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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.21 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

 

DOSSIÊ

 

A esperança depositada na linguagem – fenômeno passageiro?

 

Hope deposited in language - a passing phenomenon?

 

 

Bernhard Sylla*

Universidade do Minho, Portugal

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na primeira parte da minha análise focarei no papel crucial que a linguagem, segundo Heidegger, desempenha no que diz respeito à questão se é possível salvar a humanidade e resgatar o ser do seu esquecimento total. Na segunda parte da minha apresentação, quero mostrar que a esperança depositada no poder transformacional da linguagem é um aspeto comum de um número considerável de filosofias do século passado, esgotando-se, no entanto, a atenção dada a esse tema no início do século XXI. Há vários sinais que dão a entender que o fazer tecnológico e/ou o regresso à imagem vão ocupando paulatinamente o lugar da instância "linguagem" como topos à volta do qual se questionam os novos desafios societais.

Palavras-chave: linguagem, poder transformacional, tecnologia, imagem.


ABSTRACT

In the first part of my analysis I will focus on Heidegger's work, particularly on the crucial role that language plays in regard to the question whether it is possible to save mankind and to redeem Being from its total forgetfulness. In the second part, I intend to show that the hope placed on the transformational power of language is a common aspect of a considerable number of philosophies of the last century. However, the attention given to this theme seems to have been exhausted at the beginning of the twenty-first century. There are several signs that imply that technological making and/or return to the image are gradually taking the place of the language instance as topoi around which new societal challenges are discussed.

Keywords: language, transformational power, technology, image.


 

 

Introdução

Que a viragem do pensamento heideggeriano está em estreita correlação com a importância dada à linguagem, não constitui novidade na investigação sobre Heidegger. Também é sabido que a linguagem, segundo esse autor, desempenha um papel crucial no que diz respeito à questão se é possível resgatar o ser do seu esquecimento total. Por vezes, ao referir-se a esse papel da linguagem, Heidegger fá-lo de uma forma apodíctica que contrasta com o seu dito sobre a função do derradeiro deus: somente a linguagem é capaz de nos salvar1.

Partindo dessa premissa, focarei na primeira parte da minha análise um aspecto particular e pouco discutido na investigação sobre Heidegger, o modo como este pensa que a linguagem "apropriada" é capaz de salvar a humanidade. Por um lado, o autor evoca frequente e sistematicamente a necessidade de ouvir a verdadeira linguagem, de lhe obedecer "docilmente". Por outro lado, não se contenta com uma atitude meramente "passiva", mas usa o material "autêntico" da linguagem de uma forma sofisticada e seguindo estratégias racionais, porémtambém opacas, para iniciar e propagar uma nova forma de falar e, com isso, um novo modo de pensar. Em suma, é preciso conjugar obediência e subalternidade com a máxima criatividade e um poder transformacional, conjugação esta que, de acordo com Rorty, apenas os "poetas e filósofos fortes" são capazes de realizar.

Na segunda parte da minha apresentação, quero lançar uma tese como hipótese de trabalho. Partindo da conjuntura filosófica atual da segunda década do século XXI, parece-me lícito constatar um fato que é premissa da minha tese:

- a esperança depositada no poder transformacional da linguagem é um aspecto comum de um número considerável de filosofias do século passado, podendo a articulação dessa esperança ser compreendida como uma variação sobre o mesmo tema, sendo a articulação que Heidegger elaborou uma entre outras variantes, não obstante o seu papel inspirador e inaugural;

- a hipótese que quero explicar na parte final da minha comunicação reside na suspeita de que a atração desse tema, i.e. a esperança depositada no poder libertador de uma nova linguagem, se esgotou no início do século XXI. Creio que há vários sinais os quais dão a entender que o fazer tecnológico vai ocupando paulatinamente o lugar da instância "linguagem" como topos à volta do qual se questionam os novos desafios societais. Essa substituição chega, por vezes, a negar à linguagem o potencial transformador, substituindo-a pela coligação entre "imagem" e "tecnologia".

 

1.1. Alguns pressupostos gerais da viragem linguística em Heidegger

Serei muito breve na circunscrição de quatro pressupostos fundamentais para Heidegger em seu empreendimento da procura de uma linguagem apropriada, capaz de pôr em obra a salvação do ser humano do esquecimento do ser.

1) O autêntico-apropriado já existe, não precisa ser inventado pelo filósofo. Mas o filósofo deve adquirir a capacidade ou habilidade do silenciar que abre as portas para uma receptividade particular, a de ouvir o que a própria linguagem é capaz de nos dizer. Desse modo, temos que ser obedientes, hábeis, dóceis perante a fala da linguagem.

2) A verdadeira obediência fornece, portanto, um conhecimento sobre aquilo que é autêntico-apropriado na linguagem. O que é autêntico mostra-se através do material das línguas, no caso de Heidegger particularmente da língua alemã. Por "material" entende-se tudo que faz parte de uma língua: o vocabulário, a sintaxe, a morfologia, a etimologia, a semântica, etc.

3) Aplicar este conhecimento é um ato obediente, mas também um ato criativo e, em última instância, transformador, porque expõe algo que na respectiva língua, até então, apenas existia ocultamente ou enquanto potencial.

