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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.19 no.2 São Paulo ago. 2014
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v19i2p309-324
ARTIGO
Representações maternas durante uma gravidez patólogica: o caso da anemia falciforme
Maternal representations during a pathological pregnancy: the case of sickle cell disease
Representaciones maternas durante el embarazo con anemia de células falciformes
Flaviana Estrela Maroja CoxI; Bérengère Beauquier-MaccottaII
IPsicóloga, doutora em Psicanálise e Psicopatologia pela Université Paris 7 Diderot (Sorbonne Paris Cité), Paris, França
IIPsiquiatra infantil do Hôpital Necker-Enfants Malades, doutora em Psicanálise e Psicopatologia pela Université Paris 7 Diderot (Sorbonne Paris Cité), Paris, França
RESUMO
As representações maternas são um conjunto de expectativas, fantasias, anseios, medos e percepções da mãe de sua gravidez, de sua futura função parental e de seu bebê. O presente artigo trata destas representações durante a gravidez patológica de mulheres com anemia falciforme. Para isto, uma pesquisa qualitativa foi realizada com cinco gestantes a fim de analisar suas representações, seguindo uma perspectiva psicanalítica. Salienta-se que a observação das representações maternas constitui uma importante ferramenta para a prevenção de distúrbios da relação mãe-bebê. No decorrer do estudo, observamos que as representações maternas podem ser afetadas pela doença materna.
Descritores: representações maternas; gravidez; anemia falciforme; psicanálise.
ABSTRACT
Maternal representations include the expectations, fantasies, desires, fears and perceptions of a mother about her pregnancy, her motherhood and her future baby. This study is an introduction to maternal representations during pathological pregnancies of women with sickle cell disease. For this, a qualitative research was conducted with five women to analyze their representations, following a psychoanalytic perspective. The observation of maternal representations is an important tool in the prevention of disorders in mother-infant relationships. Finally, we observed that maternal representations can be affected by the mother's disease.
Index terms: maternal representations; pregnancy; sickle cell disease; psychoanalysis.
RESUMEN
Representaciones maternas son un conjunto de expectativas, fantasías, deseos, miedos y percepciones de las madres durante el embarazo, con su futuro rol parental y con su bebé. Este artículo trata de las representaciones de las madres durante el embarazo con anemia de células falciformes. Para ello, un estudio cualitativo se llevó a cabo con cinco mujeres embarazadas para examinar sus representaciones, a raíz de una perspectiva psicoanalítica. Téngase en cuenta que la observación de las representaciones maternas es una herramienta importante para la prevención de los trastornos de la relación madre-hijo. Durante el estudio, se observó que las representaciones maternas pueden ser afectadas por la enfermedad materna.
Palabras clave: representaciones maternas; embarazo; anemia de células falciformes; psicoanálisis.
A gravidez é um momento de mudanças corporais, mas também um tempo de preparação para o exercício da maternidade. Enquanto o feto se desenvolve biológica e geneticamente, os pais constroem uma rede de sonhos, desejos secretos, lembranças e palavras em torno dele, especialmente a mãe, que está fisicamente engajada (Wilheim, 1997; Bydlowski, 2000). Em outras palavras, durante esses nove meses, a função da mãe é conter e sonhar o bebê de amanhã. Tais processos são chamados de representações maternas.
O presente artigo visa abordar estas representações no contexto da gravidez patológica, no caso específico da anemia falciforme. Neste estudo, não pretendemos fazer uma revisão vasta do conceito, já apresentada no artigo de Cabral e Levandowski (2011). O artigo de Thá (2004) faz igualmente uma revisão extensa sobre o conceito de representação. Em seguida, faremos uma breve exposição sobre a importância das representações desde a gestação. Continuaremos com uma explicação sobre a doença falciforme e suas representações socioculturais para uma melhor compreensão da pesquisa. Em seguida, detalharemos a pesquisa e as reflexões que surgiram desta. Seguem-se ainda a discussão e as considerações finais.
As representações maternas
As representações maternas são o conjunto de ideias, medos, distorções, pensamentos, expectativas, desejos, sensações e percepções da gestante sobre o seu feto, sobre si mesma no papel de mãe e sobre seu cônjuge como pai. A pesquisa sobre este conceito foi inicialmente desenvolvida por Stern (1991) e Ammanitti, Tambelli, Candelori e Pola (1999).
