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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.25 no.1 São Paulo jan./abr. 2020
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i1p63-76
10.11606/issn.1981-1624.v25i1p63-76
DOSSIÊ
Ocupa Escola: tratamento aos impasses da adolescência no laço social?
Ocupar la escuela: ¿tratamiento de impasses de la adolescencia en el vínculo social?
Occupy School: treatment to the impasses of adolescence in the social bond?
Luciana Gageiro CoutinhoI
IProfessora-associada da Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil. Email: lugageiro@uol.com.br
RESUMO
O artigo parte do pressuposto de que pensar a adolescência é também refletir sobre os impasses no laço social, incluindo-se aí o laço educativo e os discursos que o constituem. Sustenta que, no contexto escolar brasileiro, os laços dos adolescentes com a família e com a escola são muitas vezes marcados pela condição de vulnerabilidade social e por discursos educativos atravessados por especialismos e por exigências produtivistas. Esses sujeitos adolescentes são assim silenciados e tal condição de desamparo discursivo incide sobre o trabalho da adolescência dificultando a passagem do discurso infantil referido à família para os discursos sociais referidos ao Outro social. Defende que o sofrimento psíquico desses adolescentes é sociopolítico, ou seja, diz respeito aos impasses provenientes dos lugares que ocupam no laço social e nos discursos dominantes, de modo que o seu tratamento deve se dar também na dimensão do coletivo. Aborda alguns extratos de uma pesquisa sobre as ocupações das escolas ocorridas entre 2015 e 2017 em todo o Brasil para pensar sobre o trabalho da adolescência e um tratamento possível aos impasses no laço social que se apresentam na escola em nosso contexto contemporâneo.
Palavras chave: adolescência; psicanálise; laço social; escola; movimentos sociais.
RESUMEN
El artículo supone que al pensar la adolescencia también se está reflexionando sobre los impasses en el vínculo social, incluido el vínculo educativo y los discursos que lo constituyen. Sostiene que, en el contexto escolar brasileño, los lazos de los adolescentes con la familia y la escuela suelen estar marcados por la condición de vulnerabilidad social en la que se encuentran y por discursos educativos atravesados por especialidades y demandas productivistas. Estos sujetos adolescentes son a menudo silenciados y esta condición de desamparo discursivo afecta el trabajo de la adolescencia, dificultando el pasaje del discurso infantil referido a la familia a los discursos sociales referidos al Otro social. Sostiene que el sufrimiento psíquico de estos adolescentes es sociopolítico, es decir, se refiere a los impasses que surgen de los lugares que ocupan en el vínculo social y en los discursos dominantes, por lo que su tratamiento también debe tener lugar en la dimensión colectiva. Discute algunos extractos de una investigación sobre las ocupaciones escolares que tuvieron lugar entre 2015 y 2017 en todo el Brasil para reflexionar sobre el trabajo de la adolescencia y un posible tratamiento para los impasses en el vínculo social que se presentan en la escuela en nuestro contexto contemporáneo.
Palabras clave: adolescencia; psicoanálisis; vínculo social; escuela; movimientos sociales.
ABSTRACT
The article assumes that thinking about adolescence is also think about the impasses in the social bond, including the educational bond and the discourses that constitute it. It argues that, in the brazilian school context, adolescents' ties with family and school are often marked by the condition of social vulnerability in which they find themselves and by educational discourses traversed by specialties and productivist demands. These subjects are then silenced and this condition of discursive helplessness affects the work of adolescence, making it difficult the passage from the child discurse refered to family to social discourses refered to the social Other. It argues that the psychic suffering of these adolescents is sociopolitical, that is, it concerns the impasses arising from the places they occupy in the social bond and in the dominant discourses, so that their treatment must also take place in the collective dimension. It discusses some extracts from a research about school occupations that took place between 2015 and 2017 in Brazil to think about some relations between the work of adolescence and a possible treatment to the impasses in the social bond that are present at school in our contemporary context.
Keywords: adolescence, psychoanalysis, social bond, school, social movements.
A educação de crianças e jovens é sempre reveladora da cultura e dos laços sociais em um dado espaço e tempo na história. No que diz respeito à infância, sabemos que o ideário do cuidado e proteção diferenciados remonta à época moderna e chega ao Brasil atingindo diversos setores da sociedade de forma desigual, como todo o resto dos bens materiais e imateriais que chegam aqui desde a época do império. No caso da adolescência, ainda que seu aparecimento na história seja mais tardio, a situação não é muito diferente. Em função de nossa história de precariedade e desigualdade social, a referência ao mundo público para muitos adolescentes brasileiros é frágil, o que dificulta o desligamento da esfera familiar e a construção de outras redes simbólicas, incluindo-se a escola.
Na contramão de um discurso oficial que circula nas mídias sobre o desinteresse dos jovens na escola, no documentário Nunca me sonharam, dirigido por Cacau Rhoden (2017), os adolescentes de várias regiões do Brasil nos acenam com seu interesse em lutar por um projeto de educação que os valorize e os respeite como sujeitos. No filme, podemos assistir a diversos depoimentos de adolescentes sobre a busca de maior espaço e participação nas escolas em que estudam. Há também depoimentos de estudantes e professores sobre experiências produtivas, bons encontros, em diversas escolas brasileiras.