4) Usar e aplicar esse conhecimento sistematicamente implica um dizer (uma "saga") diferente do usual, ou seja, um dizer capaz, na melhor das hipóteses, de obrar a salvação do homem. O uso sistemático desse conhecimento apresenta-se-nos como um agir estratégico, porque almeja transmitir, devido ao valor semântico das novas falas autênticas, certas mensagens. Daí, podemos classificar e descrever essas estratégias também como meios para alcançar um fim, sendo o fim último a dita salvação do homem.

O dizer autêntico-apropriado não é um mero despertar de um potencial à espera da sua ativação. É um dizer que entra em conflito com o discurso habitual e que não se deixa conciliar com este. É uma espécie de confrontação. Mas essa confrontação enfrenta uma situação muito peculiar, que ultrapassa o âmbito de uma mera incompatibilidade. A razão para isso reside no fato de o discurso habitual possuir um poder quase inquebrável: o poder de nos forçar a pensar nos moldes de uma determinada fase da História da Metafísica. Aplicado aos dias de hoje, essa coerção é, segundo Heidegger, fatal, porque compromete-nos com o esquecimento total do ser e com o pensar associado e originado pelo padrão da chamada "técnica".

Daí o dizer apropriado ter que preencher duas condições: (i) deve evitar que o discurso habitual se aproprie dele, ou seja, que haja a possibilidade de exprimir aquilo que é dito pelo dizer apropriado através dos meios habituais do discurso normal; e (ii) deve usar um contrapoder capaz de quebrar o poder habitual. A ideia dessa antagonia foi formulada por Humboldt como dialética entre poder coletivo e poder individual inerentes às próprias línguas e ao seu potencial uso. Humboldt associava o poder coletivo e coercivo com a forma interna das línguas, com o seu sistema gramatical que obriga os seus falantes, sem que estes se apercebam disso, a construir o seu mundo interpretativo segundo as normas inerentes à sua língua. Mas Humboldt considerava que os próprios falantes, sobretudo aqueles que possuem o dom linguístico em elevado grau, os grandes poetas e os grandes filósofos, seriam capazes de introduzir no sistema da língua que falam alterações tão profundas que acabariam por transformar profundamente o próprio sistema da língua. Heidegger realçou, em Der Weg zur Sprache, a genialidade dessa ideia de Humboldt, porque exprime com precisão o alcance da viragem linguística almejada pelo próprio Heidegger (UzS 268)2.

Humboldt não tinha associado o poder coletivo exercido pelo sistema gramatical de uma língua com o âmbito das questões políticas e sociais. Esse aspeto novo aparece apenas no século XX, na esteira da interpretação heideggeriana de Humboldt, pois Heidegger foi o primeiro autor a dar a devida atenção à ideia do poder transformacional da linguagem na obra daquele autor, iniciando assim um novo capítulo no pensar filosófico do século XX. No que se segue, quero dar dois exemplos das transformações "violentas" levadas a cabo por Heidegger.

 

1.2. O dizer apropriado como fala "violenta" em Heidegger – alguns exemplos.

O meu livro "Hermeneutik der langue" (Sylla 2009) contém uma análise exaustiva das transformações linguísticas levadas a cabo por Heidegger. Limitar-me-ei a referir aqui apenas alguns aspetos dessa análise.

Tendo em conta o que foi dito na primeira parte, as duas condições básicas para as transformações linguísticas do dizer apropriado são as seguintes:

(1) Não se trata de inventar uma nova linguagem, p. ex. ao introduzir um número elevado de neologismos, mas de descobrir o potencial transformador que já existe na própria língua;

(2) O discurso autêntico-apropriado deve impedir que o discurso habitual se aproprie dele.

Como conseguir essa missão difícil? A tese que sustentei no mencionado livro é a seguinte:

Segundo o estruturalismo na esteira de Saussure, há unidades linguísticas que têm um significado aberto, vinculado a unidades linguísticas materialmente existentes. Mas há também significados a um nível oculto que são das mais variadas ordens: desde fonemas e morfemas até valores semânticos de combinações sintáticas. Estes últimos advêm não somente da relação entre elementos de um sintagma ou de uma frase, mas também da relação abstrata que existe entre combinabilidade e não combinabilidade sintática. Sentidos ocultos têm uma caraterística peculiar que Heidegger apreciava muito: são sentidos aos quais não podemos associar, falando com Saussure, uma imagem mental facilmente acessível e disponível ao nosso pensamento. Sentidos ocultos carecem da imageticidade aberta, mas transportam, mesmo assim, uma mensagem. E é justamente essa a caraterística que Heidegger associa ao pensamento filosófico apropriado que contrasta com o dizer metafórico e imagético do discurso poético.

Heidegger tinha plena consciência do sentido linguístico oculto. Em muitas das suas obras dá conta de conhecimentos avançados nesse domínio linguístico, não havendo dúvidas de que usou esse conhecimento de uma maneira extremamente sofisticada e sistemática. Darei dois exemplos desse uso.

