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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.25 no.3 São Paulo maio/dez. 2020
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i3p501-517
10.11606/issn.1981-1624.v25i3 p501-517
ARTIGO
A língua de sinais na relação transferencial e sua dupla posição em relação à lalangue
El lenguaje de señas en la relación transferencial y su doble posición en relación con la lalangue
Sign language in the transferential relationship and its double position in relation to lalangue
La langue des signes dans la relation transférentielle et sa double position par rapport à la lalangue
Camila Campos Curcino VieiraI; João Luiz Leitão ParavidiniII
IPsicóloga na Prefeitura Municipal de Uberlândia. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil. E-mail: psicocamilacampos@gmail.com
IIProfessor Associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil. E-mail: paravidini@ufu.br
RESUMO
Este trabalho se originou no atendimento psicanalítico de crianças com surdez e seus familiares. Considerou-se, na singularidade do encontro entre o analista e o sujeito, a língua de sinais como nó inquietante ao redor da qual o Real da transferência era percebido em seus efeitos e a posição ocupada pela criança no discurso materno evidenciava-se. Os efeitos da língua de sinais transitavam entre o incômodo, com tentativas de impedir sua circulação no discurso, e o apaziguamento, em momentos em que trazia sentido e fazia movimentar a cadeia de significantes. Para além da especificidade dos conteúdos analisados, pretende-se expor considerações quanto à língua materna dos sujeitos com surdez, articulando-a com conceitos referentes à dinâmica pulsional dos objetos a - voz e olhar. Tais objetos se apresentaram de modo singular e suas particularidades estiveram relacionadas à língua materna e ao modo como ela se colocou para os sujeitos quando ocorreu o diagnóstico da surdez. Para atingir os objetivos propostos, foram utilizados trechos dos casos clínicos analisados a fim de contribuir para o desenvolvimento das proposições e articulações teóricas.
Palavras chave: surdez; voz; olhar; língua de sinais.
RESUMEN
Este trabajo se originó a partir del cuidado psicoanalítico de los niños sordos y sus familias, teniendo, en la singularidad del encuentro entre el analista y el sujeto, el lenguaje de señas como un nudo que trajo reflexiones, alrededor del cual se percibía lo Real de la transferencia en sus efectos y la posición ocupada por el niño en el discurso de la madre era evidente. Los efectos del lenguaje de señas pasaron entre la inquietud, con intentos de evitar su circulación en el discurso, y apaciguamiento, en momentos que dieron sentido y movieron la cadena de significantes. Además de la especificidad de los contenidos analizados, se presentan consideraciones con respecto a la lengua materna de los sujetos sordos, articulando conceptos relacionados con la dinámica de conducción de los objetos voz y mirada, que se presentaron de una manera única. Sus características se relacionaron con la lengua materna y con la forma cómo la lengua materna se presentó para los sujetos cuando recibieron el diagnóstico de la sordera. Para lograr los objetivos, se emplearon extractos de los casos clínicos analizados para contribuir al desarrollo de las proposiciones y articulaciones teóricas.
Palabras clave: sordera; voz; mirada; lenguaje de señas.
ABSTRACT
This work originated from the psychoanalytical care of deaf children and their families, having, in the singularity of the encounter between the analyst and the subject, the sign language as a disturbing knot, around which the Real of the transfer was perceived in its effects and the position occupied by the child in the mother's speech was evident. The effects of sign language passed between the nuisance, with attempts to prevent its circulation in the speech; and appeasement, in moments that brought meaning and moved the chain of signifiers. In addition to the specificity of the analyzed contents we intend to expose considerations regarding the mother tongue of deaf subjects, articulating concepts related to the drive dynamics of objects voice and gaze. These happened in a unique way and the particularities were related to the mother tongue and how it was placed for these subjects when deafness was diagnosed. To achieve the proposed objectives we will use some excerpts of the clinical cases analyzed, in the format of vignettes, in order to contribute to the development of the propositions and theoretical articulations.
Keywords: deafness; voice; look; sign language.
RÉSUMÉ
Ce travail est né de la prise en charge psychanalytique des enfants sourds et de leurs familles. Dans la singularité de la rencontre entre l'analyste et le sujet, la langue des signes était vue comme un nÅud inquiétant autour duquel le Réel du transfert était perçu dans ses effets et la place occupée par l'enfant dans le discours de la mère était évidente. Les effets du langage des signes évoluent entre l'inconfort, avec des tentatives d'empêcher sa circulation dans le discours, et l'apaisement, dans des moments où il apportait du sens et faisait bouger la chaîne des signifiants. En plus de la spécificité du contenu analysé, nous avons l'intention d'exposer des considérations concernant la langue maternelle des sujets atteints de surdité, en l'articulant avec des concepts liés à la dynamique pulsionnelle des objets à - voix et regard. Ces objets étaient présentés de manière unique et leurs particularités étaient liées à la langue maternelle et à la manière dont elle était présentée aux sujets lors du diagnostic de surdité. Pour atteindre les objectifs proposés, des extraits des cas cliniques analysés ont été utilisés afin de contribuer au développement de propositions et d'articulations théoriques.
Mots-clés: surdité; voix; regard; langue des signes.
Este artigo busca extrair ressonâncias de uma pesquisa de mestrado que incluiu o trabalho psicanalítico com crianças com surdez. Na relação transferencial, os objetos voz e olhar apresentaram-se de modo singular, e as particularidades estiveram relacionadas à língua materna. Nos dois casos clínicos construídos, a língua de sinais esteve presente como nó inquietante na relação analítica, tendo seus efeitos percebidos quando escorregava no discurso e fazia aparecer algo do Real e do irrepresentável. Tais efeitos apontavam para o modo através do qual se deu a entrada de cada criança atendida na linguagem e como a figura materna se colocava diante de um diagnóstico de surdez, com a consequente quebra das construções imaginárias acerca de um bebê que, a partir de então, não poderia lhe escutar.
Existe um número considerável de estudos que abordam os aspectos da voz e seu papel no enlaçamento entre o Simbólico e o Real, mas são poucas as pesquisas que os abordam em relação com a surdez severa. A voz, enquanto objeto da pulsão, é afônica e não substancializável. Contudo, ela carrega resquícios de musicalidade, e a língua materna, como forma de embalar a voz, convida-nos a pensar como ela opera em um bebê que está privado do mundo sonoro. O modo de operar facultado pela língua de sinais, por meio do que é visível, lançava o objeto olhar em cena e mostrava, nos casos acompanhados, que as pulsões invocante e escópica estavam em estreita relação no que se refere à posição alienante ocupada pelos sujeitos.