A futura mãe cria mentalmente um cenário de como ela irá lidar com o bebê e será reconhecida como mãe. Essas representações são construídas a partir de representações conscientes (ligadas ao aspecto sociocultural, ao conhecimento popular do que é ser mãe e do bebê "idealizado") e de fantasias inconscientes (ligadas ao filho edipiano, ao desejo de filho). Além do mais, estas representações não são estáveis, mas sensíveis a distorções (Fonagy & Steele, 1991).
As representações maternas surgem muito antes da gravidez, uma vez que as identificações começaram na infância por meio de jogos infantis. Elas são construídas em três etapas: passado, presente e futuro. Essas representações se desenvolvem mais fortemente durante os períodos de transição para a parentalidade (gravidez, parto e pós-parto), como menciona Benedek (1959).
As representações são assim construídas a partir da percepção dos movimentos fetais, de palavras, de músicas ou de carinhos no ventre materno. A mãe pode, assim, representar o feto e lhe atribuir características atuais, projetando suas representações sobre o seu papel e antecipando a futura interação.
A importância das representações maternas
As representações maternas são "estruturas" de memória que representam uma versão da experiência vivida pela mãe, como um modelo relacional interno que guia as interações comportamentais externas (Zeanah, 2001). Assim, durante a gravidez, as representações dirigem o conhecimento das mulheres na sua relação com o feto e guiam as interações fantasmáticas que dão origem ao bebê imaginário (fantasmado) durante a gravidez (Lebovici, 1998).
Houzel (2004) propõe que o exercício da parentalidade se liga à realidade psíquica de cada um dos pais. Após o nascimento, as interações são mais concretas, mesmo se uma dimensão fantasmática fique sempre presente. Essas representações dependem também de fatores externos e poderão sofrer modificações durante a gestação, no pós-parto e no processo da parentalidade, a partir do encontro com o bebê real diferente do bebê imaginado (Stern, 1991).
Além disso, as representações maternas permitem um lugar no psiquismo materno afim de que o bebê seja subjetivado, sem ser visto apenas como um pedaço de carne e osso. É por meio das representações maternas que a mulher consegue colocar uma distância entre ela e seu futuro filho, preparando-se para a separação após o parto (Raphael-Leff,1991).
Vários autores (Stern, 1991; Raphael-Leff, 1991; Ammanitti et al., 1999; Piccinini, Ferrari, Levandowski, Lopes & De Nardi, 2003) têm enfatizado a continuidade entre o estilo maternal desenvolvido durante a gravidez e o tipo de maternagem após o parto. A mãe se identifica ou se separa da imagem da própria mãe, antecipando a sua maneira de cuidar da criança e criando uma representação de seu estilo maternal. Fonagy e Steele (1991) indicam que, a partir das representações maternas, é possível prever a qualidade da relação mãe-bebê desde a gravidez. Tal ideia é extremamente importante para uma aplicação clínica.
A permeabilidade do inconsciente materno (Raphael-Leff, 1991), também conhecida como "transparência psíquica" (Bydlowski, 2000), é um modo de funcionamento psíquico característico do processo gestacional, definido brevemente por uma afluência espontânea dos conteúdos até então inconscientes ou subconscientes. Esse funcionamento é fundamental para a criação das representações, que proporcionará a transição da mulher em uma mãe "suficientemente boa", alusão ao termo de Winnicott (1966/2006). A "mãe suficientemente boa" proporciona um ambiente adequado para que o bebê possa desenvolver todas suas competências.
Essa passagem reflete o trabalho psíquico feito pela mãe durante a gravidez e resulta no reconhecimento gradual do bebê como um outro (noção de alteridade) em uma dimensão que vai além das representações dos pais (Missonnier, 2010).
Essa transição é oriunda da possibilidade de um desinvestimento gradual do objeto interno (o feto), em benefício da criança, fora da mãe. Mas este processo nem sempre coincide com o nascimento do bebê e pode ser reconhecido como uma passagem para ativar a "preocupação materna primária" de Winnicott (Bydlowski & Golse, 2001).
