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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.21 no.1 São Paulo jan./jun. 2019
ARTIGOS DE FLUXO CONTÍNUO
Considerações sobre um modelo de satisfação relacional na teoria winnicottiana
Considerations of a Relational Satisfaction Model in Donald Winnicott's Theory
Stephanie Brum*
PUC-Rio
RESUMO
O presente artigo se propõe ao estudo do termo satisfação a partir das considerações apresentadas pela obra de Winnicott. Ao nos dedicarmos à temática, percebemos que, embora a satisfação se encontre atrelada à ideia de uma pulsionalidade, tal qual é trabalhado pela psicanálise freudiana, não se resume apenas a esta. Dessa forma, almejamos desenvolver as linhas para pensarmos em uma satisfação que possa se dar para além da economia psíquica, abrangendo todo um panorama ao qual nos referiremos como relacional. Para tal, exploraremos o conceito de agressividade primária apresentado pelo texto winnicottiano, a fim de delimitar o que, de fato, poderíamos localizar como uma experiência de satisfação no seio da própria relação. Em seguida, promoveremos uma distinção entre: 1) agressividade e agressão e 2) sexualidade e potencial motor. Por fim, trabalharemos a ideia de uma satisfação própria ao encontro imerso na mutualidade.
Palavras-chave: satisfação; relação; agressividade; sexualidade; agressão.
ABSTRACT
The present article want to study the term satisfaction based on the considerations presented by Winnicott's writings. As we focus on this theme we realize that, although satisfaction is tied to the instincts as it is worked by a freudian psychoanalysis, it is not linked just with that. In this way, we will think in another perspective beyond the psychic economy. For that we will start exploring the concept of primary aggressiveness looking for delimitation of the concept of a satisfaction experience. Then we will promote a distinction between: 1) aggressiveness and aggression and, 2) sexuality and motor potential. In the end, we will work on the idea of the satisfaction in the encounter immersed in mutuality.
Keywords: satisfaction; relation; aggressiveness; sexuality; aggression.
1. Introdução
O termo satisfação possui grande relevância na teoria psicanalítica, adquirindo significações ímpares em pontos distintos desse vasto campo de estudo e prática clínica. Dentro da multiplicidade de olhares e proposições, nos voltaremos para a obra winnicottiana com o objetivo de promover uma ampliação do panorama sobre a temática. Enquanto na psicanálise freudiana a satisfação se encontra intimamente vinculada à questão do prazer como movimento de descarga de um excesso pulsional1, em Winnicott nos deparamos com apontamentos que nos permitem propor um estudo a partir de uma outra égide. Isso se deve à ênfase colocada sobre uma vertente relacional da própria constituição psíquica, a qual nos leva a considerar que experiências satisfatórias podem se dar mesmo que não vinculadas propriamente a um movimento econômico do psiquismo. Tal ponto não apenas nos afasta da ideia de uma satisfação puramente instintual como também destaca a necessidade de que esta se dê no seio de uma relação suficientemente boa com o outro e a realidade.
Ao realizarmos o presente estudo seguindo as linhas traçadas por Winnicott, devemos atentar para o fato de que, embora a satisfação na obra do autor se encontre atrelada à ideia de uma satisfação instintual2, tal como é trabalhada na psicanálise freudiana, não se resume apenas a esta. Analisando esse ponto superficialmente, poderíamos interrogar se tal distinção, que pode ser tida como sutil, de fato acarreta mudanças consideráveis em nossa problemática. Sobre isso, colocamos que é por meio de uma perspectiva distinta que se torna possível adentrar em um panorama ainda inexplorado em sua profundidade e complexidade no que tange à própria constituição do indivíduo e processos a ela inerentes, tanto na saúde quanto em patologias. Da mesma forma, a escolha pelo estudo da satisfação a partir de uma perspectiva relacional implica tomar esse arcabouço teórico não apenas como meio pelo qual se dará o mapeamento do próprio desenvolvimento emocional, mas a forma como este se dará. É na importância particular colocada no modo e não apenas nos processos em si que Winnicott localiza a diferença entre saúde e doença. A ênfase concedida pelo autor à noção de experiência vai ao encontro de nossas considerações.
Ao longo da teoria winnicottiana, a ideia de experiência surge em diversos momentos, pressupondo, principalmente, a existência de um self já distinto do mundo à sua volta. De modo geral, consideramos que a experiência, para Winnicott, seria a capacidade de vivenciar algo de si no encontro com o outro. Ou seja, poder encontrar, de certa forma, a si mesmo em meio à realidade compartilhada (Abram, 1996/2000; Winnicott, 1945/2000; Winnicott, 1953/1975). No entanto, como pensar em uma experiência nos primórdios da vida se, nesse ponto, não contaríamos ainda com um Eu desenvolvido? Para responder esse questionamento, devemos nos remeter à relação inicial entre mãe e bebê, na qual a mãe adquire um lugar de continente para a existência ainda não assegurada do infante, nos levando a considerar que, o que é vivenciado nessa relação pode ser experienciado: "A mãe tem o seio e o poder de produzir leite, e a ideia de que ela gostaria de ser atacada por um bebê faminto. Esses dois fenômenos não estabelecem uma relação entre si até que a mãe e o bebê vivam juntos uma experiência" (Winnicott, 1945/2000, p. 227, grifos do autor).
Pautados na consideração de que em um período inicial a mãe atua como um suporte físico e psíquico para seu infante, consideramos a experiência como fruto do encontro desse par inicialmente misturado em uma única figura, sendo vividas, posteriormente, cada qual de maneira independente. Considerando que, apesar da indiferenciação inicial entre mãe-bebê é possível reconhecer um paralelo entre experiência e satisfação já nos primórdios da vida, somos levados a dar início ao desenvolvimento de nossa problemática.