O título do filme é justamente uma expressão derivada da fala de Felipe Lima, um adolescente de Nova Olinda, município do interior do Ceará que, ao contar sobre o que sua família esperava de seu futuro, diz "acho que nunca me sonharam. Nunca me sonharam psicólogo, nunca me sonharam sendo um professor, um médico. Eles não sonhavam e não me ensinaram a sonhar". Será que, além da família, a escola de Felipe e a sociedade em que vive são capazes de sonhá-lo? Sonhar uma vida para ele, acreditando no seu futuro e apostando que daí possa produzir seus próprios sonhos?
Nunca me sonharam nos faz pensar na noção de desamparo, trabalhada por Freud (1895/1996, 1926/1996, 1930/1996) como condição humana inescapável e fundamental para a psicanálise. O desamparo do bebê humano diz respeito ao Outro1Â como necessário à sobrevivência física, mas também psíquica. Esse bebê precisa ser sonhado, banhado pelas palavras, carregadas de diversos tons de afetos, que um outro lhe dirige nos primórdios da sua vida psíquica a partir das referências de uma cultura e de uma época. Lacan (1958-1959/ 2016; 1964-1965/1988) acrescenta que é no desejo do Outro, lugar de palavra, que o sujeito se constitui e nele está fadado a se alienar e se separar durante toda a vida. Na infância, o Outro se faz presente encarnado em figuras parentais, nos educadores, mas também se faz presente sob a forma de discursos sociais que atravessam as relações e os contextos nos quais a criança está inserida. É interessante marcar, como enfatizou Lacan anos mais tarde, que os laços sociais são laços discursivos (Lacan, 1969-70/1992), tendo seu fundamento na linguagem e oferecendo à pulsão um destino possível que remete não só a história individual de cada um mas também à cena social e política que a atravessa.
O confronto com o desamparo é retomado na adolescência. As novas exigências da cultura, bem como as novas exigências pulsionais suscitadas pela puberdade, trazem à tona novamente o necessário encontro com o Outro para que o desejo possa assumir novas configurações. O tempo da adolescência, que não pode ser contado em termos cronológicos e que não se reduz de forma natural a uma faixa etária predefinida, é um tempo de um intenso trabalho psíquico que envolve a cultura e o laço social (Coutinho, 2009). É no laço social, familiar, escolar e mais amplo, que o trabalho de reconfiguração do circuito pulsional se dá. Mas isso implica sempre em um risco para o adolescente, o risco de não encontrar outros que lhes ofereçam a possibilidade de serem minimamente vistos e ouvidos como sujeitos, e, pelo contrário, promovam o seu silenciamento e o seu apagamento subjetivo.
Portanto, tratar da adolescência é também se debruçar sobre os impasses no laço social que hoje se apresentam, incluindo-se aí o laço educativo e os discursos que o constituem. De modo análogo, o trabalho da adolescência não se dá sem referência aos discursos sociais e aos modos de gozo ofertados pela cultura, já que implica a assunção de uma posição discursiva e desejante frente ao Outro. Por isso, é sempre um trabalho que toca o campo político e os embates discursivos próprios de uma época. É também por esse motivo que a pesquisa sobre a adolescência nos convoca sempre ao diálogo com outros campos do saber que tratam das relações humanas, sejam eles a educação, as ciências sociais e políticas ou o campo jurídico. Nesse sentido, neste artigo abordaremos alguns extratos de uma pesquisa2Â com adolescentes participantes das ocupações de escolas ocorridas entre 2015 e 2017 em todo o Brasil para pensar algumas relações entre o trabalho da adolescência e um tratamento possível aos impasses no laço social que se apresentam na escola.
O adolescente e os discursos educativos
Tomamos a adolescência como um trabalho psíquico de construção de bordas, que dão contornos à pulsão e são retificadas na adolescência, a partir de um novo encontro com Outro, mais matizado pela falta e referido a instâncias extrafamiliares: O Outro sexo e o Outro da cultura (Alberti, 2004). A operação adolescente visa promover novas amarrações entre os registros do real, simbólico e imaginário, pode ser então definida como:
A adolescência é assim a passagem entre o discurso infantil referido ao Pai para os discursos sociais referidos ao Outro social. O remanejamento imposto por esta passagem entre duas formas de referência (...) implica um remanejamento da organização psíquica e da relação do sujeito com o mundo (Lesourd, 2004, p. 12).
O sujeito adolescente tem como desafio ir além do lugar ocupado no discurso familiar e nos discursos sociais que possam aliená-lo ou silenciá-lo. A tensão entre a alienação e a separação, teorizada por Lacan ([1964-65] 1988), é central na adolescência (Alberti, 2004). Desta forma, podemos situar o paradoxo fundamental vivido pelo adolescente em relação ao mundo adulto: encontrar/confrontar para dele se separar, identificar-se para singularizar-se. O declínio das idealizações dos pais é alimentado pelo movimento de separação, de saída de uma posição de dependência e alienação vivida como mortificante, na adolescência. O adolescente vive sob a permanente ameaça de objetalização, e essa ameaça estará presente em todas as relações com os representantes do mundo adulto, o que se faz presente de modo marcante na escola e se expressa frequentemente sob a forma de ataques e recusas ao professor e ao conhecimento.
