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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.1 São Paulo enero/abr. 2019

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i1p22-31 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v24i1p22-31

DOSSIÊ

 

A escola no registro da fantasia

 

La escuela en el registro de la fantasía

 

School in the register of fantasy

 

 

Daniel RevahI

IProfessor associado do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: revah@uol.com.br

 

 


RESUMO

A fantasia da escola perfeita impulsionou a escola moderna desde seus primórdios, resultando em várias figuras dessa instituição. O artigo focaliza algumas dessas figuras, a começar pela que surge sob a forma da escola-máquina e que, posteriormente, quando a natureza humana desponta como limite ao que é da ordem da máquina, dá lugar a novas figuras. Argumenta-se que o ideal de perfeição presente nos discursos pedagógicos resultou em modalidades diversas de pensar e efetivar a escolarização, sem que necessariamente tenha inviabilizado a escola quanto a seu papel na transmissão de certo legado cultural e como agência socializadora das novas gerações. Entretanto, nas últimas décadas houve uma mudança importante, perceptível no Brasil desde a década de 1990, quando avaliações quantitativas começam a ser utilizadas para definir de forma clara e precisa o grau de perfeição da escola, assim tendendo a inviabilizar a própria educação escolar. O que desde então se acentua é a tendência de anular a necessária distância em relação àquele ideal e, dessa maneira, quanto mais a escola busca alcançar esse ideal consumado, sem falhas, tanto mais se debilita e se consome.

Palavras chave: discursos pedagógicos; figuras de escola; registro da fantasia.


RESUMEN

La fantasía de la escuela perfecta impulsó la escuela moderna desde sus inicios, resultando en varias representaciones de escuela. El artículo se enfoca en algunas de las representaciones, a comenzar por la que surge bajo la forma de la escuela-máquina y que, posteriormente, cuando la naturaleza humana despunta como límite al que es del orden de la máquina, da lugar a nuevas representaciones de escuela. Se argumenta que el ideal de la escuela perfecta presente en los discursos pedagógicos resultó en modalidades diversas de pensar e implementar la escolarización, sin que necesariamente dicho ideal hubiese influido en el incumplimiento del papel de la escuela respecto a la transmisión de cierto legado cultural y como agente de socialización de las nuevas generaciones. Sin embargo, en las últimas décadas hubo un cambio importante perceptible en Brasil desde la década de 1990, cuando se comienzan a utilizar evaluaciones cuantitativas para definir clara y precisamente el grado de perfección de la escuela, que tiende a hacer inviable la propia educación escolar. Desde entonces se acentúa la tendencia a anular la necesaria distancia en relación a aquel ideal y, de esta manera, cuanto más la escuela busca alcanzar esa escuela consumada, sin fallas, tanto más se debilita, tanto más se consume.

Palabras clave: discursos pedagógicos; representaciones de escuela; registro de la fantasía.


ABSTRACT

The fantasy of the perfect school has boosted the modern school since its beginnings, resulting in several school figures. The article focuses on some of these figures, starting with the one that appears as a school-machine and that, later, when human nature emerges as a limit to what is related to the machine, it gives rise to new school figures. It is argued that the ideal of the perfect school present in the pedagogical discourses resulted in diverse ways of thinking and making schooling effective, without necessarily making the school unfeasible for its role in the transmission of a certain cultural legacy and as a socializing agency of the new generations. However, in the last decades, there has been an important change, perceptible in Brazil since the 1990s, when quantitative evaluations started to be used to clearly and precisely define the degree of perfection of the school, thus tending to make school education unfeasible itself. Since then, what has become more pronounced is the tendency to negate the necessary distance from that ideal and, therefore, the more the school seeks to achieve this consummated school, with no faults, the more it weakens itself and is consumed.

Keywords: pedagogical discourses; school figures; register of fantasy.


 

 

No debate atual sobre a escola são repetidas ideias que perpassam os debates brasileiros há várias décadas. Ouvimos dizer então que esta deve ser adaptada aos novos tempos, que é obsoleta e há também quem diga que está morta. Essas imagens correspondem a uma instituição debilitada e consumida, e em geral são associadas à escola pública, mas também se referem ao sempre retomado tema da crise da escola. Uma crise que nos países onde se conseguiu instituir um sistema de ensino público massivo, com relativo sucesso e prestígio, é frequentemente remetida à segunda metade do século XX. Bem diferente do Brasil, onde a ideia de crise parece acompanhar a escola pública brasileira pelo menos desde a Primeira República. Por isso faz sentido a conhecida frase de Darcy Ribeiro afirmando que a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto.

