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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.20 no.2 São Paulo ago. 2015
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v20i2p296-309
ARTIGO
A função paterna na clínica infantil
The paternal function in children's clinic
La función paterna en la clínica infantil
Henrique Abe OgakiI; Maíra Bonafé SeiII
IPsicólogo pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, PR, Brasil
IIProfessora do Departamento de Psicologia e Psicanálise da Universidade Estadual de Londrina, (UEL), Londrina, PR, Brasil
RESUMO
O objetivo deste trabalho é discutir a importância da função paterna no desenvolvimento e na clínica infantil. Tal função pode ser entendida, dentro da psicanálise, como responsável pelo amparo à mãe e pela introdução dos limites necessários ao bom desenvolvimento emocional. No caso de Marcelo, o terapeuta assume essa função, ajudando-o na organização e adotando uma postura firme que sustente os limites para o menino, partindo-se do vínculo estabelecido. Esse tipo de intervenção trouxe resultados positivos nesse caso, de forma que destaca-se a importância da função paterna e a possibilidade do terapeuta assumi-la quando isso se faz necessário.
Descritores: psicanálise; função paterna; psicoterapia da criança; Winnicott.
ABSTRACT
The objective of this paper is to discuss the importance of the paternal function in children's development and clinic. Such function may be understood, in psychoanalysis, as responsible for the support of the mother and the introduction of the limits needed for good emotional development. In Marcelo's case, the therapist takes this role, helping in organization and embracing a rigid position that supports the limits for the boy, starting from the established bond. This type of intervention brought positive results in this case, so that stands out the importance of the paternal function and the possibility of the therapist to take this role when it is necessary.
Index terms: psychoanalysis; paternal function; child psychotherapy; Winnicott
RESUMEN
El objetivo de este trabajo es discutir la importancia de la función paterna en el desarrollo y la clínica de los ni&nitlde;os. Esta función puede ser entendida, dentro del psicoanálisis, como responsable del apoyo a las madres y de la introducción de límites necesarios para el adecuado desarrollo emocional. En el caso de Marcelo, el terapeuta asume esta función, ayudándole en la organización y tomando una posición firme que soporte los límites para el ni&nitlde;o, a partir de la relación terapéutica establecida. Este tipo de intervención ha dado resultados positivos, por lo que pone de relieve la importancia de la función paterna y la posibilidad del terapeuta tomarla cuando sea necesario.
Palabras clave: psicoanálisis; función paterna; psicoterapia de ni&nitlde;os; Winnicott.
Linhas introdutórias
Este trabalho tem por objetivo discutir a importância da função paterna no desenvolvimento infantil e suas implicações clínicas, a partir da discussão de um caso de atendimento infantil conduzido por um dos autores. Tal atendimento foi realizado a partir de um referencial winnicottiano e se insere no contexto de uma pesquisa que busca investigar aspectos e fenômenos implicados na psicoterapia psicanalítica empreendida no serviço-escola de psicologia de uma universidade. Ressalta-se, então, que este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual de Londrina, com assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por parte dos participantes.
Primeiramente, buscou-se na literatura psicanalítica o que os autores, clássicos aos atuais, têm a dizer sobre o pai e sua função, demonstrando sua importância no desenvolvimento infantil. O enfoque deste trabalho centra-se na teoria de Winnicott, porém esse é um tema que perpassa toda a teoria psicanalítica, de forma que se buscou apresentar as proposições de outros autores para tecer uma articulação. Em seguida, apresenta-se um recorte do caso no que diz respeito à temática proposta a ser discutida em relação à teoria apresentada.
O pai na psicanálise
A temática do pai aparece desde os primórdios da teoria psicanalítica com Freud, criador da psicanálise. Senna, Bar, Gomes, Guilhon e Kupferberg (2010) postulam três momentos distintos na produção freudiana a respeito do pai, sendo esses O complexo de Édipo, Totem e tabu e O homem Moisés e a religião monoteísta.