Iniciamos, assim, com levantamentos teóricos sobre os objetos pulsionais voz e olhar , para, em seguida, desenvolvermos as considerações sobre a língua materna e a língua de sinais, bem como suas reverberações na relação transferencial.
Os objetos pulsionais voz e olhar
A leitura de textos psicanalíticos sobre a voz aponta para a complexidade de definir tal objeto. Em Freud, a voz, ligada ao supereu, pertence à instância do inconsciente e remete às falas dos pais. Lacan acrescenta que o supereu se comporta como uma lei interrompida, que rompe com as relações entre o sujeito e o Simbólico. Ao falar, existe algo que se perde na passagem dos significantes, e nesse lugar se encontra a voz, que não se liga a nenhum significante e aparece de forma fugaz. Além disso, tal objeto não possui um caráter sonoro e relaciona-se com as pausas das narrações, suas entonações e os silêncios (Porge, 2012/2014; Porge, 2015).
O objeto, assim considerado, remete ao momento fundante da constituição psíquica, em que o sujeito é inserido, pelo Outro, na linguagem. Nessa operação, algo se perde, o que demarca uma falta estruturante sobre a qual não existirá um significante capaz de supri-la. A entrada no mundo simbólico e o reconhecimento de um Outro que falha em sua posição de completude não é sem consequências, pois haverá um movimento constante de busca por esse saber impossível. Além da voz e do olhar, os seios e as fezes também são considerados como objetos da pulsão, dessa forma são, para sempre, objetos perdidos, pois não haverá nada no Outro capaz de tamponar a falta, apenas restarão os contornos do vazio constituinte do sujeito. Mesmo o Outro, encarnado na figura materna, será transitório, mostrando que ali não há ninguém que possa suprir o desejo (Teixeira, 2016).
A criança torna-se objeto de desejo do Outro, o que não se dá de maneira passiva, visto que ela atrai o desejo materno. A mãe, como uma encarnação transitória do Outro, irá responder às demandas da criança, conferindo sentidos e causando furos em seu corpo. Os abraços, toques, beijos e ritmos do corpo e da fala, da figura materna, vão ocasionando esburacamentos no corpo e o libidinizando, com a criação das bordas pulsionais (Teixeira, 2016).
O movimento do bebê permitirá um investimento da mãe sobre ele, em uma via de mão dupla. O circuito da pulsão invocante compreende chamar, ser chamado e se fazer chamar, ou ainda outros três tempos, a saber, ouvir, ser ouvido e se fazer ouvir, comportando dois orifícios, a boca e o ouvido. O som é um revestimento imaginário da voz, todavia, enquanto objeto da pulsão, ela é vazia e não se liga a um sentido, mas ao endereçamento de um desejo nas duas direções da relação (Vorcaro & Catão, 2015; Porge, 2015). O sujeito, ao ser submetido ao apelo do Outro e estar diante da ausência desse apelo, com movimentos que se alternam, é chamado a se tornar desejante. A voz materna, como um apelo incondicional, convida ao gozo e deixa sem voz o sujeito que lhe escuta (Vivès, 2009). A voz primordial como aquela do conto das sereias, que atrai Ulisses por um som sem significado, porém tentador enlaça e silencia o sujeito e traz a promessa de completude e de atender toda a demanda que lhe é endereçada. Na invocação, o Outro necessita ser reconhecível, mas também faltante, na relação com o sujeito, ou seja, deve ser uma ausência na presença para que este possa se utilizar de sua própria voz (Vivès, 2009).
A qualidade de ser visível coloca o sujeito diante do olhar do Outro de modo incontrolável e permanente. Esse mesmo olhar faz laço com a dimensão da palavra: "o que o Outro quer de mim?". Assim, olhar e palavra estão ligados ao desejo do Outro. Essa ligação entre voz e olhar parece estabelecer um contraponto, pois o gozo de um deturpa o gozo do outro; exemplo disso são os casos em que precisamos fechar os olhos para escutar com mais clareza e certos fascínios de imagens que podem prejudicar a escuta (Assoun, 1995/1999).
O olhar e a voz como objetos suplementares, no que diz respeito à castração, fazem suplência à falta do sujeito e do Outro. Com relação ao olhar, há um Outro que olha o sujeito muito antes de sua existência e, quando o faz, não há como impedir que algo também lhe olhe. O sujeito, ao se tornar visível, expõe-se a um olhar invisível e vazio. O olhar é objeto de desejo que demanda ao Outro reconhecimento e supõe a ele uma potência (Assoun, 1995/1999).
No fenômeno do olhar, operam os três registros: Imaginário, Simbólico e Real. O Imaginário refere-se ao que é visto de maneira escópica, sendo, portanto, um terreno do eu, em que as imagens do mundo são vistas e determinadas pelo Simbólico. O Simbólico, como anterior ao sujeito, faz barreira entre o Imaginário e o Real, introduzindo-o na cadeia significante (Quinet, 2002). O olhar do Outro primordial está situado entre o Real e o Simbólico, transformando a necessidade em demanda. Para que isso aconteça, faz-se necessária a presença do engano em um terreno no qual as certezas não existem e em que não há um significante que oblitere a falta. Para que o engano exista, o objeto real deve se perder, carecer de sentido e ser tomado, então, por aquilo que não é (Fernandes, 2000).
O objeto escópico pode ser encarado como um lugar de vazio que mantém o circuito pulsional em movimento, como um a mais-de-gozar, que se trata de um a mais de gozo. Teixeira (2016) aponta que "o objeto pode ser considerado enquanto causa, o cavo que impulsiona a pulsão, e enquanto mais-de-gozar, objeto de onde se extrai um gozo, ainda que não se possa apreendê-lo" (p.9).
Podemos relacionar o olhar do Outro ao investimento libidinal. Para que o bebê se torne objeto de desejo da mãe e atraia a libido materna, ela deve olhá-lo naquilo que ele virá a ser, antecipando o futuro e inserindo-o na linguagem. O que torna o bebê objeto de desejo da mãe? Uma hipótese é a reatualização do narcisismo materno no nascimento do filho. Os pais realizam, nele, os próprios ideais e atributos, encarando-o por meio de uma imagem idealizada de perfeição, necessária para a unificação corporal do bebê e sua constituição psíquica (Fernandes, 2000).