Diante das críticas feitas a essa instituição, surgem as receitas de sempre, com reformas educativas que prometem consumar a escola que corresponde ao ideal que o significante "qualidade do ensino" institui. Como se falasse por si só, um significante neutro, que não se questiona e que tende a corresponder à ideia de uma escola perfeita, consumada, cujo grau de perfeição vai depender da presença de professores e gestores "nota 10", como costuma qualificá-los a revista Nova Escola. Ou então, caso atinja o auge da sua perfeição, deverá obter a nota máxima nas avaliações nacionais e internacionais. Nos discursos pedagógicos, esse ideal da escola perfeita depende em última instância das variadas perspetivas neles presentes, sem que a própria ideia de perfeição seja colocada em questão.

Entretanto, essa perfeição paradoxalmente tende a inviabilizar o que esses mesmos discursos buscam defender: a educação escolar, pois essa escola consumada, perfeita e cujo grau de perfeição busca-se definir de forma clara e precisa, por meio de avaliações quantitativas, corresponde também à escola consumida, debilitada, conforme podemos pensar a partir da psicanálise. Esses extremos se confundem, como tudo e nada, como ocorre quando alguém fica preso à sua própria imagem especular, à sua imagem narcísica, decretando assim a sua morte simbólica. O mesmo vale para a educação e a escola, equivalendo a dizer que, quanto mais se busca tornar a escola perfeita, completa, sem falhas, sem dar lugar à impossibilidade que é inerente à educação e aos laços sociais, mais se tende a debilitá-la. E quanto mais a escola se torna perfeita e se consuma, tanto mais se consome.

Atualmente, essa escola perfeita tende a ser definida por discursos que fazem circular significantes como produtividade, eficiência, desempenho, competências, rendimento, avaliação, planejamento e outros que entre si são entrelaçados e mobilizados para definir, sustentar e manter no centro do debate educacional o termo qualidade do ensino, um significante-mestre que desde a década de 1990 transformou-se no ponto de articulação de diversos discursos pedagógicos. Essa bateria significante, que atualmente parece hegemônica e que impregna o dia a dia das escolas, impõe-se graças a essas costuras, feitas em torno de qualidade do ensino e, em consequência, graças ao renovado vínculo com a fantasia da escola perfeita, que, sobretudo, sustenta esses discursos, da mesma forma que fez com outros, em outros períodos históricos.

Essa fantasia possui um denso lastro histórico e são várias as figuras de escola que dela resultam. A força desses discursos atuais procede em grande parte desse lastro, por isso vale a pena se deter, mesmo que brevemente, em alguns momentos constitutivos dessa sedimentada ilusão cuja arqueologia não pode deixar de considerar os primórdios da escola moderna, quando surge sob a figura da escola-máquina.

 