É importante ressaltar o lugar de referência que o educador e as instituições educativas ocupam para os adolescentes, ainda que provoquem muitas vezes relações ambivalentes por parte dos alunos, que comportam tanto a idealização quanto a rejeição como já observou Freud (1914/1996). Entretanto, como tem sido discutido por diversos autores no campo da psicanálise em diálogo com a educação, quando o educador é capaz de situar-se como um mestre não-todo, deixa um espaço para que o sujeito adolescente possa ali enganchar o seu desejo, escapando do fantasma objetalizante e constituindo novos enlaçamentos discursivos. Quando o saber e o ensinar passam pelo desejo, dá-se a transmissão de um desejo de saber, ou seja, o que se transmite no ensino é o desejo e a relação com o saber e assim, muitas vezes, aquilo que poderia ser desinteressante e impessoal passa a ser interessante (Pereira, 2016; Gutierra, 2003).
No que diz respeito à implicação da escola no "desejo de viver" na adolescência, Freud é enfático em uma conferência feita em 1910 numa escola secundária após um caso de suicídio entre os alunos: "Uma escola secundária deve conseguir mais do que não impelir seus alunos ao suicídio. Ela deve lhes dar o desejo de viver e devia oferecer-lhes apoio e amparo numa época da vida em que as condições de seu desenvolvimento os compelem a afrouxar seus vínculos com a casa dos pais e com a família. Parece-me indiscutível que as escolas falham nisso, e a muitos respeitos deixam de cumprir seu dever de proporcionar um substituto para a família e de despertar o interesse pela vida do mundo exterior (...). A escola não pode ajudicar-se o caráter de vida: ela não deve pretender ser mais do que uma maneira de vida (Freud, 1910/1970: 218).
O trecho acima sublinha a escola como um lugar de desejo, de vida. Como também volta a apontar em 1914 (Freud, 1914/1996), a experiência vivida na escola vai muito além daquilo que se aprende a respeito do conteúdo das disciplinas ensinadas. Nesta ocasião, chama atenção para o investimento afetivo que estava presente na sua relação com os professores e com os colegas de classe, que, segundo ele, foram determinantes para os seus caminhos futuros na construção da sua obra. Assim, o desejo e a relação com o saber daquele que ensina, bem como as relações horizontais entre os que partilham a experiência escolar, tomam parte fundamental nesse processo.
Entretanto, isso não corresponde ao que predomina no cotidiano de nossas escolas. A apatia que marca o cotidiano escolar, tanto do lado dos alunos quanto dos professores, pode ser pensada como efeito da presença maciça do discurso capitalista em sua aliança com a hegemonia do discurso científico na escola. Na lógica da produção capitalista, o sujeito é abordado como objeto a ser consumido e produzido, excluindo o outro do laço social. Regida por esse discurso, a política educacional, tanto estatal quanto privada, investe na padronização dos sistemas de ensino, e nas avaliações quantitativas, configurando um discurso do domínio e do poder do qual o sujeito com sua singularidade e desejo são excluídos, como tem apontado Voltolini (2001). Deste modo, prevalece uma espécie de anomia ou anonimato no laço educativo, deve-se ensinar de forma impessoal para um aluno genérico, deixando-se de lado qualquer sinal de afeto e ou de um estilo pessoal, sob pena de comprometer a eficácia da técnica educativa.
Nesse sentido, os discursos educativos que dominam o cenário escolar e familiar expressam uma demanda imperiosa que sobrepuja a aposta contida na transmissão pela via do desejo. Seja através da prevalência das avaliações quantitativas, do material didático utilizado de forma padronizada, ou ainda pelo modo como são gerenciados os conflitos na escola. Seja pelas nomeações medicalizantes ou criminalizantes, ou mesmo pela vitimização dos alunos; esses adolescentes são silenciados e excluídos do campo social enquanto sujeitos singulares, com suas histórias e seu modo de se situar no mundo (Coutinho & Carneiro, 2018). Diante da medicalização de questões educativas ou de qualquer outro tipo de avaliação que suponha uma norma, um normal e um desviante, os adolescentes são destituídos de sua palavra e de seus atos, passando muitas vezes a serem identificados exclusivamente através de avaliações de seu desempenho escolar, diagnósticos psiquiátricos ou de atribuições criminais, que os marginalizam e os silenciam repetidamente.
Tais imperativos se coadunam com a hegemonia dos discursos sociais legitimados pela ciência e pela racionalidade instrumental que estigmatizam, segregam, e/ou vitimizam crianças e jovens (Rosa & Vicentin, 2013). Com isso, corre-se o risco da naturalização do desamparo social, que apaga a força discursiva dos que por ele estão submetidos, de forma que, aliado ao desamparo social, produz-se o desamparo discursivo (Rosa, 2016) desses sujeitos adolescentes que são silenciados e excluídos do campo de saberes e poderes. Nesse sentido, como define Rosa (2016), tão grave quanto à condição de privação material, é a situação de um desamparo discursivo, definido pela falta de um discurso de pertinência que acolha a palavra do sujeito adolescente, situação em que se encontram muitos jovens brasileiros, no que a escola participa direta ou indiretamente.