A imagem inconsciente da mãe sobre seu bebê influenciará seu olhar sobre ele e, consequentemente, sua relação especular. Para que seja possível ao bebê a construção de sua imagem corporal, o Outro deve ser capaz de criar uma ilusão daquilo que ele ainda virá a ser (Laznik, 1992-2002/2004). O olhar, enquanto objeto da pulsão, estará relacionado com o vazio que resta da operação de alienação, na qual o sujeito é invocado a se tornar desejante. Contudo, restará algo irrepresentável e não significantizável. Se não há a queda do objeto olhar, dando lugar para o vazio, o sujeito estará capturado e fixado no Outro, não havendo deslizamento da cadeia de significantes.
Dito de outra maneira, na entrada do sujeito no mundo simbólico, há uma divisão entre saber e verdade e, como resto dessa divisão, o objeto a aparece relacionado à falta, já que não há acesso a toda a verdade. O objeto remete à perda e à castração. O saber carregará um furo, pois não existe um significante capaz de representar a si mesmo, visto que um significante deve ser entendido em relação a outro significante. O Outro não possui todo o saber sobre o sujeito, porém a cadeia significante movimenta-se em busca de encontrar um sentido. O objeto olhar, compreendido como mais-de-gozar, permite compreendê-lo em sua localização nas zonas erógenas e impulsionado pelo gozo. Trata-se de um gozo excedente, perdido na entrada no mundo simbólico, êxtimo à cadeia significante (Souto, D' Agord & Sgarioni, 2014). Se o olhar materno estiver pautado por um saber incontestável sobre o que a criança deseja, não haverá espaço para que o sujeito se distancie desse olhar.
Língua materna e lalangue
O termo lalangue é um neologismo de Lacan, traduzido como alíngua e lalíngua. Nesse trabalho, optamos pelo termo lalangue, devido a seu efeito e aproximação com a lalação, presente nos primeiros meses de vida da criança, e na língua prosódica e musical utilizada pela mãe ao falar com seu bebê.
Para inferir que o inconsciente assume a estrutura de uma linguagem, faz-se necessária sua exteriorização, cuja via, privilegiada por Lacan, é a da linguagem falada, ou seja, a língua e, em especial, a língua materna. Essa língua é definida como única e singular para cada sujeito, como expressão de seu caráter de gozo e, mais precisamente, de sua ligação com o corpo carregado de sentido (Nasio, 1992/1993). A voz humana, concebida como veículo da língua, foi considerada por Lacan como um poderoso poder de sedução, e o neologismo lalangue liga o desejo à língua, sendo definido como o saber que escapa ao controle e que está além daquilo que pode ser enunciado (Roudinesco, 2011). Ela comporta um saber enigmático que escapa ao falante, "que eu falo sem saber. Falo com o meu corpo, e isto, sem saber. Digo, portanto, sempre mais do que sei" (Lacan, 1972-1973/1985, p.161).
O funcionamento da língua para um sujeito terá características particulares à sua rede de relações familiares e estabelecerá modos de estar na linguagem e na cultura. A mãe, a princípio, ocupa a posição de plena, inequívoca e tesouro dos significantes, para depois ser substituída pela mãe simbólica, aquela que também responde às leis da língua e é sujeito de linguagem, por isso não é sem falhas e operará simbolicamente com o filho. O pai simbólico funcionará como interditor da relação alienante entre mãe e filho, para que a criança se desloque da relação com a mãe onipotente para uma relação com a língua materna. O contato com tal língua permitirá uma mudança na relação com a mãe, que, agora compreendida como não-toda, não responde a tudo e não pode atender a tudo o que a criança quer (Formigoni et al., 2005).
Jerusalinsky (2009) propõe o termo mamanhês para designar a língua utilizada pelas mães para falar com seus bebês, a qual é tocada pela musicalidade, com tons mais agudos que o normal, com uso de vogais e evitação das consoantes, o que suaviza a fala. Nela, fala-se por meio da prosódia. Esse modo de falar não segue as exigências gramaticais e seu caráter musical é capaz de atrair o bebê, erotizando o ato de escutar. A fala da mãe, alternada com o silêncio, permite que o bebê responda com seus balbucios, criando um jogo de revezamento e o convocando a existir por meio do chamado. A mãe transforma os balbucios e expressões do bebê em uma demanda, mesmo quando tais sons estão fora do sentido gramatical. Se a mãe se fixar no significado do som emitido pelo bebê, não será possível um enlaçamento do desejo, pois é necessário que o som caia para que o enigma do desejo se instaure e a mãe pergunte o que é que o bebê quer.
E se a língua utilizada pela mãe for a de sinais, com sua expressão gestual-visual, e a criança estiver privada do mundo sonoro? Desde 2002, a Libras Língua Brasileira de Sinais foi reconhecida legalmente como meio de comunicação e expressão, ganhando o estatuto de língua perante as línguas orais. Contudo, como nos aponta Milner (2009/2012), para além da estratificação e da classificação dos parâmetros de uma língua, resta algo que não é representável pelas palavras ou passível de significantização e que escapa ao código linguístico. A isto podemos dar o nome de lalangue, única para cada sujeito. Assim, iniciando a resposta à pergunta acima formulada, haverá algo na Libras que também escapará ao Simbólico e encontrará, no balançar das mãos e do corpo, o modo de transmissão do enigma do desejo. É isso que abordaremos na sequência da discussão.
Língua de sinais e sua dupla posição em relação à lalangue
A Libras, uma língua gestual-visual, necessita de um olhar para produzir efeitos, diferente da sonoridade, que se faz ouvida mesmo com os olhos fechados e, nessa situação, pode ter seus efeitos intensificados. A língua materna, veículo de desejo do Outro primordial e portadora de uma parte pertencente ao registro do Real, imprimirá marcas psíquicas e tentará embalar os objetos voz e olhar. Para considerar o bordejamento da voz pela língua de sinais, precisamos admitir o caráter escópico e corporal da musicalidade.
A musicalidade também inclui a sonoridade, porém o que importa aqui são as pausas, as cadências, o ritmo e as pulsações, que se aproximam da língua materna e mostram que a língua de sinais pode, também, figurar nesse lugar. Não somente os sons agem para criar ritmo, afinal, se o corpo não os acompanha, perde-se o compasso. A Libras possui ritmo, pausas e musicalidade. Seu caráter musical pode ser observado nos movimentos das mãos e nos intervalos entre uma sequência e outra de sinais, ainda no balançar do corpo, nas expressões faciais e nas posições corporais.
