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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.25 no.3 São Paulo maio/dez. 2020

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i3p488-500 

10.11606/issn.1981-1624.v25i3 p488-500

ARTIGO

 

Fenômenos primitivos no campo analítico: construção de uma clínica com pais e bebês

 

Reflexiones sobre los fenómenos primitivos en el campo analítico: construcción de una clínica con padres y bebés

 

Reflections on primitive phenomena in the analytical field: construction of a clinic with parents and babies

 

Phénomènes primitifs dans le champ analytique: construction d'une clinique avec parents et bébés

 

 

Marisa Amorim SampaioI; Maria do Carmo CamarottiII

IDocente da Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco, Recife, PE, Brasil. E-mail: marisasampaio@hotmail.com
IIPsicanalista, Coordenadora da Pós-Graduação em Clínica Psicanalítica com Bebês da Faculdade Frassinetti, Recife, PE, Brasil. E-mail: cacaucamarotti@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo desenvolve reflexões sobre fenômenos primitivos experienciados no campo analítico, partindo de vinhetas clínicas e da observação de um bebê e seus pais. O que acontece no campo analítico é complexo, sobretudo nas terapias conjuntas pais-bebê, quando se trabalha simultaneamente com os mundos internos da mãe, do pai, do bebê e do analista. Como conceituar e fazer uso dos fenômenos primitivos advindos da interação intersubjetiva pais-bebê na clínica? Apresentam-se reflexões ancoradas em contribuições de Bion sobre a identificação projetiva e de outros autores sobre o enactment. Reconhecendo que as vivências corpóreas, primitivas são projetadas no contexto analítico, mesmo que não estruturadas como experiências simbólicas, defende-se que elas têm o potencial de auxiliar na construção do pensar da tríade pais-bebê-analista.

Palavras-chave: clínica psicanalítica; relação pais-bebê; intersubjetividade; identificação projetiva.


RESUMEN

El artículo desarrolla reflexiones sobre fenómenos primitivos experimentados en campo analítico, partiendo de viñetas clínicas y observación de bebés y sus padres. Lo que sucede en campo analítico es complejo, sobre todo en terapias conjuntas padres-bebé, cuando se trabaja simultáneamente con los mundos internos de la madre, del padre, bebé y analista. ¿Cómo conceptualizar y hacer uso de los fenómenos primitivos provenientes de la interacción intersubjetiva padres-bebé en esta clínica? Se presentan reflexiones a partir de contribuciones de Bion sobre identificación proyectiva y enactment de diversos autores. Reconociendo que vivencias corpóreas, primitivas son proyectadas en el contexto analítico, incluso si no estructuradas como experiencias simbólicas, se argumenta que tengan potencial de auxiliar en la construcción del pensamiento de la tríada padres-bebé-analista.

Palabras clave: clínica psicoanalítica; relación padres-bebé; intersubjetividad; identificación proyectiva.


ABSTRACT

The article develops reflections on primitive phenomena experienced in the analytical field, with vignettes from analysis and infant observations. The analytical field is complex, especially in parents-infant therapies, when working simultaneously with the inner worlds of mother, father, baby, and the analyst. How to conceptualize and make use of primitive phenomena arising from the parent-baby intersubjective interaction in this clinic? The paper presents reflections based on Bion's contributions on projective identification and from other authors about enactment. Recognizing that the corporeal, primitive experiences are projected in the analytic context, even if not organized as symbolic experiences, we admit that they have the potential to enable the construction of thinking between the triad parents-baby-analyst.

Keywords: psychoanalytic clinic; parents-infant relations; intersubjectivity; projective identification.


RÉSUMÉ

L'article développe des réflexions sur les phénomènes primitifs vécus dans le champ analytique, à partir de vignettes cliniques et de l'observation d'un bébé et ses parents. Ce qui se passe dans le champ analytique est complexe, en particulier dans les thérapies conjointes parents-bébé, lorsque l'on travaille simultanément avec les mondes internes de la mère, du père, du bébé et de l'analyste. Comment conceptualiser et utiliser les phénomènes primitifs issus de l'interaction intersubjective parents-bébé dans la clinique? Des réflexions sont présentées à partir des contributions de Bion sur l'identification projective et de plusieurs auteurs sur l'enactement.En reconnaissant que les vécus corporels primitives sont projetées dans le contexte analytique, même si elles ne sont pas structurées en expériences symboliques, on soutient qu'ils ont le potentiel d'aider à la construction de la pensée de la triade parents-bébés-analyste.

Mots-clé: clinique psychanalytique; relation parent-bébé; intersubjectivité; identification projective.


 

 

O que acontece no campo analítico é de ordem complexa, sobretudo nas terapias conjuntas pais-bebê, pois trabalhamos simultaneamente com os mundos internos da mãe, do pai e do bebê. Esses mundos psíquicos se revelam na transferência com o analista, que deve estar aberto e atento às experiências emocionais e aos afetos que desafiam a sua criatividade e singularizam a sua prática. Atender o bebê e seus pais é ser captado pelos movimentos transferenciais, suportar as dúvidas, as incertezas e o "não-saber" da situação analítica, ser confrontado e, muitas vezes, capturado por situações de desamparo, sedução, rivalidade.