(a) Heidegger pretende desconstruir o juízo assertório que em praticamente todas as línguas indo-europeias tomou a forma da proposição que inclui expressamente a cópula "é", portanto a forma S é p. Segundo Heidegger, essa forma pressupõe que existe um sujeito S que pode ser investigado como objeto (vorhanden) e que pode ser classificado através do predicado p. Um juízo particular dos juízos assertórios é a tautologia que aparece sob a forma S é S. Ambas as formas proposicionais se orientam no conceito de igualdade que, segundo Heidegger, nos prende à metafísica da "ontificação" do mundo e que deve ser substituído pelo conceito de mesmidade. Heidegger exprime essa mesmidade, ainda que não sistematicamente ao longo de toda a sua obra, através de estruturas sintáticas uni ou bipolares. A estrutura unipolar (a simples forma S) corresponde ao favorecimento do mero "nomear" ou "mostrar": "uma verdadeira tautologia:" – diz Heidegger – "só uma vez ela diz o mesmo, e precisamente enquanto 'mesmo'" (Sem 135). São portanto os casos em que o nomear de uma palavra só encobre uma proposição, mas pretende evitar formular a proposição pela forma tradicional S é p ou S é S. Exemplos seriam o famoso riscar da palavra Ser (e.g. Wm 212-253) com uma cruz. Aqui a forma pictográfica encobre uma proposição, mas não a formula. Outro exemplo é o uso do ponto duplo para exercer um duplo nomear, i.e. uma mesmidade. "A essência da linguagem: a linguagem da essência" (UzS 200) não apenas diz que as duas partes do sintagma são o mesmo, mas também que há uma pertença ontológica mútua entre eles3.

A estrutura bipolar 'S s' ("o nada nadifica"; "o fundamento fundamenta", "o mundo mundifica"; "a noite anoitece"; etc.)4, por sua vez, deixa "emanar" o mesmo a partir de si mesmo. Dito por outras palavras, a própria coisa e a sua realização são o mesmo, ou a coisa torna-se coisa ou é apenas através do seu essenciar.

Quando Heidegger usa a estrutura triádica S é p, usa-a, na maioria dos casos, de tal maneira que viola as normas do discurso habitual e as regras que determinam as identidades lexicais, entre as quais se encontram, por exemplo, normas sobre a igualdade dos sinônimos, a igualdade enquanto pertença à mesma classe gramatical, a igualdade enquanto pertença a uma fase determinada da evolução da língua (uso de palavras "extintas"), a igualdade enquanto constante de tradução. Mais uma vez contrapõem-se, portanto, identidade qua igualdade e mesmidade. Darei alguns poucos exemplos significativos. Quando Heidegger encontra mesmidade nos dois termos einsam (solitário) e zusammengehörig (pertencer mútuo), utilizando a forma S é p ao dizer 'einsam é zusammengehörig' (UzS 265s.), quando diz que a Feindseligkeit é a Seligkeit des Zusammengehörens im Geviert (HHG 245) (que o discurso habitual traduziria por: a hostilidade é a beatitude da pertença mútua na quadratura), ou quando diz que o abismo é o fundamento do fundamento (Bes 101) (der Abgrund ist der Grund des Grundes), a forma tripartida S é p serve para deixar aparecer uma mesmidade ontológica que é vedada ao olhar comum e viola as normas linguísticas correntes.

Esse primeiro exemplo referente à estrutura das proposições que normalmente indicam identidades mostra que Heidegger preenche as duas condições básicas para a construção de uma linguagem apropriada: (a) não inventa uma linguagem nova, mas seleciona aquilo que na língua existente já é dado; (b) o discurso habitual não entende, ou não entende facilmente, a mensagem que está por detrás das alterações do discurso heideggeriano, pois na sua base estão sentidos, ou, falando saussurianamente, imagens mentais não imageticamente acessíveis, porque constituídas por relações sintáticas abstratas ou por sentidos relacionados com estados remotos do desenvolvimento linguístico.

Quero ainda dar conta de uma segunda estratégia linguística amplamente usada por Heidegger na sua obra tardia, a técnica da hifenização. Essa estratégia reside na separação do prefixo ou sufixo do radical, tanto em nomes como em verbos (Er-eignis, Ab-grund, Ent-zug, Ent-scheidung etc.; er-schweigen, ent-fernen, ab-wenden etc.). A hifenização faz com que o significado corrente perca o seu poder. A palavra é decomposta (des-construída; "destruída"). Essa decomposição, no entanto, é também construtiva, porque evoca o sentido de todas as respectivas partes decompostas (a linguística fala aqui de remotivação). Vejamos dois exemplos: Quando Heidegger separa a palavra Ereignis por um ou até dois hífens (Er-eignis; Er-eig-nis), deixa aparecer três novos significados que se juntam ao significado habitual de Ereignis. O significado habitual de Ereignis (= acontecimento) não desaparece, mas para entender a nova palavra hifenizada, temos de entender o que significa Er-, o que significa eig- e o que significa -nis. Um falante de alemão ainda entende que o radical eig- exprime a ideia do próprio, do apropriado, do propício. Mas, se o falante não for perito na linguística, terá grandes dificuldades em indicar o sentido de er-, de -nis ou de outros prefixos que Heidegger integra na sua estratégia de hifenização. Relativamente ao prefixo er-, podemos dizer que adquire um estatuto que é sem dúvida comparável ao estatuto de uma palavra-chave na filosofia tardia de Heidegger. O er-, na língua alemã, pode exprimir conteúdos ou ideias muito diversas, mas três destes são absolutamente fundamentais: (a) conseguir/alcançar algo por completo ou antecipar este alcance (erhalten, ersteigen etc.); (b) um processo onde alguma coisa desabrocha, seguindo o rumo do seu desenvolvimento natural, resultando no aparecimento da sua plena fenomenalidade (erwarten, erhoffen etc.); (c) o início originário ou o dealbar de um fenômeno, implicando um acontecimento ou processo de caráter transformador (erschauern, erröten, erblühen etc.). Para além disso é útil saber que o er- provém do alto-alemão ar-, ir- ou ur- (sabe-se que Heidegger nos remete à forma ir-ougen como forma originária de er-eignen), estando, portanto, em proximidade com o prefixo ur- que exprime a origem, a originariedade. É daí evidente que o er- alemão reúne em si uma espécie de matriz essencial dos traços fundamentais do Ereignis: originariedade, transformação, carácter da physis originária, Gelassenheit e antecipação utópica da integração completa, do inteiro, do são e salvo. O -nis completa esse significado complexo e denso à sua maneira. É um sufixo que tem como um dos seus possíveis significados, e sobretudo no campo semântico das palavras que denotam formas de acontecimento, a evocação de um processo cognitivamente não dominável, não inteiramente entendível, não acessível ao controlo pelo sujeito e capaz de causar espanto5.