O sonho da escola-máquina e a natureza humana como limite

A escola-máquina é um sonho que atravessou a pedagogia moderna desde o momento em que surge, como é possível constatar na obra de Comenius, no século XVII. No seu livro Didática Magna, seu anseio de colocar ordem em tudo se traduz numa escola cuja organização deveria corresponder "exatamente à do relógio construído com técnica perfeita e decoração esplêndida" (Comenius, 1657/1997, p. 127). Um modelo de escola que responde à harmonia e perfeição que Comenius (1657/1997) atribui à natureza e em primeiro lugar a Deus, de quem a humanidade, feita "à imagem de seu criador e para seu deleite" (p. 53), tem de se aproximar para se salvar, cumprindo assim com o fim último do homem, não na sua morada terrena, pois "esta vida não passa de preparação para a vida eterna" (p. 49). A educação constitui então o meio que Comenius (1657/1997) vislumbra para a "salvação do gênero humano" (pp. 14-15). Por meio da educação o homem pode tornar-se sábio, honesto e santo, pavimentando assim o caminho em direção à sua última morada, onde o aguarda a "plenitude absoluta de tudo" (Comenius, 1657/1997, p. 47). Por isso é preciso "ensinar tudo a todos" (Comenius, 1657/1997, p. 11), ensinar a verdadeira ordem do mundo e fazer isso de maneira ordenada. Para levar adiante esse vasto empreendimento, o grande método universal ideado por Comenius é a escola moderna, que já vinha adquirindo seus contornos concretos em instituições da época1. Uma escola que ele também imagina recorrendo a outras metáforas, como a da arte tipográfica, por meio da qual Comenius (1657/1997) identifica os alunos com o papel, os caracteres tipográficos com os livros escolares e os outros instrumentos didáticos, a tinta com a voz do mestre e a prensa com "a disciplina escolar, que predispõe e obriga a todos a absorver os ensinamentos" (p. 364). Mas essa máquina talvez não seja tão perfeita quanto parece à primeira vista. Como sugere Douglas Batista (2013), nas suas metáforas da escola-máquina também pode ser entrevista a imperfeita ordem humana, sem contar a impossibilidade que Comenius (1657/1997) insinua quando diz que "o vento sopra onde quer, e nem sempre começa a soprar na hora marcada" (p. 334). De qualquer modo, o que Comenius (1657/1997) sobretudo almeja é uma escola perfeitamente ordenada, que funcione como um relógio, apesar das imperfeições humanas que sempre será necessário corrigir em pró da futura e "eterna bem-aventurança com Deus" (p. 53).

Nessa vertente do pensamento de Comenius, a escola moderna configura-se como uma tecnologia do poder pastoral, conforme podemos pensar a partir das análises de Foucault (1994/1997) sobre a "crise geral do pastorado" que ocorre nesse período (p. 82). Mas essa nova instituição educativa resulta também da confluência de outras linhas de força, como os novos sentimentos sobre a infância, a crescente relevância da cultura letrada e a urbanização e a industrialização, envolvendo assim um processo mais extenso e complexo que se prolonga nos séculos seguintes. Entre essas linhas de força é preciso considerar a ciência moderna, que junto com a religião constitui um par inseparável e de longa duração na conformação da figura da escola perfeita, mesmo quando o Estado se separa formalmente da Igreja e surge a escola pública e laica.

Desse complexo processo resulta uma instituição educativa de novo tipo, com uma forma inédita de socialização em massa das novas gerações, chamada por alguns autores, como Vincent, Lahire e Thin (2001), de forma escolar. Esta apresenta algumas características que se mantêm relativamente invariantes desde o momento em que surge, uma das quais é especialmente importante na conformação do regime da escola-máquina: a relação pedagógica, um tipo inédito de relação social que requer obediência e subordinação de professores e alunos a determinadas regras impessoais e, em consequência, a aprendizagem de determinadas formas de exercício do poder, inerentes ao que Weber (1922/1984, p. 707) chama de dominação legal e aos múltiplos dispositivos que Foucault (1975/1984) descreve quando se refere ao poder disciplinar (Vincent et al., 2001).

A crescente racionalização das relações sociais e das instituições que ocorre no período em que surgem os dispositivos disciplinares coincide com a proeminência dada à razão no século das luzes, ao ocupar um lugar que na verdade já vinha ocupando no alvorecer da ciência moderna. Essa entronização da razão se dá atrelada à valorização do homem e da sua liberdade para pensar o mundo e ele próprio, sem a tutela dos dogmas religiosos nem de outros poderes que a transcendam. No século XVIII, para ser um homem livre e autônomo, cada indivíduo precisa fazer uso de seu entendimento e o único juiz da razão deve ser ela própria, conforme reza a exigência kantiana para que o homem saia de sua menoridade. A razão, entendida como universal, torna-se uma arma contra os preconceitos, os mitos e as superstições, mas também contra a acentuada hierarquização da sociedade, tornando-se ainda o motor da história e do progresso, conforme vemos sobretudo em seus desdobramentos no século seguinte. Ainda no século XVIII, após a Revolução Francesa, com a instauração da escola republicana, a escola para todos, cabe a essa instituição formar esse homem racional, o cidadão obediente às leis do Estado, conhecedor de seus direitos e capaz de participar na vida pública e política. O horizonte dessa escola para todos é a constituição de uma nação de homens iguais e livres.