Por vezes, somos fisgados por elementos de funcionamento mental rudimentar, mas que se apresentam e se manifestam como "nuances, texturas, aspectos sensoriais pré-verbais, que se apresentam à nossa exploração intersubjetiva e tentativa de acesso" (Mendes de Almeida, 2010, p. 64). Dentre os fenômenos primitivos experienciados no campo analítico, destacamos aqueles que envolvem fantasias ancoradas em experiências primitivas, projeções e identificações ligadas a sentimentos despertados pelos movimentos transferenciais. A presença do bebê coloca o desafio de ampliar o leque de intervenções do analista (Bonino & Ball, 2013).

A proposta deste artigo é compartilhar reflexões a respeito de fenômenos primitivos experienciados no campo analítico, partindo de recortes clínicos e observações de bebês e seus pais. Como fazemos uso dos fenômenos primitivos advindos da interação intersubjetiva pais- bebê, considerando a inevitável implicação em nossa clínica? Para nos auxiliar nesta empreitada, inquietas por compreender e nomear esses fenômenos, retomamos reflexões conceituais a partir de contribuições de autores como Bion, Cassorla, Ogden e Lebovici.

Começamos com vinhetas clínicas de análise de dois bebês e seus pais. No item seguinte trazemos recortes de ordem conceitual e, por fim, apresentamos vinhetas fruto do processo de observação de um bebê, trazendo contribuições para a compreensão de fenômenos primitivos e transferenciais no campo analítico (clínico e observacional).

 

Vinhetas clínicas

As vinhetas a seguir serão apresentadas na primeira pessoa, bem como as de observação que constam no último tópico deste artigo, pois se tratam de relatos pessoais de Camarotti, que acompanhou esses processos.

Marcelo chegou para a análise com um ano de idade. Seus pais estavam bastante preocupados e ansiosos com a ausência de interação do filho, que não respondia aos seus chamados, não olhava e apenas se interessava em girar rodas de carrinhos ou pelo giro do ventilador. Objetos estes que os pais já haviam afastado do campo visual da criança.

Sem nada saber sobre a história desta família, marquei sessão conjunta com Marcelo e seus pais. Fui testemunha, então, das inúmeras e frustradas tentativas do casal para ter a atenção do filho que, indiferentemente, vagava pela sala, deixando-os sem resposta e ainda mais angustiados. Era perceptível que a criança se isolava ainda mais diante do aumento de estímulos e excitação dos pais. Tentando tornar o ambiente mais calmo e também captar o interesse da criança, me vi a cantar uma canção antiga, da minha própria infância.

Marcelo reagiu aproximando-se de mim e aceitando que eu pegasse suas mãos e que fizesse um movimento que seguia a letra da música. Imediatamente após o final da canção, a mãe levantou-se abruptamente, segurou as mãos do filho e, em uma tentativa de me imitar, começou a cantar a mesma canção, bem como a fazer os mesmos gestos.

Diferentemente do que parecia ser o desejo da mãe, Marcelo não a olhou e virou-se em minha direção, como que me convocando a cantar. Sentindo-me constrangida por ser testemunha do não interesse de Marcelo pelo canto e gestos da mãe, levantei subitamente e me coloquei atrás dela para que o olhar da criança fosse em sua direção.

Fui tomada pelo que a mãe poderia estar sentindo diante de um filho que não olhava para ela, mas sim para a analista que ele acabara de conhecer, como também pelo receio de uma possível e precoce rivalidade da mãe comigo. Esse artifício que utilizei surgiu sem planejamento e funcionou, pois, a mãe se sentiu olhada pelo filho.

Terminada a sessão, a mãe, visivelmente tomada pela cena, perguntou de modo inquisitivo: "o que tem esta música"? Sem muito pensar, respondo: "é uma criança cantando para outra criança. Aprendi esta música quando tinha quatro anos de idade". Percebi, então, que a tensão da mãe se dissipou e, no decorrer das outras sessões, foi possível ouvir relatos acerca de uma grande rivalidade de cunho arcaico com o marido, a irmã e com as babás da criança.

Outro caso também ilustrativo trata de uma criança de um ano e quatro meses, encaminhada pela gastropediatra devido ao seu baixo peso e negativa de se alimentar de outra coisa que não o leite materno. A mãe, contrariando as instruções da médica, dava o peito todas as vezes em que o filho solicitava. Tomás dormia na cama com a mãe, acordava-se várias vezes à noite e puxava sua camisola para mamar. O pai, mesmo se dizendo incomodado com essa situação, há meses não dormia no quarto do casal.

As sessões vinham sendo realizadas conjuntamente com a criança e seus pais. Nessas ocasiões, Tomás só buscava a mãe e ambos pareciam estar dentro de uma bolha. O pai já havia falado sobre seu mal-estar, por nem ter a mulher nem o filho. Assim como ele, eu me sentia excluída e, ao mesmo tempo, expectadora desse cenário de dominação mãe-filho.

