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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.10 n.1 São Paulo jun. 2008

 

TRADUÇÕES

 

O nada absoluto no Zen em Eckhart e em Nietzsche1

 

The absolute nothing in Zen in Enckhart and Nietzsche

 

 

Shizuteru Ueda2

 

 

I3

O texto que será tomado aqui como ponto de partida é do século 12 e foi traduzido para o alemão por Der Ochs und sein Hirte. Eine altchinesische Zen-Geschichte (“O Boi e seu Pastor. Uma antiga história zen”).4 Este texto é ainda bastante usado no círculo zen japonês. Ele apresenta explicitamente o processo da auto-realização do homem, em dez estações. O texto trás para cada estação um prefácio curto, uma aquarela em moldura circular e um conciso esclarecimento de cada estação, em forma de poema. Cada desenho mostra por sua vez, de maneira clara, um determinado modo e dimensão da existência a caminho do verdadeiro si-mesmo. Diz-se: o boi e seu pastor, no qual o boi é símbolo temporário do si-mesmo que está sendo procurado, enquanto o pastor representa o homem que se esforça por atingir o verdadeiro si-mesmo. Deve-se inicialmente chamar a atenção para o fato de que, apesar do título “O Boi e o seu Pastor”, a figura do boi não aparece em todos os dez desenhos, mas somente em quatro. Essa relação é decisivamente importante para a compreensão zen-budista do si-mesmo e a esse ponto voltarei posteriormente.

O título da 1a estação é “À Procura do Boi”; a 2a se chama “O Encontrar das Pegadas do Boi”; a 3a “O Encontrar do Boi”; a 4a “A Captura do Boi”; a 5a “O Domar do boi”; a 6a “O Retorno para casa montado no dorso do Boi”. Deste modo a relação do pastor e do boi se torna sempre mais próxima e mais íntima até a 7a estação, onde o tornar-se-um é alcançado de tal forma que o homem não mais vê o boi como objeto de unificação. O si-mesmo, que deste modo e até então fora simbolizado pelo boi, se realiza nesse momento, e através dessa realização ele é suprimido como símbolo do si-mesmo. O título da 7a estação é “O Boi é esquecido e o Pastor continua”. No desenho relativo a esse capítulo o boi desapareceu e só o homem permanece existindo, de modo “calmo e sereno”, como seu próprio senhor entre o céu e a terra, como é dito no prefácio respectivo. O trecho da 1a até a 7a estação mostra, em um progressivo desenvolvimento, os momentos consecutivos dos ensinamentos budistas, do exercício da meditação, da disciplina rigorosa e intensa, da unificação na bem-aventurança, etc. Mas, ao atingir a 7a estação, o verdadeiro si-mesmo, como é compreendido no Zen-budismo, ainda não está realizado. A caminho do si mesmo, nós estamos sempre a caminho de, em um salto decisivo para irromper e atingir a estação 8a. Agora a característica do verdadeiro si-mesmo, na concepção zen-budista, aparece claramente com a 8a estação.

 

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Com o título “O completo esquecimento do Pastor e do Boi” ou “O duplo esquecimento”, a 8a estação é representada por um desenho estranho, ou seja, um “círculo vazio” no qual nada é desenhado, nem pastor nem boi, nada. Esse vazio, onde nada está desenhado, deve ser, nesse contexto, acentuado. Nada desenhado significa o nada absoluto que aqui, depois da 7a estação, significa, em um primeiro momento, a negação absoluta.

No Budismo, porém, o nada absoluto não quer dizer que nada exista. Ele deve, ao contrário, libertar o Homem do pensamento substancializante e da comoção substancializante de si mesmo. Para o Budismo a auto-substancialização do homem serve de base para o pensamento substancializante, e essa auto-substancialização tem uma raiz oculta no eu tal como o aprisionamento do eu. O eu é compreendido no ensinamento budista como o eu-consciência e o modo mais elementar do eu-consciência diz: “Eu sou eu”, e no seguinte modo: “Eu sou eu, pois eu sou eu”. Este “eu sou eu” que, por sua vez, tem seu fundamento em “eu sou eu”, de tal forma fechado e trancado em si mesmo, este eu-sou-eu com sua chamada tripla auto-intoxicação, qual sejam, ódio contra outros, cegueira elementar contra si mesmo e cobiça, é tido como o equívoco fundamental do homem e como o motivo que impede sua cura. Ao contrário, o verdadeiro si-mesmo, que na compreensão budista é um si-mesmo abnegado, diria sobre si mesmo: “Eu sou eu e ao mesmo tempo eu não sou eu” (de acordo com a formulação do Prof. Nishitani), ou: “Eu sou eu porque eu não sou eu” (Daisetzu Suzuki). Tudo vem para a completa dissolução do eu-sou-eu fechado e trancado, para a separação definitiva do eu-aprisionado. O eu-homem deve morrer definitivamente em função do querer do verdadeiro si-mesmo, que é abnegado.

O caminho da 1a até a 7a estação é ao mesmo tempo o processo de desprendimento do eu-sou-eu. Porém, quando o homem permanece parado na 7a estação, onde ele como si-mesmo se encontra, ou seja, onde ele ainda está como si-mesmo, em sua auto-suficiência e sua auto-segurança, ele recai com sua consciência de si-mesmo - “eu sou agora o que eu deveria ser” -, no seu escondido eu-sou-eu. Uma forma sublime do egoísmo religioso, por assim dizer. Até mesmo o abandono de sua própria religião seria aqui o último objetivo religioso. Por isso, a 8a estação conduz, de uma vez por todas, com um decisivo e determinado salto ao nada absoluto, aonde não há mais nem pastor que procura nem boi que é procurado, nem homem nem Buda, nem dualidade nem unidade. (Neste contexto faz-se referência aos seguintes pensamentos de Mestre Eckhart: esquecer Deus; deixar Deus; da união com Deus para o nada da Deidade, que é ao mesmo tempo o fundamento da alma.)

Para atingir o irromper da passagem para o verdadeiro si-mesmo, que corresponde à incondicional abnegação, o homem deve deixar completamente todas as experiências e conhecimentos religiosos que ele atingira até então. Ele deve tornar-se o seu si-mesmo e Buda na sua forma mais simples e, de uma vez por todas, entrar no nada puro, ou seja, no “morrer maior”, como se diz no Zen-budismo. No texto comentário do círculo vazio pode-se ler: “Todas as cobiças do mundo são abandonadas. Ao mesmo tempo, o sentido de santidade esvaziou-se completamente. Não se sinta bem no lugar onde o Buda mora. Passe depressa pelo lugar onde não mora mais nenhum Buda”. “Em um golpe só, o grande céu se rompe em escombros. Sagrado e mundano desaparecem sem deixar vestígios.” Isto expressa o 8° desenho.

Então, o nada budista, que é o nada da dissolução do pensamento substancial, não deve ser mantido como nada, não deve ser tido como uma forma de substância, como uma substância negativa, ou seja, como um nihil. Trata-se do movimento dessubstancializado do nada absoluto, do nada do nada, ou, em uma terminologia filosófica, da negação da negação. Na verdade trata-se do movimento puro do nada em uma dupla e concatenada direção, qual seja: 1) como negação da negação no sentido ulterior da negação da negação, para o nada infinitamente aberto, sem retornar à afirmação e 2) como negação da negação no sentido do retorno à afirmação sem traço algum de mediação. O nada absoluto se afirma como essa copertença dinâmica da negação infinita e do movimento imediato,

 

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despretensioso e ele chega a essa copertença de modo único. O nada absoluto se movimenta como o nada do nada. O nada absoluto, que a partir da 7a estação age como sua negação absoluta, é como tal nada mais que esta dinâmica correspondência da negação e da afirmação. Assim acontece neste nada como para o nada do nada e, por conseguinte, uma mudança fundamental e uma virada completa como em “o morra e o torne” ou em “morte e ressurreição”.

O desenho da próxima estação, da 9a, representa uma árvore em florescência à margem do rio, e nada mais. O comentário a essa figura diz: “as flores florescem como florescem por si mesmas; o rio corre como corre por si mesmo”. Trata-se do homem em seu verdadeiro si-mesmo. Por que aqui, repentinamente, uma árvore em florescência à beira do rio? Não se trata aqui de uma paisagem exterior, objetificante em torno de nós, visto que nos encontramos a caminho do si-mesmo, mas também não se trata de uma paisagem metafórica como expressão de um estado interior do homem ou da projeção de uma paisagem interior da alma, e sim de uma realidade completamente nova, como uma pré-sentificação do si-mesmo abnegado. Trata-se da ressurreição a partir do nada, da mudança radical da absoluta negação para o grande “sim”. Sim, é isso! Visto que na 8a estação, a cisão sujeito-objeto, em todas as formas, fora deixada para trás no nada, antes da cisão, assim, na ressurreição a partir do nada, uma árvore em florescência à beira do rio não é outra coisa senão o si-mesmo. Na verdade, não no sentido da identidade da natureza e do homem, mas sim no sentido de que uma árvore em florescência, tal como floresce, e a abnegação do homem se incorporam de uma forma não objetificante. O florescer da árvore, o fluir da água, é aqui, portanto, assim como acontece, ao mesmo tempo um jogar da liberdade abnegada do si-mesmo. A natureza, como as flores florescem, como o rio flui, é o primeiro corpo ressuscitado do si-mesmo abnegado, a partir do nada.