Apesar desse entusiasmo com as luzes da razão, sabemos que essa razão que liberta também escraviza, como sugere uma longa tradição à qual se soma Foucault (1975/1984) quando diz que "As 'Luzes' que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas" (p. 195). No mesmo século das luzes, a razão que torna o homem livre é também vista com desconfiança e o que muitos celebram como avanços da humanidade, como é o caso da evolução das ciências e das artes, Rousseau olha com um profundo pessimismo, tornando-se assim "um verdadeiro desmancha-prazeres da festa dos iluministas", como diz Salinas Fortes (1987, p. 72)2. Essa maneira de Rousseau avaliar o homem e a sua suposta evolução tem como referência central a natureza, como é característico de outros pensadores da época que ao contrário dele acreditavam na Razão como via privilegiada para conhecer o mundo e aperfeiçoar o homem. Para Rousseau, porém, o verdadeiro instrumento de conhecimento e a certeza não vêm do intelecto nem tampouco dos sentidos, como nos empiristas, mas do coração, dos sentimentos, de um sentimento experimentado como totalidade (Chauí, 1983, pp. XIV-XV; Salinas Fortes, 1989, pp. 34-5). A natureza como objeto de conhecimento concerne para Rousseau ao próprio homem, não é algo externo a ele, pois "a Natureza palpita dentro de cada ser humano", como afirma Chauí (1983, p. XV).

A natureza, nesse período, é concebida de diversas maneiras, ela constitui uma fonte de conhecimentos, mas também estabelece um limite para as aspirações humanas e torna-se ainda o critério que permite julgar o homem, suas ideias e instituições. O próprio ideal da escola-máquina encontra nela um limite, que se configura de vários modos. Um deles corresponde ao que vai se delineado como inerente à ordem biológica e ao organismo, no qual esbarra o poder disciplinar no seu investimento sobre o corpo, como sugere Foucault (1975/1984, p. 141). Num sentido amplo, porém, esse limite remete à natureza humana e ao homem no seu estado natural, de natureza. E, nesse ponto, a referência primeira para o campo da pedagogia vem da obra de Rousseau, da qual determinada tradição pedagógica extrai os elementos conformadores de uma figura de escola perfeita que se afasta do sonho da escola-máquina, muito embora esse ideal retorne pela porta dos fundos, quando à primeira vista nada levaria a pensar nisso, a não ser o leitmotiv da Natureza, essa insistente presença até os dias de hoje.

Essa tradição pedagógica depurou a obra de Rousseau, dela excluindo seu pessimismo em relação à história da humanidade e seus paradoxos, que na sua obra não se resolvem, permanecendo em aberto. Ficou então o Rousseau da educação negativa, da educação natural, mas igualmente depurado, sem o lugar que ele atribui, por exemplo, ao sofrimento. Sofrer, lembra Rousseau (1762/1999, p. 66), é a primeira coisa que a criança deverá aprender e a que terá maior necessidade de saber. Afinal, "o destino do homem é sofrer em todos os tempos", a felicidade é "uma condição negativa" (p. 23): "o mais feliz é o que sente menos sofrimentos; o mais miserável é o que sente menos prazeres. Sempre mais sofrimentos do que prazeres: eis a diferença comum a todos" (p. 70).

Nessa tradição que se ergue em torno da ideia de uma educação natural, ganha força a possibilidade de criar uma instituição educativa que permita às crianças viver a plenitude de sua primeira infância, assim como o desenvolvimento integrado e pleno de suas faculdades naturais sem que qualquer barreira impeça a completude que o curso da Natureza enseja. Essa educação natural, que à diferença do que Rousseau propõe no Emílio (1762/1999) busca-se efetivar na escola, não deixou de gerar e evidenciar para os próprios educadores inúmeras questões e problemas, pois os paradoxos sempre aparecem e permanecem, dado que são indissociáveis da ordem humana. Para evitá-los, e mesmo negá-los, o século XX gerou uma vasta produção teórica que alinhou a pedagogia do lado da ciência, tendo a psicologia como principal parceira nesse empreendimento.