Em uma sessão na qual Tomás veio acompanhado somente pelo pai, vi a criança pela primeira vez entrar espontaneamente sozinha na sala comigo e, diferentemente das sessões com os pais, se interessar pelos brinquedos. Na sessão seguinte, Tomás veio com a mãe e a me ver entrou na sala sem solicitá-la. Percebi isso como um sinal de que a criança estava mais segura e que uma relação transferencial se instalava. A mãe, no entanto, levantou-se abruptamente e se dirigiu à sala para seguir o filho. Tentando acompanhar o que julguei ser um movimento psíquico da criança, um esboço de separação que se anunciava, pedi à mãe que aguardasse do lado de fora. Esta, sem nada dizer, entrou rapidamente na sala e a sessão ocorreu.

Em ocasião posterior, o pai compareceu sozinho para anunciar que a esposa havia decidido interromper a análise do filho. Ele disse não estar de acordo, mas que não conseguira mudar a decisão da esposa. Por fim, pediu análise para si mesmo.

Eu já havia provado um sentimento de estranheza pelo modo como intervi com a mãe, diferente de minhas habituais intervenções diante de situações similares. A interrupção da análise aumentou meu mal-estar. Fui provavelmente mobilizada pela intrusão materna e por sua dificuldade em acompanhar os movimentos de separação psíquica do seu filho.

Quando certas questões encontram eco no analista, este se identifica e consegue reagir de modo empático ou então pode ser tomado por enactments não produtivos (Cassorla, 2016). No primeiro caso, os núcleos de rivalidade materna não encontraram respaldo na analista, que conseguiu circular nos dois campos. Do campo da criança, a analista captou o estranhamento de Marcelo diante de uma canção que não lhe convocava para estabelecer uma troca interativa. Do campo da mãe, um possível sentimento de desqualificação e de incompetência. Portanto, a analista pôde navegar entre esses diferentes campos e receber as projeções, desvelando o que remetia à experiência do bebê, o que vinha da mãe e o que era oriundo do seu próprio infantil. Os primeiros movimentos, compreendidos como enactments da analista, diziam respeito a uma captação do que vinha da mãe e do bebê, ainda num momento anterior à compreensão da contratransferência (Hochmann, 2012). No a posteriori imediato, foi-lhe possível a "retomada reflexiva" (Braconnier & Golse, 2008) sobre o enactment.

No segundo caso, a analista se deparou com uma dificuldade na recepção de afetos e não pôs adiante sua reverie, compreendida por Bion (1962/1966) como componente da função alfa, capaz de acolher as identificações projetivas. Podemos estimar que a aliança desenvolvida entre Tomás e a analista tenha sido sentida pela mãe como uma ameaça, pois ainda não estava preparada para descolar do filho, incapaz de abrir mão dele. Pode-se pensar que a mãe, mobilizada em seu narcisismo, tenha sentido dificuldade em vislumbrar a separação e a autonomia do filho, de perceber o que era o seu próprio desejo e o desejo do filho. Nas palavras de Cavalheiro e Silva (2014), quando o enactment não é produtivo "não saberíamos se a função alfa funcionou. Ou ela não foi suficiente, ou não foi adequada, ou foi atacada pelo paciente, ou o analista não a teve. Não há como saber" (p. 47).

 

Fenômenos primitivos experienciados no campo analítico: recortes conceituais

A seguir, buscaremos delimitar conceitos que nos auxiliem a compreender as vinhetas clínicas. Remetemos aos elementos não verbais que ilustram o vínculo com o nosso mundo arcaico, tais como fantasias baseadas em experiências primitivas, projeções e identificações ligadas a sentimentos despertados pelos movimentos transferenciais. No setting analítico, esses fenômenos dão origem a uma determinada posição subjetiva no outro, com base na qual os diferentes atores interagem sem ter consciência dessa situação. Desse modo, as fantasias, sentimentos e projeções advêm de todos os personagens envolvidos no campo - mãe, pai, bebê, analista – como ilustrado pelas vinhetas clínicas.

Na tentativa de delimitar tais fenômenos advindos das histórias relacionais, recorremos a Cassorla (2013, 2016), estudioso das formas de comunicação primitiva. Dentre algumas possibilidades conceituais, como contratransferência complementar, identificação projetiva massiva, contraidentificação projetiva, acting-out, tela beta, gestos psíquicos. Cassorla se debruçou sobre o enactment como possibilidade de compreender o processo de simbolização e suas formas de expressão no campo analítico. Está, portanto, entre os analistas que valorizam o aspecto comunicativo dos enactments (no plural porque o autor situa os enactments normais, derivados de identificações projetivas mais realísticas/comunicacionais, e os enactments agudos e os crônicos - identificações projetivas maciças que podem se tornar empecilhos ao tratamento). O autor os trata como forças que podem ser positivas para o tratamento, quando reconhecidos, trabalhados e compreendidos, pensados.