No movimento da 8a para a 9a estação não se trata mais, como nas estações precedentes, de um desenvolvimento progressivo e sim de uma copertença, ou seja, de um girar para lá e para cá. O nada na 8a e o simples na 9a estação se copertencem, de acordo com a questão referida, de tal forma que eles - para falar em alegoria - formam os dois lados de um mesmo pedaço de papel, que não é espesso. Ambos os lados não são nem dois nem um. De maneira geral trata-se de uma perspectiva dupla que se copertencem, que se penetram reciprocamente. Neste sentido a direção da 8a para a 9a estação “está em unidade com” a direção oposta da 9a para a 8a estação de tal forma que, em uma dupla afirmação invertida, significa “flores que florescem, ou seja, o nada; o nada, ou seja, flores que florescem”. A formulação clássica no budismo diz: “o que tem forma é o vazio, o vazio é o que tem forma”.5 Trata-se, portanto, da coincidência absoluta do nada com o que tem forma, na qual porém a entonação não se situa na identidade - isto seria novamente uma substancialização equivocada - e sim na perspectiva dupla relacional, que por sua vez relaciona “morte e ressurreição” em um âmbito existencial. Uma perspectiva de ver o que tem forma como o nada recebe o nome de “grande conhecimento”, enquanto que a outra perspectiva de ver concretizar o nada, sem mediação, como o que tem forma, é denominada de “grande simpatia”.

Na 10a e última estação, o encontro entre pessoas é, expressamente, o tema. Aqui, o verdadeiro si-mesmo, ressuscitado do nada, age e joga entre homem e homem como uma dinâmica abnegada do “entre”. Neste caso esse “entre” é, agora, o próprio campo de ação, o campo interno de ação do si-mesmo, ou também: o si-mesmo que, cortado, aberto pelo nada absoluto, se desenvolve como o “entre”. O desenho representa aqui a forma como um velho e um jovem se encontram pelas estradas do mundo. Não se trata aqui de duas pessoas diferentes que se encontram por acaso: “um velho e um jovem”, isto é, o desdobramento do si-mesmo, do velho mesmo, abnegado. Como o outro vai, é agora, para o si-mesmo, em seu caráter abnegado, seu objetivo interior. A questão do jovem, tal como é,

 

Estação 10

 

é a própria questão do velho, que por sua parte, para si mesmo, não tem questão alguma. A comunidade da vida em comum é o segundo corpo ressuscitado do si-mesmo abnegado. Eu sou “eu e você”, “eu e você”, isto sou eu. Trata-se do si-mesmo como duplo si-mesmo com base na abnegação do si mesmo.

No comentário é feita a consideração: “amigavelmente vem essa pessoa - o velho - de uma geração desconhecida (isto é: do nada absoluto). Ele já enterrou profundamente sua essência iluminada. Logo, ele vai para o mercado com uma cabaça cheia de vinho. Logo, ele volta para sua cabana, com seu bastão. Como no momento lhe agrada, ele freqüenta bares e quiosques de peixe, onde os outros, ao se relacionarem com ele, se despertam para si mesmo”.

O verdadeiro si-mesmo, no encontro com outras pessoas, não habita o chamado “nirvana” e sim a tão percorrida estrada do mundo, responsável por muitos encontros, porém sem abandonar o nada absoluto. Trata-se, neste caso, novamente de uma dinâmica em uma perspectiva dupla: na estrada do mundo como no nada, no nada como na estrada do mundo. O primeiro incansável esforço em torno de outras pessoas é, ao mesmo tempo, um jogo para si mesmo com base no nada. Todavia, sem que com isso esse esforço e a compaixão sofram perdas através do caráter do jogo. Isto é o que o Zen-budismo quer dizer com a característica afirmação dupla, que apresenta uma contradição se for vista só de maneira lógica. Por um lado diz-se: “os seres vivos são incomensuráveis. Nós nos propomos a salvar todos eles”. Por outro lado diz-se: “não há ser vivo algum que nós temos que salvar, ou que já salvamos, e também não há salvação”. Ou: “Que pena! Até agora eu queria salvar o mundo todo. Que surpresa! Não há mundo algum mais a ser salvo”. Só a autoconsciência mesma de ter salvado os outros já seria novamente a ruína interior da salvação.

O despertar do si mesmo para o verdadeiro si-mesmo só se afirma na medida em que é permitido também ao outro o despertar, e precisamente de tal forma que o si mesmo se desperte. Com base no nada sem forma, sem modo, a maneira do encontro é, aqui, bem característica. Se o encontro se realizasse em algum lugar, em um trecho entre a 1a e a 7a estação, o tema discutido entre os dois que se encontrassem seria religioso. Mas aqui não. O velho não prega, não ensina, ele, tanto no encontro quanto no estar juntos, faz perguntas simples: “de onde você vem?” “qual é o seu nome?” “como vai você?” “você já comeu?” “você vê as flores?”, para citar alguns exemplos da história do Zen-budismo. Estas são, em primeiro momento, perguntas cotidianas, discretas. Se o outro sabe, na verdade, de onde ele realmente veio? Se o outro realmente vê as flores como florescem por si mesmo? O velho pergunta e ela se torna, no outro, a pergunta por si mesma, a pergunta que desperta para o verdadeiro si-mesmo: “quem sou eu realmente?” O outro começa, por si mesmo “a procurar pelo boi”. Assim temos novamente a primeira estação. A 10a estação não é, portanto, o fechamento e sim o início da 1a estação para um outro, para um jovem que o velho, em seu “entre”, aberto, encontrou e que por suas perguntas é despertado para o verdadeiro si-mesmo. Trata-se da transmissão do si-mesmo, de si-mesmo para si-mesmo.

 

II

Para esclarecer melhor esse nada absoluto que foi expresso nas estações 8ª, 9ª e 10ª, ele será comparado, a seguir, com algumas idéias ocidentais. Em primeiro lugar deve ser considerado o “nada da Deidade” para o Mestre Eckhart, para o ápice da mística alemã medieval, como o pensamento que, de modo mais simples, mais corresponde ao círculo vazio do nada absoluto da 8ª estação (cf. Nishitani, 1948; Ueda, 1965, 1983).

A atitude existencial do “despertar para o morrer ou para a vida” é o fundamento da existência religiosa. Eckhart radicaliza esta atitude recorrendo ao motivo do “nascimento de Deus na alma”, que pertence à grande tradição da mística cristã. Deus gera o filho de Deus, ou seja, para Eckhart, o Deus-Filho, na alma do homem que renunciou a si mesmo e que morreu para o ego (Ich-heit). Essa alma “desprendida” se deixa ressuscitar através da vida de Deus, como vida de Deus, em Deus. O ressuscitar é ao mesmo tempo o acontecimento da encarnação, em que Deus se torna homem; no respectivo homem assim como neste homem. Enquanto cada homem particular, no renascimento como filho único de Deus, se torna igual a Cristo, ocorre, em cada homem singular, a redenção direta, original, e vive-se uma unidade viva e concreta com o Deus vivo. Esta auto-experiência em Eckhart tem, diferente da perspectiva de uma crença que compreende Cristo como mediador da redenção, consideráveis elementos em comum com aspectos fundamentais do Budismo Mahayana, segundo o qual o despertar do homem Buda particular e o tornar-se consciente de si-mesmo se unem.

Lá, onde o sermão de Eckhart mostra, renovadamente, neste nível, um desenvolvimento acompanhado de certa modulação, vem à luz seu parentesco com o Zen-budismo. A alma que se tornou filho de Deus “chega até o fundo, continua a procurar e apreende Deus em sua unidade e em sua solidão; ela apreende Deus em seu deserto e em seu fundamento próprio. Por isso ela não permite que nada a satisfaça e, depois, ainda procura pelo que seja Deus em sua Deidade e na propriedade de sua própria natureza” (Quint, 1955, p. 206; cf. Quint, 1958a, p. 171). Ela “quer saber (ao contrário) de onde esse ser [(o ser simples, que não se move, divino, que nem dá nem recebe)] vem, [ela] ... quer penetrar no fundamento simples, no deserto quieto, na diferenciação, nem pai nem filho nem espírito santo” (Quint, 1955, p. 316). Para a alma que foi criada como “imagem de Deus”, não somente a origem em Deus, mas o fundamento em Deus é justamente sua origem exterior.