Winnicott (1956/2000) observou que a "mãe suficientemente boa" autoriza-se a desenvolver a "preocupação materna primária", que é um estado psicológico particular vivido pela mulher desde o final da gravidez até alguns meses depois do parto. A mãe passa por um momento de alienação na função materna, em detrimento do trabalho e das atividades sociais. Neste estado de hipersensibilidade, a mãe está voltada inteiramente para o feto-bebê, em uma forma de identificação entre ela e seu bebê. Winnicott descreve esta preocupação como algo que poderia se comparar a uma doença psíquica, um estado esquizoide, porém normal durante este período, o qual é, de fato, essencial para o exercício da maternidade.
Finalmente, Stern resume que as representações maternas organizam as interações entre a mãe e seu bebê, organizando as fantasias do bebê. Em seguida, são as fantasias do bebê que organizam a interação com sua mãe em uma forma de ciclo interdependente. Essas representações têm, portanto, um papel fundamental no futuro da vida psíquica do bebê (Stern, Lebovici, Jacquemain, Guedeney & Golse, 2001).
Representações maternas na gravidez patológica
Deustch (1945/1969) afirma que o estado fusional na gravidez pode ser alcançado somente se não houver uma influência perturbadora atuando no ego materno. Ela acrescenta que as gestantes de risco têm sentimentos de amargura, de ressentimento e de ódio contra o companheiro e contra a criança que ainda nem nasceu, e de renúncia frente à própria vida, ao invés de desfrutar deste momento. Finalmente, Deustch afirma que a saúde física é importante para que a mulher possa suportar a gravidez sem perturbações emocionais.
Poucos estudos foram feitos sobre as representações maternas em gestantes de risco ou em mulheres grávidas doentes crônicas. Stern, Bruschweiler-Stern e Freeland (1998) afirmam que as mulheres grávidas em casos de gestações de alto risco não se permitem imaginar o bebê em termos muito específicos. Maroja (2011) considera a gravidez com alto risco de prematuridade como "suspensa psiquicamente", sendo o investimento materno muitas vezes limitado e as interações com o futuro bebê geralmente pobres.
A anemia falciforme
A anemia falciforme é uma doença genética e hereditária, legado tanto paterno como materno, considerada como incapacitante e caracterizada pela alteração da hemoglobina. A hemoglobina falciforme é capaz de deformar o glóbulo vermelho, o qual perde sua capacidade de fluir nos vasos sanguíneos, impedindo o fornecimento de oxigênio, destruindo prematuramente os vasos e causando diversas complicações, entre elas, uma anemia aguda, crises dolorosas vaso-oclusivas, infecções bacterianas, necroses e AVCs (Girot, Bégué & Galacteros, 2003).
Ela é também conhecida como "doença dos ossos", em referência à dor nas articulações, sensação descrita como atroz, oriunda das crises vaso-oclusivas. Como as crises são imprevisíveis, o paciente queixa-se de uma espera angustiante pela próxima. O tratamento requer um acompanhamento multidisciplinar, tratamento medicamentoso diário e, em crise, internação com uso de morfina.
A anemia falciforme está presente, especialmente, no continente africano, porém, com os fluxos migratórios e os casamentos multirraciais, a doença tem uma forte incidência no Brasil, nos Estados Unidos e em alguns países europeus. Estima-se que há 500.000 nascimentos de portadores desta doença por ano (OMS, 2006).
Na África, mais de 50% das crianças nascidas com esta doença não festejarão seus cinco anos de idade. A doença é, assim, associada a um grande risco de morte. São crianças conhecidas como "bocas inúteis a alimentar". Sendo assim, ela é muito estigmatizada, principalmente em alguns países africanos, onde a doença pode ser vista como diabólica ou como sinal de má sorte, de feitiçaria ou de punição divina (Lainé, 2004).
Para a medicina ocidental, a anemia falciforme é uma doença hereditária do sangue: ela é transmitida por ambos os pais. Em alguns conceitos, tanto na África como em outros lugares, o sangue é o veículo da vitalidade. O sangue, então, não transmite qualquer doença. No entanto, a vitalidade pode ser atingida pelo ato malicioso de um homem, de um espírito ou pela intervenção divina. A medicina ocidental interfere assim em um conceito muito simbólico (Lainé, 2012).
Em países onde não existe um sistema de saúde público, a chegada da criança doente é uma verdadeira catástrofe econômica. Muitas famílias não falam sobre a doença de seus filhos, sendo uma desonra e vergonha ter o traço genético na família. A doença é, portanto, cercada de tabus.