2. A satisfação a partir de uma perspectiva relacional
Tomaremos como ponto de partida a exploração do conceito de satisfação na agressividade primária. Winnicott (1950-55/2000) propõe a existência de uma potencialidade particular a cada indivíduo que se encontraria presente antes mesmo do nascimento. Desse modo, o algo que é próprio àquele bebê em particular recebe uma importância vital nos processos inerentes ao desenvolvimento emocional que culminarão na aquisição de um sentimento de existência e, posteriormente, na constituição de uma identidade própria que tornará possível para o indivíduo seu agir no mundo. Logo, devemos ter em mente que o próprio desenvolvimento emocional não se deve apenas à potencialidade do bebê humano que entra em contato com o ambiente antes mesmo de ser capaz de reconhecer sua existência, mas, sobretudo, à disponibilidade e prontidão do meio em reconhecer o movimento único daquele infante e a ele responder de maneira particular. Em outras palavras, o potencial próprio do qual todo ser humano seria dotado tem de ser reconhecido (Câmara et al., 2014) e receber um lugar para que possa culminar no surgimento de um indivíduo; indivíduo este que, para Winnicott, não está dado desde o início.
No texto winnicottiano, nos deparamos com uma mudança de paradigma importante com relação à psicanálise clássica. Winnicott não restringe a etiologia dos distúrbios psíquicos à ideia de conflitos pulsionais intrapsíquicos; ao invés disso, considera também a influência do ambiente no cuidado e na relação com a criança (Loparic, 2005). Vale destacar que as mudanças propostas pelo autor da escola inglesa não renegam toda construção teórica proposta por Freud, mas se apresentam como uma ampliação do panorama psicanalítico. Loparic (2005) considera que: "É fácil mostrar que, de fato, Winnicott também introduziu um novo modelo ontológico do objeto de estudo da psicanálise, centrado no conceito de tendência para a integração, para o relacionamento com pessoas e coisas e para a parceria psicossomática" (Loparic, 2005, p. 314 – grifos do autor). No que tange o presente artigo, observamos que essa mudança na própria etiologia das formas de adoecimento psíquico nos põe diante de uma complexificação da experiência de satisfação. Ao seguir essa linha, nos deparamos com o surgimento de uma satisfação na própria agressividade primária que se mostra fundamental para o desenvolvimento emocional e que, todavia, não se encontra diretamente vinculada à sexualidade. Para que possamos explorar tal problemática, traçaremos duas importantes distinções: 1) entre sexualidade e potencial motor; e 2) entre agressividade e agressão.
3. Delimitando o conceito de agressividade em Winnicott
Devemos reconhecer, com base em tudo o que vimos até aqui, que a existência, o ser, não é algo dado desde sempre. É o resultado de uma série de processos e relações. Uma das principais problemáticas trabalhadas por Winnicott trata da jornada de uma certa potencialidade de ser até sua constituição enquanto indivíduo, capaz de se circunscrever em seu próprio corpo, ter a noção de ser uma pessoa única e integral e se localizar no tempo e no espaço (Winnicott, 1945/2000). Podemos afirmar que tudo isso se inicia de forma natural através de movimentos não intencionais que o bebê realiza. Tal capacidade motora garante a relação inicial com um outro que, da perspectiva do bebê, lhe é indistinto.
Nesse sentido, podemos ser assertivos ao dizer que, na concepção de Winnicott, o indivíduo não é uma tábula rasa sobre a qual se inscreve uma história a ele imposta, pelo contrário, em todo vir a ser há algo ao mesmo tempo inato e único a partir do qual o ambiente reage de forma particular (Winnicott, 1950-55/2000). Tal entendimento permite pensar o indivíduo enquanto fruto do encontro de algo que lhe é próprio com o mundo a sua volta, nos levando a considerar que a expressão de uma singularidade, nos primórdios da existência, se dá pelas vias da agressividade primária.
Reconhecemos a estranheza que tal afirmativa pode desencadear, parecendo uma consideração radical e controversa caso tomemos o conceito de agressividade como uma ação destrutiva, hostil, direcionada intencionalmente a um objeto. Contudo, a definição winnicottiana de agressividade primária se distingue expressamente dessa concepção. A agressividade primária se exprime pelas vias da motilidade, que se caracteriza, nos primórdios da vida, como um movimento não intencional capaz de provocar uma resposta particular no cuidador (Winnicott, 1950-55/2000). É por meio da casualidade própria da expressão agressiva em seus primórdios que esse vir a ser esbarra nos limites a ele impostos como condição do próprio cuidado3. Visto isso, consideramos que os escritos de Winnicott abrem a possibilidade de pensarmos a agressividade primária como dotada de um papel fundamental no que diz respeito ao reconhecimento e à construção do mundo.
Como no texto winnicottiano a agressividade primária não é sinônimo direto de satisfação pulsional, embora possa também ser pensada como uma forma de expressão de impulsos instintuais, consideramos que, a fim de melhor trabalharmos a presente temática, uma distinção entre a sexualidade e um potencial motor próprio ao sujeito se mostra necessária. Essa questão se encontra no cerne da distância teórica de Winnicott em relação à psicanálise clássica, nos permitindo afirmar que no primeiro ocorre um descentramento com relação à sexualidade e ao Édipo, os quais deixam de ser concebidos como a base da subjetividade (Lejarraga, 2015).