O movimento da alma, que procura ganhar novamente seu próprio caráter de origem, não se encerra lá, onde a alma como filho de Deus retorna a Deus, e procura “irromper” com Deus e atingir o fundamento de Deus. O característico deste “irromper” se situa no significado existencial que a diferença entre Deus e “fundamento de Deus” têm para a alma. Eckhart vê no fundamento do Deus pessoal, que está face a face com a criatura, um lugar onde Deus é Deus mesmo e se refere ao si-mesmo, respectivamente, à “essência” de Deus em seu fundamento com a palavra “Deidade”. Ao mesmo tempo ele diz: “Deus e Deidade são tão diferentes entre si como o céu e a terra” (Quint, 1955, p. 272). O Deus, como Deus que aparece que se defronta com a criatura, é a forma exterior de Deus - ou seja, sendo dito pelos homens, uma representação de Deus como Deus. Por outro lado, a Deidade, ou seja: o si-mesmo de Deus não é algo que pode ser compreendido pela criatura. Não se trata somente, por parte do homem, de ultrapassar a objetificação consumada; e sim, também, do lugar onde até mesmo a auto-relação interior de Deus é libertada do Pai, do Filho e do Espírito, e onde acontece o entrar na “calma (samadhi)” do “um” mesmo. Lá está o “fundamento” de Deus, ou seja, a “ausência de
fundamento” de Deus.

A Deidade, que se difere de Deus, é sem forma, inominável, inexplicável, incognoscível e inapreensível. Em um sentido preciso não é “nem isso nem aquilo” (Quint, 1955, p. 196 e 407) e nesse sentido é o nada absoluto. Tão logo Deus for compreendido como “qualquer ente”, se diz somente que ele é o ser, que é a luz, o amor, o bem, o verdadeiro, a energia ou qualquer coisa que seja. Ainda assim, tão logo Deus seja dito, ele se torna um invólucro externo que, no fundo, oculta o si-mesmo de Deus que acontece. Pode-se bem dizer que aqui a denominada “teologia negativa” se impõe em sua abrangência extrema. Os termos de negação em Eckhart, que levam a teologia negativa aos seus limites extremos, deixam sentir o ar gélido de uma abertura particularmente clara, mas tensa e infinita; ao mesmo tempo, como o cume de uma montanha alta que ao tocar a abóbada celeste se desvanece negando a si mesma. Este ar gélido é quase como o ar do Zen. “Mas Deus não é bom!” (Quint, 1955, p. 353; cf. Quint, 1958c, p. 444). Não o ser e sim o não-ente, não pessoa e sim não-pessoa, não Deus e sim não-Deus (cf. Quint, 1955, p. 355; Quint, 1958c, p. 448).

Tal fundamento de Deus, “o nada da Deidade” é por sua vez - e isso é uma coisa decisiva em Eckhart - de modo não objetificante, o fundamento da alma mesmo. (Alma corresponde no Zen ao “coração”, fundamento da alma ao “fundamento do coração”, respectivamente à “origem do coração”.) “Deus e Deidade” são em suas extensões totais o andamento de uma transcendentalização direta na imanência como o movimento no qual a alma em sua origem rompe com si mesma; eles constituem o abismo profundo da alma. Em seu âmago ex-tático a alma conduz ao âmago de Deus. A alma que retornou a Deus como filho de Deus não pode outra coisa senão investigar o “fundamento de Deus” em seu fundamento último. Neste contexto, Eckhart fala do interior de Deus, da irradiante “fagulha da alma”. Ele diz: “A alma diz que sua ira é tão excessiva que ele [Deus] não poderia se reconciliar com ela” (cf. Pfeiffer, 1966 [1957], p. 542). Este pressionar da alma em Eckhart, que penetra até o último fundamento de si mesma - até a ausência de fundamento, desde que este fundamento não possa ser nomeado um “ente” e com isso rompa com todo fundamento considerado como ente - tem uma semelhança profunda com a “investigação de si-mesmo” no Zen. Ao indicar o fundamento da alma Eckhart lança mão da terminologia usada pela teologia negativa para se referir ao fundamento de Deus. “Não é [uma fagulha na alma] nem isso nem aquilo. [...] É livre de todos os nomes e de todas as formas, totalmente desimpedido e livre como Deus é desimpedido e livre em si mesmo” (Quint, 1955, p. 163). As palavras de Eckhart, que indicam o “fundamento de Deus” ou “o fundamento da alma” enquanto ele atravessa o âmbito da teologia negativa, aparecem às vezes como uma tradução direta de textos Zen.

O último retorno ao “fundamento de Deus” ou ao “fundamento da alma” é denominado, de modo correspondente ao caráter do “nada absoluto” como “deixar Deus”, “libertar-se de Deus, tornar-se quites com Deus”, ou seja, a alma que tem, no interior de Deus, sua vida unida a Deus, nadifica renovadamente e de maneira radical o si-mesmo unido a Deus. É o último deixar do “ego”. “Deixar Deus”, como o extremo ápice da negação existencial absoluta deveria encontrar um parentesco com “matar o Buda”, matar o mestre do Zen. “Se depois você ansiar por compreender os princípios do dharma, evite os descaminhos humanos. Para dentro, para fora, o que você sempre encontrar, mate-o. Se você encontrar o Buda, mate-o; se você encontrar o mestre, mate-o... somente então você pode conseguir se desembaraçar. Você não está mais preso a coisas, mas sim desimpedido e livre” (cf. Fuller-Sasaki, 1975, p. 25). Eckhart diz: “Sua alma deve, por conseguinte, estar destituída de todo o espírito, ela deve estar ali sem espírito. Pois se você ama Deus, como ele é Deus, como ele é espírito, como ele é pessoa e como ele é imagem - tudo isso tem que desaparecer” (Quint, 1955, p. 355).

Só o pensar em “Deus” encobre o caráter unitário de Deus que é sem forma, límpido, puro e dissimula a ausência de fundamento, que é o fundamento de Deus. Ao mesmo tempo esse pensar encobre o caráter unitário da alma mesma, que é sem forma, límpida, pura e encobre também a ausência de fundamento, que é o fundamento da alma. Se a ausência de fundamento for encoberta não há verdadeira liberdade. Neste encobrir vive, escondida, a raiz do ego, já tida como separada - com as palavras do próprio Eckhart: propriedade (Quint, 1958a, p. 25; cf. também Quint, 1955, p. 159). Tão logo a alma se vê como “filho de Deus” cola nela o caráter ôntico “filho de Deus”. Pois se neste estado a alma saboreia a si mesma, ela tem gosto de Deus. Este ter gosto conduz orgulhosamente ao si-mesmo como “portador de Deus”. O si-mesmo, que deveria ser o conteúdo de Deus, usurpa-o e transforma Deus em seu conteúdo. É “particular da alma... aspirar continuamente; porém ela olha de lado, assim ela sucumbe à soberba, (mas) isto é pecado” (Quint, 1955, p. 297). Quando a alma olha a si mesma ela “olha de lado”. Por isso Eckhart vê na denominada unio mystica uma última barreira que está agora por ser rompida. Por isso: “Deixar Deus”! (cf. Quint, 1955, p. 214). Isto não é nenhum pretenso ateísmo ou nenhum pretenso humanismo. Pelo contrário, é a radicalização do morrer da alma por si mesma. É mais uma vez o grande matar da forma de ser; morrer para si mesmo e se deixar ressuscitar na vida de Deus. Por isso é dito “morte fundamental” (cf. Quint, 1958a, p.135) ou a “a pobreza extrema” (cf. Quint, 1958b, p. 500). Significa lançar-se a si mesmo no “deserto” sem Deus. Mas este deserto é ao mesmo tempo o lugar onde jorra a fonte da “vida pura sem porquê”. Deste modo, o “nada da Deidade”, que é o “fundamento de Deus”, torna-se para a alma o lugar mais radical, onde morte é igual à vida. Até mesmo quando são possíveis interpretações distintas, referentes ao motivo do “nascimento” da alma como filho de Deus em Deus e o motivo do “irromper” da alma, através de Deus, no interior do nada da Deidade, em Eckhart, pode-se justificar o ponto de vista de que a relação destes dois motivos corresponde à mudança e ascensão do si-mesmo, apresentado no sétimo desenho, para o nada absoluto indicado no oitavo desenho.