As mulheres de origem africana são também mais sensíveis ao possível impedimento de gravidez, pois, nas suas culturas, a maternidade é vista como o momento mais importante da vida de uma mulher. A preocupação dos pais de uma menina com anemia falciforme é focada na sua capacidade de procriação, símbolo de riqueza e poder em várias culturas africanas (Fullwilley, 2011).
Já as mulheres nascidas nas Antilhas francesas, em geral, descrevem a doença como menos grave e ligada a um fator de transmissão genética. O sistema de saúde é muito bom e gratuito. Estas representações socioculturais estão presentes na construção da representação da doença e são extremamente importantes para compreender o funcionamento psíquico do paciente e de sua família.
O desejo de gravidez da portadora da anemia falciforme é geralmente marcado, como todos os aspectos da sua vida, pela doença e pelo risco de transmissão genética. Durante a gravidez, as complicações médicas aumentam. Sendo assim, a gestação é considerada de alto risco para a mãe e para o bebê. Se o pai for portador do traço genético falciforme, o feto tem 50% de probabilidade de ter a doença. Uma consulta com um médico geneticista pode ser feita para uma possível interrupção de gravidez, autorizada em alguns países (como é o caso da França), caso o feto seja doente.
Sobre a pesquisa
Com o apoio das maternidades (como o Hospital Necker-Enfants Malades e o Hospital de Saint Denis) e do centro de referência da anemia falciforme (Hospital Henri Mondor), uma pesquisa qualitativa foi realizada com cinco mulheres grávidas portadoras da anemia falciforme, com idades entre 18 e 29 anos. Três mulheres são das Antilhas Francesas e as outras duas são de origem africana. Apenas duas delas trabalhavam e três não moravam com o pai do bebê. Todas ficaram hospitalizadas de alguns dias a semanas durante a gravidez devido à doença falciforme. Três mulheres têm histórico de aborto espontâneo ou voluntário.
Para este estudo, utilizamos o IRMAG entrevista sobre as representações maternas, elaborado por Ammanitti et al (1999) e, classicamente, usado durante o sétimo mês de gravidez. O IRMAG se insere em uma linha de trabalho que se baseia nos avanços teóricos seguintes: a gravidez é um processo evolutivo no desenvolvimento da identidade feminina; a gestação envolve mudanças substanciais no mundo representacional da mulher grávida, e ainda, as fantasias parentais sobre seus filhos são sistematicamente construídas a partir das experiências de relacionamento com seus pais.
A entrevista é composta de 41 questões e abrange seis pontos: o desejo de gravidez na história da mulher e do casal; as emoções do casal em torno do anúncio; o efeito psíquico das mudanças devido à gravidez na vida do casal e em relação à família, bem como as mudanças corporais; as percepções, as emoções positivas e negativas da gravidez; as fantasias maternas e paternas: a expectativa da parentalidade; e, finalmente, uma perspectiva histórica da mãe em relação a seu passado.
Um sistema de codificação de representações maternas é proposto pelos autores, no qual três categorias foram definidas: representações maternas "integradas/ equilibradas", "reduzidas/estreitas" ou "não-integradas/ambivalentes". Nós utilizamos o sistema de codificação proposto pelo teste. Porém, em complemento, elaboramos uma grade de análise temática das entrevistas. Nossa hipótese foi a seguinte: as representações maternas são afetadas pela gravidade da doença e pela vivência de uma gravidez patológica.
As representações da gravidez
Com a descoberta da gravidez, as mulheres aqui vistas descobrem um sentimento de "surpresa" triste e alegre, marcado pela ambivalência. Algumas relataram não terem imaginado que tinham a capacidade de engravidar. Provavelmente, este fato está ligado ao discurso médico entendido na infância: "a doença é muito grave", o que teria sido mal-entendido como: "você não poderá construir um futuro, uma família".
Um ponto em comum surgiu durante as entrevistas: a ausência de contracepção. As gestantes afirmam estar em "choque" ao descobrirem a gravidez, mas, quando perguntamos qual teria sido o método de contracepção usado, nenhuma delas fazia uso. Assim, podemos supor que elas realmente não esperavam ser capazes de engravidar. Uma delas nos diz: "Eu nunca usei anticoncepcional, faz muito tempo que eu tenho relações, mas nunca fiquei grávida. Eu não esperava engravidar... Um dia, engravidei".