No primeiro momento, a concepção de pai, baseada em relatos clínicos, principalmente de pacientes histéricas, apontavam para uma figura perversa com um importante papel na gênese das patologias psíquicas. Logo, Freud deu continuidade às suas teorizações, postulando a sedução como uma produção fantasmática e não real. A partir desse ponto, o autor começa suas elucubrações a despeito da sexualidade infantil, que vai culminar na formulação da teoria do complexo de Édipo. Nesse momento, o pai é visto como uma figura amada e odiada, sendo objeto de desejo e identificação, assim como um rival pelo afeto e atenção da mãe (Freud, 1905/1996a).
No segundo momento, o pai é entendido a partir do mito científico da horda primitiva, a qual era comandada por um único homem que detinha o direito sobre as mulheres do grupo. Tal pai é morto e devorado pelos filhos, que incorporam esse pai ideal, sendo esse o começo da organização social, das restrições morais e da religião. A partir daí instala-se o totem, representante do pai, cujo lugar fica vazio, e o tabu, que são as proibições de assassinato do pai e de relações com mulheres do mesmo totem. O ato fundante da cultura é visto como gerador de culpa, responsável pela introdução da lei e da ordem, que vai sendo transmitida de geração em geração (Freud, 1913/1996b).
No terceiro momento das teorizações de Freud sobre o pai, esse aparece representado por Moisés e o monoteísmo, como símbolo da ausência, do morto e do estrangeiro. Moisés, um estrangeiro, é morto e instituído como pai, disseminando o monoteísmo. O deus de Moisés não tem nome nem semblante, representando um avanço da intelectualidade sobre a sensorialidade. Assim, no lugar da percepção sensível, surge um investimento em processos intelectuais superiores, ou seja, uma renúncia à satisfação pulsional direta e um avanço no sentido da civilização (Freud, 1939/1996c).
Saindo das teorizações do pai da psicanálise, outro autor que apresentou sua contribuição sobre o que seria o pai e qual é sua função foi Winnicott. Diferentemente das concepções de Freud, que coloca o papel do pai essencialmente como um terceiro, que opera um corte na relação mãe-filho, introduzindo a lei e inserindo a criança no social, tendo a centralidade na estr uturação da personalidade pautada na sexualidade, Winnicott vai entender que o pai já está presente na vida do filho antes disso, tendo diferentes funções ao longo do processo de amadurecimento pessoal da criança (Rosa, 2009).
Isso também está de acordo com Szejer e Stewart (1997), que colocam a inserção do pai na vida do filho muito antes, pensando que toda a história dos pais, seu encontro e a forma como a gravidez vai sendo vivenciada e significada constituem a pré-história da criança. Os pais se preparam psiquicamente para a chegada do filho, desenvolvendo o projeto da gravidez, que pode ser consciente ou não, de forma que quando a criança nasce ela já possui um lugar e uma história na vida desses pais. Pode-se pensar que o sujeito já inicia seu processo de subjetivação antes mesmo do nascimento, tendo um protótipo do que virá a ser sua subjetividade presente no imaginário dos pais. Assim, as funções maternas e paternas também se iniciam muito antes do nascimento, no trabalho de construção desse lugar psíquico para a criança que vai vir a fazer parte dessa família.
Winnicott (1944/1982a) coloca como um dos primeiros papéis do pai ser o provedor de um ambiente suficientemente bom, que transmita segurança e apoio à mãe, para que ela possa se dedicar ao seu bebê e desempenhar bem sua função de cuidado. Assim, no início da vida do filho, o pai pode não ter um grande papel direto nos cuidados do filho, mas tem sua função para que esses cuidados possam ocorrer, assegurando esse ambiente considerado tão importante no desenvolvimento da criança. O autor também atribui grande importância à presença e às ações reais dos pais na vida do filho, sendo que o ambiente suficientemente bom existiria a partir de cuidados efetivos e se expressaria por atitudes concretas nas relações familiares.