A análise com sujeitos com surdez trouxe reflexões sobre o lugar da língua de sinais e sua relação com a língua materna. Os sujeitos que participaram das sessões de análise eram crianças com surdez filhas de pais ouvintes. Mencionaremos dois casos, por meio de vinhetas clínicas: o caso P., um menino de 5 anos com surdez severa, provavelmente congênita; e o caso G., um menino, também de 5 anos, com surdez severa adquirida aos 6 meses, devido a uma meningite. Ambas as crianças se encontravam em um momento de decisão familiar quanto ao aprendizado da língua de sinais ou à sua rejeição, articulada à busca por tratamentos para desenvolvimento da língua oral. P. estava na primeira posição e G., na segunda. Contudo, não foram os impasses quanto a essa decisão o que trouxe as famílias para a análise, mas alguns apontamentos da escola quanto às dificuldades de relacionamento social das crianças e um estranhamento sentido pelas mães quanto aos filhos, o qual elas não sabiam nomear. Apesar de o uso dos sinais não aparecer de forma explícita nos primeiros encontros, seus efeitos fizeram-se notar desde o início. Quando a Libras era inserida nas sessões pela analista ou pela criança, o efeito de estranheza fazia-se presente. O estranho, tal como definido por Freud, refere-se ao desconhecido que nos é familiar. O termo versa sobre a ambiguidade experimentada ao estarmos diante de algo que é íntimo e estrangeiro. Nas sessões, o familiar desconhecido retornava em um movimento disruptivo (Martini & Junior, 2010) cujos exemplos são as constantes tentativas de impedimento, por parte da mãe de P., quando o filho utilizava a Libras. Ele estava tendo os primeiros contatos com essa língua na escola, e a relação com a analista fazia despertar o desejo de falar, o que colocava a mãe fora do entendimento do que era dito, porque ela ainda não havia aprendido Libras. A mãe versava sobre a estranheza que a língua lhe causava, de tal modo que ora duvidava de sua capacidade simbólica, ora se sentia seduzida pelos sinais que lhe envolviam e lhe capturavam.
Se o contato com a língua de sinais pode trazer uma estranheza familiar, podemos hipotetizar que, na constituição do sujeito, em sua inserção na linguagem e na relação com o Outro, há algo da ordem dos gestos e das expressões que é marcante e fundamental. Isso ocorre em um momento em que as palavras ainda não adquiriram o valor de signo. Tais expressões e movimentos, como registro do Real, não podem ser silenciados pelos sons, no caso do sujeito com surdez, como o pode para aqueles que são ouvintes. Como já mencionado, o som é um modo de embalar o objeto voz e apaziguar o que é da ordem do inominável. Para o sujeito com surdez, o que embala a voz pertence à parte tátil do som, como as vibrações sentidas, e ao caráter gestual-visual dos sinais.
O encontro do sujeito com o Outro primordial e com a língua materna resultará em um traço ou uma marca. Quando se considera a língua materna oral, a musicalidade, as entonações e as pausas da fala aproximam-se do conceito de lalangue. Percebemos seus efeitos justamente nos momentos em que a língua falha e destoa. Como exemplo disso citamos os soluços, engasgos ou chistes. Nos últimos, as palavras são trocadas ou há uma neoformação sem sentido, ocasionando uma quebra no código linguístico. Quanto à língua de sinais, como perceber esses tropeços na língua?
Os tropeços foram percebidos nos momentos em que um sinal era feito com uma configuração de mão ou com uma posição errada no corpo, ou mesmo quando algo da língua oral era utilizado junto com a língua de sinais. Em uma sessão, P. brincava com um jogo da memória e, a cada vez que acertava, vibrava, fazendo o sinal de palmas em Libras. A analista vibrava junto com ele. De repente, a analista comemorou batendo palmas e fazendo sons. P. logo se desconcertou e sorriu, dizendo: "Você está doida, eu sou surdo". Em outro momento, P. encontrou a figura de um pão e o mostrou fazendo o sinal de peixe, embaraçando-se e dando gargalhadas logo que percebeu a troca dos sinais.
No início da análise, a mãe de P. percebia a Libras como encantadora, porém incapaz de articular sentidos. Com frequência, solicitava que a fala do filho fosse autenticada pela analista. A língua materna da mãe, assim como a língua da analista, era inundada de sonoridade, esbarrava nos sinais e tentava lhes conferir um lugar. A mãe, primeiro, tentou equivaler sons e sinais, forçando um lugar que não era possível para a Libras. Nessas ocasiões, P. sinalizava que aquela forma de tratar a língua era, em suas palavras, "feia" e insistia para que a mãe rearticulasse seu modo de dizer.
A mãe de P. questionava-se: "É normal um surdo fazer isso (barulhos que não formavam palavras), todo surdo fica fazendo esses sons"? Ela dizia que não suportava mais ouvir os barulhos produzidos pelo filho. Além disso, conforme relatou, P. produzia lalações quando bebê e continuava a produzir sons na atualidade, mesmo não obtendo um contato com a sonoridade. Tais sons produzidos perderam a capacidade de surpreender e captar o desejo da mãe no momento em que ela descobriu que o filho não a podia escutar. A relação entre eles ficava marcada pela impossibilidade de nomear o estranho, e P. permanecia alienado ao desejo do Outro. O menino possuía um olhar fixado à boca da mãe, e qualquer intervenção que promovesse uma separação fazia-o recuar e encasular-se. Havia ali um corpo desinvestido libidinalmente.
Apontamos, até aqui, que a língua de sinais porta um sem sentido, considerado como lalangue. Ademais, ela pode aparecer na posição de elucubração de lalangue. É sobre essa dupla posição que aprofundamos, a seguir, iniciando pela primeira compreensão, ou seja, pela língua de sinais em posição de S1. Sobre isso, Lacan aponta que o "Um encarnado na alíngua é algo que resta indeciso entre o fonema, a palavra, a frase, mesmo todo o pensamento. É o de que se trata do que chamo de significante-mestre" (Lacan, 1972-1973/1985, p.196).