Em geral é considerado na mística, que vive na união com Deus, sobre a experiência da união (unio), o sair da união da mesma forma que sua negativa. Essa experiência, que também pode ser denominada como colapso místico, é sentida pelo próprio respectivo místico, como “abandono de Deus”, “alheamento de Deus”, “aridez da alma”, “a noite escura da alma”, etc. Os místicos percorrem portanto o caminho da aflição para o qual essa experiência é transmitida. Ao mesmo tempo ocorre freqüentemente que este caminho se transforma em oportunidades decisivas de uma mudança para aprofundar a experiência de unidade até a existência, que vive na perspectiva da união. Em Eckhart este ponto é, desde o início, positivo. Para ele não se trata de: “ser abandonado por Deus, ser rejeitado por Deus”, e sim “deixar Deus”. Isto poderia certamente estar ligado à sua idéia de Deus, de que Deus em seu fundamento é não Deus. Especialmente para se separar da união (unio) é a realização de um amorfo com o si-mesmo de Deus, que por seu lado é em seu fundamento sem forma. Eckhart diz: “um e não unido” (Quint, 1955, p. 215) com Deus “um Um e uma clara união” (Quint, 1955, p. 215). Disso resulta uma sentença chave de Eckhart: “Aqui o fundamento de Deus é meu fundamento e o meu fundamento o fundamento de Deus. Vivo no meu próprio como Deus vive no seu próprio” (Quint, 1955, p. 180). Isto é, na verdade, a grande liberdade do “eu sou”. Eckhart diz que este “eu sou” não pertence nem aos homens, nem aos anjos, nem a Deus (cf. Quint, 1955, p. 302); ou: eu “não sou nem ‘Deus’ nem criatura” (Quint, 1955, p. 308). Isto poderia ser dito quase como o modo de ser do “homem livre e não dependente de nada” nos “apontamentos de Lin-chi”. O domicílio de semelhante “eu” de Eckhart, que não é nem Deus nem criatura, tem que ser indicado como além da diferenciação habitual entre teísmo e ateísmo, além da diferença habitual entre princípio de realidade pessoal e impessoal, ou antes, ainda, como deste mundo.

O irromper no “nada da Deidade” poderia parecer um vôo alto especulativo que esquece o homem real, corpóreo e concreto que vive no mundo da realidade espaço-temporal, ainda mais se desconsiderarmos a suspeita de heresia que fora atribuída a Eckhart. Mas o que ocorre é precisamente o oposto. Ao contrário da interpretação tradicional, Eckhart não vê a perfeição em Maria, que está sentada diante de Jesus que, prestativa, se deixa envolver pelas palavras de Deus, e sim em Marta, que se dedica árdua e persistentemente à recepção de Jesus e de seus discípulos. Ele vê em Maria o modo de ser introspectivo, que está em união com Deus, e em Marta o modo de ser sereno, em que se está acima da união. Ele vê em Marta o retorno à vida real do mundo atual. Esse retorno é “no um” o penetrar no nada da Deidade. Para Marta, o trabalho na cozinha para as visitas significa penetrar no nada da Deidade, diz Eckhart.

Pode-se dizer que aqui se inicia um novo plano na tradição da mística. Trata-se do modo de ser que se despertou da união com Deus para o nada da Deidade e ao mesmo tempo para o mundo atual. Deste modo, no “deixar Deus”, o irromper ascendente no nada da Deidade e o retorno descendente ao mundo real torna-se, pouco a pouco, um. A vida “sem porquê” e a “vida humana real” transformam-se em uma vida animada, real. Neste sentido, quando Eckhart fala de “fagulha da alma” ele fala ao mesmo tempo do “corpo bem exercitado” (Quint, 1955, p. 288). A ação atual da fagulha da alma está no corpo que, como Marta, ao receber visitas, trabalha para eles.

Em Eckhart é mostrado como fora descrito acima, que no tornar-se consciente de si-mesmo do “nada da Deidade” a atitude religiosa da “morte é a vida”, - ou seja, morrer para si mesmo para renascer na vida de Deus - mais uma vez radical o “grande matar” e o si-mesmo se despertam do nada absoluto. Um mundo que é quase igual ao mundo do Zen abre-se então com Eckhart. Aqui, o caráter original da vida, a subjetividade absoluta e a concretude do cotidiano que se despertou para a vida real, entram no interior da morada. A idéia do nada absoluto aparece em Eckhart no sentido de que Deus seria em seu fundamento o “nada absoluto” e que este “nada absoluto” seria, ao mesmo tempo, o fundamento próprio da alma. O “nada absoluto” constitui a essência e o ponto central do conjunto do pensamento de Eckhart e é, freqüentemente, simbolizado pelo “deserto sem coisa alguma”. Isto corresponderia ao dizer Zen, “vastidão sem fronteira, sem erva alguma”. Entre o “nada absoluto” de Eckhart e o nada absoluto pode-se perceber um parentesco muito próximo, que é apresentado como um círculo vazio na oitava estação dos dez desenhos do boi. Mas aqui também aparece, sem dúvida, uma sutil diferença de caráter. Sob determinadas circunstâncias esta diferença se tornaria decisiva. Se este contraste do “nada absoluto” fosse formulado em sua forma mais aguçada, ele deveria significar, por um lado, “Deus é o nada” e, por outro, simplesmente “o nada”.

A formulação mais clara e simples do nada absoluto em Eckhart é: “Deus é o nada”. Qual perspectiva que se mostraria se ela fosse vista no universo da comparação com “o nada” simplesmente? “Deus é nada; não de tal forma que ele seria sem Ser. Ele não é nem isso nem aquilo, o que se pode afirmar - ele é um Ser sobre todos os Seres (pl.)” (Quint, 1955, p. 407). Para Eckhart Deus é denominado como o supra-ente nada, em virtude da supremacia de seu ser. Aqui se encontra um tipo de teologia negativa que ocorre na tradição da filosofia cristã. A negatividade extrema do “nada” em “Deus é o nada” não é direcionada para o ser de Deus como tal e sim toma, na realidade, o modo de ser humano, que procura determinar o ser de Deus. A negação total de todos os predicados possíveis que são dados a Deus pelo homem é denominada “o nada”. Isto, sendo dito da parte
do homem, significa: em vista do ser de Deus, a negação das próprias palavras e a renúncia a toda forma de pensar, assim como a de esclarecer toda reflexão, expressar esta negação das palavras com uma palavra negativa (o nada) e com essa palavra negativa predicar Deus, que precisamente nega as palavras e permite abandonar o pensar. Por isso, quando se diz “Deus é o nada”, “para ele [Deus] o ser não é, com isso, negado, muito mais... o ser é nele elevado” (Quint, 1955, p. 196). “Deus é” é uma substância inabalável, invulnerável, que com a pergunta “o que ele é?” não pode ser posto em dúvida e com a resposta “ele é o nada” não pode ser negado. “Deus é o nada” quer dizer que Deus é, mas para o homem é o nada e, na verdade, é em tal sentido que ele não pode ser determinado por palavra. Disso segue-se que as últimas palavras de Eckhart sobre o si-mesmo de Deus, do qual se diz que seria como tal o “um”, sem forma, somente poderia ser dito em virtude do “dois”, da dualidade de Deus e do homem, do ser e do nada. Uma vez que este “nada” não arrebata o ser, mas sim o eleva infinitamente, ele traz em si, na verdade, certo caráter absoluto. Mas do lugar de onde se fala do “nada absoluto”, ele deve, todavia, ser visto como um “nada absoluto” relativo. O que por último fora considerado como absoluto não é o “nada” e sim o ser de Deus, ou seja, o ser mesmo.

Este ser é potencializado pelo “um” que como tal se eleva, pela “substancia”-lidade que se radicalizou de maneira conseqüente. O ser de Deus é denominado o nada em virtude de um caráter puramente sem forma do si-mesmo do “um”; mas a substância aguarda ansiosamente atrás do denominado nada. A substancialidade põe um limite para o nada. O nada de Eckhart é radical, mas permanece ainda como um adjetivo, como um predicado da substância, que é o termo principal. Para Eckhart, o caráter absoluto do “nada absoluto” situa-se, portanto, não no “nada” e sim procede do ser como supra-ente, procede da substancialidade extrema. Um pensamento radical, em Eckhart, é o de que o ser como supra-ente abranja o nada até o extremo e o ultrapasse. Por parte do Zen foi percebido um parentesco na rítmica, que reclama esta radicalidade na existência humana. O nada da teologia negativa poderia ser designado como aquele que ultrapassa a denominada analogia, a analogia do ser na dualidade de “igual” e “desigual”, entre criador e criatura, na direção da desigualdade para a transcendência. E neste ponto, a especulação de Eckhart foi radical. Mas a originalidade de Eckhart situa-se exatamente no ponto em que, para ele, o caráter radical da teologia negativa, que é a expressão da distância infinita de Deus, que supera a finitude, e, ao mesmo tempo, torna-se diretamente a expressão da ausência total de distância. Quando se diz “Deus é o nada” expressa-se assim o superior e ao mesmo tempo a não objetificação que está presente no tornar-se nada da alma em sua forma não objetificante. A partir da perspectiva do Zen percebe-se aí um parentesco.