Na conferência intitulada "Dizer 'não'", Winnicott (1993/1999a) teoriza sobre como e o porquê de dizer "não" aos filhos. Segundo ele, a primeira etapa da introdução do "não" seria antes do uso da palavra. Assim, os pais criam um ambiente seguro em que o filho esteja protegido do mundo, dizendo "não" aos perigos externos que podem fazer mal à criança, para que esses perigos não se aproximem daquilo que lhes é tão caro, seu estimado filho. Aos poucos, os pais vão permitindo que seu filho entre em contato com o mundo, na medida em que ele esteja preparado. Dessa etapa, resulta o sentimento de responsabilidade para com o filho. A partir daí, a criança começa a entrar em contato com o mundo externo e vai fazendo experimentações, enquanto aos pais cabe a responsabilidade de dizer "não" àquilo que possa trazer algum prejuízo à criança, de forma a assegurar que ela permaneça em segurança.
O pai aparece aqui como um apoio moral. É alguém que sustenta a lei e o "não" da mãe. De acordo com o autor, as crianças gostam de ouvir "não" e não apenas de lidar com as coisas amenas da vida. Porém, para que se possa introduzir o "não", é preciso que antes os pais tenham conquistado o direito de assumir essa atitude firme para com o filho, a partir dos cuidados dirigidos a ele antes dessa fase. O pai precisa se fazer presente na vida do filho, dando apoio e afeto, para que posteriormente possa colocar-se de forma mais rígida com a criança (Winnicott, 1960/1990).
Seria interessante, aqui, citar uma analogia dos limites com a tela de proteção colocada nas janelas dos apartamentos. A criança, quando pequena, começa a caminhar sozinha e a distanciar-se dos pais para explorar o mundo na medida em que sua capacidade e o meio permitem. Nessa época, a criança não tem noção dos perigos que enfrenta ao caminhar desavisadamente, e se encontrar uma janela aberta pode cair. A tela de proteção vem exatamente colocar o limite de até onde a criança pode ir e mantê-la em segurança. Porém, para isso é necessário que exista um olhar para essa criança, um adulto que se preocupe com ela e que garanta que fique em segurança. Assim, a introdução dos limites é importante para a criança, pois demonstra um cuidado por trás dessa atitude. Permite à criança estar protegida e internalizar esses cuidados, passando a poder cuidar de si mesma futuramente.
Outra questão referente ao papel do pai diz respeito à relação que se constrói no núcleo familiar. O pai tem seus direitos enquanto marido e ajuda a mãe a introduzir o filho aos poucos no mundo para que possa ter sua esposa de volta, mesmo que para isso tenha que excluir o filho em alguns momentos. É importante para a família que o pai e a mãe também tenham um bom relacionamento enquanto marido e esposa, pois isso impacta na relação desses com o filho. Também são importantes os momentos entre pai e filho, em que dessa vez é a mãe quem fica excluída, sendo necessário, assim, que haja harmonia na família para lidar com todos os afetos que possam gerar essas exclusões (Winnicott, 1993/1999b).
O pai é retratado aqui como um terceiro que separa a mãe e o filho ao proclamar seu direito sobre a esposa, que em um primeiro momento se encontra em uma relação de dependência absoluta por parte do bebê. Nesse sentido, Winnicott também coloca o pai enquanto representante do exterior, tanto da díade quanto do ambiente familiar, sendo quem liga a unidade familiar à sociedade em geral, por ser aquele que se dirige ao mundo para trabalhar e retorna à casa ao final do expediente, enquanto mãe e filho ficam seguros em casa. Isso ocorre se pensarmos na configuração familiar em que a mãe permanece com o filho no início da vida dedicando-se aos seus cuidados, enquanto o pai continua a trabalhar fora provendo o sustento da família. Essa é uma visão muito pautada no contexto social da época, sendo que atualmente nem todas as famílias mantêm essa configuração.
O aumento contínuo da presença da mulher no campo de trabalho, assim como nos estudos e na universidade, modificou a cena doméstica, dando origem a novas formas de organização das funções familiares e parentais, que podem ser vistas, por exemplo, quando a maternagem é exercida por pais enquanto a mãe está fora trabalhando, ou, quando mães voltam a trabalhar após duas semanas do parto (Ferreira & Aiello-Vaisberg, 2006, p. 137).
Outra função do pai é ser aquele a quem é dirigida a agressividade do filho. A mãe poderia fazer essa função, mas como já carrega muitas tarefas, é preciso poupá-la, ao mesmo tempo em que para o filho é aprazível ter outro a quem dirigir os impulsos agressivos enquanto à mãe é dirigido todo afeto positivo. O pai pode se defender dos ataques da criança e, dessa forma, também ensinar a se defender, mostrando que é possível sobreviver e controlar essa agressividade, que é inerente ao ser humano, sendo uma das fontes de energia do indivíduo (Winnicott, 1939/1982b).