Portanto, o trabalho da adolescência se entrelaça de diversas formas com o universo social e político no qual se situa. Ao campo subjetivo está sobreposto um campo político de embates e disputas discursivas com as quais o adolescente tem de se deparar. O lugar ocupado pela escola e pelas instituições da cultura de um modo geral, é fundamental, enquanto espaços públicos potenciais para a reconfiguração da rede simbólica na adolescência, modulando os novos encontros com o Outro e com os outros que então se dão. Quando não há quem acolha o sujeito, com sua história, seus afetos e seus sentidos, e que simultaneamente o situe em um lugar de desejo, de sonho, de aposta, não há lugar para a vida, muitas vezes apenas para matar ou morrer. Seja pela vulnerabilidade dos laços sociais e familiares3, seja por conta dos discursos educativos atravessados de especialismos e exigências produtivistas, muitos adolescentes são silenciados por discursos do alto desempenho e da produtividade, pelo fracasso que é nomeado enquanto doença, pelos impasses sociais que atingem a todos nós, mas são depositados na conta de cada um deles individualmente. Impasses presentes em uma escola e uma universidade que, por serem públicas, nos fazem pensar que incluem a todos, mas que não se sustentam se não por um pacto coletivo que garanta o pertencimento de fato e de direito a muitos que as frequentam.
Com a da hegemonia dos discursos da ciência, do capital e da racionalidade instrumental que ajudam a sustentar o projeto liberal na educação, o alerta de Freud (1910/1996) se amplia e se faz reverberar ainda mais em relação à função que a escola e as instituições educativas de modo geral ocupam na adolescência. O Outro do discurso capitalista presente cada vez mais nas políticas públicas para a educação, segrega e esvazia a possibilidade de conviver, de fazer laço, de se deparar com a alteridade e a polissemia do Outro, que só tem lugar quando há espaço para o diálogo e o coletivo. Perante o discurso da eficácia e da produtividade, professores e alunos estão envoltos permanentemente na busca por atender demandas da ordem do impossível, mas que são vividas como impotência (Coutinho, 2019), ameaçando a possibilidade de confronto com a falta e com as diferenças que estão na base da possibilidade da convivência social e, mais especificamente, do laço educativo.
Dentre as incidências do capitalismo avançado no sujeito, que produzem o sofrimento sociopolítico de adolescentes como trabalham Rosa, Vicentin e Catroli (2009), pode-se destacar: o esvaziamento do sentido da vida que tende a ser reduzida a sua dimensão biológica; a relativização da existência compartilhada e a fragilização da experiência que torna possível a historicização do sujeito.
Esse modo de existência, subtraída de qualquer possibilidade de laço com o outro, pode expressar certo destino dos sujeitos da contemporaneidade, exilados de sua identidade, em um não-lugar em relação ao seu semelhante. O musulman lembra os sujeitos excluídos na realidade social brasileira. Esses não habitam os campos de concentração ou de extermínio do nazismo, mas se movimentam e vivem de acordo com os interesses do capital, nos espaços pauperizados das periferias e das favelas das grandes cidades (Rosa, Vicentin & Catroli, 2009:59).
Enfatizando os impasses nos laços sociais, as autoras afirmam que a lógica do capital leva à destituição do outro e às violências sociais pela corrosão das bases simbólicas da convivência. É nesse sentido que as autoras propõem os espaços de coletividade e experiências compartilhadas como modos de resistência a esse discurso dominante que mina as relações sociais. A abertura para a alteridade permite a instauração do laço social de modo diferente do Outro degradado em objeto, produzido pelas relações na lógica do consumo e do gozo que só perpetua a condição de desamparo em que se encontram muitos adolescentes. Talvez caiba pensar que a função escola enquanto espaço público seja justamente a função de favorecer o trabalho de castração necessário nessa dimensão especular da rivalidade ao outro, podendo aí introduzir uma dimensão alteritária que não ameace o laço social, como parece ter sido possível no momento das ocupações (Coutinho & Poli, 2019).
Desse modo, a função do semelhante na vida psíquica tem sido redimensionada por alguns psicanalistas (Kehl, 2000; Musati & Rosa, 2018; Revah, 2020), na medida em que pode representar uma forma de acesso à própria experiência subjetiva, vinda do exterior, experiência do singular referido a um coletivo. Como afirma Revah (2020) a respeito da função do semelhante na vida escolar e política, tal função, quando incide no laço social, sempre supõe que ninguém representa nem encarna o Outro. Em face dos outros, na condição de semelhantes, sempre somos um pequeno outro e eles também. A partir disso, o semelhante pode favorecer identificações que possibilitam deslocamentos de posição, a circulação por outros lugares do discurso que não aqueles fixados seja pela fantasmática parental, seja pelo discurso social, favorecendo a separação em relação a discursos alienantes, com implicações no processo de constituição subjetiva. Diante do declínio das autoridades tradicionais, entre elas a do professor, as relações com os pares se fazem cada vez mais relevantes, nesse momento de restituição do Outro, dos ideais, como redes de sustentação simbólica na adolescência.
Vale situar, portanto, os espaços de coletividade e experiências compartilhadas como modos de resistência a esse discurso dominante que fragiliza as relações humanas e os pactos sociais. Se, a partir de tudo que defendemos aqui, entendemos que o sofrimento psíquico dos estudantes é sociopolítico (Rosa, 2016), ou seja, diz respeito aos impasses provenientes dos lugares que ocupam no laço social e nos discursos dominantes, o seu tratamento deve se dar também na dimensão do coletivo. Como também argumenta Rosa, "quando certos discursos sociais se travestem de discurso do Outro para obturar a polissemia do significante e impor sua verdade ao sujeito, temos um problema clínico e político" (Rosa, 2016: p.186). Resta-nos pensar em dispositivos e experiências que remetam tanto ao resgate da posição desejante dos sujeitos no laço com o Outro, quanto às modalidades singulares e coletivas de resistência aos processos de alienação social.