Nesse sentido, reconhecemos que a psicanálise freudiana se ergue sobre o que podemos identificar como uma matriz sexual, graças à centralidade da problemática edípica (Loparic, 2001). Tal ponto nos leva a relembrar que a noção de sexualidade foi reconhecidamente ampliada pela psicanálise clássica, não se restringindo apenas à genitalidade propriamente dita, mas a todo um histórico de investimento e desenvolvimento pré-genitais que poderiam surgir como pontos de fixação ou regressão do aparelho psíquico. Contudo, Loparic (2006) afirma que as pesquisas de Winnicott colocam o paradigma freudiano em cheque graças a um acúmulo de problemas clínicos que não poderiam ser compreendidos teoricamente ou tratados clinicamente a partir do até então vigente paradigma edipiano, o qual teria por base relações interpessoais e triangulares. Loparic (2005) afirma que o modelo de sexualidade proposto por Freud só poderia estar presente em um período relativamente tardio, no qual os indivíduos já são capazes de se distinguir do mundo à sua volta, reconhecendo a existência de terceiros.
Seguindo as teorizações de Winnicott, nos deparamos, inicialmente, com relações duais e não triangulares. A própria dualidade dessas relações se encontra em cheque, uma vez que, no início da vida, o bebê e a mãe se encontram imersos na mutualidade. Consideramos, então, que a atenção lançada por Winnicott sobre certos problemas clínicos, tais como a tendência antissocial, o paciente falso self, borderline e casos de psicose infantil, por exemplo, abre espaço para a busca de um novo paradigma relacional4. O termo "relacional" expressa aqui o movimento de retorno à influência do ambiente nos primórdios da vida e na própria constituição subjetiva bem como o modo como se dá a relação do indivíduo com seu meio, mesmo que indiferenciada, não restringindo o foco da análise aos fatores internos. Esse novo paradigma dedica atenção não apenas à neurose, ao Édipo e às patologias a eles referidas, mas também ao desenvolvimento emocional primitivo, aos seus processos inerentes e às falhas que podem ocorrer nesse campo.
Apesar de Winnicott concordar com a postulação da sexualidade infantil conforme afirmada por Freud (1905/2016), esta se desdobra em paralelo com outros processos relacionados ao desenvolvimento emocional primitivo e que também devem ser levados em conta e tratados em análise. Nesse sentido, o ponto que parece se sobressair para Winnicott é o fato de o bebê não dispor de um sentimento de integração, realização e personalização desde o princípio, o que acarreta o não reconhecimento das forças instintuais como próprias – e não sua inexistência. Assim, concordamos com a afirmação de Lejarraga (2015, p. 34), segundo a qual "As urgências instintivas, desse modo, só podem se tornar significativas quando o bebê passa a ter existência psíquica, porque começou a desenvolver o self, a unidade psicossomática e a separação entre eu e não-eu". Em outras palavras, é através de um ambiente disponível e bem adaptado às necessidades do bebê que este poderá constituir um self a partir da experiência corporal e da integração dessa esfera em uma unidade psicossomática. Nesse ponto, vale destacar que o self é um conceito chave na obra winnicottiana.
Sobre isso, Abram (1996/2000) destaca que o self se apresenta como algo emblemático na obra de Winnicott (1945/2000; 1952/2000; 1956/2000). Fica clara a importância conferida ao self na expressão de aspectos da personalidade do indivíduo, aos quais classificamos como Eu, permitindo que a distinção entre Eu e não-Eu seja alcançada. Vale ressaltar também que é a expressão do verdadeiro self e o reconhecimento deste que permitem que os eventos sejam vividos pelo indivíduo como experiências dotadas de um colorido próprio e particular, no qual este pode se reconhecer. Devemos destacar também que, inicialmente, o self é principalmente corporal, visto que é em decorrência de vivências e cuidados experienciados nesse plano que se torna possível o desenvolvimento dos processos inerentes ao desenvolvimento emocional, assim como suas respectivas aquisições. Nesse sentido, reconhecemos a importância do ambiente inicial no texto winnicottiano, assim como toda a sua adaptação e disposição para suprir as necessidades do lactente (Winnicott, 1956/2000).
Retomando, é em decorrência da constituição do self que uma diferenciação entre interno e externo se torna possível, assim como os impulsos instintivos podem ser integrados ao corpo erógeno do lactente. Outro ponto importante a ser ressaltado diz respeito à elaboração de uma unidade psicossomática não se referir ao corpo fisiológico, mas ao corpo vivo e dotado de sensações, as quais serão integradas por meio de um movimento criativo promovido pela elaboração imaginativa que lhe confere sentido (Winnicott, 1988/1990; Figueiredo, 2012; Gomes, 2014). Dito de outro modo, para Winnicott, o surgimento do indivíduo se dá em decorrência da constituição e elaboração de um corpo sensorial. Isso nos leva a considerar possível trabalhar com um potencial motor que não diz respeito à sexualidade infantil propriamente dita, concebendo o desenvolvimento sexual como uma consequência da motilidade5 própria à agressividade primária e não vice-versa.
Aqui, devemos reconhecer a proximidade entre sexualidade infantil e agressividade primária. Isso se deve às raízes da sexualidade, as quais se encontram nas urgências instintuais, gerarem, juntamente com os impulsos relacionados à agressividade, os estados excitados do bebê e sua noção de estar vivo (Lejarraga, 2015). Contudo, mesmo diante de tal paralelismo, não se trata necessariamente de algo unitário. Winnicott (1988/1990) sustenta a importância dos estados de excitação no direcionamento do sujeito à descarga e à satisfação. Contudo, esse potencial motor adquire em sua obra uma função muito mais ampliada e um papel de destaque no desenvolvimento emocional do indivíduo. Para o autor, a motilidade própria à agressividade primária não é derivada apenas dos estados excitados, se configurando como a expressão ímpar e casual desse recém-nascido que ainda "não é", além de ser a primeira forma de contato com um mundo com o qual ele ainda não é capaz de se distinguir.