Língua de sinais em posição de lalangue
A língua de sinais atrai olhares onde circula. Por vezes, um olhar de espreita que denota estranhamento e incômodo, por outras, captura pelo encanto. Em uma associação de reabilitação oral por nós visitada, a Libras estava impedida de circular e era considerada um entrave para o desenvolvimento do sujeito com surdez. Tal desconforto com relação à língua de sinais também se fez presente em outras instituições públicas de atendimento à população nas quais observamos que sua presença causa repulsa e fuga nos ouvintes presentes. O estranhamento e o mal-estar eram ainda maiores quando a língua de sinais vinha acompanhada por barulhos indiscriminados produzidos pelo sujeito com surdez.
O estranhamento gerado nos ouvintes diante da língua de sinais, que inclui, em alguns casos, o impedimento de sua circulação, aponta para um caráter de insuportabilidade causado pela língua, que nos remete a lalangue. Nesse ponto, propomos que os sinais carregam o que da língua é irrepresentável e indizível. O objeto voz, que possui como invólucro o som, capaz de lhe apaziguar e silenciar, também encontra nos sinais algo que lhe reveste. Do mesmo modo, o contrário será verdadeiro: assim como nos sons emitidos haverá uma parte que escapa e denuncia o Real (como as pausas, a entonação, os engasgos e os chistes), a língua de sinais também portará seu caráter de lalangue, e o objeto voz, ora ou outra, se apresentará, mesmo que de forma fugaz.
Percebemos que a Libras ocupa o lugar de lalangue nos momentos em que tenta transgredir uma barreira, como a da proibição, ou diante de olhares inibidores em ambientes públicos. Quando proibida de circular em uma instituição para sujeitos com surdez, ela continua aparecendo de modo transgressor e, ao fazê-lo, causa incômodo e é rechaçada. Em outras situações, como no estranhamento da mãe de P. diante da Libras, seu potencial de código linguístico é questionado: "É possível falar assim (por meio da Libras)?", perguntava ela nas sessões. E a cada vez que o filho utilizava a língua de sinais, os usos eram cerceados por ela. Por vezes, de modo explícito, a mãe solicitava que o filho parasse de contar suas histórias em Libras porque iria incomodar a analista e, em outros momentos, ela insistia em manter o discurso na língua oral, mesmo quando já havia adquirido um conhecimento da língua de sinais. Nessa última situação, P. ficava visivelmente agitado, correndo, dançando e buscando por vários brinquedos, até ser capturado pela boca da mãe e ali permanecer, olhando-a.
A análise de P. teve como ponto de enodamento a língua de sinais. Nas primeiras sessões com a família, o uso da Libras vinha acompanhado por uma estranheza. O estranho e seus efeitos eram percebidos no corpo de P., que se retraía quando o falar se executava somente na língua de sinais, para, mais tarde, mostrar um corpo libidinizado que se utilizava dessa língua para transmitir seu desejo. O que poderá ter promovido essa mudança? O olhar materno para a língua de sinais, certamente, esteve relacionado à mudança de posição da Libras para P..
A mãe de P. apresentava uma incerteza sobre o diagnóstico do filho e uma fala repetitiva acerca de um indefinido e inominável que impedia a criança de ser inserida em uma língua. Ao nascer, P. recebeu o significante "estranho" e a mãe, diante desse estranho, criou a ilusão de que aquilo poderia mudar com o passar do tempo. Mas, ao contrário, a não aquisição pela criança de um código linguístico ficou cada vez mais perceptível. O estranho sem nomenclatura permaneceu encoberto, causando desconforto por cinco anos, quando, então, P. foi matriculado na escola e alguém disse para a mãe que seu filho era surdo, mas que poderia aprender uma língua.
Há, desse modo, uma inserção, de início frágil, na linguagem e um Outro como tesouro dos significantes encarnado na figura materna que duvidava do vir a ser de P., mas que não o negava. A dúvida sobre a capacidade do filho de se fazer ouvir, chamar ou mesmo ser olhado e desejado fez com que este Outro estivesse presente, ainda que vacilante.
Podemos considerar que o lugar ocupado por P. seria o da alienação em relação ao Outro. Esse, tesouro dos significantes, ao falhar na transmissão do código linguístico, não permitia o aparecimento da falta e não deixava equívocos para que o infans se separasse. A mãe falava com o filho por meio de comandos simples, não olhando para nada além de suas necessidades básicas e não transformando tais necessidades em demandas.
A mãe dizia que o contato com a analista causava um efeito no filho, apontando que ele ficava parado, quase dormindo, mas que, quando a analista chegava, começava a se movimentar para todos os lados. Nesse momento, a língua de sinais assumia a posição de S1. O Um seria o significante mestre, aquele que inicia a cadeia de significantes. Ele está em posição de relação com os outros, de diferença com os outros, como um entre os outros. Esse S1 será o elemento em que todo o restante da cadeia se envolverá (Lacan, 1972-1973/1985). Nessa posição, a língua de sinais denunciava algo a ser rechaçado e impedido de circular na relação familiar: seria uma verdade que não se quer saber? Aparecia como um estranho que deveria ser banido, que atrapalhava o desenvolvimento da língua oral pelo surdo e, ao contrário de silenciar o objeto voz, parecia deixar exposto algo da ordem de lalangue.
Diante do descrédito demonstrado pela mãe quanto à Libras, P. se encolhia quando convidado a falar nessa língua. Contudo, a presença da analista, definida pela família como o dia de Libras, fazia com que o corpo de P. acordasse, conforme a fala da mãe, e se movimentasse para longe dos seus olhos. No lugar de S1, a língua de sinais parecia fazer circular o desejo, dando um lugar possível para que o desejo de P. aparecesse. E a analista, no lugar de Libras, emprestava o seu desejo.
Extraímos, desse tópico, que a Libras ocupou a posição de lalangue ao estar diante de uma barreira, social ou institucional, onde era impedida de circular. Tal barreira poderia ser sutil, porém não menos incisiva, quando o olhar do Outro lhe impunha. Na prática clínica, era o olhar materno que questionava a capacidade da Libras de transmitir um sentido, assim a língua de sinais se escancarava no que porta de sem sentido e estranho, tal como lalangue.
Língua de sinais em posição de elucubração de lalangue
O termo elucubração de lalangue foi explicitado por Lacan em O seminário, livro 20: mais, ainda:
A linguagem, sem dúvida, é feita de alíngua. É uma elocubração [sic] de saber sobre alíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua. E o que se sabe fazer com alíngua ultrapassa de muito o de que podemos dar conta a título de linguagem (Lacan, 1972- 1973/1985, p. 190).