Questões de método
O material da pesquisa que apresentaremos em seguida é decorrente do encontro com 12 adolescentes participantes das ocupações realizadas em escolas estaduais e federais do estado do Rio de Janeiro entre os anos de 2016 e 2017, através de duas fontes principais: 1) entrevistas individuais ou em grupo; 2) diários de campo escritos por aqueles que realizaram as entrevistas.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa/Plataforma Brasil sob o CAAE 63079016.6.0000.5243. O contato com os jovens foi feito através das redes sociais (troca de mensagens pelas páginas no facebook das ocupações e de grêmios estudantis de escolas que foram ocupadas) e não foi mediado pela escola, já que se trata de um movimento que se deu fora do funcionamento regular dessas instituições. A autorização para participação na pesquisa foi requerida (TCLE e TALA) aos próprios jovens e a seus responsáveis, quando se tratou de menores. Adotamos como critério de inclusão/exclusão dos jovens na pesquisa, possuir entre 14 e 20 anos de idade, ter participado da ocupação da escola onde estuda ou estudava no momento e se dispor voluntariamente a falar sobre sua experiência. As entrevistas foram realizadas em local acordado com cada participante, tendo sido gravadas e posteriormente transcritas pelo próprio entrevistador A condução das entrevistas foi feita de forma semiestruturada, tendo como eixo central o questionamento sobre a experiência da ocupação na vida do jovem e em sua relação com a escola. Os nomes atribuídos aos entrevistados neste artigo são fictícios e as escolas não foram identificadas, embora seja importante informar que todos os entrevistados são (ou eram na época das ocupações) alunos de escolas da rede pública de ensino, estaduais ou federais, situadas em diversas localidades do estado do Rio de Janeiro. A realização das entrevistas sustentou-se no paradigma da pesquisa em psicanálise, pautada pelos princípios éticos que norteiam a sua clínica (Alberti & Elia, 2000), que toma o desejo do analista (pesquisador) como aquele que instaura a possibilidade de uma fala na qual o sujeito tenha lugar, levando em conta a transferência e a resistência na situação da pesquisa (Rosa & Domingues, 2010). Não buscamos um saber prévio, mas sim visamos possibilitar ao entrevistado formulá-lo de forma singular, a partir de um laço transferencial que permite que o inconsciente, que inclui o campo relacional com o pesquisador, possa se expressar (Costa & Poli, 2006).
A escrita dos diários de campo levou em conta o campo transferencial em que a entrevista se deu a partir do modo como o entrevistador foi recebido e conduzido ao longo das entrevistas. Isso permitiu incluir em nossas observações e análises, as variações ocorridas em cada entrevista, tais como a escolha do local onde foram realizadas e a modalidade individual ou em grupo, feitas pelos próprios adolescentes entrevistados. Em seguida foram feitas leituras coletivas dos diários pela equipe da pesquisa e foram construídos alguns eixos de análise a partir da associação entre as falas dos ocupantes e alguns dos conceitos teóricos que privilegiamos acima no estudo da adolescência no laço social, mas não deixamos de considerar a própria relação com o pesquisador como parte do material a ser analisado (Costa & Poli, 2006). Na pesquisa mais ampla, construímos os seguintes eixos analíticos: Identificações (remete ao outro enquanto semelhante e à possibilidade de compartilhar vivências e transformá- las em experiências); Alteridade: (remete ao outro enquanto diferente, que leva ao "senso de coletividade" segundo os entrevistados); Outro da Família (referência simbólica para o sujeito situada na família); Outro Público (referência simbólica para o sujeito situada no universo extrafamiliar - escola, comunidade, mídia); Ter voz (poder (se) falar, nova posição subjetiva diante do Outro da Família e do Outro Público que remete à experiência da falta no Outro).
Neste artigo, especificamente, iremos nos deter nos três últimos eixos expostos acima, já que centramos nossa preocupação em explorar mudanças discursivas localizadas nas falas dos adolescentes que apontam para possíveis deslocamentos no campo do Outro possibilitados a partir da experiência coletiva entre os ocupantes. Para isso, destacaremos as falas que dizem respeito particularmente a isso, tendo em vista que em outras produções decorrentes da pesquisa já pudemos nos deter em questões mais afins aos outros eixos (Coutinho & Andrade, 2017; Coutinho & Poli, 2019).
Adolescência e movimentos sociais na escola: "ocupar e (re)xistir4"
Entre 2015 e 2017 assistimos no Brasil, em diversos momentos, um movimento social inédito pela forma e dimensão que ganhou em extensão e força. O movimento teve sua primeira grande manifestação em São Paulo no ano de 2015, diante do risco de fechamento de quase cem escolas de nível médio proposto pelo governo estadual (Campos; Medeiro; Ribeiro, 2016). Depois teve grande expressividade no Rio de Janeiro em 2016, inicialmente em apoio à greve dos docentes da rede estadual e, por fim, se constituindo como um movimento à parte, com suas assembleias e pautas próprias. No final de 2016, o Ocupa Escola5se avolumou enormemente e se disseminou por mais de mil escolas em todo o Brasil, além de centenas de universidades, em repúdio à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, que limita os gastos públicos na área da educação, e à Medida Provisória (MP) 746 que determina uma reforma no ensino médio no país.