Tiremos brevemente as conclusões que interessam no âmbito da temática proposta. Também em relação a essa estratégia, nota-se que as duas condições básicas para a construção de uma linguagem apropriada são preenchidas: (a) Heidegger não inventa uma linguagem nova, mas seleciona aquilo que na língua existente já é dado; (b) o discurso habitual não entende, ou não entende facilmente, a mensagem que está por trás das alterações do discurso apropriado, porque este baseia-se em significados cognitiva e imageticamente ocultos, dos quais até um falante competente não costuma ter um conhecimento explícito, mas apenas uma intuição não claramente articulada. Os dois exemplos discutidos dão apenas uma noção fragmentária da sistematicidade e abrangência das estratégias que Heidegger usa para "trazer à linguagem" a própria fala da linguagem, ou seja, relações semânticas inauditas à espera da sua descoberta. Essa descoberta, segundo Heidegger, é a única via possível para inverter a história decadente da Metafísica e lançar mãos à obra da salvação da humanidade.

 

2.1. O topos da linguagem revolucionária em outros autores do século XX

Chego agora à segunda parte da minha análise. Como referi na introdução, pretendo, num primeiro passo, reunir alguns argumentos a favor da tese de que a esperança depositada no poder transformacional da linguagem é um aspecto comum de um número considerável de filosofias do século passado, podendo a articulação dessa esperança ser compreendida como uma variação sobre o mesmo tema, sendo a articulação que Heidegger elaborou uma entre outras variantes, não obstante o seu papel inspirador e inaugural.

Referir-me-ei muito sucintamente a quatro autores, Roland Barthes, Jacques Derrida, Peter Sloterdijk e Michel Foucault, que desenvolveram as suas reflexões sobre a dita temática na segunda metade do século XX.

Roland Barthes, na primeira fase do seu itinerário poético-filosófico, nomeadamente em Mythologies (Barthes, 1957), entende a instância do mito como o conjunto e o sistema das significações e interpretações estereotipadas que controlam e determinam largamente e quase que exclusivamente os usos dos meios linguísticos. O mito torna-se em Barthes uma instância sociopolítica que adquire um perfil totalitário, pois bloqueia sistematicamente todas as interpretações fáctica ou potencialmente subversivas e neutraliza seu potencial subversivo ao integrá-las no sistema. Vinte anos mais tarde, na sua obra Leçon (Barthes, 1978), Barthes designa o poder da língua, que inclui o poder do discurso habitual e sancionado porque determina-o, como fascista6. Na sua busca por uma linguagem capaz de quebrar esse poder fascista, Barthes vira-se sobretudo para os campos da literatura. Só os poetas altamente sensibilizados seriam capazes de usar o material linguístico existente de uma maneira suficientemente subversiva para usurpar o poder da língua e do discurso habitual. Embora a articulação da temática seja muito afim àquela de Heidegger – o que não admira, porque a importância de seu pensamento é abertamente reconhecida por Barthes – o perfil do ansiado estado de salvação em Barthes é certamente muito diferente, apontando para uma certa "hedonização" das problemáticas ontológicas e políticas, significativa para as tendências gerais dos anos 1970 e 1980, no âmbito dos quais os movimentos políticos de revolta dos anos 1960 se transformaram paulatinamente em tendências e hábitos meramente culturais ou até mesmo hedonistas7.

Um novo dizer que possui o poder de escapar ao sistema do dizer habitual sem que se invente uma nova linguagem é também um traço fundamental na filosofia de Derrida. O seu método de desconstrução tenta desmontar a ordem inquestionada das relações semânticas habituais entre conceitos. O texto, e sobretudo a escrita, afiguram como lugar onde se podem abrir espaços, margens de manobra, disseminações, adiamentos, ou seja, différances que permitem um questionamento e uma reorganização das redes nocionais e das hierarquias nelas inscritas e por elas impostas. Indico aqui, a título de exemplo, o texto "Les fins de l'homme" (publicado em 1972), onde Derrida, no contexto das revoluções estudantis em finais dos anos 1960, refere, explicitamente, a dificuldade aporética desse empreendimento filosófico8.