A respeito da língua de sinais, não apontaremos o som como elucubração da lalangue, pois o que encontramos nessa língua são expressões, movimentos, formas de configuração das mãos e de posição do corpo. Expressar-se por meio do corpo e de sinais é algo presente desde a tenra idade e, quando não conseguimos nos expressar com palavras, utilizamos tal recurso. Assim, os sinais não são tão distantes dos ouvintes e podem revelar, na fala, aquilo que não se quer saber. O corpo denuncia aquilo que não foi dito nas palavras e a lalangue aparece.
No trabalho analítico com P., as brincadeiras de adivinhação, as contações de histórias, as encenações realizadas pela criança acerca de situações passadas e futuras (como vivências na escola e realização de exames médicos pela primeira vez) e a invenção de jeitos de brincar, mesmo com jogos já conhecidos, fizeram com que a mãe olhasse para o filho e para a língua de sinais de outro modo. A Libras, ali, estava na posição de elucubração de lalangue, um saber sobre S1 (S2) com efeito apaziguador.
No momento em que a Libras era reconhecida como capaz de transmitir um sentido e de portar um código linguístico, ela passava à posição de S2. Tal mudança não se dava de maneira definitiva, sendo apropriado formulá-la através de um trânsito da língua entre as duas posições, S1 e S2, em momentos diferentes do percurso da análise. O olhar materno também transitava entre o reconhecimento da língua de sinais (carregando-a de libido) e seu esvaziamento.
Dessa forma, a língua de sinais poderá transmitir o enigma do desejo de uma mãe ouvinte para um filho com surdez se ela a colocar em uma posição de reconhecimento e de equívoco. A mãe de P. surpreendia-se com o falar do filho e com seu modo de brincar e de estar na relação analítica, de modo que o olhar diante da falta, presente no filho, ocasionada por uma marca orgânica, transformou-se em um olhar capaz de ver adiante e, mais do que isso, um olhar que não sabia o que viria depois.
Em uma sessão, P. começou a fazer o sinal/nome (na comunidade surda cada sujeito ganha um sinal que lhe nomeia, diferente de seu nome de origem e normalmente baseado em alguma característica singular) dos irmãos, do padrasto e da analista. Olhava para a mãe e ela ainda não tinha um nome. A analista, P. e a mãe começaram a soletrar as letras do nome da última. A analista fazia primeiro, e P. olhava. Depois tentava soletrar, mas só se lembrava da letra "S", então começava a rir. P. pegou uma folha e começou a escrever o nome, pedia para que a analista fizesse o sinal, e ele fazia a letra no papel, depois soletrava o nome da mãe. Contudo, parecia lembrar apenas do "S", e se divertia com isso. O "S" do nome da mãe era o que mais P. repetia, esquecendo-se das demais letras. Logo, esse "S", que insistia em permanecer provocando risos, foi o início da construção de um nome para a mãe. Enquanto o "S" era dito por P., a mãe sorria e demonstrava satisfação. Foi então que a covinha do sorriso da mãe foi apontada por P. e o nome, enfim, se formou: a letra "S" junto à covinha da mãe. A mãe ficou tão satisfeita que não se continha corporalmente, sorria e queria chorar, e verbalizou: "Então meu nome é esse".
A língua de sinais, que, ao aparecer no início da análise fazia o corpo de P. se encolher ou correr e pular, desviando-se dos efeitos da língua, adquiriu outro lugar para ele: a posição de bordejamento da pulsão ou dos objetos pulsionais, oferecendo contorno para o vazio. Isso foi observado na criação de um nome em Libras para sua mãe, um momento de separação do sujeito do Outro primordial. Os efeitos dessa separação foram percebidos nas histórias e nas fantasias de P., cada vez mais ousadas e criativas.
No caso clínico de G., os sinais caseiros, utilizados pela família, também apresentavam um efeito apaziguador. G. não possuía conhecimento sobre Libras, mas sua fala oral vinha acompanhada dos sinais criados em seu ambiente familiar. Na análise, G. criou sinais para falar com a analista, tais como a sinalização de barulhos que lhe incomodavam, sinais para ir ao banheiro ou beber água e outros para os brinquedos pelos quais tinha mais estima na clínica. G. estava aprendendo a se comunicar oralmente por meio de sessões de fonoaudiologia, mas os sinais continuavam presentes. Apontamos que, no início de sua constituição psíquica, houve uma perda abrupta da capacidade de ouvir e o consequente silenciamento dos sons. Por um breve período, os pais utilizaram a Libras em casa para falar com o filho. Os sinais utilizados por G., na análise, mesmo não pertencendo ao código linguístico da Libras, apresentavam um efeito apaziguador e apareciam, com mais frequência, nas situações em que a criança se angustiava, como quando perdia de vista um brinquedo de que gostava.
Os sinais ocupavam a posição de elucubração de lalangue nos momentos em que eram capazes de trazer um sentido, mesmo quando a Libras não era utilizada enquanto código linguístico. Igualmente, destacamos a importância do reconhecimento pelo Outro: se ele, enquanto figura materna, ou os outros, como pares sociais, reconhecessem a Libras como pertencente ao campo simbólico, ela permaneceria na posição de bordejamento do Real. E o contrário podia ser visto em situações nas quais seu uso era impedido ou seu potencial desconhecido, aparecendo seu caráter de lalangue.
A surdez e a singularidade da dinâmica pulsional
Nas sessões de análise, a voz e seus caprichos causavam efeitos transferenciais. No caso de P., o incômodo de sua mãe diante dos sons desarticulados, emitidos por ele, denotavam a posição de P. e a de sua mãe. Ele demandava um lugar de desejo para ela, que se colocava na posição de quem não poderia atender às demandas do filho. A surdez lançou P. em um terreno desconhecido pela mãe, a qual não conseguia supor o que o filho lhe demandava.
Na pulsão invocante, o sujeito assume a posição de se fazer chamar pelo Outro. Para isso, faz-se necessário que, no Outro, haja uma falta que o leve a investir libidinalmente no infans. A mãe de P. não encontrava no filho equívocos ou surpresas capazes de enlaçar seu desejo. A utilização da Libras, na análise, propiciou uma mudança de posição, visto que ela potencializou o inesperado no encontro entre mãe e filho. A Libras causou furos na relação e a mãe não sabia mais qual seria a nova invenção de P. na análise. Os furos permitiram que houvesse uma libidinização do corpo de P., sendo possível o contorno do vazio dos objetos a. A Libras promoveu uma torção no olhar, e a voz silenciou, cessando seus efeitos ruidosos e incômodos. No segundo caso clínico, os efeitos do aparecimento da voz eram percebidos em situações de tumulto e intenso barulho de sons sem sentido. G. mostrava um modo peculiar de estar diante do olhar. Seus barulhos insistentes e intensos prendiam a atenção de todos, de forma indiferenciada; porém, quando alguém lhe direcionava um olhar particular, demandando-lhe um lugar, ele se esquivava.
