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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.25 no.1 São Paulo jan./abr. 2020
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i1p21-34
10.11606/issn.1981-1624.v25i1 p21-34
DOSSIÊ
Adolescência e lampejos: a construção de políticas de "sobrevivência"
Adolescencia y destellos: la construcción de políticas de "supervivencia"
Adolescence and flashes: the construction of "survival" policies
Stéphanie StrzykalskiI; Rose GurskiII
IPsicóloga. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura, Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: stephanie.strzykalski@hotmail.com
IIPsicanalista, professora e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura, Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: rosegurski@ufrgs.br
RESUMO
Este artigo parte da análise de algumas falas de adolescentes em situação de privação de liberdade, bem como de enunciados que recolhemos da cultura; na sequência, refletimos sobre a violência juvenil como uma maneira de recusar reduzir suas manifestações às lógicas criminalizantes, individualizantes e patologizantes. Compartilhamos também algumas problematizações que foram surgindo frente aos desafios e impasses que vivenciamos enquanto pesquisadores em psicanálise no campo socioeducativo: de que modo não sucumbir aos discursos que buscam fixar os jovens da socioeducação unicamente na posição de menores infratores? Como sustentar uma escuta baseada em uma política subversiva quando nos deparamos com uma sociedade fortemente atravessada por lógicas normatizantes? Essas e outras questões foram trabalhadas a partir do enlace entre a dimensão ético-política da psicanálise, a política das sobrevivências proposta por Didi-Huberman e o conceito de ralé proposto por Hannah Arendt.
Palavras chave: violência juvenil; socioeducação; lampejos; políticas de sobrevivência
RESUMEN
Este artículo parte del análisis de algunas declaraciones hechas por adolescentes en una situación de privación de libertad, así como declaraciones que recogemos de la cultura; A continuación, reflexionamos sobre la violencia juvenil como una forma de negarse a reducir sus manifestaciones a lógicas de criminalización, individualización y patología. También compartimos algunas discusiones que han surgido frente a los desafíos e impases que experimentamos como investigadores en psicoanálisis en el campo socioeducativo: ¿Cómo no podemos sucumbir a los discursos que buscan fijar a los jóvenes en la educación social únicamente en la posición de los delincuentes menores? ¿Cómo mantener una escucha basada en una política subversiva cuando nos enfrentamos a una sociedad fuertemente atravesada por lógicas normativas? Estas y otras preguntas se trabajaron desde el vínculo entre la dimensión ético-política del psicoanálisis, la política de supervivencia propuesta por Didi- Huberman y el concepto de chusma propuesto por Hannah Arendt.
Palabras clave: violencia juvenil; socioeducación; destellos; políticas de supervivencia
ABSTRACT
This article starts from the analysis of some statements made by adolescents in a situation of deprivation of liberty, as well as statements that we collect from culture; next, we reflected on youth violence as a way of refusing to reduce its manifestations to criminalizing, individualizing and pathologizing logics. We also share some discussions that have emerged in the face of the challenges and impasses that we experience as researchers in psychoanalysis in the socio-educational field: how can we not succumb to the discourses that seek to fix youth in socio-education solely in the position of minor offenders? How to sustain a listening based on a subversive policy when we are faced with a society strongly crossed by normative logics? These and other questions were worked from the link between the ethical-political dimension of psychoanalysis, the policy of survival proposed by Didi-Huberman and the concept of rabble proposed by Hannah Arendt.
Keywords: youth violence; socio-education; flashes; survival policies
Nos últimos anos, potencializamos as investigações que desenvolvemos1Â no campo da socioeducação a partir da parceria com uma instituição responsável pela execução de medidas socioeducativas de privação e restrição de liberdade2. Através do dispositivo que temos nomeado de Rodas de R.A.P. (Gurski & Strzykalski, 2018), ofertamos um espaço de circulação da palavra, articulado a narrativas musicais, para adolescentes em conflito com a lei dentro da própria Unidade em que estão acautelados.
Nas Rodas, o pesquisador vai ao campo escutar as narrativas dos meninos sem a pretensão de notar algo específico. Dito de outro modo, ele intervém a partir da ética do bem-dizer (Lacan, 1973/2003; Gurski & Strzykalski, 2018), isto é, na direção de criar condições para que os diferentes sentidos dos sujeitos possam se apresentar nas narrativas.
Ao longo desse percurso na instituição socioeducativa, percebemos que os meninos costumavam demandar músicas que, frequentemente, versavam sobre uma juventude bastante próxima da guerra do tráfico de drogas, das abordagens policiais violentas e das desigualdades socioeconômicas e raciais. Era como se, a todo instante, as narrativas musicais se confundissem com as vivências que os jovens diziam experimentar dentro e fora da instituição socioeducativa. Dentre essas narrativas, passou a nos inquietar particularmente aquelas que reduziam seus futuros a duas saídas possíveis: "a prisão ou a morte"3. Tal achatamento de suas vidas estava frequentemente atrelado à ligação desses sujeitos ao chamado "mundo do crime", ou seja, ao envolvimento com atividades ilícitas. Nas Rodas, com raríssimas exceções, todos os jovens
estavam envolvidos com o tráfico de drogas seja pelo envolvimento a uma facção específica, seja por morar em um território dominado pelo narcotráfico. Associado a essa questão, notamos uma proximidade exacerbada entre eles e a dimensão da morte tanto no protagonismo de atos violentos, quanto na posição daqueles que sofrem violência.