Além de Cassorla e antes dele, outros usaram o termo enactment, que está próximo de atingir a meia idade, aos 40 anos de existência catalogada. Jacobs é referido como o primeiro a utilizar o termo no título de um trabalho, em 1986 (Cavalheiro & Silva, 2014; Sapisochin, 2019).

Uma das possíveis origens do enactment está na tentativa de superar o termo acting-out ou atuação (do mundo interno para fora), comumente tomado como pejorativo, moralístico e conceitualmente confuso. Acting-out era/é usado para denominar descargas ou atos impulsivos, vistos como obstáculos para a análise, em uma recusa do paciente ao recordar uma possível conduta encenada, suposta transgressão por atuar em vez de associar livremente. Trata-se de situações nas quais o paciente dramatiza fatos que não pode ou que se opõem lembrar.

Cassorla (2016) argumenta que um paciente atua justamente porque não tem condições suficientes para fazer outra coisa, e que não necessariamente estaria transgredindo as regras do setting. Adverte que "visões moralísticas condenatórias impedem o desenvolvimento da capacidade de pensar" (Cassorla, 2013, p. 195).

A utilidade de compreender os enactments está na possibilidade de reconhecer que eles revelam "falhas e êxitos no desenvolvimento inicial que não podem ser recordados nem esquecidos, porque essas capacidades ainda não se desenvolveram" (Cassorla, 2016, p. 82).

Outra importante questão a ser destacada é que o analista está envolvido no enactment, o que caracteriza este como fenômeno intersubjetivo, pois ocorre entre paciente e analista, admitindo-se que ambos participam do que está ocorrendo. Essa performance é iniciada por um membro da dupla analítica, geralmente o paciente, pressionando o analista, via identificações projetivas, a responder de modo complementar. Adversamente, no acting-out o analista figura apenas como mero expectador.

O campo analítico é tomado por configurações arcaicas dramatizadas por ambos os membros da dupla, sem que eles o percebam. A dramatização compreende diferentes formas expressivas que se manifestam através de emoções, mímica, atos, sons, cheiros, formas de construção da linguagem, tons, timbres de voz. Esta expressividade pode ser muito sutil em sua manifestação visível e muito potente em sua capacidade de envolvimento emocional. Os traumas congelados se revelam, no campo analítico, através do enactment agudo ao mesmo tempo que são sonhados. Sua ressignificação ocorre, portanto, après coup (Cassorla, 2013, p. 194).

Eis algumas possibilidades conceituais trazidas por Cassorla (2016) para enactment:

Comportamentos envolvendo paciente e analista que tornam atuais situações ou fantasias arcaicas, reflexo de medos e esperanças transferenciais e contratransferenciais, sendo colocadas em cena situações traumáticas reais ou fantasiadas do passado, e ocorrendo inconscientemente. Os comportamentos substituem a comunicação verbal, que é limitada .... Fenômeno intersubjetivo em que, a partir da indução emocional mútua, o campo analítico é tomado por condutas e comportamentos que envolvem ambos os membros da dupla analítica, sem que eles se deem conta suficiente do que está ocorrendo, e que remetem a situações em que a simbolização verbal está prejudicada (pp. 83-84).

A crescente valorização do vértice intersubjetivo na psicanálise contemporânea parece marcar a meia idade do enactment. Cassorla situa: "nesse momento se revalorizam autores que já haviam chamado a atenção para esses fatos, como o casal Baranger, Ferenczi, Winnicott, Rosenfeld, Bion, Betty Joseph etc., e mais recentemente Ferro e Ogden" (Cassorla, 2013, p. 188). "Considero que o termo enactment agregou fenômenos similares que eram descritos de formas próximas, porém diferentes, por psicanalistas de várias orientações teóricas. O termo passou a fazer parte do que tem sido chamado common ground em psicanálise" (Cassorla, 2013, p. 189).

Há, entretanto, críticas quanto ao enactment na clínica psicanalítica. Há aqueles que apresentam a ideia de que escutar por meio da subjetividade do analista afasta a psicanálise de seu objeto de estudo - a psique do paciente. Sapisochin (2019) sustenta que essa visão é infundada:

Em minha opinião, não devemos confundir a subjetividade do analista que é ativada no encontro e se torna um instrumento paradigmático da escuta psicanalítica, por um lado, e, por outro, um subjetivismo epistemológico que implica a não existência de uma realidade psíquica acessível ao paciente. Pelo contrário, ouvir o que é promulgado por paciente e analista é um desvio clínico projetado para permitir acesso a formas arcaicas de funcionamento mental no paciente, inacessíveis pela díade por meio da associação livre e da atenção flutuante, porque nunca foram pensadas verbalmente. Este é o reino do que permaneceu em silêncio, além das palavras e além da repetição relacionada ao prazer - isto é, o reino da repetição do traumático (Sapisochin, 2019, p. 3).