G. teve uma perda abrupta da audição nos primeiros meses de vida e um abandono simbólico parental, manifestado no próprio modo dos seus pais de estarem na análise, como em um lugar ausente, de quem traz o filho e não quer saber o que se passa no processo. A mãe apresentava poucas palavras para falar acerca do filho e dificuldade em criar narrativas sobre a vida dele. O diagnóstico de surdez causou uma ruptura na relação entre mãe e filho, e G. deixou de desejar aos olhos da mãe.
Em uma sessão, G., ainda na sala de espera, encontrou uma pedra que servia de enfeite e lembrou-se de seu peixe que havia morrido, então começou a repetir as palavras: "peixe morreu". A cada vez que repetia "peixe morreu", aumentava seu nível de tensão corporal, com batidas dos pés no chão, choro, braços se esticando e encolhendo; parecia que suas palavras entravam em uma órbita sem fim, não adquirindo sentido. Criava-se um ambiente tumultuoso, mas a mãe permanecia tranquila e falava pouco. Contou que o peixe vermelho da criança morreu e que G. o encontrou morto no aquário. Ao ouvir a palavra vermelho, G. começou a repeti-lo, de modo ininterrupto. Perguntamos para ele: "Você gosta de comer peixe?". A criança parou de repetir as palavras, fez-se um corte, ele disse que gostava e sorriu.
A fala da analista causou um efeito que fez toda a cadeia se movimentar. Desse fato em diante, G. passou a entrar sozinho para a análise e a buscar pelo olhar da analista. Foi necessário o uso de um significante capaz de causar furo, assim como a Libras causava no primeiro caso. Quando um brinquedo não era encontrado por G. na sessão, desencadeava-se uma fala repetitiva que se aproximava dos efeitos do inominável da voz. Do ponto de vista da dinâmica pulsional, a fala sem fim empreendida por ele tamponava a falta constituinte, e G. parecia preso nesse circuito. O uso de significantes que possuíam uma relação fonética com a palavra que ele repetia produzia o efeito de corte e possibilitava os intervalos na cadeia de significantes.
Na sua articulação, os objetos voz e olhar caminham juntos, mas não harmonicamente. Em alguns momentos, o objeto voz parece exercer um contraponto para o olhar, ludibriando-o quando aparece. O mamanhês, como uma forma da voz carregada de desejo pela língua materna, pode ofuscar o olhar. O contrário também se faz verdadeiro, pois algo de tão fascinante diante do olhar pode ensurdecer a voz.
A clínica com os sujeitos com surdez trouxe outro modo de operar com esses objetos, não opositivamente, mas de modo articulado e produzindo efeitos em conjunto. Dito de outro modo, as posições subjetivas singulares dos sujeitos analisados na pesquisa mostraram situações nas quais voz e olhar exerciam juntos seus efeitos de estabelecimento da falta ou apontavam para o seu tamponamento. Além disso, observamos, nos casos analisados, que a pulsão invocante se fazia possível em articulação com a pulsão escópica.
Um bebê com surdez congênita deverá ter suas manifestações corporais simbolizadas por um Outro que não terá um retorno sonoro, mas uma imagem obtida especularmente. A voz e o olhar do Outro primordial serão apreendidos nos movimentos embalantes, na textura do toque no corpo, no ritmo e nas vibrações. A pulsão invocante terá nos sinais e expressões corporais seu meio de enlaçar o sujeito no desejo. Assim, estará em articulação com a pulsão escópica para a formação do eu-ideal, no registro Imaginário. A voz encontrará nos sinais o silenciamento necessário para que o sujeito se afaste da voz materna para advir, de modo que seus efeitos são encontrados no registro gestual/visual que está, necessariamente, mais próximo do objeto olhar. Voz e olhar comportam-se de modo singular na dinâmica pulsional de um sujeito com surdez.
Na surdez severa, não há o sonoro para embalar o objeto voz, tampouco para servir de contraponto para o olhar do Outro primordial, para confundi-lo ou deturpá-lo. A prática clínica mostrou-nos que o sujeito com surdez poderá ocupar um lugar no qual parece capturado pela pulsão escópica, não conseguindo dela escapar. O olhar do Outro, para esses sujeitos, é maciço e rígido, uma presença constante e, por vezes, paranoica. O olhar invasivo não encontra a mediação do Simbólico, assim produz efeitos no Real.
A falha na articulação entre o registro Simbólico e o Real remete à língua materna oral, que, enquanto sonoridade, não consegue envolver o sujeito com surdez em seu desejo. É preciso que algo da ordem do olhar entre em cena para que o infans seja capturado. A língua de sinais necessita do olhar e de uma imagem visual para produzir seus efeitos no registro Imaginário, mas também no Simbólico, já que a imagem, ratificada pelo olhar do Outro, carrega as marcas de uma cultura e sociedade.
Na dinâmica pulsional do sujeito com surdez, o olhar poderá assumir uma posição rígida e de obliterador da falta constituinte, impedindo o aparecimento de lacunas no saber do Outro. Nessa posição, o sujeito parece siderado, capturado e impedido de olhar adiante. Qualquer intervenção que remeta à inclusão da falta e a uma separação desse olhar primordial traz efeitos de angústia.
No caso de G., a posição desertificada do Outro simbólico fez com que a falta fosse tamponada diante de uma perda no Imaginário materno. Havia uma impossibilidade de criar um invólucro para a voz e o olhar, e esses objetos se tornaram presentes com seus efeitos percebidos na ecolalia desconfortante e na evitação do olhar do Outro. Os dois objetos mostravam sinais de uma exposição insuportável e a presença de defesas maciças.
Certamente, tais características se aproximam da posição psicótica, mas não foi isso o que encontramos nos casos acompanhados. Os sujeitos com surdez possuíam uma relação singular com o objeto olhar. De modo específico, no momento de inserção na linguagem, esses sujeitos tiveram um contato com um Outro simbólico titubeante que os colocou mais próximos do olhar enquanto objeto.