Nesse contexto, circularam pelas Rodas falas como a de Felipe4: "Dona, a gente sabe que, nessa vida do crime, a gente vai morrer cedo, eu tenho sorte de ter 17 anos... Disseram que eu ia morrer antes dos 15!". De fato, conforme discutimos anteriormente (Gurski & Strzykalski, 2019), são os sujeitos entre os 16 e 17 anos que condensam as maiores taxas mortalidade causada por homicídio em nosso país.
A socioeducação, assim como o sistema prisional, costuma circunscrever um recorte populacional bastante evidente: são meninos negros oriundos de famílias pobres que moram em zonas periféricas com altos índices de vulnerabilidade e violência e, em geral, com baixa escolaridade. A partir dos trabalhos de Gurski (2012), sabemos que jovens de classe média e média alta também cometem infrações, inclusive aquelas que são consideradas bizarras pela sociedade em virtude de seu caráter cruel. Um dos aspectos que parece diferenciar adolescentes de jovens infratores é o modo pelo qual tais atos têm sido tradicionalmente tratados pela sociedade (Strzykalski, 2019).
Os meninos representados nas estatísticas da socioeducação são vistos costumeiramente pela sociedade de modo geral como delinquentes ou menores infratores que sabiam exatamente o que faziam no momento da ação transgressora. Em resposta a isso, são sentenciados a cumprirem uma medida socioeducativa, especialmente no âmbito da privação de liberdade. Já os meninos de classe média ou média alta, estudantes ou universitários majoritariamente brancos, têm seus atos interpretados como a manifestação da impulsividade comum a todo adolescente ou garoto5, fato que justificaria que tivessem uma segunda chance em suas vidas. Assim, acompanhamos a atribuição de inocência a esses adolescentes que respondem em liberdade ou com medidas socioeducativas mais brandas e menos duradouras que o grupo marginalizado.
Tal argumento é baseado tanto em estatísticas6Â que traçam o perfil do socioeducando e evidenciam a seletividade socioeconômica e racial da justiça juvenil quanto na fala de trabalhadores da socioeducação com quem tivemos a oportunidade de conversar durante as pesquisas na instituição. Nesse sentido, estamos em consonância com o sociólogo norte- americano Howard Becker (2014, p. 73) quando esse afirma que:
O grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele. Regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas que a outras. Estudos da delinquência juvenil deixam isso muito claro. Meninos de áreas de classe média, quando detidos, não chegam tão longe no processo legal como os meninos de bairros miseráveis. O menino de classe média tem menos probabilidade, quando apanhado pela polícia, de ser levado à delegacia; menos probabilidade, quando levado à delegacia, de ser autuado; e é extremamente improvável que seja condenado e sentenciado. Essa variação ocorre ainda que a infração original da norma seja a mesma nos dois casos. De maneira semelhante, a lei é diferencialmente aplicada a negros e brancos.
Na esteira dessa discussão, Gurski (2012) analisa um episódio envolvendo jovens de classe média de Brasília que aconteceu em 2007. Através da internet, a polícia teve acesso ao registro das conversas de um grupo de adolescentes que, motivados pelo desejo passional de vingança, arquitetavam friamente o assassinato de outro menino. O planejamento do ato, que não foi levado a cabo por conta da intervenção policial, chama a atenção, pois os envolvidos pareciam estar convictos que sairiam impunes perante o crime. Dentre outras questões, afirmavam, por exemplo, ter conhecimento de um profissional que já havia conseguido livrar um homem das consequências de matar uma mulher com 75 facadas nas costas.
Analisando o título de algumas notícias, notamos que se repete essa lógica de diferentes formas de entender um mesmo ato. Enquanto há o Adolescente apontado traficante perigoso7, menino negro e pobre, há o Estudante de engenharia da Unicamp8Â que vendia drogas para classe média alta, jovem brancos oriundo de classe favorecida. Aparentemente, ainda que as atividades ilícitas realizadas sejam as mesmas, o significante traficante parece ficar bastante atrelado comumente a apenas um certo estrato social, econômico e racial.
Repetimos, então, a provocação feita pelo advogado Daniel Teixeira (2016, p. 66): "quem é o 'menor infrator' e quem é a criança/adolescente em nossa sociedade?". Para refletir sobre essa questão, o autor retoma em seu texto uma notícia veiculada em 2011, cujo título é Menor é apreendido por assalto a adolescente. De acordo com Teixeira (2016, p. 66), "o leitor é levado à conclusão de que há no fato duas categorias de seres humanos: o 'menor', que pratica o ato criminoso, e o 'adolescente', vítima do evento".
Cabe esclarecer que o uso da expressão menor enquanto substantivo nos remete ao antigo Código de Menores (Brasil, 1927), popularmente conhecido como Código de Mello Mattos. Esse foi o primeiro documento legal9Â de nosso país a sistematizar um conjunto de leis e intervenções a serem aplicadas exclusivamente à população infantojuvenil abandonada ou delinquente, os assim chamados menores (Marcílio, 1998). Na teoria, o objetivo do Código era zelar e promover o bem-estar desse público. Na prática, contudo, o documento legitimava a aplicação de ações repressivas, tutelares e higienistas somente às crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade econômica e social.
