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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.25 no.1 São Paulo jan./abr. 2020

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i1p1-4 

10.11606/issn.1981-1624.v25i1 p1-4

DOSSIÊ

 

Adolescência, Psicanálise e Política: modos de resistir, modos de sobreviver

 

 

Rose GurskiI; Miriam Debieux RosaII

IPsicanalista, professora e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura, Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: rosegurski@ufrgs.br
IIPsicanalista, professora e coordenadora do Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: debieux@terra.com.br

 

 

Partindo das experiências de pesquisa com adolescentes em situação de vulnerabilidade social, conduzidas por psicólogos, psicanalistas, pesquisadores e docentes de Universidades públicas e privadas do Brasil e da França, construímos, através deste dossiê, uma contribuição cujo fundamento ético remete aos primórdios da psicanálise. Servindo-nos da premissa freudiana, de que a psicanálise deve estar lá onde o desamparo do sujeito se constitui, chegamos, em nosso tempo social, até o mal-estar dos adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social.

A inquietação acerca do lugar social dos adolescentes não é recente. A juventude e a adolescência têm ocupado o foco de atenção e de preocupação por parte de diferentes campos de saber ao longo da história. Neste âmbito, as problematizações acerca da adolescência como operação psíquica ganharam, mais recentemente, contribuições do campo social e das políticas públicas, levando-nos a articulação entre adolescência, psicanálise e política.

Temos constatado que uma das questões mais sofridas da passagem adolescente é a possibilidade do sujeito edificar sentidos que sejam consistentes a ponto de possibilitar um lugar de fala e de reconhecimento no laço social. É assim que a individualização, o desmantelamento social, os laços pouco solidários, cada vez mais cultivados em nosso cotidiano, acabam por incentivar uma vida pautada pelo sentimento de insuficiência e fracasso pessoal. Soma-se a esse contexto o desamparo e as desigualdades que tem efeitos de segregação e exclusão na vida de jovens que carregam marcadores sociais, de classe, raça e gênero. Nesse sentido, podemos dizer que o sofrimento destes sujeitos com relação à sensação de desamparo é intensificado, especialmente quando o discurso social se desresponsabiliza pelos seus efeitos e, ao invés de ser reconhecido, o adolescente é culpabilizado, patologizado e/ou criminalizado pelos ensaios que protagoniza na direção de produzir um lugar de fala.

Do ponto de vista da psicanálise, já sabemos que, em meio a esta passagem, o sujeito tem como tarefa psíquica a reinvenção de si a partir da pane do Outro; trata-se de um momento da subjetivação em que é preciso operar um (re)arranjo pulsional, uma vez que, até então, as pulsões estavam construídas a partir do cenário da infância, ou seja, organizadas segundo a ilusão de completude dirigida ao Outro. O furo no real no encontro com a dimensão do sexo, das vicissitudes do laço social e da morte apanha o sujeito em uma posição de angústia e de mal-estar, já que seu saber e seu gozo ficam momentaneamente desalojados. Percorrer este caminho de construção de um outro saber sobre o novo corpo e sobre o sexual abre o chamado túnel de passagem para a adolescência.

A estas questões, próprias deste tempo da constituição psíquica, somam-se outras variáveis da cultura e do laço social. Pelo teor dos escritos que o leitor terá em mãos neste dossiê, há uma concordância tácita de que a fisiologia de nosso laço social, no encontro com as questões próprias da adolescência, cria condições que forjam, para além dos sintomas e da textura do sofrimento psíquico atual, impactos que remetem a situações limites. Tais limites colocam em risco a vida de muitos jovens, especialmente aqueles que ousam desafiar barreiras sociais, raciais e econômicas.

Nesse sentido, é preciso lembrar que temos assistido à fragilização, cada vez maior, do pacto societário, o que produz um ciclo de violência e de exclusão em relação ao qual nossos jovens não ficam indiferentes. O não acesso às condições mínimas de dignidade física e social, somado ao cenário de uma verdadeira guerra civil não oficialmente declarada, em que a pobreza se soma às inúmeras violências e violações de direitos, leva nossos adolescentes a uma escolha forçada pela via da criminalidade. Sabemos que este caminho tem também a função de tamponar a angústia pela desesperança de pertencer a um lugar social e pela impossibilidade de forjar um lugar de fala.

Pois foi justamente para problematizar as nuances do mal-estar atual de nossos adolescentes que, no ano de 2018, o Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL/USP) e o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura - Eixo Psicanálise, Educação, Adolescência e Socioeducação (NUPPEC/UFRGS) realizaram o Seminário integrado "Mal- estar e adolescência: impasses no laço social" no Instituto de Psicologia da USP1. A disciplina também foi vinculada às pesquisas da Rede Internacional Coletivo Amarrações2 e ofereceu um conjunto de aulas e debates com temas que se referem tanto à atualidade das questões que envolvem a adolescência no mundo contemporâneo, quanto aos desafios de pensar políticas públicas, particularmente as da educação e da socioeducação. A pluralidade e complexidade das discussões, que tiveram nas cores e nomes do mal-estar atual de jovens em situação de vulnerabilidade social seu azimute maior, foi tão intensa que nos fez decantar os efeitos da atividade acadêmica para a escrita deste dossiê.