Assim, a gravidez, mesmo planejada, é vista como uma grande "surpresa". A capacidade de engravidar foi pensada como algo impossível durante a infância e a adolescência. A. conta: "Quando eu descobri que estava grávida, eu fiquei realmente mal. Ainda não estou bem." "Os médicos disseram à minha mãe que eu morreria antes dos dezoitos anos. Veja só! Estou com dezoito anos e grávida". Vemos no discurso de A. que sua morte era esperada antes dos seus dezoito anos, porém, agora, ela não somente está viva, mas esperando um "nova vida".
Para C. (única que já tem um filho), o desejo de gravidez está provavelmente relacionado à doença, para "testar" a capacidade de engravidar. Sendo assim, a gravidez é entendida como um sucesso, mesmo que seja sua segunda. Na entrevista, ela afirma que sua mãe não esperava ser avó jamais: "Esta é uma gravidez desejada, planejada. Eu estava feliz desde o início, mesmo quando me sentia mal.... Eu tenho muito orgulho de vestir as roupas de grávida, de ser mãe. Finalmente, consegui isso!"
Este momento é igualmente vivido como uma agravação da doença. "Estou cansada o tempo todo e tenho mais crises. Agora, eu faço menos coisas" (D.).
"Desde o início, senti que algo estava errado. Na noite de 31 de dezembro, eu engravidei. No dia 14 de janeiro, perdi a consciência e fui parar na UTI, devido a uma anemia grave... E lá, eu também descobri que estava grávida.... Eu já fiz 2 abortos antes. Sou muito doente para enfrentar uma gravidez.... Eu não posso cuidar do meu filho... Eu vivo com dor" (C.).
Vemos, por meio dessas falas, que os sintomas físicos são fortes ao longo da gestação e as mulheres desfrutam pouco deste momento. Todas tiveram dificuldade para fazer uma entrevista mais longa do que uma meia hora (por isto, o IRMAG foi aplicado em duas etapas). Elas queixavam-se de cansaço extremo e de estarem vivendo uma experiência mais dolorosa do que o esperado. Para elas, estar grávida é estar mais doente e mais dependente. A regressão típica das mulheres grávidas é bastante presente aqui. A gravidez é, assim, marcada pelo aparecimento de crises dolorosas, que favorecem uma ansiedade maior do que fora deste momento. B. nos diz: "Eu percebi que estava grávida quando tive mais crises de dor. Eu já tive três crises durante esta gravidez".
As representações do parto
Algumas grávidas aqui vistas descrevem suas representações de parto com fantasias relacionadas à doença falciforme. A crise vaso-oclusiva parece ajudar na compreensão do parto. Para duas delas, a dor do parto pode ser controlada devido a seu conhecimento prévio da dor aguda. Uma delas nos diz: "Eu não tenho medo do parto. Eu sei que vai ser doloroso. Eu sei o que é que um episódio de dor. Dor, crises, eu conheço" (D.). "Eu conheço" soa como "eu controlo a situação". Elas também se apoiam nos profissionais de saúde, pois estão familiarizadas com o mundo médico.
Para outras duas, o parto é fantasiado como um "grande crise vaso-oclusiva" que será desencadeada neste momento. Uma dela nos diz "Tenho medo de desencadear uma grande crise falciforme durante o parto" (B.). A. nos fala de agonia, de medo. Elas descreveram um medo intenso e duradouro, possivelmente uma angústia de morte. Suas fantasias são, certamente, ligadas a seu próprio histórico de dor. O medo do parto é bastante presente entre as gestantes, mas aqui supomos que o conteúdo da fantasia está mais fortemente relacionado à doença ou ao conhecimento das possíveis complicações médicas do que ao medo clássico do parto.
As representações do feto
As representações do feto centram-se sobre as características atuais da criança interna. Os movimentos fetais indicam, por exemplo, se o feto é ativo. Essas representações também englobam as fantasias maternas sobre a personalidade e comportamento do seu futuro bebê.
Para as futuras mães vistas na pesquisa, as representações sobre a futura criança são fortemente relacionadas a sua saúde. Embora o diagnóstico pré-natal tenha revelado que o feto seja saudável, restos de preocupações sobre a saúde continuam a ser entendidos em seus discursos. Durante as entrevistas, muitas vezes, a questão da saúde do futuro filho ressurge e, portanto, percebemos que o exame médico não conseguiu tranquilizá-las.