No âmbito do paradigma menorista, o menor delinquente era um desviante, uma ameaça à sociedade, o que implicava, portanto, em intervenções correcionais de disciplinarização e ajustamento à norma vigente. Já o menor abandonado era vítima de pais incapazes, o que justificava sua institucionalização também como uma espécie de intervenção preventiva por parte do Estado, uma vez que sua situação precária o levaria, inevitavelmente, ao cometimento de delitos no futuro. Nota-se, portanto, a presença de um discurso determinista que endossava tanto a culpabilização individualizada da violência juvenil quanto a criminalização da pobreza, narrativas que foram fundamentais no processo de estigmatização do menor.
Não por acaso, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990), o termo menor foi substituído por criança e adolescente. Tal alteração buscou refletir, no campo da linguagem, uma importante mudança jurídico-política: de meros indivíduos carentes e inadaptados, as crianças e adolescentes passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos. Citando Cortés e Morales (2007), Budó (2018) enfatiza que tal reconhecimento "traz consigo a proibição de que, sob o pretexto de proteger, venha-se a vulnerar ou restringir direitos, prática muito usual na perspectiva tutelar menorista" (p. 79).
Com Teixeira (2016), vimos que, apesar dos esforços empreendidos pelo ECA (Brasil, 1990), o termo menor ainda não caiu em desuso. Contemporaneamente, fazendo jus a sua herança, ele segue sendo uma maneira preconceituosa e pejorativa de referir-se a alguns adolescentes que cometem ato infracional. Nesse sentido, parece-nos que o título da referida matéria Menor é apreendido por assalto a adolescente condensa, em suas poucas palavras, o retrato de realidade de nosso país que evidencia as marcas da desigualdade que ainda não conseguimos superar.
Esta peculiaridade do público alvo de nossas pesquisas e intervenções fez com que nos debruçássemos sobre as discussões que enlaçam psicanálise, ética e política (Gurski, 2017; Gurski & Strzykalski, 2018; Gurski & Perrone, no prelo; Gurski, Strzykalski & Perrone, no prelo). Segundo o psicanalista Marcelo Checchia (2015), a direção dada a qualquer tratamento é indissociável de seu papel social, de seus pressupostos éticos e políticos. Retomando a relação igualmente indissociável entre clínica e pesquisa (Freud, 1912/2010), sublinharíamos, ainda, que tal assertiva também é verdadeira para qualquer investigação que tenha a psicanálise como fundamento teórico-metodológico (Gurski, Strzykalski & Perrone, no prelo).
Em nosso campo, a política sustenta-se em uma ética específica, a ética do desejo, e remete- nos, sobretudo, à finalidade do ato do psicanalista. Isso tanto no sentido do "fim/objetivo da experiência psicanalítica com cada analisante, quanto de maneira mais geral, à finalidade social de tal experiência" (Checchia, 2015, p. 19). Sendo assim, todo pesquisador-psicanalista está, invariavelmente, implicado em uma política quer ele explicite e se interrogue sobre isso em seus trabalhos, quer não.
A dimensão ética, por sua vez, articula-se à virada que Freud e Lacan põem em marcha com a proposição da ausência de um Bem Supremo universal e apriorístico capaz de orientar a experiência de ser e estar no mundo (Freud, 1933/1976; Lacan, 1959-60/1992; Gurski & Strzykalski, 2018). No lugar do Sumo Bem, apresentar-se-ia um objeto vazio, das Ding, que lança o sujeito em uma tentativa incessante de circunscrição do real10, daquilo que resta e insiste sem sentido na experiência humana diante de seu encontro com a linguagem.
A fim de elucidar a relação de imanência entre a função da psicanálise no laço social e sua política, Checchia (2015) problematiza dois conceitos psicanalíticos fundamentais: sintoma e cura. No contexto de uma política normativa, o sintoma psíquico é tomado como uma espécie de anomalia daquele que fala, e a cura, por sua vez, apontará para a sua (re)adaptação ao contexto social. Já em uma política que tende a ser subversiva, o sintoma é caracterizado como "um tipo de resistência a um discurso que engessa o sujeito" (p. 19), enquanto a cura "é reportada aos efeitos subjetivos da revelação de tal verdade" (p. 20).
Ora, como sustentar uma política subversiva quando nos deparamos com uma sociedade fortemente atravessada por discursos normatizantes, individualizantes e patologizantes? Como não sucumbirmos aos discursos que buscam fixar os jovens da socioeducação unicamente na posição de menores infratores?
No que concerne ao contexto da socioeducação, sabemos que tais discursos se presentificam, não raro, pela própria maneira como os jovens em conflito com a lei são nomeados por parte do laço social: perversos, escória, imorais, irrecuperáveis. Esses são exemplos de significações que reduzem os adolescentes ao ato infracional cometido, instalando o que Lacadée (2011) chama de programas de pensamento único sustentados por um falar verdadeiro, por discursos que destituem de legitimidade qualquer tentativa de retomada da dimensão polissêmica da linguagem. Dito de outro modo, são narrativas impermeáveis que se apresentam na condição de tudo dizer pelo próprio sujeito, deixando pouquíssimo espaço para que ele possa ser autor do que diz, faz, pensa ou sente (Strzykalski, 2019). Nas Rodas, recolhemos uma fala paradigmática do efeito perverso produzido por esses programas: um jovem fazia repetidas referências ao "mundo que a gente vive"; quando questionado sobre o que caracterizaria esse "mundo", ele disse às pesquisadoras: "ah, é que no mundo que a gente vive, se te dizem que tu é vagabundo e traficante, então tu é vagabundo e traficante".
