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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.21 no.spe São Paulo dez. 2019
DOSSIÊ
Entre sintomas e textos literários: a psicanálise e a escolha dos nomes literários
Between symptoms and literature: psychoanalysis and choosing literature names
Eladio C. P. Craia
Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná / E-mail: eladiocraia@hotmail.com
RESUMO
O presente artigo analisa a singularidade epistemológica que implica a utilização, tanto por parte do âmbito médico-psiquiátrico-, quanto, -e especialmente-, da psicanálise, dos nomes próprios de Sade e de Sacher-Masoch, autores oriundos da literatura não da medicina, nas suas tabelas sintomatológicas. Os nomes de Sade e Masoch identificam determinadas condições psíquicas bem conhecidas, assim como ajudam a organizar uma taxonomia do campo das perversões: o sadismo e o masoquismo. O texto aborda dois tópicos conceituais que se derivam desta escolha epistemológica: o primeiro visa determinar quais condições e caraterísticas muito específicas estas sintomatologias devem possuir para que não poderem ser nomeadas, como habitualmente, com os nomes dos médicos que reconhecem e isolam o conjunto sintomático. O segundo tópico analisa certo uso não literário que a psicanálise propõe destes sintomas nomeados por literatos, em particular a afirmação da necessária constituição de um complexo sadomasoquista. Neste sentido, o artigo verifica que, se levadas em consideração as literaturas de Sade e de Masoch, - no que elas expõem sobre tipos psíquicos e sobre produção desejante-, este complexo, esta reunião, não seria possível. A psicanálise reuniria o que a literatura, com tanto cuidado diferenciou. Para levar adiante esta reflexão, o texto acompanha a leitura que Gilles Deleuze propões da obra de Sacher Masoch, no seu texto, Apresentação de Sacher-Masoch: o frio e o cruel.
Palavras-chave: Sade; Sacher-Masoch; Deleuze; sadomasoquismo.
ABSTRACT
This article analyzes the epistemological singularity that implies the use, both by the medical-psychiatric field, and -and especially -by psychoanalysis, of the proper names of Sade and Sacher-Masoch, literature authors no medical authors, in their symptomatological tables. The names of Sade and Masoch identify certain well-known psychic conditions, as well as help to organize a taxonomy of the field of perversions: sadism and masochism. The text discourses two conceptual topics that derive from this epistemological choice: the first aims to determine which very specific conditions and characteristics these symptomatologies must possess so that they cannot be named, as usual, with the names of physicians who recognize and isolate the symptomatic set. The second topic examines a certain non-literary use that psychoanalysis proposes of these literate-named symptoms, the affirmation of the necessary constitution of a sadomasochistic complex. In this sense, the article finds that, if we take into consideration the literatures of Sade and Masoch, -in what they expose about psychic types and desiring production -this complex, this reunion, would not be possible. Psychoanalysis would bring together what literature so carefully differentiated. To further this reflection, the text follows Gilles Deleuze's reading of Sacher Masoch's work in his Sacher-Masoch Presentation: Cold and Cruel.
Keywords: Sade; Sacher-Masoch, Deleuze, sadomasochistic complex
1. Introdução
Sadismo e masoquismo são hoje noções canônicas ou, pelo menos, legitimamente consagradas no léxico não apenas psicanalítico, mas também na área da Psicologia em seu sentido mais amplo e em certa cultura média de nossa época. Isso pode ser verificado no fato de que, de modo largo e vago, os não especialistas compreendem que tipo de fenômenos essas categorias descrevem ou nomeiam. O sadismo sendo entendido como as práticas sexuais que envolvem algum tipo de ato nos quais um indivíduo produz sua excitação sexual a partir do sofrimento psicológico ou físico do parceiro; e o masoquismo assumido como uma prática sexual na qual a satisfação é constituída a partir do sofrimento ou humilhação aos quais o próprio sujeito se submete. Nesse mesmo campo, os especialistas, fiéis à sua missão e evidentemente de modo mais rico e complexo, verticalizam e especializam esses termos, com eles operando conceitual e clinicamente. Em princípio, nada de abstruso ou questionável se verifica nessas definições e ações clínicas. Porém, em virtude das diversas amplitudes de foco, genérica em um caso e especializada em outro, essas definições não deixam aparecer uma questão de fundo: Sade e Sacher-Masoch1, fonte das expressões "sadismo" e "masoquismo", são escritores, literatos, não médicos. Trata-se, portanto, da ordem médica-biológica-psicológica invocando a literatura na hora de determinar e caracterizar certas condições por ela abordadas. Ora, também a psicanálise e apesar dos seus deslocamentos teóricos e clínicos com relação à psiquiatria, sob nenhum aspecto menores, utiliza essas categorias. Observar com mais cuidado algumas caraterísticas e consequências dessa singular articulação é o objetivo deste ensaio.