Uma variação sobre o mesmo tema representa um opúsculo de Sloterdijk que data de 1988, intitulado "Vir ao mundo – vir à linguagem" (Sloterdijk, 1988), texto que reproduz um ciclo de cinco conferências dadas em 1988 na Universidade de Frankfurt, no âmbito da cátedra de Poética da fundação Johann Wolfgang Goethe da mesma universidade. O tema do ciclo de conferências é a "poética do expor-se", ou seja, a "poética do começar", o que permite a Sloterdijk traçar uma relação íntima entre o vir ao mundo antropológico e o vir à linguagem. No âmbito da nossa questão, interessa sobretudo o último capítulo9, onde é construído um conflito antagônico entre dois a prioris linguísticos, o a priori conservador da tradição e o a priori libertador do Freispruch, palavra que no contexto do livro evoca simultaneamente os dois sentidos de absolvição e promessa. O a priori da tradição é associado ao poder da língua materna e da sua "forma interna", no sentido humboldtiano. Pertencer a uma comunidade linguística, nascer para dentro dela, significa tornar-se refém e "toxicodependente" dela. E essa dependência total adquire um cariz profundamente político, porque natalidade e nacionalidade linguística e política estão intimamente imbricadas, confundem-se uma com a outra e evocam-se mutuamente. A argumentação sloterdijkiana, cunhada por jogadas retóricas e o prazer da provocação, é certamente questionável, porque falar uma língua particular não significa, como Sloterdijk quer fazer crer, deixar-se enfeitiçar pela atitude coletiva de medo e ódio perante todas as outras línguas e nações "estranhas"/estrangeiras. Na abordagem do primeiro a priori linguístico, Sloterdijk não deixa dúvidas de que rejeita posições como a de Gadamer, que pretendem focar o aspecto positivo desse a priori. Um aliado forte é Roland Barthes, não só por ter declarado a língua como "fascista", mas por ter sustentado a necessidade de encontrar uma fala libertadora capaz de quebrar o poder dominante da língua materna e do discurso habitual. E é justamente isso que Sloterdijk sugere ao postular a existência do a priori da absolvição/promessa. O poder usurpativo desse a priori é associado à poesia e filosofia "poiética" de um Sócrates, Diógenes de Sínope, Cioran, Celan e Nietzsche, para além de Barthes. Típico para todas essas visões sobre o poder libertador da linguagem poética é a sua paradoxalidade: (i) a libertação do poder coercivo acontece dentro do próprio domínio desse poder ("o rasto para o exterior perpassa a própria língua" (Sloterdijk, 2017, p. 276); (ii) a libertação do poder nunca deve e pode tomar uma forma positivada, sob pena de cair novamente num dogmatismo; (iii) se a libertação ceder à tentação de se tornar dogma, tornar-se-á pior do que um qualquer dogma antecedente. Sloterdijk termina a sua conferência ao estabelecer uma associação entre a respiração e a poesia libertadora: a literatura que exerce essa libertação é tão efêmera quanto a inspiração e a expiração, ela não petrifica, nem pode fazê-lo. É individual e não dogmática, embora sirva como inspiração.

A abordagem da temática em Michel Foucault difere das três anteriores porque não apresenta todas as características fundamentais mencionadas. Mas o que torna Foucault importante no âmbito da nossa discussão é ter vinculado, apesar de somente na primeira fase do seu pensamento, nomeadamente em "As Palavras e as Coisas", o surgimento de um novo paradigma do conhecimento ao poder revolucionário da linguagem. Esse surgimento não é, no fundo, um feito humano levado a cabo consciente e intencionalmente, mas uma mudança de paradigma que acontece, embora tenham sido os grandes poetas, como Mallarmé, Roussel, Artaud e filósofos como Nietzsche, que teriam preparado e iniciado essa viragem.10 A meu ver, a forte afinidade que existe entre Foucault e as reflexões heideggerianas sobre a linguagem é evidente. Foucault não se compromete, no entanto, com a visão escatológica que não falta em nenhum dos autores anteriormente referidos. A genealogia de Foucault é aversa à ideia da salvação coletiva.

Os quatro autores aqui sucintamente referidos não são os únicos que defenderam na segunda parte do século XX a importância de encontrar ou criar uma linguagem nova, capaz de libertar o homem da sua própria ignorância. Variações interessantes podemos encontrar em Deleuze, Marcuse ou Rorty, entre outros.

 

2.2. A esperança depositada na linguagem – fenômeno passageiro?

Passarei agora à última parte da minha intervenção, onde quero lançar uma tese ainda muito precipitada que talvez se venha a revelar como falsa. Olhando para o discurso filosófico nos últimos vinte anos, parece-me que a reflexão sobre o assunto aqui debatido se esgotou. A dialética entre poder coletivo do discurso habitual e poder revolucionário de uma linguagem poético-filosófica capaz de impulsionar e iniciar uma viragem no nosso modo de estar no mundo desapareceu da agenda de temas filosóficos atuais. Posso obviamente estar enganado. Mas, se não o estiver, levanta-se a questão das razões para a cessação do interesse nesse assunto, já que que, durante mais de 50 anos, essa questão foi considerada de importância crucial para a "salvação" da humanidade.