É inquietante, pois, a partir da escuta nas Rodas, notamos que os próprios meninos acabam reproduzindo e se apropriando dessas nominações para falar de si próprios. Nesse sentido, desde a psicanálise, precisamos interrogar: quais podem ser as estratégias de produção de desvios ao caminho unívoco oferecido pelo falar verdadeiro (Lacadée, 2011)?
Em outra ocasião (Gurski, Strzykalski & Perrone, no prelo), inspiradas pela obra A sobrevivência dos vagalumes de Didi-Huberman (2011), discutimos que um dos modos de resistir a esses tempos sombrios talvez seja a possibilidade de construirmos políticas de sobrevivências. Da referida obra, recolhemos a ideia de que não podemos ser esmagados pela sensação de impotência frente à máquina totalitária. Partindo do conceito de Huberman (2011) de ato de resistência criativo, apontamos para a necessidade de formular caminhos potentes, e não melancólicos, de elaboração dos atuais sintomas que suscitam mal-estar na cultura, dentre eles, a violência juvenil.
Como alternativa à luz (luce) "ofuscante de um espaço e de um tempo apocalípticos" (p. 79), Didi-Huberman (2011) evoca o lampejo, a pequena luz (lucciola) intermitente que emitem os vaga-lumes (luccioles). Sua reflexão tem como ponto de partida o artigo de Pier Paolo Pasolini, publicado em 1975, que ficou conhecido como O artigo dos vaga-lumes. Nas palavras de Huberman (2011, p. 25-26), tal escrito caracterizava-se como "um lamento fúnebre sobre o momento em que, na Itália, os vaga-lumes desapareceram, esses sinais humanos da inocência aniquilados pela noite ou pela luz 'feroz' dos projetores do fascismo triunfante".
Enquanto Pasolini parece chorar a suposta morte dos vaga-lumes, Didi-Huberman (2011) toma um desvio e propõe uma política das sobrevivências. Fundamentada, especialmente, na noção de indestrutibilidade da experiência e do desejo, essa política nos impele a reconhecer "no mínimo vagalume uma resistência, uma luz para todo o pensamento" (p. 67).
Dialogando com o conceito de genocídio cultural desenvolvido por Pasolini (1974), Huberman (2011) define que o verdadeiro fascismo é aquele que tem por alvo o assujeitamento das almas, linguagens, gestos e corpos do povo. Como um desvio à sensação de sem saída que os novos totalitarismos produzem, o autor resgata a imagem intermitente e frágil do lampejo dos vaga-lumes, uma metáfora que alude à "energia revolucionária própria dos miseráveis, dos excluídos do jogo político corrente" (p. 34).
Na concepção de Pasolini (1974), os vaga-lumes teriam desaparecido justamente porque essa resistência popular teria sido ela própria convertida em instrumento da barbárie totalitária. Contudo, para Huberman (2011), se aceitarmos tacitamente que não há nada que se possa fazer frente ao apocalipse, corremos o risco de consentir com os chamados conselheiros pérfidos. Também conhecidos como profetas da infelicidade, esses seriam os representantes daqueles que querem nos fazer acreditar que não pode haver lampejos, um outro modo de falar sobre o ato criativo de resistência, no escuro de nosso tempo (Gurski, 2018, Gurski, Strzykalski & Perrone, no prelo).
O interessante para nossa discussão é que, pelo caráter delirante de um discurso que beira a clarividência, as hipérboles apocalípticas dos conselheiros pérfidos parecem despertar, a um só tempo, incredulidade e fascínio. É, justamente, sobre os perigos decorrentes da fascinação que nos alerta Huberman (2011). Ao endossarmos a narrativa de que estamos "condenados de qualquer forma" (p. 39), estamos autorizando que os profetas da infelicidade ocupem o trono de juízes supremos, lugar desde onde definem, arbitrariamente, o estatuto do fim dos tempos (Gurski, 2018). Nos termos propostos por Lacadée (2011), lhes autorizamos, portanto, a instalar um programa de pensamento único.
Sublinhamos que a posição que Huberman (2011) nos convoca a ocupar não é a de fecharmos os olhos para os perigos dos totalitarismos crescentes, tratando esses com eufemismo; tampouco de conferir à máquina totalitária e seus conselheiros pérfidos uma vitória definitiva que não deixa nem resto nem resistência. Trata-se, antes, de reconhecer a existência da máquina totalitária justamente para que possamos, a partir deste ato, organizar o pessimismo, expressão que Didi-Huberman (2011) recolhe de Walter Benjamin (Gurski, 2018).
Organizar o pessimismo diante da barbárie totalitária seria um modo de descobrir espaços políticos na dimensão de imagens dialéticas. Essas são imagens-pensamento que não são comprometidas nem com a origem antes de toda memória, nem com o horizonte após toda catástrofe, mas, sim, com as ressurgências do desejo em nossa vida mais cotidiana (Didi- Huberman, 2011). Esse exercício de organização importa, pois é a partir dele que podemos restaurar as condições de produção de lampejos, produção essa que a máquina totalitária visa a melindrar ao oferecer a pura escuridão ou a luz ofuscante dos projetores da racionalização que tudo explicam ou condenam.
Nesse sentido, os lampejos são as novidades reminiscentes que surgem apesar de tudo, resistências que se forjam a partir de um espaço "intersticial, intermitente, nômade, situado no improvável" (Didi-Huberman, 2011, p. 42). São atos de abertura de sentido, instantes "em que aparecem palavras quando as palavras parecem prisioneiras de uma situação sem saída" (p. 130).