Mas o nada absoluto do Zen, em seu caráter puro e simples, tem como tal uma atmosfera diferente do “Deus é o nada”. O Budismo Mahayana, que é a base do Zen, tem em seu fundamento o nada, não como o aumento progressivo da substancialidade e sim, ao contrário, como a total dissolução da substancialidade no vazio. Não se trata de “Deus é”, não é “Deus é o nada” e também não é “Deus não é”. Trata-se da dissolução da substancialidade que, como tal, conduz a afirmação “Deus é...”. A dissolução da substancialidade no vazio é a abertura da “abertura infinita” do vazio - “do lugar do nada” - e com isso a atividade do vazio (a atividade do nada). Neste sentido, o nada não é, aqui, um adjetivo do “um” como substância, ao contrário, ele tem que ser verbo. Enquanto que a substancialidade se esvazia e o “lugar do nada” se inicia no vazio, ela dissolve o “um” substancial no vazio, no “lugar do nada”, ela deixa o um se tornar o diverso inesgotável, e ela deixa este diverso inesgotável como sendo “o um que não é um” tornar-se a referência - “como um”.

Aqui, “ser” significa que ele é, como ser mesmo, o nada em sua totalidade. Por isso lá, onde ele se desdobra inteiramente em referências estão concretamente concentradas as referências inesgotáveis a ele. “Uma flor se abre, surge o mundo”. Semelhante conexão, total e dinâmica, é a atividade do nada absoluto. Ao mesmo tempo, esta atividade não deixa vestígios no nada absoluto. Enquanto que, para o fundamento especulativo de Eckhart, o ser mesmo e o “um” são permutáveis, aqui o que pode ser permutável é o “nada” e a “refêrencia”. (Recorrendo a uma terminologia do Budismo Mahayana, pode-se dizer que se trata do “vazio e do surgir independente [sûnyatâ e pratítya-samutpâda]”.) Por um lado, em Eckhart, a base é o “ser (substância) = um”, por outro lado, no Zen, é a “referência do como-um”.

O nada como atividade, que dissolve a substância no vazio, nega também, ao mesmo tempo, toda determinação do nada como negação do ser. “(O nada é) o não ser” significa aqui “(o nada é) o não nada”. O nada dissolve no vazio a substancialização do nada mesmo, a saber, que a negação da substância se torna uma denominada menos-subastância, como o “nada do nada”. “O nada”, isto é, “o nada do nada”. Em uma formulação clássica isto quer dizer: o vazio está vazio novamente. Aqui a atividade do “nada” se impõe por completo. Neste caso, o ponto central situa-se no seguinte: o “nada do nada” é, por um lado, a negação infinita e insondável que nega o nada e que abre completamente a abertura infinita no vazio. Por outro lado, ele se transforma ao mesmo tempo em ser. (Tal como a negação da negação é afirmação.) O “nada” é o “nada do nada”, mas o “nada do nada” é deste modo, o caráter recíproco e complementar da negação insondável e da afirmação insondável e ainda assim, este caráter recíproco e complementar na negação insondável permanece sem deixar vestígios. Mas ao mesmo tempo a afirmação, que até agora fora só afirmação, torna-se pura e simplesmente a afirmação absoluta. Como fôra mencionado até agora, por exemplo, “a montanha, isto é a montanha” é a verdade completa, a presença completa. Aqui, as referências inesgotáveis passam a ser concentradas e a verdade do ser como “tathâ (como este)” é, concretamente, levada à presença. Negação absoluta, isto é, afirmação absoluta, e isto significa: afirmação absoluta, isto é, negação absoluta. O “nada” é encerrar em si semelhante conexão completa, e, ainda, poder dissolver completamente o encerrar-em-si. Isto é precisamente o “nada absoluto” do círculo vazio da oitava estação. Por último, ou dizendo de maneira mais precisa, desde o início, a radicalidade do pensamento de Eckhart “Deus é o nada” tem uma disposição diferente da do “nada absoluto”, que se manifesta no movimento da existência humana como radicalização. Recorrendo ao texto do boi e seu pastor: nem Buda nem não-Buda (cf. Ohtsu, 1985, p. 41). Em outro texto pode-se ler: “Os três mundos não têm dharma; onde você quer procurar por um coração?” (cf. Bi-yän-lu, 1973, Bd. 2. p. 86). Ao mesmo tempo pode-se responder à pergunta “o que é o nada?” ou na forma como Heidegger diz: “como está em volta do nada?” da seguinte forma: “o rio flui sem limites, como flui ele. As flores florescem vermelhas, como florescem elas” (cf. Ohtsu, 1985, p. 45), como na nona estação.

 

III

“Deus é.” Mas este “ser” era o “supra-ente” e foi denominado por isso “o nada”. “Deus é o nada” é, por isso, o contrário preciso de “Deus não é”. A negatividade extrema de “o nada” em “Deus é o nada” não estava direcionada a “Deus é” e sim ao homem diante de Deus. Eckhart investigou radicalmente essas questões, não somente como matéria especulativa, mas também em seu fim existencial. Visto que os seres humanos testemunham, neles mesmos, de modo real este nada, eles participam do ser de Deus, e de modo geral participam do ser como tal. O parentesco com o Zen deixa-se transparecer o mais facilmente possível neste ritmo existencial. Mas se “o nada” extremo nega o “Deus é” como tal, então, deveria se destacar outra analogia com o círculo vazio do 8° quadro. Qual seria então outro estado de coisas, na história intelectual do Ocidente, que corresponde a essa analogia? O que ocorreria se, na perspectiva do Budismo, não houvesse uma imediata dissolução da própria substancialidade no vazio, se a substância fosse mantida como fundamento, e o lugar que a substância ocupava até agora fosse esvaziado completamente; o que ocorreria se a substância se transformasse em o menos absoluto, ou se a nadidade de Deus conduzisse a um vácuo? Disso resultaria precisamente o “Deus morreu” de Nietzsche.

Este resultado não é uma auto-afirmação do homem por meio de uma denominada redução antropológica. No lugar de Deus domina agora a “morte de Deus”, o nihil abismal, no qual a substância se torna vácuo. A ausência total de fundamento torna-se o fundamento máximo. Assim como Deus era tudo, o nihil se torna agora tudo. O “nada absoluto” é designado, em Eckhart, como o “nada absoluto” mais, enquanto o nihil é o “nada absoluto” menos. A perspectiva do “niilismo radical” (cf. Schlechta, 1995c, p. 567) deve ser revelada aqui. Nietzsche diz: “o nada (o ‘sem sentido’) eterno!” (Schlechta, 1995c, p. 853). Deus = eternidade deixa para trás somente a forma que pertence a substancialidade desta eternidade. O Deus da substância sucumbe e se transforma em nihil = eternidade. “O que significa niilismo? - Que os valores mais elevados perderam o valor. Falta a finalidade. Falta a resposta ao ‘para quê?’” (Schlechta, 1995c, p. 557). Anteriormente a pergunta sobre o “por quê?” era respondida, em última instância, sempre com Deus. (Esta é uma pergunta que só pode ter uma resposta pelo fato de ser respondida, em última instância, desta maneira.) Visto ter ocorrido a dissolução do ponto essencial, do ponto decisivo, que em última instância dominava a ordem do Universo, tudo cai em confusão no nihil e começa a girar em uma infinidade má. Isto é a negação sem fundo no “eterno retorno do mesmo”, experimentado em sua “forma mais terrível”. “O dasein como ele é, sem sentido e sem finalidade, sem um final no nada, mas retorna inevitavelmente” (Schlechta, 1995c, p. 853).

O nada visto não a partir do ser, não como não ser, e sim como nihil no sentido da nadidade do fundamento do ser mesmo, como um ser tudo nadificante, é problematizado, talvez pela primeira vez na história intelectual do Ocidente por Nietzsche. Ele vivenciou o desfecho existencial de um “Deus está morto”, de maneira radical, em sua própria existência. Assim como é extremamente difícil viver em Deus, da mesma forma, difícil viver, de modo verdadeiro e crente, na morte de Deus. Da mesma forma é difícil sobreviver à morte de Deus sem substituí-lo por algum outro tipo de pseudo-deus. Nietzsche, que divulgou o sofrimento da perda de Deus, penetrou até o lugar onde ele se designou “como o primeiro niilista completo da Europa que, todavia, viveu o niilismo mesmo, em si, até o fim - que o superou, que o tinha sob si e que o tinha fora de si” (Schlechta, 1995c, p. 634).