Em termos bem grosseiros direi que essa parte da motilidade precisa de algo para empurrar, caso contrário permanecerá sem experiências e constituirá uma ameaça para o bem estar. Na saúde, porém, por definição, o indivíduo sente o prazer de buscar a oposição adequada (Winnicott, 1950-5/2000, p. 298, grifos do autor).
Ao tomarmos o modelo da sexualidade infantil pela via da oralidade, percebemos que, na obra de Winnicott, essa imagem é expressa por meio do encontro casual do infante com o seio6, quase como um esbarrar com o objeto. Um esbarrar que faz com que o bebê se surpreenda com a "descoberta e criação" de algo até então inesperado. Todavia, esse movimento de esbarrar acidentalmente em algo que era, até então, desconhecido só é possível em um meio bem adaptado às necessidades do infante. Em outras palavras, um ambiente de cuidado que o ampare tanto física quanto psiquicamente. Devido a esse espaço comum no qual se encontra a mistura dual mãe-bebê, Winnicott afirma que o bebê não existe7. Sua não existência se deve justamente à impossibilidade inicial de constituição de um self próprio.
A não consolidação inicial de um self no infante assim como a passagem pelos processos de integração, personalização e realização (Winnicott, 1945/2000) colocam a presença da figura materna em um lugar de extrema importância nos estágios iniciais do desenvolvimento. Dessa maneira, o bebê irá até o seio quando faminto, lançando sobre ele sua voracidade. Nesse movimento, podemos identificar a raiz voraz da agressividade primária. Sobre isso, Lejarraga (2015, p. 111) afirma que a "[...] agressividade se encontra no impulso amoroso primitivo, cujo paradigma é a voracidade [...]". Nesse sentido, a voracidade expressaria a união primária entre o amor primitivo e a agressividade. Winnicott aponta que um dos mais importantes exemplos de conjunção entre agressividade e amor se expressa no impulso da criança em morder:
Por fim, integra-se no prazer que acompanha o ato de comer qualquer espécie de alimento. Originalmente, porém é o objeto bom, o corpo materno, que excita o morder e produz a ideia de morder. Assim, o alimento acaba por ser aceito como um símbolo do corpo da mãe [...] (Winnicott, 1964/2012, p. 108).
Devido à adaptação da mãe ao seu bebê, ela oferece o seio ao mesmo tempo em que o infante o busca. Concomitantemente, ao querer ser devorada pela criança faminta, a mãe se oferece quando e onde é buscada. Quando essa experiência ocorre de forma tranquila, ou seja, quando a mãe não recebe a voracidade do infante de forma paranoide, ansiando ser devorada por ele, ocorre a experiência de ilusão.
É a partir do entrelaçamento entre o movimento de devorar o seio, próprio do infante, e o desejo de ser devorada da mãe que a voracidade do bebê é estimulada, permitindo que o movimento agressivo inicial dê origem ao reconhecimento do mundo como algo distinto de si, contribuindo, assim, para a formação e consolidação do seu self. Através desse contato seguro e agradável com o ambiente, o bebê é capaz de vivenciar a realidade e, para além disso, é capaz de experienciar algo de "si mesmo" no contato com ela.
A aceitação, pela mãe, da voracidade do bebê propicia um terreno fértil para que ele possa expressar os impulsos próprios de seu self em formação. Entretanto, não podemos afirmar que tal voracidade tenha uma intencionalidade destrutiva, visto que, nesse momento, o bebê ainda desconhece tanto sua existência quanto a existência materna. Verificamos, como consequência, uma junção da motilidade enquanto expressão da agressividade primária a esse impulso amoroso primário. Da mesma maneira, podemos supor que a motilidade encontra uma forma de expressão como potencial erótico (Winnicott, 1950-5/2000).
Esse ponto se enuncia como a fonte de uma maior delimitação da nossa discussão, permitindo distinguir mais precisamente a sexualidade do potencial motor na agressividade primária. Teríamos duas fontes principais pelas quais a agressividade primária poderia ser experienciada: 1) a motilidade propriamente dita, que necessita da oposição como contenção da força vital do infante que lhe garanta uma continência e limitação diante de sua não integração: "Se não existisse oposição, a motilidade do bebê se diluiria no vácuo, impedindo- o de tomar consciência de um mundo externo real" (Lejarraga, 2015, p. 112); e 2) a motilidade vinculada à sexualidade na busca por satisfação instintual (Winnicott, 1950-5/2000). Até mesmo na destrutividade, posteriormente expressa pela tendência antissocial, percebemos a busca de algo, de uma porção de estabilidade capaz de suportar a tensão gerada pelo comportamento impulsivo (Abram, 1996/2000).
Nesse ponto, levando em consideração a voracidade própria do encontro do bebê com o seio, devemos traçar a distinção entre agressividade primária e a agressão. A agressividade primária em Winnicott é um conceito que consiste na expressão de um potencial vital através da motilidade. Esta, presente já na vida intrauterina, possibilita o encontro do lactente com o ambiente, ainda em um estado de indiferenciação, dando início ao desenvolvimento individual a partir da relação de criação e descoberta do mundo. Já a agressão se refere a um direcionamento ativo de hostilidade em direção a um objeto, além de ser particularmente relacionada, na psicanálise freudiana, a certas considerações sobre a pulsão de morte (Freud, 1930/2010).
Nesse último caso, temos o montante da pulsão destrutiva que é direcionado para fora – entrelaçando-se com a agressividade –, sendo possível também se voltar contra o interior sob a forma de autodestruição (problemática que não se configura como tema do presente texto). No que diz respeito à obra winnicottiana, reconhecemos a agressão como inerente a estágios posteriores do desenvolvimento emocional, nos quais o indivíduo já é capaz de se diferenciar do mundo à sua volta, assim como apresentar ambivalência com relação ao objeto externo. Podemos nos referir à agressão a partir do momento em que o indivíduo se torna capaz de reparar os danos causados ao objeto.