O Ocupa Escola, como ficou conhecido o movimento, chamou a atenção de todo o país e atingiu as mídias principalmente por ter sido protagonizado por jovens estudantes de escolas e universidades públicas. Embora o movimento já tenha sido pensado anteriormente por diversos autores (Brum, 2016; Campos & Medeiros, 2016; Coutinho & Andrade, 2017; Coutinho & Poli, 2019), voltaremos a abordá-lo aqui sublinhando a convergência entre o político e o psíquico na adolescência e entendendo que nele podemos testemunhar uma experiência que toca a dimensão de um tratamento possível ao sofrimento sociopolítico dos adolescentes nas escolas, como argumentamos anteriormente. Esse argumento será explorado através de alguns extratos dos discursos dos ocupantes participantes da pesquisa referidos a possíveis mudanças nos modos de relação ao Outro com consequências para o possível resgate de uma posição discursiva por parte deles.
A gente conseguia lutar pelos nossos direitos como aluno e tudo mais. O que faz muita diferença para mim, sabe? Querendo ou não, eu sou uma aluna negra, pobre, menina dentro de um colégio elitista, branco, que os homens prevalecem na questão da inteligência e tudo mais. E que as chances de eu estar dentro do colégio eram pouquíssimas, sabe? E ver também como o colégio como instituição, sem ser na ocupação, não estava preparado para ter um aluno assim que não se identificasse e não gostasse tanto, que não se sentia tão confortável, mas que está aí para ver e ocupar o espaço. Na ocupação, eu senti mais isso. Eu senti mais liberdade para mostrar quem eu era, para mostrar o que eu sentia, mostrar que eu era mais humana também (...) Não vou falar que eu estava fora desse mundo, mas eu me sinto mais dentro dele. Eu tenho essa sensação de que, no ambiente que eu vivo, eu pertenço mais a esse espaço como um indivíduo, como uma pessoa que tem características e que aceita isso. (Marina, 3º ano do ensino médio)
A partir da fala da adolescente acima transcrita somos remetidos ao novo encontro com o Outro que se dá na adolescência, por ela referido ao falar sobre sua participação na ocupação de sua escola. Em primeiro lugar, notamos que a aluna fala de uma mudança no sentido de pertencimento à escola e ao mundo social mais amplo, já que se refere a poder ocupar esses espaços de uma forma diferente depois da ocupação. A ocupante nos fala sobre a construção de um novo endereçamento para seu discurso dentro e fora do espaço escolar, sustentado por novas identificações com seus semelhantes. Por outro lado, não deixa de marcar que essas identificações não excluem suas singularidades e suas diferenças, como mulher, negra, pobre, etc.
Como trabalhamos anteriormente (Coutinho & Poli, 2019) as identificações presentes na horizontalidade dos laços entre os alunos se deram a partir da semelhança e do compartilhar de certos ideais, mas não excluíram o confronto com a alteridade, de modo que a experiência da diferença na semelhança parece ter permitido levar em conta aquilo que é singular de cada sujeito sem desprezar a importância das construções coletivas. Além disso, a aluna menciona também um sentimento de liberdade em se posicionar, em seu modo de se endereçar e se sentir acolhida, podendo também ser "mais humana" e, com isso, nos faz pensar no trabalho de castração, elaboração da falta no Outro que permite ao adolescente poder (se) falar em nome próprio.
Sabemos que a adolescência é o momento do enfraquecimento e do deslocamento das idealizações dos pais, os Outros da infância, aos quais o sujeito se manteve relativamente alienado, mas dos quais na adolescência deve poder se separar, para sustentar algo que dessa relação parental permaneça, se mantenha (Alberti, 2004; Coutinho, 2009). O sujeito adolescente precisa encontrar seus próprios arranjos, suas escolhas, outras identificações e novos caminhos para o desejo. Nesse sentido, os pais devem estar presentes para que o adolescente possa justamente se separar deles, e isso só acontecerá na presença/ausência dos pais, no ir e vir destes, permitindo, deste modo, que o adolescente se distancie dos ideais e dos grandes Outros de sua infância, que doravante perderão o seu valor de referência fundamental. Deste modo, é preciso que os pais sustentem as indagações, as críticas e os conflitos e suportem o afastamento, o confronto, amparando seus filhos neste desafio de ir além dos lugares ocupados por eles na família, para se vincularem a outros discursos, aos discursos sociais - no que a escola tem relevante participação. Algumas falas dos adolescentes participantes da pesquisa evocam uma mudança de posição em relação ao Outro da Família6, considerado aqui como referência simbólica situada na família:
Minha relação com eles mudou, porque eu aprendi muito a conversar. Eu comecei a entender que o tempo deles é diferente do meu. As vivências são diferentes das minhas, mas eles ainda têm mais experiência do que eu. Eu tenho que aprender a escutar e tenho que aprender a falar com eles assim: "Não, pai. Não, mãe. Não é assim. É assim e assim." Antes eu me estressava muito mais, discutia muito mais. Hoje em dia, se a gente tem algum confronto, eu deixo de lado e depois eu tento voltar de novo. Se eu ver que não deu, aí eu vou embora. (Gabriela, 1º ano do ensino médio)
Por um lado, fortaleceu muito a minha relação com ela de confiança e de poder contar, porque eu não tinha. O contato da gente era menor. Por exemplo, quando eu falava com ela, eu contava sobre a minha semana e ela contava sobre o que acontecia com ela, porque a gente não se via tanto. A gente começou a ter uma comunicação maior a partir daí. (Marina, 3º ano do ensino médio)
Nas falas acima, podemos supor um modo de relação à família em que passa a haver lugar para a conversa, o respeito e a confiança, que nos faz supor um novo modo de se situar frente ao Outro, que inclui a falta, revelando um distanciamento maior da posição de alienação mais peculiar à infância. A menção feita por um dos adolescentes entrevistados a uma "comunicação maior" nos dá notícias de uma posição menos alienada, mais desejante, e ao mesmo tempo, de maior apropriação de seu discurso enquanto sujeito.