Dessa forma, na análise do sujeito com surdez, o objeto olhar transitava entre uma captura siderante e uma presença insuportável. Os casos clínicos acompanhados mostraram como o olhar do Outro pode ser imperioso e insuportavelmente presente quando não é perdido. Se o outro materno desacredita na função da língua em sua transmissão simbólica e do desejo, o sujeito encontrará um terreno desertificado do ponto de vista simbólico. A relação com os objetos voz e olhar poderá ficar marcada por um desamparo.
Na experiência clínica com os sujeitos com surdez, percebemos que, com o avanço do trabalho, eles requisitavam um lugar de suporte no olhar da analista. G., em algumas sessões, solicitava ir ao banheiro e, quando entrava nesse espaço, sentia forte angústia e desamparo, começando a emitir sons altos e desarticulados de sentido, sons que remetiam à voz e a lalangue, razão pela qual pedia para que a analista não desviasse o olhar dele por meio do espelho, ao mesmo tempo em que ele não podia perder o olhar dela de vista.
O objeto olhar não estava nas imagens reais vistas pelo olho no espelho. O pedido insistente de G. em manter fixo um olhar no outro dizia sobre sua posição no discurso. Naquele encontro, havia uma imagem especular pertencente ao registro Imaginário, na qual a analista supunha um sujeito em desamparo e solicitando seu olhar. Objeto que estava para além do espelho, no modo como G., naquele momento de enrosco e equívocos, fazia com que o olhar caísse e se instaurasse a falta. Assim, a posição faltante incidia sobre o investimento libidinal da analista, permitindo-lhe uma amarração entre o Real e o Simbólico.
Esse episódio diante do espelho foi acompanhado por lalações pronunciadas por G. em tom alto e desconcertante. A analista não tinha como recorrer à língua para tamponar o incômodo gerado no ambiente da clínica na qual ocorreram os atendimentos. Ao escancarar algo de lalangue e tendo a analista suportado, os objetos voz e olhar se fizeram cair, de modo que, nas sessões seguintes, notamos um movimento de G. em direção ao desejo. Ele passou a apresentar brincadeiras que desafiavam a ordem estabelecida relativa à posição que cada brinquedo ocupava na sala. O contato com o olhar do outro não mais inibia sua criatividade. Um exemplo era a brincadeira de G. com os cavalos. Primeiro, os cavalos eram emparelhados em um recipiente, até desmoronarem. Aos poucos, os cavalos foram criando vida, expressando sentimento e burlando as normas para saírem de seus cercados.
Dessa forma, na análise do sujeito com surdez, a dinâmica pulsional entre voz e olhar teve dois pontos principais de intervenção. No primeiro caso, a língua de sinais foi causadora de furos e responsável por descolar o olhar de P. do outro materno, dando um contorno possível para os efeitos do inominável de lalangue. A Libras trazia equívocos para a relação e abria lacunas no saber do outro. Os furos causados por essa língua permitiram uma libidinização do corpo de P. e um lugar para ele dentro do desejo da mãe, o qual não estaria tamponado por um significante último.
No segundo caso, o que fazia furos e enlaçava G. no registro simbólico era a introdução de significantes para promoção de cortes quando a fala entrava em uma órbita sem fim. A presença da analista, em conjunto com o uso de uma palavra, fazia uma barreira para a voz e introduzia a falta. De modo paralelo, o ato de olhar, para G., foi perdendo seus efeitos de angústia e estranheza.
Considerações finais
As posições subjetivas dos sujeitos analisados na pesquisa mostraram situações nas quais voz e olhar exerciam, juntos, seus efeitos de estabelecimento da falta ou apontavam para o seu tamponamento, evidenciando uma singularidade da dinâmica pulsional nos dois casos. A característica gestual-visual da Libras lançou considerações sobre os bordejamentos dos objetos voz e olhar para além do sonoro, demonstrando que a pulsão invocante estava em necessária articulação com a pulsão escópica na convocação pelo Outro do sujeito com surdez.
A utilização da Libras causou um furo na ordem estabelecida e a possibilidade de movimentação da cadeia de significantes, bem como o aparecimento do sujeito de desejo nos seus intervalos. Na relação transferencial, ora essa língua estava na posição de lalangue, permitindo a circulação do desejo, ora ocupava o lugar de elucubração de lalangue, na qual os sinais eram capazes de trazer um sentido e apaziguar o irrepresentável.
Diante da surdez, havia uma fragilização da língua materna em seu caráter de lalangue. O outro materno iniciou um caminho de reconhecimento do potencial de lalangue e foi preciso um atravessamento dos sons e dos sinais na língua materna para que um modo singular de transmissão do desejo fosse possível.
A analista precisou permanecer em determinada posição (Libras carregada de desejo) diante do olhar da mãe. No caso de P., sua mãe necessitava de um olhar que ratificasse o que já estava lá, ou seja, o filho como um sujeito que possuía um corpo desejante. A analista esteve neste lugar de quem ratifica uma imagem vista até que não foi mais necessário, de modo que a mãe tomou para si os sinais como capazes de enlaçar o filho em seu próprio desejo. A mãe não abandonou os traços de sua própria língua materna, porém permitiu um entrecruzamento da língua oral e da língua de sinais, dando-lhe um espaço de legitimação e de equívocos. Exemplos eram os enganos promovidos pela mãe ao realizar sinais com a configuração das mãos erradas, os quais divertiam o filho e causavam embaraço. Tais episódios denunciavam que uma parte da língua era imprevisível e incontrolável. A língua falhava e abria espaço para a falta. Assim, evidenciou-se que a língua de sinais pode transmitir o enigma do desejo de uma mãe ouvinte para um filho com surdez se ela colocar tal língua na posição de reconhecimento e de equívoco. A Libras permitiu a evocação de um lugar não obliterado e onde a falta constituinte dos objetos a poderia fazer mover o desejo. O outro materno encontrou um meio de atravessar sua língua materna com a língua de sinais, resultando em um modo singular de operar com lalangue.
Por fim, apontamos que, no encontro singular entre a analista e o sujeito, o lugar da Libras, para além de um manejo na comunicação, fez ressaltar os efeitos produzidos pelo que escapa ao sentido da língua e como o uso dos sinais foi capaz de remeter ao tempo de inserção na linguagem, com a possibilidade de um novo enlaçamento dos registros Imaginário, Simbólico e Real.
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Recebido em dezembro de 2019 Aceito em setembro de 2020.
Revisão gramatical: Luciene Teixeira
E-mail: luciene.txra@gmail.com