Devido a não integração inicial do lactente, podemos considerar dois estados distintos deste e de sua relação primitiva8 com o mundo: são os chamados estados calmos e excitados, que acarretam uma relação com dois objetos inicialmente distintos, a mãe-ambiente e a mãe-objeto.
[...] mãe-ambiente que Winnicott postulou para os primórdios da vida do bebê - a mãe de um período tranquilo para o bebê, que é o período de não integração, ao passo que a mãe de um período que for mais atribulado - a mãe-objeto - é, a princípio, experienciada pelo bebê como separada e distinta da mãe-ambiente (Abram, 1996/2000, p. 49).
À mãe-objeto é direcionada toda a voracidade e destrutividade potenciais do bebê. Diante da sobrevivência do objeto, se torna possível o reconhecimento deste como algo externo. Dito de outro modo, é a sobrevivência do objeto aos ataques vorazes do bebê que permite o seu reconhecimento enquanto real, no sentido de pertencer a uma realidade compartilhada, além de, aos poucos, situá-lo fora do controle onipotente do infante. Na passagem do estado de dependência absoluta para a dependência relativa se dá a transformação de uma agressividade casual a uma agressividade intencional e a destrutividade, cujas raízes se encontram fixadas no amor primário, desemboca na tentativa de reparação e na capacidade de concernimento (Winnicott, 1969/1975; Gomes, 2014).
Nesse novo estágio do desenvolvimento, o infante já é capaz de se reconhecer na relação com um mundo do qual é capaz de se diferenciar, como ser pertencente a uma realidade e apropriado de seu próprio corpo9. Com isso, se torna possível conceber também que a mãe-objeto, alvo dos ataques potencialmente destrutivos, é a mesma mãe-ambiente que o conforta e acalenta. Com a entrada do infante em um estado de ambivalência e com o reconhecimento de que o objeto atacado é o mesmo que também é amado, ocorrem tentativas de reparação dos danos causados e o surgimento do sentimento de culpa10.
Em tal circunstância, se a mãe for suficientemente boa e, devido à dedicação promovida pelo estado de preocupação materna primária, for capaz de sobreviver aos ataques do infante, recebendo de bom grado suas tentativas de reparação, se estabelece o círculo benigno. Em outras palavras, primeiramente a capacidade de concernimento – que se refere à entrada do indivíduo no estado de ambivalência no qual percebe que o mesmo objeto amado é também alvo de sua destrutividade – é instaurada, trazendo à tona a culpa e a capacidade de se preocupar com o objeto, sendo assim uma conquista adquirida a partir da distinção entre o infante e o mundo (Loparic, 2006).
Em decorrência do estado de concernimento, estabelece-se o círculo benigno, no qual se realizam os movimentos de destruição e reparação do objeto. Vale destacar que "[...] a não-sobrevivência da mãe-objeto ou fracasso da mãe-ambiente em propiciar uma oportunidade confiável para a reparação leva a perda da capacidade de envolvimento e a sua substituição por angústias cruas e por defesas cruas, tais como a clivagem ou desintegração"(Winnicott, 1963/2007, p. 117). Já a possibilidade de reparar os danos causados ao objeto amado – graças à sua sobrevivência diante das investidas do infante – permite que o indivíduo em formação se torne capaz de realizar uma expressão mais audaciosa de si, ocorrendo o que Winnicott classifica como uma libertação da vida instintual do bebê (Abram, 1996/2000). O estabelecimento da confiança no círculo benigno permite que a criança usufrua da capacidade de envolvimento, assumindo a responsabilidade por seus impulsos instintuais – o que corresponde a um dos elementos fundamentais do brincar e do trabalho. É justamente essa possibilidade de expressar algo que lhe é próprio no mundo, sendo reconhecido e acolhido em sua expressão, o que permite que o infante gradativamente alcance contorno e delimitação para seu próprio self, sendo capaz de se distinguir do mundo à sua volta. Essa possibilidade de encontro, tanto de si quanto de um outro que aos poucos é reconhecido como distinto, faz com que as vivências próprias dos estados primitivos do desenvolvimento sejam experienciadas como satisfatórias.
Esse desenvolvimento implica um ego que começa a ser independente do ego auxiliar da mãe, e pode-se agora dizer que existe um lado de dentro do bebê e, por conseguinte, um lado de fora. O esquema corporal adquiriu existência e rapidamente desenvolve complexidade. De agora em diante, o bebê possui uma vida psicossomática. A realidade psíquica interna que Freud nos ensinou a respeitar converte-se numa coisa real para o bebê, que agora sente que a riqueza pessoal reside dentro do eu. Esta riqueza pessoal desenvolve-se a partir da experiência simultânea amor-ódio, a qual implica a realização de ambivalência, cujo enriquecimento e aprimoramento leva à emergência do envolvimento (Winnicott, 1963/2007, p. 114).
Consideramos, assim, a agressividade primária não apenas como uma forma de expressão do potencial próprio do infante, mas também como o primeiro movimento capaz de alcançar o reconhecimento dessa potencialidade através do desencadeamento de uma resposta particular às manifestações motoras do indivíduo em formação. É esse direcionamento extremamente precoce e desproposital o qual expressa, desde os primórdios da vida, a potencialidade de existir da qual o indivíduo winnicottiano é dotado.