Um exemplo que indica a deriva inicial que a pedagogia seguiu para superar as questões e problemas que a educação natural colocou encontra-se na obra teórica de John Dewey, um dos intelectuais centrais no movimento da Escola Nova e particularmente importante no Brasil, graças sobretudo à atuação de Anísio Teixeira, que se empenhou na divulgação de suas ideias e textos. Dewey busca se distanciar da educação natural e por isso propõe a harmonização do que ele concebe como posições extremas, de teorias educacionais que colocam, de um lado, a criança, um ser imaturo, com sua experiência infantil, e do outro, a experiência amadurecida do adulto, que no mundo escolar está presente nas matérias de ensino, nos conhecimentos logicamente organizados. Para conciliar esses extremos e harmonizar essas teorias, que ele vê divididas à maneira de seitas, cada uma defendendo seu ponto de vista e concebendo isoladamente aqueles extremos, Dewey lança mão do conceito de experiência. Esse conceito é o que teoricamente lhe permite conciliar os dois elementos que ele concebe como fundamentais em todo processo educativo e que remetem ao professor e ao aluno. Com esse conceito cria uma espécie de ponte que une e harmoniza esses dois polos3.

Para Dewey (1902/1980), as matérias de estudo "são simplesmente experiências, as experiências da espécie", da humanidade, e elas "representam as possibilidades de desenvolvimento contidas na experiência imperfeita da criança" (p. 142). O que aquelas teorias educacionais opõem constituei para ele partes do mesmo processo, os termos inicial e final de uma única realidade (Dewey, 1902/1980, p. 142). Considerá-las separadamente, sem conexão, seria "contrapor o impulso para crescer ao resultado final do crescimento", é semelhante a "dizer que natureza e destino são coisas que na criança estão em luta" (Dewey, 1902/1980, p. 142). Para Dewey, natureza e cultura podem e devem ser harmonizadas. Isso não só é possível, como também teria sido evidenciado pela própria trajetória da humanidade. Imbuído da ideia de progresso e acreditando nas potencialidades de uma sociedade que fez da mudança o seu ideal, Dewey permanece nesse ponto bem distante de Rousseau, cujo otimismo antropológico contrapunha-se a seu pessimismo histórico (Salinas Fortes, 1989, p. 78). Em Dewey é só otimismo.

A harmonia na educação pode ser alcançada, segundo Dewey (1902/1980, p. 145), por meio do "desenvolvimento da experiência pela experiência". Ou seja, trata-se de possibilitar à criança a reconstrução contínua de sua própria experiência, estando aí também implicada a do adulto, pois a experiência do adulto servirá como um ponto remoto e distante que, além de antecipar o resultado final do processo educativo, estabelecerá a sua direção, definindo igualmente o método e a orientação das ações do educador. Para Dewey (1902/1980), essa "experiência sistematizada e lógica do adulto serve-nos para interpretar, guiar e dirigir a vida infantil" (p. 142). Por isso são fundamentais as disciplinas escolares, os conhecimentos sistematizados pela humanidade ao longo da sua trajetória evolutiva. São eles que permitem interpretar e orientar o desenvolvimento das capacidades naturais da criança.

Para desenvolver essas capacidades, cabe ao educador providenciar "um meio educativo que permita o funcionamento dos interesses e forças que forem selecionados como mais úteis" (Dewey, 1902/1980, p. 145). O problema crucial consiste então em selecionar os estímulos adequados aos instintos e impulsos que se deseja desenvolver (Dewey, 1902/1980, p. 145). E para saber quais são esses estímulos, mas também as experiências que devemos ensejar, é necessário que o educador tenha "um conhecimento global da natureza do desenvolvimento infantil e da sua finalidade, que é a ciência dos adultos, considerada por ele como "uma revelação prévia da carreira que se abre diante da criança" (Dewey, 1902/1980, p. 145).

O que, em suma, Dewey propõe corresponde à "tese da adequação" já discutida e criticada de maneira ampla por Lajonquière (1999) há quase duas décadas. Em Dewey (1902/1980), essa adequação supõe uma dupla exigência para o educador: o conhecimento do desenvolvimento da criança e também dos conteúdos relativos às disciplinas escolares, no seu estado atual e na sua trajetória histórica. Segundo ele, esses conteúdos devem ser encarados psicologicamente, quer dizer, eles devem ser ajustados ao desenvolvimento infantil tendo como referência fundamental as soluções que os homens, individual e coletivamente, deram aos problemas que surgiram ao longo da história da humanidade (Dewey, 1902/1980).