Nas conversas com os ocupantes, pudemos testemunhar também a experiência de uma nova referência ao Outro (nomeado aqui como Outro Público) que marca uma diferença na vida desses estudantes no que diz respeito aos seus endereçamentos e referências que incidem em suas adolescências. Este Outro Público refere-se aos novos enlaçamentos dos adolescentes aos discursos sociais no contexto das ocupações, na medida em que o movimento das ocupações foi se fortalecendo, e com isso os jovens puderam ter mais notoriedade no meio escolar e no mundo público de um modo mais amplo, de modo que novos Outros passaram a se inscrever para estes adolescentes ao se posicionarem diante da escola, da secretaria de educação, da mídia, etc.
Nas ocupações de 2016, o Outro Público não se fez presente para os adolescentes apenas no sentido de um deslocamento do lugar de referência simbólica, mas também no que diz respeito aos modos de endereçamento a ele dentro e fora do ambiente escolar. Assim, os estudantes nos falam sobre uma mudança de posição em relação aos professores, de quem passaram a se sentir mais próximos e mais identificados por partilharem causas comuns:
Eu aprendi a ver o lado deles (dos professores) e o meu e falar assim: "Cara, a gente é igual. A gente tá no mesmo lugar. A gente tem as mesmas vontades". Eles vêm aqui para ensinar e eu venho aqui para aprender. É uma troca de aprendizados também. (Gabriela, 1º ano do ensino médio)
Eu comecei na ocupação levantando dedinho para falar e terminei na ocupação levantando e tomando iniciativa para várias paradas, dentro da escola e das relações hierárquicas que têm sistematicamente. Por exemplo, a relação professor-aluno, que eu sou submetido ao professor, a relação direção-aluno, que eu sou submetido à direção. Tem sempre toda essa noção de superioridade, que não deveria existir uma hierarquia autoritária, e se existe uma hierarquia dentro da escola tem que ser por organização. E, mesmo assim, muitas vezes não se faz necessário. Eu posso aprender muito a questionar essas coisas. A gente tá com um espaço totalmente diferenciado com os professores, com a direção, com os funcionários terceirizados, que eram muito mais desvalorizados. Antes da ocupação, ninguém falava. Eles eram invisíveis e, na ocupação, eles ficaram muito tempo aqui com a gente, porque eles não poderiam faltar. Por conta disso, convivemos com eles também. Agora, nós temos amigos terceirizados e chegamos na cozinha e conversamos, sabe? Uma relação totalmente diferente que se instituiu na escola. (Daniel, 2º ano do ensino médio)
Aprendi a ver os professores de uma forma diferente. A gente via muito o professor como aquele que não quer que você sente do lado do amigo, não quer que você converse e detesta a gente. Mas, não, os professores estão no mesmo barco que a gente. Se a gente cair, eles vão cair junto com a gente. A Educação tá ruim? Fica ruim para mim, para ele, para o diretor e para todo mundo. Eu aprendi a ver o lado deles e o meu. (Júlia, 1º ano do ensino médio)
Diante disso, é possível perceber nas falas dos adolescentes entrevistados que a experiência das ocupações escolares em 2016 pôde incidir de maneiras singulares na adolescência de cada um deles, coincidindo com a queda dos ideais da infância e a busca por novos endereçamentos, bem como com a elaboração da falta no Outro. Diante desse novo encontro com o Outro, que se reedita na família, mas também em outras esferas, outros laços discursivos puderam se dar, ainda que em alguns momentos, promovendo a construção de um discurso próprio.
Em suas próprias palavras, a escola se transformou em um lugar onde puderam Ter Voz, o que talvez remeta a um possível tensionamento na alienação estrutural ao Outro, tanto em sua dimensão familiar quanto pública, como pudemos ouvir nas seguintes falas:
Agora os alunos estão conseguindo se impor muito mais, porque estão vendo que a gente tem voz, que a gente tem poder. (Vítor, 3º ano do ensino médio)
(...) é nossa necessidade de lutar por aquilo que a gente quer, aquilo que vai nos afetar. A gente é que tem que estar aqui lutando. Não é para a gente fazer a voz dos nossos pais a nossa. É para a gente vir e lutar. (Gabriela, 1º ano do ensino médio)
Eu comecei a cobrar muito mais a minha voz, porque eu aprendi na ocupação a não abaixar a voz para ninguém se eu não achasse que fosse realmente necessário e, ao mesmo tempo, respeitar e ouvir todo mundo. (Daniel, 2º ano do ensino médio)
Eu mudei minha relação com a minha família, com a escola, eu mudei a relação com as pessoas dentro da escola. Eu mudei comigo mesma. (Marina, 3º ano do ensino médio)
O Ter Voz pôde ser notado também durante as entrevistas de pesquisa que foram realizadas com os estudantes. Em uma delas, alguns estudantes após concederem a entrevista coletivamente solicitaram à pesquisadora um certificado de participação. Esse pedido nos fez pensar, por um lado, em um endereçamento ao pesquisador enquanto Outro da universidade, mas diante do qual não se sentiram intimidados nem para pedirem o certificado, nem tampouco para sugerir a situação coletiva para a entrevista. Situações semelhantes se repetiram em outras entrevistas, quando os próprios estudantes sugeriram lugares para realizá-las e convocaram outros amigos para participar, contribuindo para construir o próprio dispositivo da entrevista de formas diferentes.