Nos referimos, em primeira instância, à tensão que esse uso da literatura traz na polida superfície da epistemologia médico-biológica da segunda metade do século XIX e sua vocação para a validação dos saberes. Do mesmo modo, no perímetro do marco categorial da psicanálise - que, de algum modo, visa superar as margens da epistemologia médica clássica, propositalmente ou não -, será necessário problematizar a instauração de uma forma particular de dialética organizada em torno do postulado de uma unidade sadomasoquista de base, sempre presente nos fenômenos sádicos e masoquistas singulares. Nosso ponto é que essa unidade sadomasoquista implica uma reunião categorial cuja sustentabilidade conceitual deve ser ainda verificada na literatura que a nomeia.
O horizonte reflexivo que utilizaremos para desdobrar essa temática é a analítica que Gilles Deleuze propõe em torno dessa relação em sua obra Apresentação de Sacher-Masoch - O frio e o Cruel2. "Para que serve a literatura? Os nomes de Sade e de Masoch, pelo menos, servem para designar duas perversões básicas. São prodigiosos exemplos de eficácia literária" (Deleuze, 2009, p. 17).
2. Sade e Sacher-Masoch: aqueles por todos utilizados
Uma rápida análise da origem das categorias de sadismo e masoquismo, bem como do deslocamento conceitual que Freud opera com elas, nos permitirá organizar a questão de modo mais preciso. Sabemos que o primeiro autor a utilizar essas noções foi o psiquiatra Richard von Krafft-Ebing em seu texto clássico "Psychopathias Sexualis", de 1886. Para Krafft-Ebing, bem como para muitos psiquiatras da época, o objetivo básico do desejo sexual era a procriação. Portanto, qualquer forma de desejo que não a tivesse como fim último seria uma forma de perversão. Evidentemente que sob esse prisma o que aparece como desnaturalizado ou des-normalizado é o desejo sexual na sua relação afirmativa com o prazer e já não mais apenas com a procriação, contrariando, desse modo, a ideia de que o desejo se deriva das estruturas de um ente biológico, o qual precisa, basicamente, procriar para subsistir enquanto espécie3. Sadismo e masoquismo seriam, então, condições patológicas exemplares de perversões sexuais facilmente observáveis dentre as outras existentes; ora, não é suficiente observar o fenômeno patológico e necessário, o mais importante talvez seria nomeá-lo, lhe dar seu nome, aquele que o identifica e sintetiza com algum grau de precisão. Esse ato de nomeação não é, sob hipótese alguma, um mero momento de catalogação de bibliotecário, habitual e mecânico. Pelo contrário. É ele que expõe e determina como sendo uma unidade médica aquele campo de sintomas, de comportamentos, de estados biológicos que se apresentam ao médico. É a partir desse nome que identificamos a doença e sua estrutura etiológica.
Pode acontecer de doentes típicos darem seus nomes a doenças; no mais das vezes, porém, são os médicos (síndrome de Roger, mal de Parkinson...). As condições de tais denominações devem ser analisadas de perto. O médico no inventou a doença. Mas separou sintomas até então associados, agrupou outros antes dissociados, ou seja, constituiu um quadro clínico profundamente original. Por isso a história da medicina é no mínimo dupla. Há uma história das doenças, [...]. Mas, imbricada nessa história, existe uma outra que é a da sintomatologia, e que ora precede, ora segue as transformações da terapêutica ou da doença: batizam-se, desbatizam-se, agrupam-se de outra forma os sintomas. (Deleuze, 2009, p. 17).
