todavia, correlativa a uma busca do gozo do Outro e não há a inscrição simbólica do ideal do ego, marcado pelo traço do Outro.

Ainda que não seja possível a inscrição do gozo no corpo via o significante (a língua) em decorrência da não incorporação do traço unário, a invenção do espelho permite a Tito uma localização do gozo e um modo de tratamento imaginário desse. A alienação inventada por Tito corrobora com as formulações teórico-clínicas psicanalíticas sobre o espelhamento no autismo: para o autista não é a face da mãe, ou, ao menos, não é preferencialmente o olhar do outro humano, potencialmente marcado pela dimensão do gozo, que estrutura sua alienação imaginária. Qualquer objeto que baseia o espelhamento pode ser o alicerce para essa construção. É o espelhamento nos duplos sombra-fantasma-relógio-espelho, sem a dimensão humana do gozo, que cria uma imagem que permite a Tito uma apreensão de si mesmo e dos outros através do espelho, que ancora importantes processos identificatórios. As imagens dos outros que alicerçaram os apoios imaginários de construção do ego se originaram de diversos objetos, tais quais descritos na literatura de Tito, que fixaram a alienação imaginária na base da construção do campo imaginário no autismo.

A presença dos objetos-reflexivos que exercem a função de espelho real na literatura de Tito demonstra um percurso de construção de um estofo imaginário realizado por meio de sua escrita. O espelho de Tito retrata uma captação da imagem e a formação de uma Gestalt, alicerçada em diversos objetos espelhados, ancorando a construção de um campo imaginário e de uma imagem de si próprio que não tem a imagem de outro humano exercendo um papel privilegiado. Esses objetos inumanos, desprovidos intrinsecamente da dimensão de gozo, são os alicerces para a percepção de si mesmo, para a apropriação das funções corporais e para a construção de uma instância psíquica egoica.

O espelho de Tito demonstra, desse modo, a possibilidade da invenção, no autismo, de um espelho real que seja o formador de um ego e da imagem do corpo próprio, ancorando uma alienação imaginária constitutiva, distinta da alienação realizada por um espelho humano, pautada no olhar Outro e no olhar de outro humano semelhante.

Enquanto os livros de contos foram escritos em terceira pessoa, o livro autobiográfico How can I talk if my lips don't move?, escrito em primeira pessoa, retrata uma apropriação de características que anteriormente precisaram ser elaboradas pelo narrador enquanto um terceiro personagem. Sua literatura autobiográfica sinaliza, nesse âmbito, a existência de um trabalho suplementar, simbólico, para além do destacamento do imaginário em relação ao real, evidenciado no espelhamento nos duplos-espelhos, demonstrando um importante progresso de suas capacidades de elaboração psíquica, resultante do processo de escrita literária.

O fato da construção do estofamento imaginário de Tito ocorrer por meio de sua produção literária escrita nos remete à importância do imaginário como ponte de ancoragem simbólica para Tito. É o vidro-face do relógio e o vidro-face do espelho que lhe trazem as estórias imaginadas e as histórias transmitidas. Além disso, Tito se utiliza dos recursos da cultura escrita para contar suas estórias imaginadas: seus pensamentos, ideias e sentimentos passam primeiro por um tratamento imaginário para em seguida fazer parte de sua tessitura de saber sobre a humanidade.

Pode-se, assim, concluir enfatizando a importância da literatura de Tito para a elucidação da viabilidade da construção de destacamentos do real em direção ao imaginário e de imbricações possíveis entre o real, o imaginário e o simbólico no autismo.

 

REFERÊNCIAS

Laznik, M-C. (2010). Godente ma non tropo: o mínimo de gozo do outro necessário para a constituição do sujeito. Revista Psicologia Argumento, 28 (61), 135-45.         [ Links ]

Le Gaufey, G. (1997). Le lasso spéculaire: une étude traversière de l'unité imaginaire. Paris: EPEL.         [ Links ]

Maleval, J-C. (2009). L'autiste et sa voix. Paris: Éditions du Seuil.         [ Links ]

Mukhopadhyay, T. R. (2011a). How can I talk if my lips don't move?: inside my autistic mind. New York: Arcade Publishing.         [ Links ]

Mukhopadhyay, T. R. (2011b). The gold of the sunbeams: and other stories. New York: Arcade Publishing.         [ Links ]

Mukhopadhyay, T. R. (2011c). The mind tree: a miraculous child breaks the silence of autism. New York: Arcade Publishing.         [ Links ]

Verdick, E., & Reeve, E. (2012). The survival Guide for kids with autism spectrum disorders (and their parents). Minneapolis, MN: Free spirit publishing.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
mbialer@hotmail.com
Rua Dr. Homem de Melo 407/ 71
05007-001 – São Paulo – SP – Brasil

Recebido em outubro/2013.
Aceito em fevereiro/2014.