Importa destacar que a noção benjaminiana de produção de experiências articula-se intimamente à produção de lampejos. Para adensar suas considerações acerca da não extinção dos vaga-lumes, Didi-Huberman (2011, p. 73) recolhe o seguinte trecho do clássico Experiência e Pobreza de 1933:
É como se nós tivéssemos sido privados de uma faculdade que nos parecia inalienável, a mais segura entre todas: a faculdade de trocar experiências (das Vermögen, Erfahrungen auszutauschen). Uma das razões desse fenômeno salta aos olhos: o valor da experiência caiu de cotação (die Erfahrung ist im Kursegefallen) . . .
Huberman (2011, p. 121) aponta que o termo alemão gefallen pode significar caído ou fracassado, algo que nos remete a um movimento terrível, mas que, ainda assim, não deixa de ser um movimento. Além disso, o filósofo também esclarece que
esse movimento não diz respeito à própria experiência, mas a sua "cotação" na bolsa de valores modernos (o diagnóstico de Benjamin se confirma ainda se se considera a "bolsa de valores" pós-moderna). O que Benjamin descreve é, sem dúvida, uma destruição efetiva, eficaz; mas é uma destruição não efetuada, perpetuamente inacabada, seu horizonte jamais fechado.
A dimensão da experiência é, portanto, indestrutível, ainda que em determinados contextos ela "se encontre reduzida às sobrevivências e às clandestinidades de simples lampejos na noite" (p. 148). Graças a essa teimosa mania de sobreviver, entendemos que os lampejos são os atos que despertam como potência em tempos de vulnerabilidade. É exatamente nessa via que Huberman (2011, p. 127) nos convoca ao interrogar: "Somos 'pobres em experiência'? Façamos dessa mesma pobreza - dessa semiescuridão - uma experiência".
Recusando aceitar a morte das sobrevivências como uma possibilidade, Huberman (2011) toma o desaparecimento dos lampejos não como uma tragédia efetuada, mas como o resultado de um dos modos possíveis de olhar para o contemporâneo. Em suas palavras, o filósofo assevera que "o que 'cai' não 'desaparece' necessariamente, as imagens estão lá, até mesmo para fazer reaparecer ou transparecer algum resto, vestígio ou sobrevivência" (p. 121). É preciso colocarmo-nos sob o prisma de um certo ângulo para que possamos assistir ou protagonizar atos de lampejo. Enquanto Pasolini (1974) brada que os vaga-lumes estão mortos, é como se Huberman (2011) nos provocasse com uma questão: quais são as condições necessárias para que possamos produzir lampejos no escuro de nosso tempo?
Nesse sentido, propomos articular a política das sobrevivências, tal como propuseram Gurski, Strzykalski e Perrone (no prelo), seu respectivo reconhecimento da potência dos lampejos dos vaga-lumes e a política que norteia as intervenções nas Rodas de R.A.P. Lembramos que a experiência com o dispositivo nos possibilita discutir o que temos nomeado como efeitos de sujeito no campo da socioeducação, momentos em que o adolescente que nos fala é capaz de resistir à língua unívoca ao formular novos sentidos para si e para o mundo, recusando, portanto, a redução de suas questões subjetivas à dimensão infracional que marcou sua trajetória. Ainda que pontualmente, ao conseguir abrir outros sentidos para questões cronificadas, o sujeito cria, em seu discurso, um intervalo, um ato de lampejo, uma hiância entre o que não existe e o que está prestes a existir.
Utilizamos a expressão efeitos de sujeito também para diferenciar o que se passa nas Rodas do que se passa em uma análise. Em uma análise, busca-se oferecer condições para que o sujeito possa realizar a travessia de seu fantasma, isto é, reposicionar-se, em nível estrutural, em relação aos seus modos de gozo a partir de uma ressignificação do lugar do Outro. Nas Rodas, por sua vez, busca-se provocar o surgimento de lacunas no discurso dos jovens a partir da desacomodação de certezas tácitas, condição necessária para a produção de movimentos em sentidos cronificados.
Guerra et al. (2012, p. 260) afirmam que o jovem, "desde que inserido na trama imaginária do Outro do tráfico, parece não contar mais como sujeito que se apropria de suas próprias experiências, mas se apresenta como corpo-objeto que se lança na manutenção desse 'sistema'". Sem dúvida, a voracidade que permeia o discurso do tráfico coloca os jovens, muitas vezes, nessa posição de objetos de gozo do Outro ao presentificar maciçamente diversas facetas da violência e da morte iminente. Não obstante, acreditamos que é possível, sim, que eles estejam no tráfico e sejam capazes de contar a si próprios como sujeitos, sobretudo quando lhes são ofertados espaços em que a sua palavra pode ter valor (Strzykalski, 2019). Nos termos colocados por Didi-Huberman (2011), apostamos que a palavra desses jovens tem o poder de destituir o falar verdadeiro (Lacadée, 2011) do lugar que muitas vezes ele acaba ocupando, a saber, de um conselheiro pérfido que, sentado em seu trono, vocifera arbitrariamente: vais morrer cedo, não passa dos 15 anos; tu és descartável; teu destino é prisão ou morte; não podes para parar e pensar, é matar ou morrer.