Apresentação do caso
O caso aqui apresentado se trata de Marcelo (nome fictício), um menino de quatro anos que chega ao atendimento com a queixa de ter crises nervosas, gritar, chorar e se jogar no chão. Em um primeiro contato com a mãe, essa contou que engravidou na adolescência, aos 16 anos, de forma indesejada. O pai era um ano mais novo que ela e chegaram a viver juntos até que o filho tivesse oito meses, quando se separaram e a mãe voltou para a casa de seus pais, junto com o bebê. Tempos depois, a mãe viria a se relacionar com outro homem, a quem Marcelo se dirigia como pai. Chegaram a se casar e moraram juntos por um mês, se separando logo após, de forma que Marcelo e a mãe retornaram para a casa dos avós. Nessa casa residiam Marcelo, sua mãe, seus avós e um tio.
Na época em que Marcelo chegou para o atendimento, sua mãe disse que ele não podia ouvir a palavra "pai" que já ficava nervoso e começava a gritar e chorar, o que ela considerava ser um trauma referente a tudo que se passou em sua vida. Durante um período em que a mãe conseguiu um emprego temporário e a avó de Marcelo passou a levá-lo ao atendimento, essa contou que a mãe também necessitava de atendimento, pois sofria de depressão e permanecia o dia inteiro deitada. Segundo a avó de Marcelo, a mãe já havia passado por atendimento psicológico em outra instituição, mas encontrava-se fora de tratamento na época. A mãe concordou com o que a avó havia dito, sendo então encaminhada para atendimento concomitante ao de Marcelo.
O atendimento de Marcelo acontecia duas vezes por semana, seguindo um referencial winnicottiano. O menino possuía uma gaveta no armário que ficava na sala de atendimento onde eram guardados materiais gráficos e alguns brinquedos de uso exclusivo. Também eram disponibilizados jogos e mais brinquedos, que se encontravam em outra sala da clínica-escola, sendo esses de uso coletivo.
Na análise de crianças, a forma de comunicação se dá a partir de jogos, ações e brincadeiras, que são repletos de significado. Pensando, com Winnicott, que o brincar é constitutivo do ser humano, as intervenções e interpretações do analista se dão a partir de um movimento da criança em direção à interação, de for ma que se cria um espaço de experiência que preserva a capacidade criativa do paciente. O objetivo é o brincar em si, cabendo ao analista "sustentar a função do brincar para que se constitua a subjetividade da criança como forma de criar significados próprios no mundo" (Avellar, 2004, p. 52). Assim, o analista deve criar um espaço de confiabilidade que permita o brincar livre, sem interromper a dinâmica própria da criança.
Com relação às formas de atuação do analista, Avellar (2004) elenca alguns instrumentos que podem ser utilizados na análise de crianças, sem perder de foco o próprio brincar, que já possui uma função terapêutica. O primeiro seria a interpretação verbal, ou seja, comunicar verbalmente à criança os sentidos captados em suas ações. Outro instrumento seria a interpretação lúdica, em que o analista utiliza-se da brincadeira da criança para dramatizar a interpretação, passando do plano da ação para o plano verbal. Por fim, a ação interpretativa, que consiste em se utilizar de comunicação não-verbal, ou seja, brincar junto com a criança e intervir no próprio plano físico, corpóreo, como o caso da necessidade de conter a criança.
A partir do referencial winnicottiano, entendemos que a função do terapeuta não é apenas interpretar questões trazidas pelo paciente, pois há momentos em que não é disso que esse precisa, mas também em identificar as necessidades do paciente e poder se adaptar de forma ativa para oferecer um manejo ambiental suficientemente bom para o desenvolvimento emocional (Winnicott, 1984/1989; Telles & Hashimoto, 2011).