Assim como Cassorla e Ogden, Sapisochin defende que há uma clara intersubjetividade em jogo, retomada não só para compreender a história do paciente, mas à compreensão da história recriada no setting analítico como uma verdade inferida no a posteriori a partir das sutilezas presentes nas interações não verbais, encenadas silenciosamente pelo par analítico. Uma vez que se reconhece que a transferência, indissoluvelmente ligada à contratransferência no campo intersubjetivo, é uma manifestação de elementos inconscientes que nunca puderam ser registrados verbalmente, é admissível que essa ferramenta de escuta analítica sirva de evidência quanto à existência de níveis psíquicos que não podem ser acessados apenas pela associação livre e pela atenção flutuante. Essa parece ser, segundo o autor, uma convergência metapsicológica de culturas psicanalíticas. Sapisochin (2019) ilustra essa constatação com a inclusão do termo enactment, em 2017, na Enciclopédia / Dicionário da IPA (International Psychoanalytical Association, 2017).

Sapisochin (2019) situa que o enactment não é fruto dos elementos que foram dinamicamente reprimidos, nem é fruto do que está sem representação ou não simbolizado no inconsciente. Ademais, admite os enactments como formas relacionais, registradas como gestos psíquicos baseados em imagens. No setting analítico, a repetição toma a forma de enactments porque envolve a linguagem de elementos não incluídos no ego como palavras, que procuram um narrador para alfabetizá-los emocionalmente (remetendo ao processo apresentado por Bion de transformar os elementos beta e alfa). Teoriza que esse processo ocorre por meio de uma retificação da repetição compulsiva - daquilo que foi traumático porque excessivo – o que permitirá gerar espaço mental para a internalização do que não pôde ser experimentado no passado, criando uma nova experiência relacional.

O arcaico, registrado na forma de imagens, apresenta-se no palco analítico como uma 'peça dentro de uma peça' por meio de enactments que envolvem o par analítico não tanto em termos do que eles dizem, mas por meio de gestos psíquicos trocados entre eles. .... Cabe ao processo analítico conter as formas arcaicas de funcionamento que, embora expressas silenciosamente, por sua vez, contêm o enredo do drama inconsciente do paciente. Os enactments no processo analítico criam as condições para que essas formas relacionais, registradas como gestos psíquicos baseados em imagens, sejam transformadas - ou seja, assumam uma nova forma de simbolização verbal, diferente da temporalidade circular característica das formas arcaicas de funcionamento (Sapisochin, 2019, p. 17).

Ribeiro (2016) propõe uma terceira geração de conceitos - aqueles que abordam de que forma analista e analisando pensam juntos – situando nesse grupo o enactment e o terceiro analítico de Ogden. Esse último autor expõe uma de suas motivações para o estudo da intersubjetividade: "a teoria psicanalítica sofre em função da pobreza de linguagem e de conceitos que possam descrever o interjogo entre o fenômeno na esfera intrapsíquica e o fenômeno nas esferas da realidade exterior e das relações interpessoais" (Ogden, 1982, p. 11). Na tentativa de compreender possíveis aproximações entre identificação projetiva e enactment, Ribeiro (2016) explora conceitos e experiências propostos por Ogden, explicitando que ele faz uso da palavra inglesa enactment para descrever o fenômeno clínico da identificação projetiva. Ribeiro apresenta questões sobre a mudança na técnica analítica advinda de desdobramentos conceituais da identificação projetiva a partir de Klein, depois em Bion e chegando a Ogden, o que demonstra a amplitude da identificação projetiva tanto na dimensão teórica quanto na clínica.

Com base nesses autores, Ribeiro desenvolve uma formulação conceitual própria para identificação projetiva: "é uma fantasia inconsciente entre analista e analisando, podendo ter um caráter mais agressivo e expulsivo, portanto defensivo, ou um caráter mais comunicativo, sendo que os mecanismos de cisão e projeção, em intensidades diversas, estão sempre implicados" (Ribeiro, 2016, p. 15).

Para Bion, "a identificação projetiva (do analisando) lhe possibilita investigar seus próprios sentimentos dentro de uma personalidade forte (do analista) o suficiente para contê-los" (1959/1991, p. 106). Ressalta a identificação projetiva em seu aspecto comunicativo, de ligação, considerando a capacidade da mãe e do analista de conter as identificações projetivas e modificá-las.

Portanto, uma vez que se admite a identificação projetiva como um processo de comunicação intersubjetiva,

no qual tanto aquele que projeta, quanto aquele que é receptor da projeção são profundamente afetados nas suas subjetividades individuais, estamos mais amalgamados com o conceito de enactment. Este talvez possa ser compreendido como uma especificidade ou desdobramento da identificação projetiva (Ribeiro, 2016, p. 23).

Ogden não faz parte do grupo que se dedicou ao conceito de enactment, embora tenha feito uso da palavra para descrever o fenômeno clínico da identificação projetiva. Tratou desta no sentido bioniano, em uma transição para a construção de outros conceitos como o do terceiro analítico (Ogden, 1996), que não será lavo de exploração neste trabalho. Ribeiro admite que a compreensão da fenomenologia da identificação projetiva aproxima-se da fenomenologia do conceito de enactment.