Ele penetra, do modo de ser que, em vista da morte de Deus, procura, como louco, com uma lanterna na mão em plena luz do dia, Deus (cf. Schlechta, 1995b, pp. 126-128), para o modo de ser, que vê na morte dos antigos deuses a abertura do horizonte da liberdade (cf. Schlechta, 1995b, p. 205). Este modo de ser é irrompido novamente. Que situação se abre com essa irrupção dupla? Em primeiro lugar deve-se considerar se o problema do niilismo e o conjunto dos dez quadros do boi podem se interpenetrar. De modo experimental deve-se pegar especialmente o quadro sétimo e oitavo e colocá-los um ao lado do outro. Neste caso o oitavo quadro deve ser visto provisoriamente como o fim dos dez quadros. A correspondência do ser, que é distinto e maravilhoso, assim como a correspondência da atividade, que é distinta e maravilhosa, presentes nos quadros 9° e 10°, falta ao quadro 8°. Se o oitavo quadro fosse deste modo o fim, ele poderia ser interpretado então como o vazio extremamente negativo. Se fosse assim poder-se-ia apresentar o seguinte: no quadro número sete seria mostrado um homem calmo e recolhido em si mesmo, enquanto que o oitavo quadro se tornaria o desnudamento repentino daquilo que a temática do sétimo quadro e a totalidade da história da experiência do si-mesmo, feita até o momento, ou seja, do exercício que conduzira a idéia do verdadeiro si-mesmo nesta história de experiência, como se não fosse nada mais que o nihil sem sentido.

Na verdade não corresponde à conexão original dos dez quadros do boi, porém, dizendo de outra forma, segundo a inequívoca precisão: pode-se pensar que a lua que se mostra no oitavo quadro, a lua que o pastor ajoelhado e de mãos dobradas venera, no sétimo quadro, pode-se pensar que o absoluto simbolizado através da lua seria, na realidade, um mero nada vazio. Ele venera, portanto, um nada vazio. Isso significaria que o si-mesmo, que tem o exercício concluído, se tornaria, em um só golpe, sem sentido, e que, além disso, nada mais existiria. O movimento que aspira algo, além disso, retorna sempre novamente à ausência total de sentido. Isto seria próximo ao que Nietzsche denominou de “niilismo radical” (cf. Schlechta, 1995c, p. 567). Isso não seria mera orientação niilista cotidiana, pois somente depois de se ter percorrido o caminho para superar essa orientação é que o todo se torna sem sentido e vão.

O oitavo quadro, representado por um círculo vazio que está na seqüência total e original dos dez quadros do boi, é o nada absoluto e, definitivamente, não é o niilismo absoluto. Ele representa muito menos o niilismo radical de Nietzsche, que se dá em um contexto histórico. Mas em caráter metódico, com a finalidade de investigar uma possível conexão com o niilismo, se o oitavo quadro fosse visto como o fim da seqüência dos dez quadros do boi, ele poderia, assim, expor a figura do niilismo absoluto. Na verdade não foram raras as vezes que, na história das idéias da Índia, a visão budista do vazio fora explicada de modo niilista. Mesmo no Budismo, os representantes do Mâdhyamika foram qualificados de Pan-niihilistas, ou seja, de representantes da perspectiva de que tudo seria nada. Assim como muitos europeus, pesquisadores modernos do Budismo tratam a perspectiva do “vazio” como niilismo. Ao contrário, a posição do “vazio” é compreendida como um meio termo livre do ser e do nada, e adverte repetidamente aquele que quer aprender o “vazio” a não se reverter para uma concepção niilista, vaidosa.

Isso significa simultaneamente que no vazio está contido o perigo de se decair em uma concepção unilateralmente negativa, a saber, de se decair no preconceito que, diante do ser e do nada, considera “tudo como nada”, ou seja, de se decair em uma concepção vaidosa, niilista. Este perigo poderia ser oportunamente descrito com a expressão usada anteriormente, que afirma que a negação da substância se torna uma substância-negativa. Com isso se diz que o “vazio” só está completamente presente onde há superação deste perigo, que se realiza com a dissolução no vazio da substancialidade negativa ou positiva contida no vazio. Partindo do pressuposto da existência do referencial descrito acima, e se a seqüência dos dez quadros do boi se encerrasse com o oitavo quadro, não seria impossível, no contexto do mundo moderno, relacionar o niilismo radical de Nietzsche com o oitavo quadro. Precisamente no mesmo fragmento que diz: “isto é a forma extrema do niilismo: o nada (o ‘sem sentido’) eterno!” acrescenta o próprio Nietzsche: “Forma européia do Budismo” (Schlechta, 1995c, p. 853).

Se o problema do niilismo fosse inserido nos dez quadros do boi, da forma como fora exposto acima, que significado poderia então revelar o nada absoluto do oitavo quadro com a representação do círculo vazio, que fora acrescentado de novo, no contexto geral dos dez quadros? Do nada absoluto do 8° quadro resultam a “natureza” no 9° quadro e o “entre” das pessoas no décimo quadro; o 8°, 9° e 10° quadro formam uma coerência dinâmica, e isto é o nada absoluto. Pode-se dizer que aqui é mostrada uma possibilidade original de ir além do niilismo. Não se encerra no nada, ou dizendo de outro modo, o nada não é o fim. De maneira mais precisa, não é o “nada eterno” na forma em que ele não se encerra com o nada, mas sim que ele ultrapassa o nada na forma do nada do nada: “Os rios fluem azuis, as serras se erguem verdes” (Ohtsu, 1985, p. 45) (como está no texto referente ao 9° quadro - então as serras são realmente serras e isto é assim como é, o preenchimento despojado de si do si-mesmo), “encontrar um com o outro” (ib. p. 128) (assim como está no texto referente ao 10° quadro - então o si-mesmo no nada é um preenchimento duplo). Isto era o nada absoluto. Aqui o niilismo radical “ficou para trás” literalmente (palavras do Nietzsche).

Aqui se deve passar depressa sobre o lugar onde o niilismo surgiria, senão poder-se-ia ficar preso nele. (No texto do 8° quadro lê-se: “Por este lugar o pastor dever passar depressa”) (ib. pp. 111 e 41). Não se comporta como se houvesse algo que foge à negatividade do nada absoluto e depois se apresenta novamente. Ao contrário, o nada é aniquilado e ultrapassado em função da radicalidade do nada que acaba com tudo, em função da radicalidade não-substancial do “nada do nada” em “nada” como “nada do nada”. A negatividade insondável e a afirmação absoluta estão presentes aqui em correspondência. Ao mesmo tempo isto é a presença do “si-mesmo abnegado”. No nada absoluto, no “nada do nada” pode ocorrer o seguinte: “o rio flui sem limites, como ele flui. As flores florescem vermelho, como elas florescem” (ib. p. 45). E ainda: “ele freqüenta... os bares e os quiosques de peixe” (ib. pp. 49 e 122). Isto é o verdadeiro preenchimento do si-mesmo. O segredo todo está no “nada do nada”, apesar de nada ser segredo neste lugar.

Nietzsche diz também que, tendo ele “vivido o niilismo mesmo em si até o fim”, ele o teria “superado, sob si e fora de si” (Schlechta, 1995c, p. 634). Se isto for verdadeiro, ou seja, se o niilismo radical não puder ser superado e negado de fora, então, para Deus não pode haver um “fora”, bem como não pode haver um “fora” para o vácuo de “Deus está morto”, e sim somente o fato de que deve-se passar por ele até o fim. Pois uma superação, como “auto-superação do niilismo” com base no acabamento do niilismo radical, só pode acontecer no movimento do nada no próprio niilismo radical. Se o niilismo só pode ser superado no “movimento do niilismo mesmo”, lá tem que haver então um movimento do nada. O nada que nadifica tudo deve, de algum modo, se tornar o nada que gera a afirmação. O nada absoluto e negativo deve, no movimento do nada, poder tornar-se o positivo original, de tal forma que, por exemplo, “o sem-sentido (a insensatez)” como a ausência da “resposta ao para quê?” (Schlechta, 1995c, p. 557), como Nietzsche diz, pode, no movimento do nada, transformar-se no “nada”-sentindo afirmativo pura e simplesmente. De fora não pode ser dada resposta alguma. O “sem porquê” deve simplesmente tornar-se a pergunta originariamente nova. Se for assim, temos aqui um desembocar inesperado no “sem porquê” da vida original em Eckhart, citado há pouco e no “sem porquê” no ser simples da rosa, como Ângelus Silesius diz: “a rosa é sem porquê, ela floresce porque floresce” (Silesius, 1921, p. 39). Dizendo melhor: o que ocorre é uma concordância, por assim dizer, de costa a costa, necessária por si mesma. Por um lado, esta concordância ocorre a partir do fundamento de Deus, por outro lado, a partir do fundamento como morte de Deus, que é o abismo, no qual ambos são investigados em sua radicalidade na e como existência humana. Com isso abre-se a seguinte possibilidade: o niilismo, que é denominado por Nietzsche de niilismo radical pode ser ultrapassado, por exemplo, na experiência simples de “a rosa é sem porquê”, justamente porque ele é radical (dizendo de outra forma, se ele é verdadeiramente radical). É a mudança do nada que está na posição onde não se pode dar sequer uma única resposta ao “porquê?” para o nada nas palavras “a rosa é sem porquê”, ou dizendo melhor: é o ser absolutamente afirmado na mudança do nada. É a mudança do nada do ser para o ser do nada. Se isto for assim, então esta situação deve se aproximar muito do contexto dos quadros 8° e 9° da história do boi.