Marcelo, o terapeuta e a função paterna
Na primeira sessão, Marcelo se apresentou muito agitado, assim como dizia a mãe. Ele permanecia pouco tempo em cada atividade, utilizando vários brinquedos durante o atendimento, que permaneceram espalhados pela sala. Em alguns momentos apresentou dificuldades em algumas coisas, como encaixar peças ou conseguir cortar papel, demandando ajuda do terapeuta. Dessa primeira sessão pode-se pensar que o menino buscou demonstrar o quão confuso e abarrotado estava seu interior, através das brincadeiras e da bagunça que deixou na sala. Também era uma criança que inspirava cuidados por parte do terapeuta, pedindo ajuda com as atividades, demonstrando o quão difícil era para ele ter que lidar com tudo que carregava.
Na sessão seguinte, mais uma vez Marcelo se apresentava bem agitado e trocava de brincadeiras com rapidez, utilizando diversos brinquedos. Aqui, o terapeuta propôs que guardassem os materiais utilizados antes de passarem para a próxima atividade, e o menino concordou. Nessa sessão, ele brincou com um avião, mas reclamou que ele não voava. Pediu ao terapeuta que fizesse uma hélice, pois o avião estava sem, dizendo que era por isso que não voava, o que foi acatado. Depois de o avião cair no chão mais uma vez, mesmo com a hélice, pediu um paraquedas para que ao avião pelo menos caísse devagar. Pode-se pensar que desde as primeiras sessões o terapeuta vai sendo colocado e responde desse lugar de exercer a função paterna, enquanto aquele que dá apoio para a criança no sentido de desenvolver recursos para lidar com coisas que vão acontecendo e enquanto aquele que coloca a ordem, ajudando a dar um contorno e a organizar o psiquismo.
Nas sessões seguintes, Marcelo continuou demandando bastante ajuda para montar a estrutura dos jogos e brinquedos. Brincava bastante com materiais de encaixar e apresentava dificuldades, que também é relativo à sua pouca idade e diz respeito à fase do desenvolvimento na qual se encontrava, em que a coordenação motora fina ainda não está muito bem elaborada. Ele também começou a testar frequentemente o terapeuta, como quando escondeu a cola e perguntou onde ela estava, dizendo "você não está prestando atenção" quando o terapeuta não soube responder. Aqui ele demonstra desconfiança, expressando como é sensível às falhas ambientais. Desconfiança que pode ser entendida pela história de perda de duas figuras paternas e das dificuldades da mãe de assumir os cuidados entendidos como a função materna.
Ao longo das sessões ocorreram algumas brincadeiras que diziam respeito a essa posição de pai em que o terapeuta era colocado. Às vezes, isso aparecia explicitamente: o terapeuta era o pai e Marcelo era o filho. Em outras situações, isso aparecia de forma velada: o menino era um cachorrinho e o terapeuta era seu dono, parecendo seguir a mesma temática. Por vezes o cachorrinho era abandonado ou maltratado por uma "dona malvada" ou um "dono bandido", sendo resgatado por um novo dono, o terapeuta. Em outras brincadeiras, Marcelo fazia alguma coisa, como desobedecer ou destruir algo, sendo castigado pelo dono/terapeuta. Aqui aparece a fantasia do menino de que o laço entre ele e o pai foi desfeito, e que essa figura se perdeu por conta de alguma coisa que ele fez. Ou seja, ele se sentia culpado pela perda do pai, como se esse não houvesse sobrevivido aos seus ataques.
Com relação ao pai do menino, em algumas sessões Marcelo chegou a dizer que Leonardo (nome fictício), que era companheiro de sua mãe, havia abandonado ele e sua mãe. Quando falava desse pai, a entonação de sua voz mudava. Da habitual animação que apresentava, o garoto ficava sério e havia pesar em sua voz. E apesar de ter dito que Leonardo era seu pai quando perguntado, sempre se referia a ele pelo nome e não como pai. Pode-se observar que o menino apresentava uma depressão de fundo pelo desaparecimento do pai e pela falta dessa função que é de fundamental importância, devido ao apoio que oferece para o desenvolvimento psíquico, como explicitado anteriormente.