O ideal de escola que se delineia no bojo dessas concepções corresponde ao de uma instituição educativa que consegue levar a efeito a harmonização que Dewey propõe, entre o mundo infantil e o escolar, graças à adequada intervenção de seus educadores. Essa fantasia da escola perfeita adquiriu no Brasil formas diversas ao longo do século XX. Para concretizá-la, a psicologia foi a ciência privilegiada e tanto a pedagogia quanto a didática foram inscritas no registro dessa ciência positiva. Um dos efeitos dessa inscrição foi o retorno, sob outras formas, da ideia da escola-máquina, como se vê por exemplo na revista Nova Escola, em 1995, no momento em que o construtivismo era amplamente divulgado nas páginas da revista e também pelo governo federal. Ao se referir à reforma educativa que nesse momento era conduzida pelo ministro da educação Paulo Renato Souza, a revista diz aos leitores que tinha "o monumental desafio de transformar o ensino público de primeiro grau numa máquina azeitada e eficiente" (Malheiros, 1995, p. 50).

 

A escola hoje: uma máquina da fantasia?

A fantasia da escola perfeita, nas suas várias figuras históricas, impulsionou a escola moderna desde seus primórdios e deu lugar a modalidades diversas de pensar e efetivar a escolarização, sem que necessariamente inviabilizasse a instauração e a consolidação dos sistemas de ensino públicos, nem tampouco a escola quanto a seu papel na transmissão de certo legado cultural e como agência socializadora das novas gerações. Para que tudo isso fosse possível, uma condição necessária, embora não suficiente, foi a de ter-se mantido essa fantasia a certa distância, à maneira de um empuxo inconsciente que foi refreado por forças que nesse caso podemos supor operaram no cotidiano escolar. Forças, por exemplo, como certo bom senso que em alguma medida podemos presumir sempre existiu e ainda hoje sobrevive entre os docentes, mesmo que a duras penas. Bom senso que consiste no reconhecimento da impossibilidade inerente a toda e qualquer relação humana e ao que nela opera ligando os sujeitos. As próprias crises que acometeram a escola podem ser entendidas, nesse registro, como uma espécie de respiro que possibilitou certo reacomodamento em face dessa idealização da escola e dos sempre renovados ideais que por meio dela buscou-se realizar.

No Brasil, desde a década de 1990, a necessária distância em relação à fantasia da escola perfeita foi crescente e sensivelmente diminuída e por vezes quase que eliminada, como atestam determinadas práticas escolares que tendem a situar-se diretamente nesse registro, em escolas onde cada vez mais desenvolvem-se e aprimoram-se estratégias cuja finalidade essencial é produzir esse semblante. É dessa maneira que essas escolas respondem à demanda do Outro criado pela bateria significante que hoje circula com naturalidade em boa parte dos discursos pedagógicos. Essas escolas pouco respondem, produzindo sintomas num registro que não seja o da fantasia, ou seja, sintomas sociais entendidos como formações de compromisso que contemplem tanto o que é colocado na ordem dos ideais, quanto os conflitos, tensões e enigmas que surgem no dia a dia dessas instituições e que obrigam a desviar-se da ordem que o roteiro da fantasia estabelece, a ordem fixada por certa configuração discursiva que se tornou hegemônica4. Esses conflitos, tensões e enigmas é o que nessas instituições educativas busca-se eliminar quase que de imediato com a produção de um semblante que os disfarce, oculte, elida. Um semblante que corresponde ao da escola perfeita e que é produzido pelos discursos que nessas instituições educativas estão a serviço disso, da produção desse semblante. E se não há discurso que não seja de semblante, como diz Lacan (1972), o que temos nesse caso é um "discurso" de puro semblante imaginário e que na verdade não constitui um discurso, se o entendemos como uma forma de fazer e estruturar o laço social. De maneira que nessas escolas os discursos tendem a desaparecer enquanto tais e junto com eles igualmente desaparece o que é da ordem do laço social.