Um dos desafios para o psicanalista ... é compor, dentro do vasto acervo de teorias existentes, um diálogo entre conceitos que se aproximam, mas também se diferenciam. Podemos identificar denominações que parecem inéditas, no entanto, diante de um exame minucioso, percebemos a complexa rede conceitual que as tornou possível, iluminando, assim, facetas do fenômeno clínico ainda não colocadas no centro das discussões teóricas e clínicas (Ribeiro, 2016, p. 12).

Ribeiro analisa que o conceito de enactment pode estar amalgamado com o de identificação projetiva, pois são "fenômenos psíquicos interpessoais na situação analítica que se mesclam, sendo difícil delimitar uma fronteira nítida entre ambos" (2016, p. 22). Assim como Mendes de Almeida (2010), destacamos nessa discussão a dificuldade e a complexidade de fronteiras conceituais, tomadas como um esforço contínuo, necessário e sempre inacabado.

Quem sabe agora estejamos diante de um novo desafio: como nos relacionar com a demanda clínica do contato com estados primitivos da mente, como configurá-la em termos do que é ou não "transferido", re-colocado na cena analítica, neste momento em que nossas ferramentas contratransferenciais vêm alcançando um grau de refinamento crescente? (Mendes de Almeida, 2010, p. 64).

Mas será que o enactment alcançou a maturidade, em se tratando de outros settings? Retomamos Cassorla (2016) ao identificar que, na análise de crianças e pacientes graves, o envolvimento dos pais cria um emaranhado de identificações projetivas cruzadas que pode dificultar a percepção dos fatos envolvidos. O que marca as terapias conjuntas pais-bebê, em termos de comunicações primitivas?

Lebovici (1994) traz algumas pistas na aplicação do enactment à clínica pais-bebê, chegando a traduzi-lo por enactions. Considera que esses fenômenos correspondem a momentos em que algo se impõe ao analista, uma metáfora que o excede, fruto do processo de interação entre seus processos associativos com os do bebê e dos pais. Nessa criação de metáfora, o analista faz uso de suas sensações, experiências corporais, para transmitir, seja por ato ou por palavras, uma emoção e uma compreensão de uma situação interativa entre a mãe, o bebê e o analista. As vinhetas trazidas por Lebovici na Revista Francesa de Psicanálise (1994) são esclarecedoras desses fenômenos na sua clínica.

A partir da concepção de Lebovici (1994) sobre o fenômeno de enaction, Golse e Braconnier (2008) alertam que esse acontecimento não impossibilita a retomada reflexiva pelo analista no a posteriori imediato de sua intervenção. Não sendo conscientemente premeditada, a enaction se impõe ao clínico como um duplo sentimento: de estranheza e de forte valor terapêutico. Esse conceito é particularmente pertinente à clínica com bebês, na medida em que, por meio de partes infantis do analista, o fenômeno possibilita identificar de modo regressivo o funcionamento do bebê.

No trabalho analítico com pais e bebês, somos apresentados e lançados a tantos sentimentos de incerteza e provocadores de ansiedade e angústia que precisamos desvelar o que remete à experiência do bebê, o que vem dos pais, assim como o que é oriundo do próprio infantil do analista. Nessa difícil aventura, Bonino e Ball (2013) indicam que é preciso "uma aldeia psicanalítica" ou, às vezes, uma "vila de profissionais". Remetem à capacidade da rede de terapeutas de trabalhar em conjunto com os pais e o bebê, até mesmo com outros membros da família.

Esses autores também fazem menção ao termo "contratransferência sistêmica" para indicar como as rupturas dos vínculos infantis podem impactar a rede de trabalho, sobretudo nos casos de psicose parental. A contratransferência sistêmica cria um campo no qual o trabalho com pais e bebê busca reparar o elo de amor na relação mãe-bebê. Quanto mais o sistema puder pensar sobre isso, melhor será o caminho rumo a um campo terapêutico contentor.

Quer estejamos trabalhando com o bebê, a mãe, o pai ou a rede, estamos recorrendo a diferentes níveis de compreensão. Um deles é o infantil, onde somos trazidos de volta a um lugar não-verbal, não-processado, onde os processos primários são abundantes. O próximo pode ser um nível simbólico em que podemos abordar a capacidade da mãe de pensar. E, então, outro nível de comunicação que é mais sistêmico. Este nível pode incluir os pais, a família e agências externas. Na psicoterapia entre pais e filhos, estamos trabalhando todos esses níveis ao mesmo tempo. Em outras palavras, estamos mantendo o bebê em mente, a mãe em mente e o sistema em mente (Bonino & Ball, 2013, p. 60).

No centro deste processo está a capacidade do terapeuta de compreender a natureza das fantasias inconscientes, primitivas e infantis. Isso pode incluir suas próprias experiências inexploradas, incluindo a si mesmo no círculo de angústia que está buscando transformar, ampliando círculos concêntricos no sistema.