Nos atendimentos, essa falta pôde ser suprida pela figura do analista, que passou a ocupar o lugar da função paterna. Nesse sentido, buscava-se criar um espaço acolhedor onde a criança pudesse se expressar e brincar livremente. Quando possível, o terapeuta buscava identificar e nomear os sentidos vivenciados por Marcelo, que eram expressos na brincadeira. O terapeuta também se apresentava como um possível receptor para a agressividade, como alguém que não era destruído por ela e nem retaliava, mas que ajudava a expressar e compreender aquilo que não encontrava expressão saudável em outros contextos. A agressividade e a culpa também puderam ser trabalhadas em brincadeiras de desmontar ou jogos de derrubar peças, em que, além de poder se expressar ao destruir ou derrubar tudo, era dada a oportunidade de reconstruir, remontar e reiniciar, destacando os aspectos positivos da personalidade da criança ao poder reparar os danos cometidos.
Durante os atendimentos, eram recorrentes brincadeiras de misturar, realizadas com tinta, massinha, cola, água e sabão, em que o menino demonstrava como as coisas ficavam caóticas dentro de sua cabeça. Era um montante de elementos que não se distinguiam mais, as coisas iam entrando na mistura e se perdendo, virando um verdadeiro caos. Assim também era sua vida, pois muitas coisas foram ocorrendo sem que o menino tivesse tempo para poder processar toda essa informação. Era um pai que se perdia, outro que se acrescentava para depois se perder também. Uma nova casa com outros familiares, começar a frequentar uma escola e ter um mundo de novas relações e novas regras para seguir. E tudo isso sem ter um ambiente que fosse suficientemente bom para dar conta de ajudá-lo a lidar com tudo isso, visto que a mãe e a família também são afetadas pelas coisas que ocorrem.
Marcelo também saía bastante da sala de atendimento para ir em direção à sala de jogos que eram disponibilizados para ele. Em muitas ocasiões procurava por "um jogo que a gente nunca jogou". Quando um novo jogo era introduzido, o terapeuta buscava explicar como era o jogo, lendo as instruções para o menino quando ele concordava que elas fossem lidas. A partir disso, o terapeuta ia colocando-se no lugar daquele que insere as regras para a criança, regras essas que partem do jogo, mas que podem ser entendidas como protótipos das regras para um bom convívio social. Esse papel de introduzir a criança no social a partir da apresentação da lei também faz parte do que na psicanálise é entendido como função paterna. No caso de Marcelo, faltava alguém que exercesse tal função, tendo em vista que não possuía uma figura paterna e a mãe, assim como o resto da família que residia com eles, apresentava dificuldades em mostrar isso para ele. Em conversas com a mãe e com a avó, elas relataram que Marcelo era uma criança muito agitada, agressiva e desobediente, sendo que elas não davam conta de se posicionarem de forma efetiva para controlar o menino. O que faltava para Marcelo era alguém que pudesse servir como ponto de ancoragem, que tivesse a sensibilidade de perceber suas necessidades e que pudesse se dispor psiquicamente a prestar os cuidados para que ele pudesse se organizar e pôr em marcha um desenvolvimento saudável, sendo um desses cuidados a introdução do limite.
Em uma sessão, a mãe contou ao terapeuta que Marcelo havia colocado fogo no sofá. Segundo ela, ele ficou sozinho por um tempo e pegou o isqueiro da avó, queimando o sofá inteiro. A mãe disse apenas que perguntou ao filho por que ele havia feito isso, mas não obteve resposta. Em outra sessão, a mãe relatou que o filho havia aberto o portão e fugido de casa, o que já havia ocorrido anteriormente. Aqui pode-se observar a dificuldade por parte da mãe e da família em ter um olhar atento para Marcelo, de forma a evitar que fizesse coisas que colocassem sua própria vida em risco. A introdução do limite é importante, nesse sentido, para poder ajudar a criança a se organizar e também porque tem o papel de preservação da vida, do cuidar dos pais e do sentir-se cuidado pela criança.
Pode-se entender que o menino buscava um olhar que parecia não estar obtendo no âmbito familiar, como se pedisse por ajuda para conter um impulso que ele sozinho não dava conta. Uma criança que se coloca em tais situações de risco é alguém que, de certa forma, não está tendo um cuidado tão próximo quanto parece necessitar. Nesse sentido, o terapeuta pôde se adaptar ativamente a essas necessidades de Marcelo, buscando estar atento a ele e oferecendo-lhe suporte emocional, de maneira a construir com ele um ambiente confiável e seguro, capaz de proporcionar vias de expressão que fossem mais positivas.