B. nos relata o exame e se diz "preocupada com a saúde dos bebês, apesar de eu já ter feito a amniocentese e saber que ambos não são doentes". A. é a única que ainda não tinha feito a amniocentese durante a entrevista, mas faria em breve. No início do questionário, ela fez muitos comentários sobre as questões ligadas à imaginação do futuro bebê, respondendo: "Mas como eu sei? Que coisa... Que pergunta idiota (risos)!". Provavelmente, esta foi uma forma de resposta que a protege e impossibilita uma relação com seu feto. No final, ela afirma que, de fato, pensa muita no bebê e se pergunta: "Será que o bebê nascerá doente?".
C., grávida de sete meses, afirma "estar o tempo todo muito ansiosa. Fico preocupada em saber se o meu bebê será deficiente. Enfim, o pai não é "hetero (zigoto)". Estou com tanto medo que eu não conto a ninguém. Eu me sinto presa. Eu não quero ter um bebê que não seja saudável.... Eu oro muito para que o bebê não morra ou não nasça deficiente como eu".
No caso de C., vemos que a "segurança" do diagnóstico não é suficiente confirmando a citação de Pascal "O coração tem suas razões, que a própria razão desconhece". Racionalmente, ela sabe que o bebê não terá a anemia falciforme, porém, a dúvida permanece. Poderíamos pensar em uma identificação desta mãe com o seu feto imaginado unicamente doente como ela?
As representações da função materna
As representações da função materna incluem as projeções da mulher sobre si mesma como mãe da criança esperada, sobre suas futuras interações e a forma de cuidar do bebê, bem como seu estilo materno.
Nas entrevistas, um dos assuntos mais discutidos foi a fadiga considerável vivida por essas mulheres. Percebemos um medo de estarem indisponíveis para cuidar do bebê, mesmo desejando participar dos cuidados.
A culpabilidade de falhar no papel da "mãe perfeita" aparece em alguns discursos. "Eu tenho medo de ficar muito cansada. Mas eu quero ficar com ele o tempo todo, ver seu primeiro dente, sua primeira dança, seu primeiro passo" (A.). E. também se preocupa. Ela se apoia no seu estado físico atual e se projeta no futuro com preocupação: "Eu estou um pouco medrosa... Estou mais preocupada com o bebê. Tenho medo de estar muito cansada para cuidar dele. Eu já me sinto exausta agora".
B., por exemplo, mostra o medo de ser incumbida a cuidar de seu filho, de ser culpabilizada e responsabilizada pela equipe médica imediatamente após o parto. "Tenho medo de ter uma nova crise, ter muita dor novamente. Estou com medo... que depois que eu dê à luz, eu esteja tão cansada que não possa cuidar dos meus bebês, e que eles [os profissionais da maternidade] me forcem a cuidar deles".
C., que já é mãe, se preocupa com a sua possível indisponibilidade devido à doença. Os cuidados maternos serão relegados à irmã. "Quando eu imagino, eu e meu bebê juntos, eu penso apenas na doença. Se eu estarei disponível para ele.... A minha irmã é quem vai cuidar do meu bebê, eu sou muito doente para isso".
Discussão dos resultados
Quando uma mãe pode ser nomeada como tal? Desde a gravidez ou quando ela cuida do seu bebê? Se nós sabemos que o desejo de criança é antigo, a maternagem, ao contrário, começa concretamente a partir da gestação, ou logo em seguida ao parto. George e Solomon (1996) sugerem que o caregiving (sistema de cuidados maternos) começa com duas perguntas fundamentais: "Será que vou ser uma boa mãe? Será que terei um bom filho?" A mulher questiona sua capacidade de cuidar dessa criança e amá-la.
Nos casos vistos acima, como não pensar que a maternidade será difícil com as desvantagens da doença? Que desejo as conduziu, afinal? Tal desejo estaria ligado ao desejo de se reconciliar com o passado?
Em "Sobre o narcisismo: uma introdução", Freud (1914/1976) descreve a função da criança: apagar as feridas narcísicas dos pais. Ele escreve:
A criança terá mais divertimentos que seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram como supremas na vida. A doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação 'Sua Majestade o Bebê' .... A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram o menino se tornará um grande homem e um herói em lugar do pai, e a menina se casará com um príncipe como compensação para sua mãe .... O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior (p. 108).