No início da minha intervenção sustentei que é a reflexão sobre o fazer tecnológico que foi ocupando paulatinamente o lugar da instância "linguagem" e que se tornou o topos principal à volta do qual se questionam os novos desafios societais. Ao invés de se associar o potencial transformador à linguagem, parece ser a coligação entre "imagem" e "tecnologia" que veio a atrair, no novo século, a atenção dos filósofos. Ainda que seja bastante prematuro e daí meramente hipotético estipular essa mudança, penso que há alguns indícios que permitem lançar essa hipótese:

a) Durante a segunda metade do século XX, a revolta contra um mundo caracterizado pela confrontação das duas ideologias na altura dominantes, o capitalismo ocidental e o comunismo do Leste, procurava encontrar soluções que se situavam fora das duas opções hegemônicas, assumindo assim um estatuto que não cabia nas categorias societais existentes. Não admira, nesse sentido, que as revoltas dos anos 1968 do século passado tenham assumido uma posição política extraparlamentar que, em muitos casos, procurava manifestar-se por meio de um discurso diferente que era, simultaneamente, erudito e por vezes até hermético. Seria de esperar que o colapso do comunismo nos países do Leste e a hegemonia quase total do capitalismo tivesse dado, a partir dos anos 1990, ainda mais importância à procura de uma linguagem com potencial transformador. Mas isso não aconteceu. Porque não? Uma hipótese de resposta seria a seguinte: A necessidade da revolta depende, em grau elevado, da identificação comum de um inimigo. Desde o início do novo século, a atenção no domínio total do capitalismo foi desviada para dois fenômenos que foram ganhando o perfil cada vez mais concreto de grandes ameaças da humanidade: o terrorismo e o colapso da natureza. Qual o papel da linguagem no combate dessas duas ameaças? É óbvio que se considera absolutamente fundamental combater o terrorismo ao insistir na necessidade de não abandonar a esperança no poder do diálogo racional baseado no respeito pelo outro e no reconhecimento dos direitos humanos, tanto mais quanto se parte como Habermas do princípio que a atitude discursiva do inimigo se baseia em pressupostos anacrônicos, pré-iluministas e definitivamente ultrapassados11. Pôr em causa o nível elevado da racionalidade discursiva alcançada no último século e insistir na necessidade de procurar formas inéditas de comunicação iria enfraquecer decisivamente a posição do Ocidente. É óbvio que esse argumento não teria convencido Derrida e outros filósofos da linguagem revolucionária, mas penso que ganhou bastante força ao longo das primeiras décadas do século XXI.

b) Uma segunda resposta à questão colocada difere bastante da primeira. Também ela é hipotética (Flusser usa explicitamente a palavra "Hypothese" (Flusser, 1992, p. 7). Associo-a a um texto de Vilém Flusser, intitulado "Crise da linearidade", editado em 1992. Flusser parte do princípio de que o nosso "pensar, sentir, percepcionar, desejar e agir" (Ibid.) é, em grau elevado, formado por códigos que são como que filtros através dos quais configuramos o nosso mundo. Essa tese não constitui nenhuma novidade, mas subjaz a praticamente todas as filosofias continentais. Nova é, no entanto, a concepção flusseriana sobre a sequência histórica do desenvolvimento de diferentes tipos de códigos que levaram, no decurso da evolução humana, a mudanças paradigmáticas e radicais no modo como se vê o mundo. Flusser parte do princípio de que o ser humano começou a ver e entender o mundo com base em imagens, ou seja, com base na tridimensionalidade que subjaz à nossa perceção sensorial. Essa forma de codificar a nossa experiência teria sido substituída pelo código "alfanumérico", que reduz a informação tridimensional, por meio do discurso oral e mais tarde pela escrita linear, a uma bidimensionalidade. Essa redução não significa uma perda, pelo contrário, introduz uma crítica da imaginação, ou seja, uma organização lógica do material sensorial. Simultaneamente ao desenvolvimento do código linguístico, ter-se-ia desenvolvido o código numérico, um código que opera na base unidimensional de pontos e que apenas conseguiu livrar-se do predomínio do código linguístico em finais do século XX. Esse código permite uma decomposição do mundo em pontos ou grãos, que servem como matéria bruta para compor o mundo de novo. Segundo Flusser, esse método reconheceu os seus primeiros grandes êxitos nas áreas da fotografia e do filme, mas com a invenção e o aperfeiçoamento da computação ele instalou-se como código predominante que está em fases de substituir cada vez mais o código linear linguístico. O novo código implica, segundo Flusser, uma transformação radical do nosso estar-no-mundo. Em vez de organizar e estruturar a realidade segundo padrões lógicos tradicionais, o novo código fomenta uma visão que vê a realidade como uma rede gigantesca de relações compostas a partir da base material dos pontos e onde cada sujeito é apenas uma parte infinitesimal dessa rede. Por outro lado, devido à capacidade do sujeito de definir, programar e criar partes consideráveis da rede, aumenta consideravelmente o poder do ser humano de criar o seu próprio mundo. Só muito recentemente, na virada do último século, o método da programação se uniu cada vez mais sistematicamente ao fazer tecnológico, ou seja, à criação tecnológica dos componentes e das configurações complexas do nosso mundo, abrangendo este fazer – citando Flusser – "a produção de objetos artificiais, de matéria artificial, de seres vivos artificiais, de inteligências artificiais, de identidades artificiais, de culturas artificiais" (Ibid.: 33). Sob essas condições, a procura por uma linguagem revolucionária perde o caráter que teve no século XX. Segundo Flusser, a nova linguagem já se formou, ela é um fato, mas não corresponde àquilo que autores como Heidegger, Barthes, Derrida e outros tinham em mente. Ela corresponde antes a um novo tipo da Einbildungskraft kantiana, porque reúne imaginação espiritual e poder de imprimir essa imaginação tecnologicamente na realidade. O novo código, unidimensional, programador e digital, traz consigo tanto vantagens como desvantagens. Subverte e neutraliza os grandes eixos de orientação cognitiva e moral e abre espaço para uma reconfiguração ontológica e deontológica do mundo. Consequentemente, a velha questão da liberdade focada no sentido da "Freiheit wovon?", i.e. da liberdade enquanto libertação de coerções, perderia a sua força e seria substituída pela questão da "liberdade para" ("Freiheit wofür?") (Ibid.: 34), i.e. a liberdade demiúrgica do homem enquanto homo faber. Flusser não quer que se entenda a sua visão nem como utopia nem como distopia. Segundo ele, ela já se tornou realidade que deve ser enfrentada como desafio.