Outros elementos bastante recorrentes no decorrer das sessões eram os monstros que perseguiam o menino e precisavam ser enfrentados, assim como os duelos que se travavam entre Marcelo e o terapeuta, que normalmente utilizavam espadas de brinquedo. Essas lutas podem ser entendidas como a maneira que o menino encontrou para expressar sua agressividade de forma descontraída, por se tratar de uma brincadeira, e segura, por estar inserido em um espaço que consegue estabelecer o limite necessário para a preservação da segurança e que pode sobreviver a esses ataques, pois o terapeuta permanece vivo até o fim da sessão e retorna no próximo atendimento, para continuar a trabalhar as questões que o paciente traz.
Com o decorrer do atendimento, pôde-se perceber que o menino se apresentava menos agitado, conseguia permanecer mais tempo em uma atividade, passou a ajudar na organização dos brinquedos e materiais quando solicitado e não saía com tanta frequência da sala de atendimento para ir até a sala de brinquedos. Ele também não demandava mais tanto do terapeuta, buscando montar os jogos por conta própria e chegando a brincar sozinho por um tempo enquanto o terapeuta observava. Essa brincadeira solitária no atendimento pode ser entendida como o que Winnicott (1958/1983) denominou de "capacidade para estar só" (p. 31). Ao brincar só na presença do terapeuta, a criança demonstra maturidade emocional, podendo introjetar os objetos bons e tendo confiança neles. Isso pôde acontecer devido à atitude do terapeuta de estar se adaptando às necessidades do paciente, de forma a criar um ambiente estável e confiável, com sua presença constante em cada sessão.
O terapeuta também passou a se colocar de forma mais incisiva para o menino. Em algumas sessões, Marcelo queria sair sozinho da sala de atendimento para ir à sala de brinquedos, mas o terapeuta colocou para ele que não podia ficar sozinho durante o atendimento e que era a função do terapeuta acompanhá-lo e garantir que estivesse em segurança. Em alguns casos, o terapeuta chegou a segurar o menino fisicamente. Pensando, com Winnicott (1984/1989), que uma das funções do atendimento psicoterápico é exatamente fornecer um "segurar" (holding) que não seja apenas físico, mas também psíquico pode-se entender que a partir dessa intervenção, a imposição do limite também é uma forma de dar um holding, delineando um contorno para que o psiquismo siga na direção de um desenvolvimento saudável.
Às vezes, Marcelo deixava os brinquedos espalhados e se desviava para outra brincadeira, também querendo ir embora deixando tudo espalhado, porém mais uma vez o terapeuta colocava que era preciso organizar tudo e colocar cada coisa em seu lugar. Isso pode ocorrer na medida em que se estreitavam os vínculos com a criança, tendo em vista as colocações de Winnicott (1960/1990) de que é necessário adquirir o direito de se colocar dessa forma. Nos últimos atendimentos o menino passou a organizar os brinquedos sem que fosse preciso dizer qualquer coisa, embora no final da sessão ainda apresentasse algumas dificuldades com relação ao término.
Esse posicionamento do terapeuta, de se colocar de forma incisiva para Marcelo e pedir que organizasse os materiais que utilizou na sessão, foi decorrente do entendimento de que faltava alguém que fizesse a função paterna e ajudasse o garoto a se organizar psiquicamente. Frente à forma como Marcelo se apresentava, entendeu-se que ele demandava uma atitude mais firme e que isso teria um resultado positivo em seu caso, tendo em vista a importância da introdução do limite para as crianças. Limite aqui entendido como uma forma de cuidado, pois para introduzir o limite é preciso ganhar a confiança da criança e estar atento às situações em que ela busca extrapolar a zona de segurança. Uma melhora realmente pôde ser observada no fato de ele ser muito agitado e no caos que ele trazia para a sessão, que foi diminuindo gradualmente.