Enfim, não só dentro do espaço escolar foi possível ouvir a voz dos ocupantes, mas também outras esferas da sociedade escutaram o que eles tinham a dizer, como no momento emblemático desse movimento, manifesto através da expressão de uma estudante chamada Ana Júlia, de 16 anos, que discursou na Assembleia Legislativa do Paraná (Brum, 2016) e, que de alguma forma, foi ouvida e obteve um lugar de fala diferente do que até então nenhum estudante tinha alcançado. Ana Júlia, através de sua voz, talvez possa ter favorecido a abertura de um lugar discursivo para muitos outros jovens, o que foi conquistado também através de um caminho de resistências a uma política de privações e de condições precárias de ensino. O Ter Voz de Ana Júlia ecoou entre muitos outros adolescentes, possivelmente através de um laço de identificação fraterna, inaugurando um lugar a partir do qual era possível sim serem ouvidos, vistos e levados em consideração, como sujeitos que têm algo a dizer.
Considerações finais
As ocupações estudantis nos permitiram um novo olhar sobre os laços existentes no ambiente escolar, tanto entre alunos, como entre professores e alunos, ou ainda, entre a escola e a sociedade como um todo. A partir do testemunho dos jovens que participaram do movimento, foi possível supor um trabalho de (re)inserção dos ocupantes nos discursos sociais, apropriando-se deles e matizando o cotidiano de submissão aos discursos do Outro da escola e do Outro Público que muitas vezes os aprisionam e os alienam.
O Ter Voz narrado pelos ocupantes nos remeteu à operação de produção de um discurso próprio por parte dos adolescentes que fizeram parte deste movimento estudantil, sustentado em grande parte por laços horizontais de identificação, como algo que marca o trabalho psíquico da adolescência. As falas dos adolescentes ocupantes das escolas nos levaram a pensar no trabalho de reelaboração de ideais e de restituição do Outro na adolescência, agora de forma menos alienante, a partir de uma nova incidência da castração.
Talvez possamos supor que a possibilidade dos estudantes se fazerem ouvir pela escola, pela universidade e pelo poder público forçou uma brecha para que o Outro não-todo-saber pudesse se presentificar, possibilitando, ao menos para alguns deles, a abertura de um lugar de palavra e mudança de posição discursiva, ao invés do enclausuramento que predomina no cotidiano escolar e que só perpetua a condição de desamparo discursivo em que se encontram muitos jovens brasileiros.
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Recebido em dezembro de 2019 Aceito em março de 2020.
1 Designamos o Outro como referência simbólica fundamental diante da qual se constitui o sujeito. O termo Outro se tornou um conceito na Psicanálise a partir de Lacan. Contudo, ele o retoma de Freud que, no Projeto (1895 [1996]) faz uma referência a um outro: "suponhamos que o objeto que compõe a percepção se pareça com o sujeito - um outro ser humano. [...] é em relação a seus semelhantes que o ser humano aprende a se conhecer" (Freud, 1895 [1996]:393)
2 Trata-se de uma exposição de parte do material referente à pesquisa Adolescência, Educação e Laço Social, coordenada pela presente autora entre os anos de 2016 e 2018, e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa/Plataforma Brasil sob o CAAE 63079016.6.0000.5243.
3 Adotamos aqui a noção de vulnerabilidade social para marcar a fragilidade de condições de inserção no laço social que, por contingências sociais, políticas e econômicas, caracteriza a situação de muitos jovens brasileiros. Fazemos referência à definição trazidas por Castel (1999) que atrela a condição de vulnerabilidade social ao trabalho precário e à fragilidade de apoios relacionais que levam ao risco de marginalidade e desfiliação. Não deixamos de notar, entretanto, o cuidado necessário na utilização do termo no campo das políticas públicas sob pena de contribuir para a perpetuação dessa situação (Carmo&Guizard, 2018). Entretanto não será possível adentrar mais detalhadamente nessa discussão no âmbito deste artigo.
4 Aqui fazemos menção às palavras de ordem "ocupar e resistir" emitidas tantas vezes pelos ocupantes em suas manifestações, evocando através da homofonia (re)existir a operação adolescente de refundação do sujeito.
5 O movimento foi bastante promovido e expandido através das redes sociais, principalmente pelo Facebook, onde podemos encontrar uma página nomeada Ocupa Escola, além de diversas outras criadas para cada ocupação de escola ou organização comunitária ligada ao movimento.
6 Utilizamos itálico para a expressão Outro da família, construída pela equipe da pesquisa para designar um eixo analítico para o material das entrevistas cuja definição apresentamos acima no corpo do texto. Utilizaremos itálico também nas expressões Outro Público e Ter Voz, construídas de modo similar no momento da análise do material da pesquisa.
Revisão gramatical: Nancy Soares
E-mail: nansoares@gmail.com