Resumindo mais uma vez: Nietzsche diz que teria deixado o niilismo para trás visto que ele o teria vivido até o fim. Trata-se do “movimento de auto-superação do niilismo”. Se assim o for, então a superação do niilismo só é possível como “movimento do nada”. Este movimento deveria levar à dissolução do aspecto substancial no vazio, que era a base da concepção positiva ou negativa do nada absoluto. Isto só é possível na forma em que o nada no sentido da não-resposta à pergunta “por que” se transforme no nada no sentido do “sem porquê”, e este nada é vivenciado, por exemplo, na concretude da rosa como a superabundância do ser, que é “sem porquê”. O caminho que Nietzsche mesmo ensinara como a superação do niilismo não era, na realidade, este caminho. Porém, em Nietzsche existem diferentes pontos de partida que são direcionadas a esse caminho. O caminho indicado acima passa a ser visível quando persegue e se considera tais pontos de partida de maneira conseqüente. Mas o “movimento do niilismo” que Nietzsche de fato desenvolveu tornou-se um movimento que encontrou sua força propulsora na “vontade”. Na vontade, no meio da profundidade abismal do nihil, no “querer o nada”, é procurado uma alavanca para a transformação - “o homem prefere ainda querer o nada a não querer nada...” (Schlechta, 1995b, p. 900). Esta vontade é mantida no ressaltar da forma pura e originária da vida, como da “vontade de vontade” (de acordo com Heidegger), mesmo como “vontade de poder”, e esta “vontade de poder” se transforma no elemento superador do niilismo como força motora do niilismo ativo e positivo. “‘Niilismo’ como ideal da potência máxima do espírito, da vida superabundante [...]” (Schlechta, 1995c, p. 557).

A idéia da “vontade de potência” está profundamente relacionada com o estado das coisas que expressam termos essenciais de Nietzsche como “eterno retorno”, “super-homem” e outros. Para Nietzsche, porém, a “vontade de potência” como essência da exuberância e o desenvolvimento da vida era precisamente o “vencedor de Deus e do nada” (Schlechta, 1995b, p. 837). Esta vontade se transforma em querer do nada... “morte de Deus” na espontaneidade do si-mesmo. Nietzsche pensa esse movimento como o desenvolvimento da força da vontade, rompendo-se do si-mesmo, que quer o nada e assim no querer supera o nihil. “A vontade de potência máxima é dar ao desenvolvimento o cunho do caráter do ser” (Schlechta, 1995c, p. 895). Há pouco, a concepção de Nietzsche da auto-superação do niilismo com base na radicalização do niilismo foi considerada algo próximo ao “movimento do nada”. Nietzsche mesmo fala do “movimento do niilismo” (cf. Schlechta, 1995c, pp.634 e 792) e estabelece a “vontade de poder” como força propulsora e suporte deste movimento. Apesar de se dizer “movimento do niilismo” este movimento é, na verdade, o “movimento da vontade”.

O sujeito humano tem que ser inserido no “movimento do nada”. Isto não é mais um movimento autônomo que ocorre em algum lugar, pois ele está em unidade com a transformação do modo de ser do sujeito. Porém, se a “vontade de poder” não for inserida somente na transformação do modo de ser do sujeito e, sim, se ela tomar por base o movimento do niilismo dominação e, enquanto a relação entre nada e vontade permanecer opaca, algo assim como a “vontade de poder” ser colocada no centro do nihlum, como o último estado das coisas. Em última instância, a tendência para uma nova substancialização permanece conservada. Tudo, até mesmo Deus, é desubstancializado e reinterpretado como ficção, por motivo do aflorar e do desenvolvimento da força da “vontade de poder”, mas, a própria “vontade de poder” se torna, sendo fundamento de todas as coisas, a única realidade. De fato, a “vontade de poder” é compreendida como “essência do mundo”, como “o caráter mais íntimo do ser” e como “o fundamento extremo de todas as transformações”. Por isso, Keiji Nishitani diz o seguinte: “Na medida em que é uma ‘vontade’ ela não se liberta do caráter de um ente” (Nishitani, 1983, p. 237; cf. também 1982, p. 329). Por isso, também Heidegger vê em Nietzsche um crítico radical e refutador da metafísica ocidental, mas, ao mesmo tempo, o último a consumar a metafísica ocidental. Se em semelhante lugar, que é também o último, a “vontade de poder” for colocada como o único “ente” verdadeiro, ela deveria assim, em última instância, suspender o nihilo do niilismo radical, que também era denominado por Nietzsche desta forma. Pois o niilismo extremo é um nihilo que anula justamente aquilo que, como fundamento do ente, “é fundamento”. Se assim for, então isso significa que o nada extremo em Nietzsche e a “vontade de poder” como superação deste nada, ambos estão muito distantes do lugar existencial do 8° quadro da história do boi e seu pastor.

Porém, na idéia de “vontade de poder” de Nietzsche, que está intimamente entrelaçado à substancialização problemática e metafísica, transparece aqui e ali um elemento que poderia ser considerado como auto-expressão direta da vida pura. Isto seria algo assim como a água do lençol freático, que une nos estratos profundos os conceitos fundamentais de Nietzsche, tais como “vontade de poder”, “eterno retorno”, “super-homem” e outros, ou, como fontes que jorram dessas águas profundas aqui e ali. Desta forma, por exemplo, o riso e a dança são designados, em Nietzsche, como a afirmação mais expressiva da vida. Na verdade esta afirmação da vida em seu caráter mais extremo não é relacionada, de modo transparente, à idéia de “vontade de poder”, embora seja mencionado lá o esquecer com o qual é indicada fundamentalmente uma ausência da vontade: a “vontade de poder” é, por assim dizer, suspensa do centro de seu poder. Com isso é ligado, assim, o “brincar” ao mais alto modo de ser referido. Aqui, a “vontade de poder” poderia ser compreendida como a perspectiva na qual o oitavo quadro, com a representação de um círculo vazio em que tanto o pastor quanto o boi são “esquecidos”, é transposto e é negado e afirmado de maneira absoluta. Isto é o modo de ser no qual a vontade de poder esquece o poder e neste esquecer existe o movimento natural do brincar.

Aqui será considerada apenas uma curta passagem de Nietzsche na qual a idéia “esquecer = brincar”, torna-se clara, de maneira relativamente conseqüente. No primeiro discurso de Zaratustra é abordado o modo como o espírito se transforma em camelo, como o camelo se transforma em leão, que, por sua vez, se transforma em criança. A criança como a última forma do espírito, que passou pelo modo de ser do camelo e do leão, que estratificou a auto-superação, é exaltada da seguinte forma: “A criança é inocência e esquecer, um novo começo, um brincar, uma roda que gira por si mesma, um primeiro movimento, um dizer-sim santificado” (Schlechta, 1995b, p. 294). Nietzsche vê na criança um “brincar do criar”.

O “camelo” representa o espírito que, de maneira respeitosa e obediente, transporta cargas pesadas espontaneamente. É o modo de ser que, sempre arrastando cargas pesadas, experimenta prazerosamente sua força. O camelo aprende com o corpo tudo que é valoroso na tradição.

O camelo, que desta forma arrasta cargas pesadas, corre para o deserto e lá, em seu mais profundo interior, transforma-se em leão. A força, que fora exercitada com o transporte de cargas pesadas, lança a carga fora e se transforma na força do leão, na força do “eu quero”. O leão, que diz “eu quero”, quer se tornar o soberano livre no deserto. Ele desafia o até então soberano, Deus, o dragão, que diz “você deve”, para uma luta, e o derrota com um “não” sagrado. Isto é certamente a segurança da liberdade absoluta da vontade do “eu quero”, embora essa liberdade seja sem conteúdo e esta seja a força da negação radical. Depois da derrota do dragão, o deserto se transforma em uma amplidão ainda mais árida e solitária. O leão, que suportou o nihil deste deserto, transforma-se repentinamente em criança. E aquilo que jamais fora possível para o leão agora torna-se possível. Ou, como fora dito anteriormente, o brincar “criativo” é o mundo da criança. O eterno retorno, que era a forma extrema do niilismo, vira a forma da afirmação máxima. Esta afirmação é a criança como “uma roda que gira por si mesma”, como o “esquecer = brincar” inocente. (Deve-se especialmente chamar a atenção para o fato de que aqui qualidade e tom são, de alguma forma, diferentes da idéia de “vontade de poder”.)