É particularmente interessante se compararmos a visão flusseriana com alguns aspectos que surgem na obra mais recente de Sloterdijk. Este, que em 1988 ainda tinha retomado a questão do poder revolucionário da linguagem, sustentará 13 anos mais tarde, em 2001, uma posição que se parece muito, pelo menos na sua formulação conclusiva, com a visão flusseriana: segundo Sloterdijk, a técnica enquanto tecnologia faz com que a linguagem discursiva perca a sua função de ser o meio primordial para constituir a "casa do ser". Sem mencionar Flusser explicitamente, mas tomando apenas e unicamente Heidegger como pano de fundo, Sloterdijk contrapõe de certa maneira Heidegger e Flusser, ainda que seja um Heidegger insuficientemente interpretado e um Flusser apenas implicitamente presente. A linguagem, assim advoga Sloterdijk, está perdendo em um ritmo acelerado a sua habilidade e aptidão de nos aproximar o mundo e de servir como ferramenta capaz de articular o inquietante, das Unheimliche, habilidade esta que estaria no centro das reflexões heideggerianas. A meu ver, questionável e redutora é a interpretação sloterdijkiana de atribuir à linguagem apropriada, pensada por Heidegger, a função de familiarizar o infamiliar. Com base nessa interpretação, Sloterdijk sustenta que a linguagem discursiva é cada vez menos capaz de desempenhar essa sua função, sendo uma das razões principais do seu fracasso a incapacidade de transmitir e acompanhar os avanços tecnológicos. O "fazer textos" aconteceria hoje por meio de vias que dispensam "transmissões e metáforas" (Sloterdijk, 2001, p. 210). A cultura tecnológica, assim Sloterdijk, produziu um novo código que rompe com o antigo da escrita e da fala. Nos tempos do novo código, denominado por Sloterdijk de "código digital", falar e escrever parecem atávicos (Ibid.: 212). Acreditando na leitura que Marc Jongen, discípulo de Sloterdijk e defensor de um populismo político à maneira da nova direita na Alemanha, faz da obra de Sloterdijk, o poder das imagens e o poder do fazer tecnológico estão em vias de adquirir o estatuto de meio primordial do desenvolvimento humano, resultando na construção de esferas enquanto híper-imagens.12

c) Uma terceira tendência que penso poder estar na origem do desaparecimento do problema da busca pela linguagem revolucionária e libertadora está associada ao surgimento de um debate que também entrou no discurso filosófico apenas muito recentemente. Essa tendência está relacionada com a ameaça da destruição da natureza. Não admira que a filosofia tenha começado, já na segunda metade do século XX, a considerar seriamente o perigo da destruição do nosso planeta e alertar para a responsabilidade do ser humano em evitar uma catástrofe natural. Mas o enquadramento teórico do problema complexo aqui em questão sofreu, pelo menos em alguns autores hoje em dia emblemáticos, um desenvolvimento surpreendente. O que já se anunciava no hiato entre, por exemplo, a obra de Hans Jonas e a de Michel Serres, e que pode ser denominado como equiparação da natureza ao estatuto de um agente racional que possui direitos, tomou um rumo novo após o acolhimento da discussão sobre a legitimidade de usar o conceito de Antropoceno na própria filosofia, que se deu, após a criação do termo em 2000, nos últimos cinco ou dez anos. Filósofos como Bruno Latour, Jean-Luc Nancy, Donna Haraway e mais uma vez Sloterdijk começaram a sugerir uma equiparação mais completa da natureza ao estatuto da espécie racional do homem. A ideia de que se deve abandonar a distinção entre esfera material e esfera semiótica, ou a ideia de que a natureza nos percepciona tal como nós a percepcionamos, baseia-se no pressuposto de que não há uma diferença específica e abismal entre o discurso linguístico humano e o "discurso" da natureza. Como demonstram inúmeras publicações recentes, essa ideia propaga-se não só na arte e filosofia, como também nas engenharias, nas tecnociências, na economia e na política. Num livro recentemente publicado sob o título Art in the Anthropocene (A arte no Antropoceno), os autores Fabien Giroud e Ida Soulart constatam:

Raciocinar, para pragmatistas como Charles Peirce, Wilfrid Sellars ou Robert Brandom, não é somente a atividade discursiva de um sujeito sobre o mundo, mas antes um empreendimento transformador que abrange simultaneamente sujeito e mundo. Contrariamente a todas aquelas simplificações grosseiras que entendem a racionalidade como coerção unilateral, o raciocinar deveria ser entendido como uma relação verdadeiramente dinâmica e moldável entre o que nós fazemos com conceitos e o que os conceitos fazem, em contrapartida, connosco13 (Giraud e Soulard, 2015, p. 168).