Nas Rodas, um exemplo de vacilação dos programas de pensamento único (Lacadée, 2011) ocorreu quando os meninos falavam sobre como se organiza o tráfico usando a metáfora de "subir uma escada". Alisson disse que via o patrão lá em cima, "no 11º degrau", o que fazia com que ele quisesse subir até lá também. Disse-nos que, apesar da mídia não mostrar, o patrão é alguém importante para a comunidade, uma vez que "ele ajuda as pessoas, compra doces e distribui pelas casas no dia das crianças".
O problema é que subir até o 11º degrau é um árduo desafio. Segundo Alisson, mesmo que o patrão tentasse ajudar, ele normalmente acabava caindo sempre que alcançava, no máximo, o 3º degrau, voltando, assim, para o começo. Ao perguntarmos se o patrão também não poderia cair, ele nos diz que não. Nesse momento, Felipe interveio: "as coisas não são bem assim". Segundo ele, tem patrão que não ajuda justamente porque sabe que "o cara vai ser melhor que ele", lembrando ainda que "os de cima" caem menos porque "os debaixo", isto é, eles, ficam cuidando.
Seguindo, aparentemente, essa mesma lógica discursiva dos que estão embaixo sustentando a manutenção do lugar daqueles que estão em cima, tivemos a seguinte cena: "o Jeferson disse: a droga vem de navio pra cá, né Dona, tu sabe... esses são os grandes... Aí o Felipe completou: é, mas a gente que é pequeno é quem segura os grandes". O que nos chama a atenção é que esses dois momentos nos fazem pensar que há um movimento que faz furo no saber do tráfico. Isso porque, em suas falas, é possível perceber uma relativização importante no que concerne à onipotência com a qual o chefe do tráfico é, muitas vezes, caracterizado.
Esse mesmo movimento de esburacamento dos discursos impermeáveis repetiu-se quando um menino falou, durante as Rodas, sobre a lógica do tráfico: "se tu morrer ou for preso, não faz diferença, no dia seguinte já colocam outro no teu lugar". Tal fala pareceu inquietar outro jovem: "é, pro tráfico pode ser que não importa, mas pra família do cara sim". Nessa mesma direção, os meninos puderam contar sobre como é doloroso perder um "cupinxa" (parceiros) da mesma facção, já que, além de laços profissionais, constroem laços fraternos com seus companheiros.
A escuta psicanalítica na socioeducação: um modo de produção de lampejos?
Apostando na política das sobrevivências tal como propuseram Gurski, Strzykalski e Perrone (no prelo) a partir de Didi-Huberman (2011), entendemos que uma maneira de resistir aos programas de pensamento único (Lacadée, 2011) é justamente seguir insistindo na defesa da dimensão polissêmica da linguagem ali onde tentam reduzi-la a sentidos unívocos. Enquanto estratégias dessa política, destacamos não só a oferta de dispositivos clínicos como as Rodas no campo da pesquisa em psicanálise, mas também a possibilidade de tensionarmos e problematizarmos alguns dos enunciados que são proferidos quase que diariamente pelos conselheiros pérfidos de nosso tempo.
Nesse sentido, parece-nos interessante fazer ainda algumas conexões entre o modo como apresentamos o conceito de conselheiros pérfidos e a noção de ralé que Hannah Arendt explora no livro As origens do totalitarismo (1949/2012). O conceito nasce da diferenciação entre povo e ralé, sendo esse segundo uma espécie de caricatura do primeiro. Assim como o povo, o grupo nomeado como ralé é composto pelo resíduo de todas as classes e camadas sociais, o que facilitaria a confusão de toma-lo um pelo outro. Conforme apontado por Serrano (2016), em função dessa abrangência, tal conceito diferencia-se radicalmente de seu senso comum, isto é, a figura do pobretão, assim como da ralé proposta pelo sociólogo Jessé de Souza que se baseia em dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
A diferença fundamental entre povo e ralé está na relação que esses grupos estabelecem com a vida política. Para Arendt (1949/2012), o povo reconhece o direito de cada indivíduo e, justamente por isso, luta por um sistema realmente representativo, resolvendo seus conflitos através de ações que se situam no campo formal da política. Já "a ralé brada sempre pelo 'homem forte', pelo 'grande líder'" (p. 159), recorrendo a ações violentas e extraparlamentares que visam ao fim de todo conflito. Nesse contexto, ao reconhecer tal postura antidemocrática, concordamos com Serrano (2016) quando esse aponta que o desejo da ralé não é pela política, mas, sim, pela ordem desejo esse que abre margem para medidas de exceção sustentadas no princípio de que os fins justificam os meios. Não por acaso, durante o nazismo, a ralé
produziu líderes que, sem se preocuparem com o fato de serem ou não os judeus suficientemente importantes para se tornarem o foco de uma ideologia política, repetidamente viram neles a 'chave da história' e a causa central de todos os males . . . (Arendt, 1949/2012, p. 35, grifo nosso)
Atualmente, no âmbito da política e dos governos, acompanhamos a proliferação de líderes que poderiam ser chamados de conselheiros pérfidos a partir de discursos que vão na direção da criminalização, patologização e individualização da violência juvenil. Legitimados pela ralé, são aqueles que, com discursos e ações concretas, demonstram seu desejo de afastamento e/ou de extermínio em relação aos jovens em conflito com a lei, sobretudo os de pele preta (Lacadée, 2011; Strzykalski, 2019). Trata-se, portanto, de um modo de pensar e agir que coloca alguns jovens que despertam tensões com seus atos no lugar de meros objetos, dejetos que a sociedade precisa achar uma maneira eficaz de se desembaraçar.