Por vezes quando o terapeuta colocava o "não" para Marcelo, esse insistia, testando o terapeuta, que buscava reiterar seu posicionamento. É comum que crianças testem os limites que lhes sejam colocados, sendo importante que o terapeuta possa sustentar sua posição de quem introduz a ordem. Como foi dito anteriormente no exemplo da tela de proteção dos apartamentos, o limite serve exatamente para estabelecer até aonde a criança pode ir em segurança. Em suas explorações, ela vai buscar transpor esses limites, mas eles precisam se manter para exercer sua função de cuidado para com a criança.
Nas últimas sessões, foi trabalhado com Marcelo o encerramento do atendimento, sendo colocado para ele que essa separação não era culpa dele, assim como nenhuma anterior tinha sido, e dada a oportunidade para que expressasse suas frustrações. O menino muitas vezes respondia se esquivando do assunto ou expressando descontentamento, que na medida do possível era expresso verbalmente pelo terapeuta, apostando-se na capacidade do menino de introjetar tudo de positivo que foi construído e também na capacidade de lidar com tudo de negativo que possa ter ocorrido.
Com relação ao tratamento da mãe, pode-se pensar que esse também operou como uma função paterna para o caso do menino, uma vez que a mãe passou a contar com um ambiente que desse apoio as suas angústias e dificuldades, ajudando-a a se reorganizar para poder exercer sua função enquanto mãe. Assim, esse atendimento constituiu-se como um espaço seguro e acolhedor, tão necessário para que a mãe possa se voltar aos cuidados do filho, como destaca Winnicott (1944/1982a). Assim, Marcelo passou a poder contar com a função paterna exercida por dois terapeutas diferentes. Um era o seu próprio, que exercia uma função diretamente com ele, colocando os limites dentro do atendimento clínico, e o outro era o terapeuta de sua mãe, que atuava indiretamente com o menino, sendo um apoio para a mãe.
Considerações finais
A partir do caso apresentado, pode-se perceber a importância da função paterna no desenvolvimento da criança. Na clínica winnicottiana, a atitude sensível do terapeuta de identificar e se adaptar às necessidades da criança é de extrema importância, pois permite suprir as falhas e retomar o desenvolvimento saudável. Em alguns casos, o terapeuta pode ser colocado transferencialmente na posição do pai, e é importante que se responda desse lugar quando for disso que a criança necessitar.
O apoio da função paterna é de grande importância, pois garante à criança um ambiente seguro e confiável, em que ela pode aprender a se expressar e fazer suas explorações sabendo que há um olhar atento que provê os cuidados necessários. Assim, a introdução do limite é um desses cuidados que podem ser ofertados à criança, tendo sua importância no desenvolvimento infantil.
A introdução dos limites permite que a criança possa organizar-se e introjetar esses cuidados, passando a cuidar de si mesma. A própria criança demanda essa atenção, pois ela é necessária para a manutenção de sua segurança. Nesse sentido, quando não há alguém que exerça tal função, é compreensível que o terapeuta seja colocado nesse lugar, sendo importante que essa função seja exercida no atendimento clínico quando for disso que a criança necessite.
Assim, esse artigo propõe refletir sobre um posicionamento mais incisivo por parte do terapeuta para com a criança, inserindo as regras do atendimento e estabelecendo os limites quando necessário, entendendo que essa também é uma forma de holding. Isso deve ser feito a partir do estabelecimento do vínculo com o paciente, sem ser rígido em demasia, lembrando que para se alcançar o direito de dizer "não" é preciso primeiro ter dito "sim" e ter ofertado à criança o afeto e cuidado que ela necessita. Quando a criança estabelece um bom vínculo com o terapeuta, ela aceita e consegue lidar com as frustrações que lhe são colocadas.
Destaca-se também a importância do trabalho com a mãe de Marcelo no caso em questão, que serviu para acolhê-la em suas dificuldades e ajudá-la a estar se organizando psiquicamente, inclusive para poder exercer sua função de mãe. A família é o espaço no qual a criança passa a maior parte do tempo e aonde vai se dando seu desenvolvimento normal, sendo importante ter um olhar para essa família dentro da clínica infantil.
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Recebido em dezembro/2014.
Aceito em junho/2015.