4. A satisfação própria ao encontro imerso na mutualidade
Após nos dedicarmos a uma maior delimitação do conceito de agressividade em Winnicott, torna-se possível a exploração de sua vertente relacional de forma mais específica e direcionada. Ao nos debruçarmos sobre o tema da agressividade primária, investigamos o papel que ela exerce no movimento simultâneo de encontro, descoberta e criação do mundo, ainda indistinto do indivíduo em formação. Como apontado na seção anterior, podemos trabalhar com duas raízes inerentes à agressividade primária. A primeira refere-se ao potencial motor desvinculado de um instinto sexual e a segunda, à ideia de voracidade, ou seja, a motilidade em conjunto com um instinto sexual. Vale lembrar que a segunda vertente, ao mesmo tempo em que segue as linhas de um desenvolvimento emocional, também se dá pela via da erogenização. Neste trabalho, nos ateremos apenas à primeira raiz da agressividade primária por acreditar que esta nos permite estudar a satisfação em sua vertente relacional.
Seguindo o pensamento winnicottiano, a agressividade primária expressa a abertura do indivíduo a um mundo que ainda lhe é desconhecido nos primórdios da vida, se manifestando como uma força que necessita de oposição (Winnicott, 1950-5/2000; Lejarraga, 2015). Afinal, a resposta a esse potencial próprio do infante – desencadeada pela oposição gerada pelo próprio cuidado – promove uma delimitação inicial do corpo e da própria existência do bebê, que esbarra em algo que ainda lhe é desconhecido em sua univocidade, mas capaz de limitar sua ação corporal. Com o passar do tempo e com a sustentação do bebê por uma mãe suficientemente boa (Winnicott, 1956/2000), as primeiras fagulhas que formarão o fogo primordial e particular da existência passam a emergir. Em decorrência desse movimento de esbarrar em algo que ainda não é reconhecido como externo e que, não obstante, limita, sustenta e acalenta, verifica-se a faceta paradoxal de tal movimento que, ao mesmo tempo em que cria, descobre o mundo à sua volta.
Num dos padrões o ambiente é constantemente descoberto e redescoberto a partir da motilidade. Aqui, cada experiência no contexto do narcisismo primário enfatiza o fato de que o indivíduo está se desenvolvendo no centro, e o contato com o ambiente é uma experiência do indivíduo (Winnicott, 1950-5/2000, p. 297, grifos do autor).
É a partir dessa oposição, que sustenta, delimita e norteia, que se constitui uma circunscrição primária da personalidade, a qual tornará possível um contato ainda indistinto com a realidade. Verifica-se aí o alcance de uma vertente distinta daquela proposta por Freud no que tange à experiência de satisfação: uma satisfação que não se refere a uma economia pulsional, tampouco se expressa no alívio de tensão que desencadeia o prazer – tal qual para Freud –, mas uma satisfação que é possibilitada por um meio tranquilo e adaptado, que sustenta e responde à movimentação própria do infante.
A manifestação do potencial agressivo faz com que o ambiente perceba e responda a necessidade de cuidado proteção e limite nessa fase inicial na qual o bebê começará a ser capaz de distinguir, ainda que de forma grosseira, os limites de sua própria ação corporal. A partir do movimento de oposição, o infante é capaz de experienciar o primeiro contato com a realidade, ainda imerso juntamente com a mãe na não existência individual, num regime de mutualidade. Vale lembrar que, para Winnicott, a experiência da realidade é uma experiência de encontro não intencional e, nesse sentido, algo satisfatório (Phillips, 1988/2013). Isso nos coloca em um panorama no qual, diante de um meio confiável, o contato com a realidade se torna fonte de satisfação, sendo esta proveniente do desenvolvimento do sentimento de confiabilidade com o meio e não de desprazer em decorrência de frustração ou de uma postura reativa diante de falhas ambientais sofridas. Logo, podemos afirmar que o bebê winnicottiano está aberto ao contato causal com o ambiente à sua volta desde os primórdios de sua existência, não esperando deste apenas "[...] a gratificação instintual de um objeto" (Phillips, 1988/2013, p. 31, grifos nossos). A proximidade com o objeto ainda desconhecido em sua individualidade se inscreve como possibilidade de satisfação pela própria relação. Esta, quando suficientemente boa, seria por si só algo satisfatório, capaz de garantir não apenas o sentimento de existência, mas também de que a vida é real e vale a pena ser vivida.
O leitor pode estar se questionando se a proximidade entre sexualidade e potencial motor não estaria em jogo também no que estamos discutindo agora. Destacamos essa questão enquanto parte importante de nossas discussões, no entanto, responderemos ao perspicaz leitor que apenas a atividade motora não necessariamente desencadeia uma satisfação aos moldes winnicottianos. Em outras palavras, se o lactente expressar seu potencial agressivo na ausência do outro – o qual ainda lhe é desconhecido –, sua ação não encontrará oposição, não desencadeando, por conseguinte, satisfação na experiência.
A sensação de realidade advém principalmente da raiz motora (e sensorial que lhe corresponde), e as experiências eróticas com uma fraca participação do elemento motilidade não fortalecem a sensação de realidade ou de existir. De fato, tais experiências eróticas talvez sejam evitadas justamente por produzir no sujeito uma sensação de não existir [...] (Winnicott, 1950-5/2000, p. 299).
Consideramos, assim, a satisfação inerente à agressividade primária como referida à expressão da potencialidade de vida, a qual se manifesta através da relação que se dá por meio desse encontro tão singular com um outro amalgamado. Ao propormos uma satisfação não vinculada a uma faceta erógena e, sim, proveniente dessa relação precoce, nos referimos não ao encontro em si, mas aos processos que este desencadeia e que tornam possíveis a configuração e consolidação de um sentimento de existência. Dito de outro modo, percebemos que esse direcionamento à vida e a um existir próprio – que emerge da relação e se constitui como fonte de satisfação – é o propulsor da estabilidade e continência, as quais garantem, por sua vez, a gradual consolidação de um sentimento de existência e de um viver criativo. O lugar da satisfação não relacionada com a vertente sexual no desenvolvimento posterior implica no surgimento de uma terceira área da experiência na qual o brincar pode ser experienciado. Além disso, possibilita que, graças a um ambiente suficientemente bom, em um momento posterior, o indivíduo seja capaz de vivenciar o movimento de descarga não como algo angustiante ou desprazeroso, mas como fonte de prazer.