Ora, como já referido, o lugar de conselheiro pérfido só pode ser ocupado na medida em que há algum tipo de validação, de reconhecimento dessa função. Tal noção também parece figurar na obra arendtiana (1949/2012), visto que é a ralé que produz os líderes e não o contrário. Nesse sentido, sustentando-nos desde uma posição ético-política, recusamos os discursos da ralé e de seus líderes sobre os chamados menores infratores ao tomarmos um número expressivo de casos de violência juvenil como um sintoma social, isto é, como atos que portam uma mensagem cifrada cuja origem e endereçamento remontam a um mesmo lugar: o laço social. Por isso mesmo, entendemos que é imprescindível que nossas reflexões levem em consideração a dimensão sociopolítica do sofrimento (Rosa, 2016), isto é, o mal-estar produzido pelas desigualdades sociais, étnicas e de gênero que ainda se mostram tão enraizadas estruturalmente em nossa cultura.
Se, hoje, a violência juvenil assume esse lugar de destaque como forma de expressão do mal- estar, lembremos que isso nem sempre foi assim. Nos primórdios da psicanálise, tínhamos os inquietantes sintomas das histéricas da era vitoriana e, mais tarde, também o sofrimento dos neuróticos de guerra, ambos fazendo a função de interrogantes das condições do laço social (Gurski, 2017). Em função de estarmos cientes disso, afirmamos, juntamente com Lacan (1953/1998, p. 321), que ter ". . . em seu horizonte a subjetividade de sua época", ou seja, entre outras questões, considerar os modos atuais de sofrimento psíquico, talvez seja o principal compromisso ético-político de todo pesquisador em psicanálise que topa atualizar a questão sobre os modos de levar a escuta psicanalítica e seus fundamentos para outros sítios.
Gurski (2019), ao discutir metodologicamente o encontro entre psicanálise e socioeducação, toma para análise o texto lacaniano Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953/1998). A psicanalista busca dar ênfase ao fato de que, desde aquela época, Lacan (1953/1998) já alertava sobre os riscos da docilização da teoria psicanalítica, em especial, pela via da repetição ecolálica dos pioneiros. No referido escrito, Lacan indagou: caso seja tomada como doutrina, a teoria freudiana não correria o risco de ficar reduzida a um certo "formalismo enganador que, desencoraja a iniciativa ao penalizar o risco, e que faz do reino da opinião dos doutos o princípio de uma prudência dócil onde a autenticidade da pesquisa se embota antes de se esgotar?" (p. 240).
A partir de tal problematização, Lacan (1953/1998) destaca a importância de não nos resignarmos à docilidade da repetição doutrinária em nome de um suposto rigor falacioso. De fato, diante de um excesso de prudência, não há como haver um espaço legítimo desde onde a experiência possa vir a interrogar os fundamentos. Adotando essa posição, assistimos ao apagamento da autenticidade e da criatividade próprias da pesquisa psicanalítica (Gurski, 2019).
É interessante, pois, já na abertura do Seminário 1, Lacan (1953-54/2009) afirma que "o pensamento de Freud é o mais perpetuamente aberto à revisão" (p. 9). Mais adiante, ao debruçar-se sobre a discussão do texto Introdução ao Narcisismo (1914), o psicanalista assevera que Freud não "dissimula de modo algum as obscuridades e os impasses, . . . ele não traz uma solução, mas abre uma série de questões, nas quais devemos tentar nos inserir" (p. 163). Novamente, são trechos recolhidos da obra lacaniana que destacam a importância de podermos nos autorizar a criar o novo, a formular aquilo que ainda não existe isso, contudo, sem nos afastarmos dos fundamentos da teoria psicanalítica.
Diante de novas formas de expressão do sofrimento, como uma posição de um certo excesso de prudência dócil poderia nos ajudar a não sucumbir aos conselheiros pérfidos? Quando a experiência nos exige algo que ainda não foi pensado, algo da ordem dos atos criativos de resistência, dos lampejos, de que vale uma teoria que se esgota em si mesma? É justamente porque nos deixamos interpelar pelo mal-estar de nosso tempo social que a subjetividade de nossa época se torna uma espécie de porta-voz; é por isso, também, que recusamos a repetição doutrinária e o silenciamento da experiência evocados por Lacan (1953/1998) e retomados por Gurski (2019).
Levar a experiência da palavra a estes outros espaços diferentes do setting padrão é considerar, acima de tudo, a dimensão da alteridade e dos fundamentos da ética psicanalítica. Esse desdobramento da clínica resulta de uma aposta pelo caminho que nos leva a construir espaços de acolhimento para o sofrimento psíquico de adolescentes em situação de vulnerabilidade e daqueles que trabalham com eles (Gurski, 2018).
É nesse sentido que seguimos insistindo na aposta ético-política de uma produção de conhecimento articulada às demandas sociais contemporâneas, principalmente no tocante ao mal-estar decorrente das manifestações da violência juvenil; tal postura tem sido uma importante estratégia de resistência que faz frente aos programas de pensamento único dos conselheiros pérfidos de nosso tempo.
Como discutido acima, mesmo após a promulgação do ECA (Brasil, 1990), preconceitos e estigmas ligados à figura do menor delinquente seguem circulando na linguagem, especialmente através dos já referidos discursos impermeáveis. Não raro, vemos que tal posição discursiva é reproduzida pelos próprios trabalhadores que atuam na ponta das políticas de socioeducação. É digno de nota que, na instituição em que realizamos as Rodas, há um número expressivo de socioeducadores que foram monitores da extinta Fundação Estadual do Bem- Estar do Menor (FEBEM), dispositivo de internação repressivo-correcional adotado na época da ditadura enquanto ainda era vigente o paradigma menorista.