Quando nas escolas agem dessa maneira, o que em última instância fazem é evitar o próprio inconsciente, evitam o que na subjetividade e no laço social opera, cavando uma falta que funciona como um elemento perturbador, assim reconhecido, mas que é imediatamente negado, à maneira do que Voltolini (2015) chama de "evitação egóica do inconsciente", característica da modalidade perversa do laço social que na contemporaneidade parece ter-se tornado prevalente. Essas instituições educacionais tendem então a situar-se no registro da fantasia, disso que opera como uma máquina. Tendem a extinguir, portanto, a distância entre sintoma e fantasia, confundindo esses dois registros, o que equivale a confundir realidade e fantasia. Ou então, o que produzem como sintoma é fabricar a fantasia como se ela fosse a própria realidade para certo olhar dos outros e do Outro. Tudo isso equivale a dizer que nelas não há mais lugar para os ideais simbólicos, mas apenas para a dimensão imaginária do discurso. Nessas condições, que na verdade nunca se dão o tempo todo nem de maneira plena, todos os implicados ficam imersos no registro especular, que nas escolas e em diversos âmbitos do social é gerado e sustentado por inúmeros dispositivos especulares, todos eles fortalecidos na mesma medida em que a vida cotidiana foi crescentemente colonizada pela lógica do capital, que corresponde ao que Lacan chama de discurso capitalista, que tampouco é um discurso, ou então, como disse anteriormente, "discurso" de puro semblante imaginário, como é característico do capitalismo na sua modalidade atual, sob o domínio do capital financeiro e do discurso neoliberal.

No caso das escolas públicas, a transformação de muitas delas em algo semelhante a uma máquina da fantasia concerne à importante mudança que ocorreu no papel do Estado desde a década de 1990 e que é concomitante à penetração cada vez mais incisiva do paradigma empresarial no âmbito da administração pública (Passone, 2015; Piolli, Silva, & Heloani, 2015). A lógica empresarial, nas escolas públicas, não incide apenas no plano da gestão, mas também na dimensão propriamente educacional ou pedagógica. Nesse ponto coube um papel central aos testes estandarizados das avaliações quantitativas que na década de 1990 se consolidaram como formas de definir a qualidade do ensino e assim produzir rankings, os quais invariavelmente mostram melhor posicionadas as escolas privadas, sem que as diferentes condições materiais, simbólicas e culturais tenham adquirido maior relevância.

Essa forma de construir a desconfiança e o desprestígio da escola pública, com avaliações que surgem sob o semblante do discurso científico, atingiu igualmente seus docentes. E seu efeito mais nefasto parece ter sido o de levar as escolas públicas, seus diretores, coordenadores e docentes a enxergar a si próprios e a seus alunos olhando primeiramente para esse enorme espelho que as avaliações criaram, que sempre aparece bastante manchado e do qual os docentes dependem inclusive materialmente, em razão dos bônus salariais instituídos em várias redes de ensino públicas. A imagem que esse espelho cria exige um enorme esforço e múltiplas atividades voltadas para limpar essa mácula, envolvendo também as Secretarias da Educação municipais e estaduais. Limpar as manchas que ele cria na própria imagem especular, de maneira a deixá-lo o mais reluzente possível, parece ter-se tornado a principal tarefa de escolas, tanto públicas quanto privadas, que em grande medida foram transformadas em máquinas da fantasia, máquinas nas quais docentes e alunos tendem a desaparecer. Máquinas que buscam consumar e que consumem esse ideal da escola perfeita e que estão destinadas a explodir, à semelhança do que Lacan (1972) sugere em relação ao capitalismo.

 

Referências

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Recebido em novembro/2018 – Aceito em fevereiro/2019.

 

 

1 A propósito do ideal de instituir ordem em tudo e da escola moderna como "o grande método de ensino universal e universalizante", veja-se Narodowski (2004).
2 Em relação ao modo como Rousseau avalia a evolução das ciências e das artes, veja-se o "Discurso sobre as ciências e as artes" (Rousseau, 1983, pp. 321-411).
3 Nessas apreciações tomo como base um texto de Dewey publicado nos Estados Unidos em 1902, mas publicado pela primeira vez no Brasil em 1930, com o título "A criança e o programa escolar" (Dewey, 1902/1980). A respeito dessa publicação e de algumas alterações feitas na versão em português, como a introdução de subtítulos, veja-se Toledo e Carvalho (2017).
4 Sobre os conceitos de sintoma, fantasia, sintoma social, Outro, discurso e outros que procedem do campo conceitual da psicanálise de orientação lacaniana, veja-se Narodowski (2004), em especial os capítulos II e VI, onde esses vários conceitos são desenvolvidos a partir da obra de Lacan e de outros autores que o tomam como referência.

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