Ao propormos uma satisfação no encontro, não nos referimos a um encontrar o outro – que começa a se formar gradativamente como figura independente no decorrer do desenvolvimento emocional – e, sim, à possibilidade de, ao se deparar com os limites inerentes ao encontro com um mundo ainda desconhecido, seja possível ver-se diante de algo próprio, uma expressão do que chamaremos posteriormente de self. Afinal, como já dizia Winnicott, é "[...] uma alegria estar escondido mas um desastre não ser achado" (Winnicott, 1963/2007, p. 169, grifos do autor). Mesmo nessa citação, na qual o autor se refere a um momento posterior do desenvolvimento, podemos verificar a importância do encontro, que pode ser alcançada no holding do adulto com o infante sem que esteja em jogo uma corrente sexual da experiência. A satisfação alcançada na oposição promovida por uma figura adaptada estaria referida à sensação de existência que nesse momento inicial ainda não foi alcançada de fato, porém começa a emergir – um existir que não apenas se expressa no mundo, mas é reconhecido e acolhido por este. Vale lembrar que, em Winnicott, o existir se refere não apenas às aquisições estruturais próprias de um desenvolvimento emocional; também engloba a capacidade de expressar algo próprio. Desse modo, é diante de uma resposta acolhedora do ambiente que o potencial agressivo continua a se manifestar e se desenvolver criativamente. A percepção de estar inserido em um ambiente confiável capaz de se adaptar a essa expressão tão própria do indivíduo em formação, possibilitando que esta se propague, promove o que podemos identificar como uma experiência de satisfação não sexual.
Outro ponto importante a se notar é o papel fundamental que essa relação ímpar adquire no desenvolvimento subjetivo. De acordo com Winnicott (1988/1990), as matrizes para a constituição de uma unidade psicossomática, fruto da junção entre psique e soma, é possibilitada pela elaboração imaginativa das vivências somáticas na psique.
Começa-se a traçar uma distinção primária da psique através desse modo de se relacionar com um ambiente ainda desconhecido, por meio de um corpo que ainda não é integral ou habitado. A psique, embora seja restrita a um funcionamento corporal, se vê ampliada a todo um conjunto de sensações e elaborações de vivências corporais por sua vinculação com o soma. Sobre isso, Winnicott afirma que "[...] a psique (especificamente dependente do funcionamento cerebral) liga o passado já vivenciado, o presente e a expectativa de futuro uns aos outros, dá sentido ao sentimento do eu, e justifica nossa percepção de que dentro daquele corpo existe um indivíduo" (Winnicott, 1988/1990, p. 46). Visto isso, podemos compreender a afirmação de Fontes (2017), segundo a qual: "O corpo estava não somente na origem do psiquismo como faria parte da constituição do ego. Saía assim do dualismo corpo/mente, tornando caduca essa distinção" (Winnicott, 1988/1990, p. 46).
A partir de tais considerações, podemos depreender o papel da agressividade primária, expressa através da motilidade, na supracitada constituição do indivíduo. Na medida em que ele expressa no ambiente seu potencial motor, necessitando de oposição e cuidado, a mãe – na saúde – lhe direciona toda sua dedicação e disponibilidade, sustentando e apaziguando, limitando e dando contorno ao seu corpo ainda não integrado: "Em circunstâncias favoráveis a pele se torna o limite entre o eu e o não-eu. Dito de outro modo, a psique começa a viver no soma e uma vida psicossomática de um indivíduo se inicia" (Winnicott, 1962/2007, p. 60). Esse processo gera no corpo sensações que possibilitarão o desenvolvimento de um crescente potencial elaborativo, capaz de conferir o sentido que gradativamente promoverá a integração entre essa psique ascendente e o soma aos poucos descoberto.
Nesse processo de localização da psique no corpo, como diria Winnicott, o bebê começa a experimentar movimentos espontâneos e se torna dono das sensações correspondentes a essa etapa inicial da vida. Segundo ele, a princípio trata-se de necessidades corporais, que gradualmente transformam-se em necessidades do ego à medida que da elaboração imaginativa das experiências físicas emerge uma psicologia (Fontes, 2017, p. 66).
Da mesma forma, a ausência de um meio suficientemente bom e adaptado, capaz de promover continência ao existir que emerge da figura inicialmente dispersa e misturada ao ambiente, pode acarretar consequências catastróficas. Afinal, como já foi defendido ao longo do presente texto, o existir, o ser, não é dado desde sempre e, nesse sentido, podemos afirmar que o alvorecer psíquico tem início na casualidade do encontro com um ambiente indistinto – um encontro que, para além de localizar e descobrir o outro, constrói e inscreve o próprio infante. Logo, localizamos nessa relação amalgamada as raízes do nascimento psíquico.
A satisfação, nesse contexto, refere-se à possibilidade de constituição individual a partir da experiência de mutualidade; do encontro com o outro inicialmente indistinto, que reconhece a singularidade do infante, gerando, neste, uma resposta única. Isso garante o suporte e oposição por meio dos quais o indivíduo em potencial pode se deparar com seus próprios limites – físicos e psíquicos – e o reconhecimento do limiar de seu próprio agir no mundo, culminando em uma existência que não apenas está ali, mas que é reconhecida enquanto tal.