Nesse sentido, apostamos que as reflexões compartilhadas no presente artigo possam servir como um interessante material de apoio àqueles que, de diferentes formas, topam atualizar o encontro entre psicanálise e socioeducação. Destacamos aqui os profissionais psi que ministram cursos de formação cujo público-alvo são os agentes socioeducativos, trabalhadores que lidam diretamente com os jovens em cumprimento de medida. Aproximar esses trabalhadores de problematizações sustentadas por uma política subversiva e não normatizante pode ser uma via de intervenção no sentido de facilitar a vacilação dos discursos que ainda costumam reduzir os jovens aos atos infracionais cometidos. É preciso construir junto com esses profissionais outras possibilidades de leitura para a violência juvenil, bem como fomentar espaços de reflexão acerca dos efeitos nocivos dos discursos estigmatizantes, racistas e culpabilizadores que são direcionados a certos jovens em nosso país.
Seguir criando formas de encontro da pesquisa acadêmica com a sociedade e com as políticas públicas, nas quais se inclua o trabalho com aquilo que, no laço social, produz mal-estar e urgência em relação a uma parcela de nossa juventude, é, também, um modo de evocar os efeitos políticos da escuta (Gurski, 2018). A partir desse posicionamento, decorre o compromisso que temos com o alargamento das bordas da escuta psicanalítica e do adensamento da ideia da construção de políticas de sobrevivências mesmo nos contextos mais adversos.
Referências
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Recebido em novembro de 2019 Aceito em fevereiro de 2020.
1 Referimo-nos ao Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/UFRGS) - Eixo Psicanálise, Educação, Adolescência e Socioeducação. Este eixo dedica-se a investigar as condições do laço social contemporâneo com ênfase no tema da adolescência de sujeitos em situação de violência e vulnerabilidade. No grupo, participam docentes de diferentes IE's do Brasil, pesquisadores associados, mestrandos e bolsistas. Para outras informações: www.ufrgs.br/nuppec e www.facebook.com/nuppec.
2 As medidas socioeducativas ocorrem no âmbito da política pública de socioeducação que é destinada a jovens entre 12 e 18 anos incompletos que praticaram atos considerados infracionais. Segundo o SINASE - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Brasil, 2006), através da aplicação e execução de medidas socioeducativas, busca-se coadunar a responsabilização do adolescente em relação à infração cometida (com a necessária limitação de direitos determinada por lei e aplicada por sentença) e a satisfação de direitos fundamentais. As medidas socioeducativas se dividem em medidas de meio aberto (a advertência, a obrigação de reparar o dano; a prestação de serviços à comunidade; a liberdade assistida) e meio fechado (a inserção em regime de semiliberdade e a internação em estabelecimento educacional) (Brasil, 1990).
3 Ao longo deste escrito, sempre que uma expressão ou palavra aparecer em itálico e entre aspas, tratar-se-á de uma fala literal dos participantes das Rodas. Por isso mesmo, decidimos manter o caráter coloquial desses relatos. Todas as cenas, falas e expressões compartilhadas neste trabalho foram recolhidas nos diários de experiência dos pesquisadores que atuaram no campo. Para mais informações sobre esse instrumento teórico-metodológico, ver Gurski (2017, 2019).
4 Todos os nomes empregados neste artigo foram modificados a fim de garantir o anonimato dos participantes das Rodas de R.A.P.
5 Aludimos à fala "Eu já adverti o garoto, o meu filho, a responsabilidade é dele. Ele já se desculpou" (grifo nosso) de Jair Bolsonaro, em 2018, na época candidato à presidência, sobre o filho de 34 anos que, durante uma palestra, afirmou que bastaria um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/ja-adverti-o-garoto-diz-bolsonaro-sobre-filho-ter-falado-em-fechar-stf.shtml
6 Ver FASE (2015) e Brasil (2018).
7 Fonte: http://www.folhavitoria.com.br/policia/noticia/2013/06/adolescente-apontado-como-traficante-perigoso-e-apreendido-pela-5a-vez-durante-operacao-em-vitoria.html
8 Fonte: https://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/estudante-de-engenharia-da-unicamp-vendia-drogas-para-classe-media-alta-e-ganhava-bastante-dinheiro-diz-delegado.ghtml
9 Ésabido que o Código de Menores sofreu alterações em 1979 durante o período da ditadura militar (Budó, 2018). Essas, contudo, seguiram endossando o caráter estigmatizante e culpabilizador carregado pelo termo menor, aspecto que nos interessa problematizar.
10 O real é o que não pode ser simbolizado totalmente na palavra ou na escrita, aquilo que não cessa de não se escrever. O real é um dos três registros que, junto ao simbólico e ao imaginário, fundam o que Lacan denominou RSI as instâncias indissociáveis ligadas pelo nó borromeu, que dão conta da relação do sujeito com a falta. O real designa o impossível de ser simbolizado; o simbólico seria o lugar do significante e da função paterna; o imaginário seria o lugar supremo das identificações, lugar das ilusões do eu, da alienação do sujeito. Para outros detalhes, ver Roudinesco e Plon (1998).
Revisão gramatical: Cláudia Maria Perrone
E-mail: claudia.perrone@ufsm.br