Traremos a seguir vinhetas ilustrativas sobre a importância da rede terapêutica e da observação de bebês na compreensão de fenômenos transferenciais que ocorrem no campo analítico.

 

A observação de bebês e sua contribuição para a compreensão de fenômenos primitivos e transferenciais

Destacamos a contribuição da observação de bebês como parte da formação do analista ao seu trabalho com pais e bebês, bem como no alargamento da mente receptiva (Houzel, 2010), essencial à prática analítica. Segundo Golse (2008), a ligação entre observação e tratamento, ou seja, a ligação entre o bebê observado e o bebê tratado, só aconteceu com a introdução do Método de Observação de Esther Bick.

Lisondo, Spessoto e Mattos (2007) descrevem que ao longo desse processo:

o observador é confrontado com a turbulência da experiência emocional característica dos primórdios da vida mental de um bebê. Ele é solicitado a permanecer como um observador atento de seu próprio mundo interno e do impacto emocional que o contato com a situação suscita (p. 01).

Há ainda outra importante característica do Método Bick que auxilia o observador no exame de seus sentimentos contratransferenciais: a escrita no segundo tempo. Essa escrita promove o necessário afastamento do momento da observação; e, no terceiro tempo, a continência propiciada pela supervisão. Esses tempos são essenciais à análise dos momentos nos quais o observador possa ter perdido sua capacidade de continência frente às situações emocionais vividas, e o esforço para se abster de julgamentos.

Assim como Bick remeteu à necessária abertura e compreensão do observador para as projeções da mãe e do bebê, Bion destacou a importância de o analista conter as projeções do paciente para que possa deixar surgir de dentro de si sentimentos contratransferenciais angustiantes que nele tenham sido despertados. Para que isso seja possível, há que desenvolver e lidar com a "capacidade negativa" (Bion, 1970/1973), que consiste na capacidade para suportar dúvidas, incertezas e o "não-saber" da situação observacional/analítica.

O método Bick pode ser um instrumento importante para a construção da identidade do psicanalista na medida em que auxilia o desenvolvimento da capacidade negativa e a aprendizagem por meio da experiência emocional, indispensáveis ao trabalho psicanalítico (Lisondo, Spessoto & Mattos, 2007). Essa mesma ideia é defendida por inúmeros autores que concebem a observação psicanalítica aos modos do Bick como parte essencial à prática analítica. Houzel (2010) exemplifica essa possibilidade por meio do treino do observador, que gradualmente aprende a liberar e lidar com sua própria capacidade para receber, conter e transformar as projeções do ambiente. Trata-se também de uma função valiosa a ser aproveitada terapeuticamente a serviço da promoção da saúde mental infantil e parental.

Um bebê exposto à psicose materna fica vulnerável e em situação de risco psíquico. Esta era a situação de Thierry, bebê que, aos quatros meses de idade, foi encontrado em uma madrugada de inverno, com a mãe, que vagava pelas ruas. O bebê foi levado a um hospital pediátrico, enquanto a mãe foi internada para cuidados psiquiátricos, pois apresentava episódios delirantes, com temas de perseguição, tendo feito várias tentativas de suicídio.

As equipes envolvidas com referente caso recebiam projeções clivadas da mãe de Thierry, o que induzia a posições conflituosas e contrárias em relação ao bebê e seus pais. Para Myriam David (1987), a mãe psicótica oscila entre um desejo intenso de aproximação fusional e angustiante com seu bebê fantasmático e uma intolerância em relação às manifestações pulsionais do bebê real. De um lado, a equipe pediátrica que se ocupava da criança e que havia testemunhado encontros caóticos entre a mãe e o bebê defendia a impossibilidade dos pais de cuidarem do filho. Do outro lado, a equipe psiquiátrica de adulto, envolvida transferencialmente com a mãe, se posicionava no sentido de que a criança pudesse morar e ser cuidada pelos pais. Afetos e posições contraditórias foram escutados, elaborados e, assim, foi sendo formada uma rede de cuidados, bem como tecido um projeto de acompanhamento para esse bebê e seus pais.

Aos sete meses de idade, Thierry foi colocado temporariamente em um lar de apoio, sob os cuidados de uma assistente maternal quando, então, foi iniciada a observação Bick de modo adaptado que depois sofreu outra modificação, ao ser estabelecido um setting terapêutico (Camarotti & Sampaio, 2017). Seguimos com vinhetas de relatos da observadora.