5. Considerações finais
Como buscamos apresentar no presente artigo, a obra winnicottiana traz à tona a congruência de uma multiplicidade de temas, contudo podemos assinalar que seu pensamento é marcado pela emergência de um panorama inovador. Tal distinção com relação à corrente de pensamento dominante na psicanálise da época se inscreve no reconhecimento de uma figura que inicialmente ainda não está diferenciada do bebê e é completamente adaptada às suas necessidades. A demarcação de uma não existência inicial do infante – a qual o faz necessitar tanto física quanto psiquicamente de um ambiente a ele adaptado – paradoxalmente nos coloca diante de uma força potencial que lhe é própria e que tornará possível uma relação, ainda inscrita nos moldes da indiferenciação inicial entre mãe-bebê, que permitirá a posterior emergência e desenvolvimento de um indivíduo propriamente dito. Tais considerações nos permitem reconhecer, na obra de Winnicott, uma vida marcada pela mutualidade e pelas relações, o que possibilita traçar as linhas sobre as quais a própria satisfação pode ser estudada. Não mais tendo a pulsionalidade como base, mas reconhecendo a importância da interação do envolvimento e da intimidade na própria constituição e desenvolvimento do indivíduo.
A existência desse par em unidade permite que a mãe seja capaz de garantir que o primeiro contato entre infante e mundo, o qual, inicialmente, dispensa fronteiras, se dê de maneira satisfatória. Levando em conta essas afirmações, consideramos que, para Winnicott, satisfação, antes de tudo, se refere a uma "relação" que é fruto do encontro adaptado de duas figuras indiferenciadas do ponto de vista do bebê. Isso coloca a satisfação como consequência da adaptação materna precoce promovida pelo estado de preocupação materna primária.
Logo, reconhecemos que a ideia de satisfação em Winnicott remete-se à própria relação, mesmo que esta se dê entre objetos inicialmente fundidos. Embora o autor não negue que essa relação seja capaz de promover uma satisfação instintual, como é justamente a partir do suporte de um ambiente bem adaptado ao infante que se dá o desenvolvimento saudável, entendemos que a satisfação, em seus escritos, não se restringe apenas aos momentos de alívio das pressões instintuais. Essa mudança de perspectiva do campo analítico nos distancia do reinado metapsicológico, no qual a pulsão é enunciada como força motriz que impulsiona o sujeito e mobiliza sua dinâmica psíquica. Essa perspectiva nos coloca, em verdade, diante de uma vida que se torna possível em decorrência do encontro de uma potencialidade para existir e de um ambiente bem adaptado, capaz de conferir sustentação, cuidado e contorno ao infante, permitindo a emergência de processos e aquisições que tornam cada indivíduo capaz de uma vida dotada de expressões e experiências únicas, próprias e espontâneas.
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Endereço para correspondência
Stephanie Brum
E-mail: stephanie-brum@hotmail.com
* Psicóloga, formada com honras pela UFRJ. Mestre em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Doutoranda em Psicologia Clínica no Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Nebulosa Marginal. Atende em consultório particular no Rio de Janeiro.
1 Este ponto foi apresentado e desenvolvido em trabalhos anteriores (Ver Brum, 2018; Brum, 2016). A utilização do termo "instinto" - instinct no original em inglês - representa uma grande controvérsia. Afinal, pode desencadear uma aproximação entre homem e animal que Freud descarta com o conceito de pulsão. Em contrapartida, além de Winnicott promover uma certa aproximação entre homem e animal, se referindo a um animal humano, o autor também se utiliza do termo para apontar experiências ditas pulsionais pelo pai da psicanálise. Não entraremos nessa discussão por acreditar que ela não influencia em nossa argumentação. Este ponto foi apresentado e desenvolvido em trabalhos anteriores (Ver Brum, 2018; Brum, 2016).
2 A utilização do termo "instinto" - instinct no original em inglês - representa uma grande controvérsia. Afinal, pode desencadear uma aproximação entre homem e animal que Freud descarta com o conceito de pulsão. Em contrapartida, além de Winnicott promover uma certa aproximação entre homem e animal, se referindo a um animal humano, o autor também se utiliza do termo para apontar experiências ditas pulsionais pelo pai da psicanálise. Não entraremos nessa discussão por acreditar que ela não influencia em nossa argumentação.
3 Quando nos referimos a limites que se dariam em consequência do próprio cuidado, devemos ter em mente que eles não se configuram como fonte de frustração para o bebê. Limite, nesse caso, se refere a algo capaz de conter e localizar o lactente, garantindo a ele a função de continente própria ao surgimento de um sentimento de continuidade de existência.
4 Loparic (2006) nomeia o paradigma instaurado pela pesquisa winnicottiana de "dual" em virtude da importância que a relação mãe-bebê adquire. Preferimos o termo "relacional" pois acreditamos que ao mesmo tempo que faz referência a essa vinculação primordial, o peso é posto justamente sobre o encontro e o que dali pode surgir criativamente.
5 Como foi visto anteriormente, entendemos por motilidade a movimentação não intencional que, ao esbarrar no ambiente, suscita neste uma resposta particular.
6 Não nos referimos aqui à concepção do seio como um objeto externo. Como a separação entre Eu e mundo ainda não foi alcançada, todos os objetos que entram em contato com o bebê ainda são tidos como indiferenciados a este.
7 A célebre frase: "Não existe essa coisa chamada bebê" aponta para a não existência do bebê fora de sua relação com a mãe nos primórdios da vida (Winnicott, 1956/2000).
8 Nos referimos aqui à relação primitiva na tentativa de ressaltar a vertente relacional desse momento inicial, sem com isso desconsiderar a não indiferenciação primária do infante com o mundo.
9 Não é nosso objetivo descrever os pormenores da passagem de uma dependência absoluta a uma dependência relativa.
10 Abram (1996/2000) considera que a culpa inerente ao reconhecimento da ambivalência seria a única culpa verdadeira. Isso se deve ao fato de uma culpa implantada, ou seja, inerente à moralidade estabelecida, ser reconhecida como falsa pelo self em formação.