Como o leitor verá, a tônica do dossiê é pautada pela ética da psicanálise articulada com autores de outros campos das ciências humanas e sociais. Os textos recolhem dos próprios adolescentes e de suas narrativas os modos como concebem a vida e suas políticas de sobrevivência. Vemos, de modo geral, que, ao contarem a sua própria história, revelam também a história de seu tempo, com o que iluminam o escuro dos laços em jogo e ajudam na construção de uma outra visão – diversa do imaginário social – sobre o que se passa com eles.

Os autores recolheram alguns dos impasses dos adolescentes, seus modos de existir, resistir e sobreviver nos fronts sociais, na comunidade, na escola e no âmbito das instituições socioeducativas. De modo geral, os artigos interrogam as tarefas psíquicas e sociais que os jovens contemporâneos estão confrontados, especialmente aqueles que precisam lutar por suas vidas e por suas vozes. Neste diapasão de problematizações levantadas pelo conjunto de escritas, perguntamos: de que modo práticas neoliberais selvagens afetam a vida psíquica, os laços e os modos de representação de adolescentes em situação de vulnerabilidade social? Quais expressões de mal-estar se materializam no sofrimento psíquico de jovens que lutam pela sobrevivência em nosso tempo social?

Os artigos O que resta da adolescência: despertar nas fronteiras e nos fronts, de Miriam Debieux Rosa e Viviani Carmo-Huerta; Adolescência e Lampejos: a construção de políticas de sobrevivência, de Stéphanie Strzykalski e Rose Gurski ; e Vicissitudes das adolescências na semiliberdade: da fragilização dos laços à busca de si, de Jacqueline de Oliveira Moreira, Bianca Ferreira Rodrigues e Juliana Morganti, trazem as indagações da prática psicanalítica no campo socioeducativo com adolescentes em medida de privação de liberdade ou de semiliberdade. Os textos  abordam questões que tratam da judicialização e fixação dos adolescentes na posição de menores infratores, discutem as operações subjetivas que possibilitam o pertencimento e o reconhecimento do jovem como membro da cena social e problematizam o encontro com o Outro Social que não cumpre a função de interpelar, acompanhar e apostar no adolescente. Além destes questionamentos, buscam articular a sexualidade à cena social e política, debatem as dificuldades na transmissão geracional, o lugar do ato, a construção de uma narrativa, ou seja, forjam condições para que se construam políticas de sobrevivência e lugares de fala e existência para estes jovens diante dos impasses que vivem.

Os escritos Adolescentes 'filhos da migração' e o Estado: apontamentos envolvendo psicanálise e educação no contexto francês, de Gabriel Inticher Binkowski, e Entre exílio e exclusão: um dispositivo de acolhimento para alunos poli-excluídos no colégio, de Aurelie Maurin Souvignet, trazem ao debate os impasses vividos por adolescentes nas escolas francesas. Oriundos de famílias migrantes, estes jovens recebem, nas escolas, a imposição de dispositivos de transmissão tanto de conteúdos escolares como de modos de vida e de cultura. Eles precisam lidar com intervenções sociais associadas a uma certa ideia republicana de sociedade ocidental, muito diferentes de seus lugares de origem.

Por fim, destacando que o tratamento do sofrimento sociopolítico dos adolescentes deve se dar também na dimensão do coletivo, o artigo Ocupa Escola: tratamento aos impasses da adolescência no laço social, de Luciana Gageiro, aborda as ocupações das escolas ocorridas entre 2015 e 2017 em todo o Brasil; o artigo Sobrevivendo no Inferno: narrar a vida para fazer algo, de Marta Cerruti, destaca a potência da música, particularmente a produção do grupo de rap Racionais MC's, para construir uma narrativa comum a esses jovens. A ideia da autora é de que essas narrativas sejam passíveis de sustentar um testemunho destes adolescentes frente às políticas de morte, possibilitando, assim, alguma forma de tratamento à violência que impera invisível nas margens das cidades.

Com a perspectiva de construir políticas de sobrevivência com os jovens e não sobre os jovens, os artigos que seguem, neste dossiê, pautam uma articulação atual e necessária entre psicanálise, adolescência e política. Frente às condições postas no tecido social brasileiro e o sofrimento sociopolítico destes sujeitos, urge que possamos dar outros nomes a uma problemática social que é histórica no Brasil. Ao invés de jovens em situação de vulnerabilidade, inspiradas na pesquisa de Cláudia Trigo, que possamos honrar a dívida simbólica com estes meninos e meninas, chamando-os pelo nome construído por eles mesmos: jovens em luta pela vida!

 

 

Recebido em abril de 2020 – Aceito em abril de 2020.

 

 

1 Essa disciplina foi uma ação conjunta entre o PPG Psicanálise: clínica e cultura (UFRGS) e o PPG Psicologia Clínica (USP). As aulas ocorriam presencialmente no PPG Psicologia Clínica da USP e eram transmitidas ao vivo através de uma plataforma online aos alunos do PPG Psicanálise: clínica e cultura da UFRGS. A disciplina foi coordenada por docentes da USP (Prof. Miriam Debieux Rosa e Pós-doutorando Gabriel Binkowski) e da UFRGS (Prof. Rose Gurski e Prof. Claudia Perrone).
2 Rede que reúne pesquisadores e professores de Universidades públicas e privadas de norte a sul do país que trabalham com o tema da juventude e adolescência em situação de vulnerabilidade social a partir dos enlaces da psicanálise com as políticas públicas.
Revisão gramatical: Cláudia Maria Perrone
E-mail: cmperrone@ig.com.br

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