Nietzsche desenvolve muito cedo idéias profundas sobre a “criança do mundo que brinca” de Heráclito: “Se a força unificadora do mundo de Heráclito, o obscuro, for comparada com uma criança que, brincando, põe grãos de areia aqui e ali, e constrói montes de areia e as lança novamente” (Schlechta, 1995a, p. 132). O brincar da criança do mundo mesmo é o mundo. O último modo de ser do homem encontra-se lá, onde ele como criança, no próprio brincar, brinca desta criança
do mundo. Talvez se possa dizer ainda que Nietzsche, no modo de ser infantil do inocente “esquecer = brincar”, pressentiu a supressão completa do niilismo.

Parece que a idéia “esquecer = brincar” tem uma ligação direta com o caminho do “sem porquê”, mencionado há pouco, e sua afirmação, vista a partir da superação do niilismo, mostra um parentesco próximo com o Zen. A representação do círculo vazio na oitava estação é intitulada “O completo esquecimento do boi e do pastor” (Ohtsu (1985, p. 41), e o modo de ser que, a partir de lá, se evidencia, é designado expressamente nos “seis quadros do boi” como um brincar. O texto diz: “brincando, correndo no caminho sem fim” (cf. Shibayama, sem ano, p. 44). Mas parece que para Nietzsche esta relação entre nihil, vontade de poder e criança ainda não teria sido, de maneira totalmente clara, consciente.

Heidegger, no final de sua conferência “Sobre a essência do fundamento”, comenta esta “criança brincando com o jogo do mundo”, que é tão atrativa para Heráclito, da seguinte forma: “Por que a criança crescida de Heráclito, que no olhar αιων, brinca de jogo do mundo? Ele brinca, porque ele brinca... O brincar é sem ‘porquê’ (...) permanece apenas o brincar: o mais elevado e o mais profundo. Mas este ‘apenas’ é o tudo, o um, o único” (Heidegger, 1957, p. 188). Aqui vem à tona novamente o “sem por quê”. Mas Heidegger acrescenta: “A pergunta que fica é se nós e como nós, que ouvimos estas frases deste brincar, brincamos juntos e nos submetemos ao brincar” (ib.). Com esta pergunta, a conferência “sobre a essência do fundamento” é encerrada. A pergunta é se nós podemos ultrapassar o niilismo como falta de resposta à pergunta “por que?”, ao mesmo tempo em que existimos no “sem porquê” que vive e no brincar do ser que brinca. Heidegger deixou esta pergunta em aberto. Talvez a pergunta fosse para ele a última. Nietzsche aponta o caminho: “Quem quer se tornar criança deve superar sua juventude” (Schlechta, 1995b, p. 401). Se assim o for, deve-se elucidar novamente o sentido do modo de ser do “velho”, que aparece na décima estação da história do boi. Quem pode se tornar criança não é, portanto, uma criança. Ele é o “velho”, que superou a juventude. Somente como “velho” ele pode ser criança e mais do que criança; principalmente tendo em vista que o esquecimento-de-si está também em função do modo de ser do outro, que o esquecer é ao mesmo tempo o tornar-se consciente de si-mesmo e o despertar do outro.

Tentou-se até agora considerar o nada em Eckhart e Nietzsche como algo que teria um parentesco com a representação do círculo vazio. Mas o caráter absoluto positivo do “nada absoluto” positivo de Eckhart reside na substância, e o nada não era a negação da substância. Visto a partir do “nada do nada”, o nada extremo, que é a predicação para Deus, era também negativo. Em contrapartida, no caso do “nada absoluto” negativo do denominado niilismo radical de Nietzsche, o nada nadifica a substância e se encontra aí um caráter absoluto do nada. Mas ocorre de modo que o nada se torna substância negativa e não de modo que o nada, se transformando, entre na afirmação. Assim é também o nada ativo que conduziu à “morte de Deus”, simplesmente negativo, considerado a partir do “nada do nada”. Falta ao “dizer-sim sacro” presente na idéia “esquecer = brincar”, como outro lado de Nietzsche, por um lado, a clareza auto-consciente do nada extremo e por outro, a clareza auto-consciente da “vontade de poder”. Por isso a última afirmação permanece meramente negativa.

Por parte da afirmação absoluta, o nada absoluto é congruente com o “nada absoluto” positivo de Eckhart, por parte da negação absoluta ele é congruente com o “nada absoluto” negativo do niilismo radical. Porém, visto que a correspondência das pessoas e o entrelaçamento das pessoas, da negação absoluta e da afirmação absoluta sejam o nada absoluto - e isto é exatamente o movimento do “nada do nada” -, tem-se então que, por um lado, em Eckhart, a negatividade não foi levada avante suficientemente, e, por outro, falta negatividade a Nietzsche. O nada absoluto permanece, em ambos, negativo. Mas o “nada” não é originariamente negativo, absolutamente negativo, e não de outra forma? Não é evidentemente em virtude do “nada”, que o “nada” é simplesmente passivo? Quando se tratar de positivo ou afirmativo não seria sem sentido se referir ao “nada”, e sim, não deveria apontar o ser, o supra-ente, o um, a substância ou Deus, não se deveria, diante da proclamada “morte de Deus”, apontar um novo Deus, um último Deus, que acaba de chegar? Ou: se Deus fosse refutado como uma ilusão, não se deveria portanto nomear o homem mesmo como positivo e afirmativo? Sim, é assim! Será que Nietzsche, na compreensão de que precisamente tal positivo e afirmativo teria, em função de seu caráter de ser ente, perdido sua validade, não viu a necessidade do niilismo positivo, ativo e radical? Quando Nietzsche afirma que “tendo vivido o niilismo mesmo até o fim” ele “o teria superado, sob si e fora de si” (Schlechta, 1995c, p. 634), é permitido ver um caminho no movimento do niilismo que passa por ele despercebido e o transpõe, no “nada do nada”, que está contido na seqüência original dos dez quadros do boi, como fôra tratado acima.

Nietzsche fala ocasionalmente, de maneira intuitiva, sobre a inseparabilidade da negação e da afirmação. Zaratustra diz: “Oh, minha alma! eu te dei o direito de dizer não como a tempestade, de dizer sim como o céu aberto” (Schlechta, 1995b, p. 467). Nietzsche mesmo fala de sua “natureza dionisíaca, que não conhece a separação entre o dizer-não e o dizer-sim” (Schlechta, 1995b, p. 1153). Também em Eckhart há uma ligação entre teologia negativa e positiva na via eminentiae. Como sempre, a possibilidade da própria correspondência própria da negação e da afirmação deveria se tornar o último problema.

Foi mostrado acima, que o círculo vazio no oitavo quadro representa um nada, que é “mais” que o nada absoluto positivo de Eckhart e que o nada absoluto negativo de Nietzsche, embora ambos mostrem um parentesco com o oitavo quadro, e neste “mais” está, ao mesmo tempo, a virada para a grande afirmação. A nona e a décima estação dos dez quadros do boi representam precisamente este “mais” do nada absoluto do Zen, como fôra discutido na primeira parte deste artigo.

 

Referências

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Enviado em 25/5/2008
Aprovado em 30/6/2008

 

 

1Este artigo foi publicado na Coletânea intitulada Die Philosophie der Kyôto-Schule [A Filosofia da Escola de Kyoto], editada por Ryôsuke Ohshi, pela editora Alber, de Freiburg em 1990. A tradução deste artigo foi autorizada pessoalmente pelo professor Ueda, por meio de seu colega, Ryosuke Ohashi.
2hitzuteru Ueda nasceu na cidade de Tóquio, em 1926, filho de um estudioso do Budismo. Em 1949 graduou-se em Filosofia pela Universidade de Kyoto, onde foi aluno de Nishitani. De 1959 a 1962 doutorou-se em filosofia pela Universidade de Marburg, onde escreveu tese sobre Mestre Eckhart. Em 1964 torna-se professor da Universidade de Kyoto onde permanece até se aposentar, em 1989. Ueda pertence à chamada terceira geração de filósofos da Escola de Kyoto e é o mais importante filósofo japonês vivo.
3As notas referentes à parte I são de Ryôsuke Ohashi, as referentes à parte II e III, de Stefan Thumfart. Este texto é composto de par
4Traduzido para o alemão por Kôichi Tsujimura e Hartmut Buchner, Pfullingen 1988. A tradução inglesa feita por Daisetsu T. Suzuki, publicada em seu livro “Manual of Zen Buddhism”, trás o título: The Ten Oxherdling Pictures, Kyoto 1935. Há uma outra tradução inglesa intitulada The Bull und his Herdsman. The traditional
Pictures, comments and pointers by Zen Master, Daizôkutsu Rekidô Otsu, Londres 1989.
5Sânscrito: Rûpam sûnyatâ sûnyataive rûpam. Sino-jap.: Shiki soku zé kû, kû soku ze shiki. Cf. An. 6, referente ao texto de Nishitani “A loucura no poeta Bashô”, no livro Die Philosophie der Kyôto Schule. Neste texto a palavra “shiki” é traduzida não por “o que tem forma” e sim pela palavra “fenômeno”.