Com esta afirmação, Freud entende que os pais projetam na criança o fim de seu vazio existencial e a realização de antigos projetos. Assim, será que o bebê viria para dar um sentido à vida destas mulheres com anemia falciforme sem que a doença os atinja? Para elas, o feto parece carregar a esperança de um futuro compensatório para as feridas de sua história, um re-narcisismo. Apesar disso, para a maioria das mulheres aqui entrevistadas, suas representações sobre a futura criança são pobres e pouco construídas. A possibilidade de ter um filho doente, apesar da triagem pré-natal, é uma representação recorrente. Medos e preocupações são quase exclusivamente relacionados com a saúde e o desenvolvimento do seu filho. As representações ficam, assim, restritas à dimensão da saúde.
Na maioria dos casos aqui observados, as gestantes temem se sentir indisponíveis para exercer a maternidade. A preocupação insistente com a própria saúde e a do futuro bebê roubam a cena do momento tão conhecido como "feliz"1. Como elas poderiam estar disponíveis apesar da doença? Elas questionam-se e pensam no futuro de seus filhos, principalmente porque temem não estarem à altura do seu papel, serem dependentes e indisponíveis. No senso comum, sabemos que há uma contradição entre "ser uma mãe doente e eficaz" (Thorne, 1990). Elas se sentem, então, impotentes contra a doença apesar do desejo de serem mães.
As fantasias são também fortemente influenciadas pela possibilidade de transmissão da doença. Será que meu filho passará por tudo que passei? Será que ele nascerá doente ou portador sem sintomas? Aqui há um dado real: a transmissão do gene será de fato feita. Porém, o bebê não nascerá doente se o pai não tiver o gene. Ressaltamos que as mães de origem africana vistas aqui são menos ligadas à noção de causalidade genética.
Os resultados dos casos vistos se aproximaram da categoria "representações maternas reduzidas", proposta pelo teste IRMAG. Este tipo de representação corresponde a uma forma de racionalização. A gravidez é descrita como uma etapa da vida, na qual a mulher não se deixa influenciar por esta. As representações são abstratas, impessoais e com pouco investimento psíquico.
Vemos, assim, que o fato de elas serem portadores de uma doença crônica pode influenciar as representações maternas. Salienta-se que a pesquisa foi realizada com apenas cinco mulheres e, portanto, não devemos generalizar os resultados para a população de mulheres com anemia falciforme.
Considerações finais
O presente trabalho teve como objetivo abordar as representações maternas da mulher com anemia falciforme, destacando as representações sobre sua gravidez e sobre seu futuro bebê. Apesar de sua relevância, observamos que o tema ainda é pouco explorado. Batthika, Faria e Kopelman (2007) apontam a necessidade de uma maior investigação acerca das representações maternas, seja no âmbito acadêmico seja na observação clínica.
O interesse para a realização desse estudo surgiu da necessidade de compreender a gravidez no contexto de uma doença grave que engloba dois aspectos: o fato de ser portadora da doença e o fato de poder transmitir a mesma ao seu bebê se o pai for portador do gene.
Desta forma, qual seria o papel do psicanalista nestas situações? Em psicanálise, não podemos falar de previsão, mas podemos pensar em prevenção. Não podemos contar com uma bola de cristal para saber como o bebê será acolhido nos casos citados acima. Porém, vemos nos discursos maternos, o medo destas mães de não poderem ocupar o lugar materno. O bebê é igualmente pouco investido narcisicamente quando visto como objeto de doença ou de saúde. Estes aspectos podem ser indicadores de dificuldades da relação mãe-bebê.
Finalmente, insistimos na necessidade de pesquisas nesta temática, pois sabemos que as representações maternas podem influenciar a futura relação mãe-bebê (Stern et al., 1998; Brandon, 2006). Essas representações observadas desde a gravidez podem ser, assim, um precioso "instrumento de trabalho" para o psicólogo que trabalha com intervenção precoce.
REFERÊNCIAS
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NOTA
1. Em francês, as mulheres anunciam geralmente que estão à espera "d'un heureux évènement" (de um feliz acontecimento-evento).
Endereço para correspondência
flaviana.maroja@gmail.com
54 bis, Rue Paul Vaillant Couturier
92140 Clamart France
b.beaquier@macotta.net
rue de Sèvres, 149
75015 Paris France
Recebido em julho/2013.
Aceito em maio/2014.