Pouco tempo depois, além da observação no domicílio da assistente maternal, foi acrescentada a observação do bebê e seus pais numa instituição. Esses encontros eram assegurados por mim, enquanto referente da criança, e por um enfermeiro, referente dos pais. Quando Thierry estava com 15 meses me chamou a atenção a sua fragilidade, seu pouco interesse pelo meio ambiente, seu andar nas pontas dos pés e o seu silêncio. "Se deixarmos, ele se fecha em si mesmo", se queixou um dia a assistente maternal. Eu me inquietava com a pobreza do jogo desta criança, pela pobreza dos seus movimentos pulsionais, aliados a uma desorganização somatopsíquica. Comprometido na sua capacidade de mentalização, Thierry expressava seu sofrimento psíquico através de transtornos psicossomáticos como a anorexia com vômitos e espasmo do soluço. Os sintomas observados na criança determinaram uma mudança neste setting observacional, e duas linhas de atuação se definiram: prevenção e tratamento. Acompanhar esse bebê em situações tão distintas, estando ele ora com a assistente maternal, ora com a mãe, me enviava a sentimentos contraditórios, ambivalentes. Transferencialmente envolvida, por vezes acolhia mais facilmente o que vinha da mãe, noutras acolhia com mais tranquilidade, o que vinha da assistente maternal. Acreditava que era isso o que Thierry sentia, entre dois agentes maternos: pela mãe, invadido por um modelo fusional; pela assistente maternal, submetido a limites rígidos, principalmente no que se referia à alimentação, como também a atitudes que inibiam seu mundo lúdico e fantasmático. Thierry, me utilizando como ponto de continuidade e como guardiã de seu espaço psíquico, passou a aproveitar da minha presença, tentando juntar esses dois mundos, ao reproduzir com a mãe o que fazia com a assistente maternal e vice versa. As tentativas da criança eram ignoradas ou sustadas: "Comigo, não! Isso você faz com sua mãe", dizia a assistente maternal. "Você está com a mamãe e é Tati que você chama", se queixava a mãe. A fragilidade e situação de Thierry despertavam em mim angústia e um sentimento intenso de querer protegê-lo. Foi no espaço da supervisão que eu pude refletir e elaborar o que experienciava nos dois settings de observação.

O dispositivo da supervisão e análise da contratransferência possibilitou que a observadora continuasse à escuta da criança e que não ocupasse os vários e contraditórios lugares onde era transferencialmente colocada pelos diversos personagens. Mesmo submetida a um complexo entrelaçado de identificações projetivas, transferências cruzadas e experiências emocionais primitivas, a observadora pôde, com sua reverie, acolher esses processos primários, metabolizá- los e nomeá-los.

 

Considerações finais

Uma família chega para análise já envolta em um emaranhado de identificações projetivas cruzadas que podem dificultar a percepção dos fatos. Acrescenta-se a esse emaranhado o analista, com suas próprias questões constitutivas, precisando lidar com o bebê que foi um dia, com a parentalidade que recebeu de seus próprios pais.

O trabalho analítico com pais e bebê é intenso, comovente, catapulta os envolvidos para vivências intensas que podem se transformar em experiências ou ficarem sem respostas, em seu potencial conturbador, por vezes mortífero. É no après coup que nos damos conta de movimentos agudos e crônicos na análise, de conflitos transgeracionais não resolvidos. Cabe ao analista navegar nos dois campos, receber em sua mente pensante e continente o que vem do bebê e o que vem dos pais, para simbolizá-los e devolvê-los transformados. Nessa articulação, tem-se o corpo e o dizer do analista, mas essa passagem não é tarefa fácil.

Com relação aos elementos teóricos que nos auxiliaram na tarefa de conceituar os fenômenos psíquicos em jogo no setting analítico e observacional, concordamos com os autores com os quais buscamos conversar neste texto: as fronteiras conceituais sobre o enactment são complexas e nem sempre úteis. O enactment atualmente já figura como common ground, na convergência metapsicológica de culturas psicanalíticas, mas também como um dispositivo analítico que ganha um colorido essencial na clínica pais-bebê por ser uma clínica do primitivo por excelência. Faz-se mister treinar a disponibilidade para ser afetado e lidar com tal afetação de modo produtivo.

Como dispositivo terapêutico nessa clínica do primitivo, precisamos nos manter alerta às exigências que os bebês fazem: trabalhar de modo maleável, recebendo as transferências, fazendo com que sejamos afetados por elas e, ao mesmo tempo, imprimir alguma coisa nossa. Nesse processo, destacamos a criatividade fruto da imbricação dos mundos internos, na esperança de que estes saiam enriquecidos pelo encontro intersubjetivo no campo observacional e no analítico.

As vinhetas de análise e de uma observação psicanalítica buscaram sustentar a compreensão de que essas experiências convidam/expõem o analista a uma contratransferência baseada em elementos primários, colorida por intensas angústias arcaicas e difusas. Essas experiências propiciam o contato com aspectos profundos de seu mundo interno e da relação com o outro, revisitando o bebê que se foi e que nunca deixa-se de ser, promovendo o alargamento da mente receptiva do analista. Nesse caminho entre afetação e simbolização, acreditamos que o método Bick pode oferecer suporte técnico e ético ao promover a observação das verdades emocionais.

 

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Recebido em junho de 2019 – Aceito em julho de 2020.

 

 

Revisão gramatical: Ediliane Araújo - Grafia Assessoria Linguística
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