A ideia da racionalização da natureza e da naturalização do homem é certamente polêmica, não só porque reúne motivos a princípio bastante díspares (a preservação da natureza, o rebaixamento do estatuto do homem ao "mero" ser animal). No âmbito do problema aqui debatido, parece-me que a ideia da linguagem como poder revolucionário e libertador não desapareceu inteiramente, mas, tal como nas tendências anteriormente referidas, adquiriu um sentido totalmente diferente do dos debates travados no século XX: segundo a nova forma de pensar, a linguagem nova e transformadora articular-se-ia através de um discurso semiótico-material da natureza, onde o homem toma parte na conversa entre a totalidade dos entes sem ter um estatuto excepcional. Por outro lado, enfatiza-se o papel da semiótica do fazer, incluindo nessa categoria o fazer da natureza e o fazer tecnológico do homem. Essa linguagem pouco ou nada tem a ver com as reflexões sobre a importância da fala revolucionária de Heidegger, Derrida ou Barthes. No entanto, também seria falso afirmar que não há aqui legado nenhum.

É obviamente difícil e muito prematuro tirar destas breves reflexões uma conclusão simples, que servisse como mensagem a transmitir ou como "moral da história". No entanto, penso que é um tema que merece uma atenção redobrada, sendo esse o motivo que me levou a expor minha análise.

 

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Endereço para correspondência
Bernhard Sylla
E-mail: bernhard@ilch.uminho.pt

 

 

* Universidade do Minho / Portugal.
1 Em mais do que uma passagem, Heidegger dá a entender ou diz explicitamente que só e somente a linguagem nos pode salvar: EP 41, Hw 286, VA 38s., cf. também Sylla (2009, p. 279).
2 Cf. também a posterior explicação dessa passagem em Sem 88: "Esta passagem do meu texto indica a possibilidade da transformação da linguagem metafísica em linguagem não metafísica, sem que fosse necessário alterar expressões."
3 O próprio Heidegger explica essa estratégia em UzS 200 e em Sem 85.
4 Cf., a título de exemplo, UzS 30, 32, 213, VA 172, 178, BzP 244, mas é fácil encontrar inúmeros outros exemplos.
5 Cf. Sylla (2009: 351s.).
6 "Mais la langue […] n'est ni réactionnaire, ni progressiste; elle est tout simplement: fasciste; car le fascisme, ce n'est pas d'empêcher de dire, c'est d'obliger à dire" (Barthes, 1978, p. 14); "Mas a língua não é nem reacionária nem progressista; ela é pura e simplesmente fascista; porque o fascismo não consiste em impedir de dizer, mas em obrigar a dizer." (Barthes, 1997, p. 16).
7 Cf. dois estudos do autor sobre Barthes: Sylla (2011) e Sylla (2015).
8 Cf. Derrida (1972), trad. port. Derrida [s.d.]. Cito a passagem que me parece elucidar nitidamente a presença da aporia do dizer do indizível, sempre conotada com a situação política e filosófica atual da França; as primeiras duas tentativas de habitar "o fora" da linguagem são condenadas ao fracasso, visto que não conseguem, definitivamente, escapar ao domínio do sistema (da langue); a terceira solução nietzschiana revela-se como solução mística: "Um abalo radical só pode provir de um certo fora. […] Mas a «lógica» de toda a relação com o fora é muito complexa e surpreendente. A força e a eficácia do sistema, precisamente, transformam regularmente as transgressões em «falsas saídas». Tendo em conta estes efeitos do sistema, não resta mais, do dentro onde «nós somos», do que a escolha entre duas estratégias: 1. Tentar a saída e a desconstrução sem mudar de terreno, repetindo o implícito dos conceitos fundadores e da problemática original, utilizando contra o edifício os instrumentos e as pedras disponíveis na casa, o mesmo é dizer, também, na língua. O risco é aqui o de confirmar, de consolidar ou de sup(r)erar continuamente numa profundidade sempre mais segura aquilo mesmo que se pretende destruir. A explicitação contínua em direcção à abertura corre o risco de se afundar no autismo de clausura; 2. Decidir mudar de terreno, de maneira descontínua e irruptiva, instalando-se brutalmente fora e afirmando a ruptura e a diferença absolutas. Sem falar de todas as outras formas de perspectivas ilusórias nas quais se pode deixar prender semelhante deslocamento, habitando mais ingenuamente, mais estreitamente do que nunca, o dentro do qual se declara desertar, a simples prática da língua reinstala continuamente o «novo» terreno sobre o solo mais antigo" (Derrida [s.a.]: 167s.).
9 Esse capítulo, intitulado no original "Das Weltversprechen und die Weltliteratur", foi traduzido recentemente para o português: cf. Sloterdijk (2017).
10 Cf. Foucault (2002, p. 340-7; p. 416-21).
11 Cf. a entrevista de Giovanna Borradori a Jürgen Habermas, in Borradori (2004: 67ss.).
12 "The post-logocratic philosopher, who must continue to make use of language nolens volens, assuming he wishes to avoid permanent literal self-contradiction, finds himself condemned to a permanent performative self-contradiction. He or she must find a way to use the means of language to go beyond it. And as the examples in Sloterdijk's thought and writings demonstrate, the sphere he or she then arrives at assume the nature of images – or as we prefer to say – hyperimages" (Jongen, 2011, p. 208).
13 "Reasoning, for pragmatists such as Charles Pierce, Wilfrid Sellars, or Robert Brandom, is not merely the discursive activity of a subject about the world, but a transformative engagement of this subject with the world. Far from any ruthless simplification that considers rationality as unilateral coercion, reasoning should be understood as a truly dynamic and plastic relation between what we do with concepts and what concepts do to us in return" (Giraud e Soulard, 2015, p. 168).

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