Assim, já no âmbito das patologias tipicamente clínicas, de base físico-biológica, é possível afirmar que, estritamente falando, não há doença. Não existe, em termos substanciais, algo como "uma doença". O que se tem é um conjunto de sintomas, expressões do corpo, condições da carne e do organismo que devem ser lidos e interpretados, isto é, significados e ressignificado de modo que narrem o que acontece com o paciente4. Isso parece indicar que os grandes médicos também escutam, leem e escrevem com a linguagem dos sintomas.
Os grandes clínicos são os maiores médicos. Quando um médico dá o seu nome a uma doença, trata-se de um ato ao mesmo tempo linguístico e semiológico dos mais importantes, na medida em que se liga um nome próprio a um conjunto de signos, ou se faz com que um nome próprio conote signos (Deleuze, 2009, p. 18. Itálico no original).
Ora, no caso do sadismo e do masoquismo uma particularidade se evidencia de modo claro: esses nomes derivam de Sade e Sacher-Masoch, escritores, homens de letras que, até onde sabemos, não estiveram preocupados com a psiquiatria institucionalizada a partir do saber biológico, ou seja, não foram médicos identificadores de sintomas. Sem dúvida, o uso dessas figuras derivadas dos nomes de literatos por parte dos psiquiatras e sexólogos do final do século XIX poderia ser visto apenas como o recurso a uma ferramenta prática na ordem da expressão teórica e até da simples escrita, sem maiores consequências para sua própria teoria científica, dado que, em princípio, as ciências nada devem à literatura; seria como nomear forças físicas ou partículas fundamentais da matéria com nomes de deuses gregos. Não passaria de uma descrição apropriada, prática e eficaz de um determinado fenômeno. Por esse motivo, não pareceria ser um problema maior no contexto da escrita específica da ciência médica da época. No entanto, algum fato parece permanecer oculto nessa apropriação, nessa prática de catalogação, nomenclatura e nominação com base na literatura, sob nenhum aspecto habitual para a epistemologia biológico-médica da época.
No seio desse uso médico dos nomes oriundos da escrita literária, é possível apontar a seguinte dificuldade: a singularidade epistêmica do objeto, do fenômeno clínico sob observação. É como se a sua sintomatologia não pudesse ser precisada de modo claro ou, pelo menos, razoavelmente estável para, a partir dela, apontar um diagnóstico e propor uma terapia. Assim, o sádico não pode ser diagnosticado como o é o portador de Parkinson, portanto, não há nome médico que venha a lhe corresponder, que o nomeie com suficiente precisão. Precisamos dos nomes de Sade e de Sacher-Masoch.
Seriam Sade e Masoch, neste sentido, grandes clínicos? É difícil considerar o sadismo e o masoquismo como se considera a lepra, a peste. o mal de Parkinson. A palavra "doença" não convêm aqui. Mas não resta dúvida de que Sade e Masoch presentam a seus leitores quadros inigualáveis de sintomas e signos (Deleuze, 2009, p. 18).
Que seja necessária a literatura para nomear e descrever uma condição patológica diz muito sobre a impossibilidade dessa condição ter seu contorno sintomatológico claramente delimitado; isso quer dizer que falamos de outra coisa que não é doença quando falamos de sadismo e masoquismo, e isso sobe o que falamos será melhor falado pela letra literária5. "Mas, do mesmo modo, o problema de escrever tampouco è separável do problema de ver e de ouvir [...] A literatura è uma saöde" (Deleuze & Guattari, 1997, p. 16).
Ignoramos se os médicos de então suspeitaram da presença dessa tensão epistemológica e fenomenológica, mas não parece ter sido importante para eles naquele momento. Ora, é justamente desse horizonte científico e semântico que Freud pretende se afastar na sua apropriação das noções cunhadas por Kraftt-Ebing. O que percebeu o pai da psicanálise quando ampliou a envergadura conceitual e clínica das noções de sadismo e masoquismo é que esses fenômenos pertencem a outro registro, não ao estritamente médico, mas também a outro conjunto de vicissitudes, para usar um termo caro a Freud, da vida sexual, seja de indivíduos "doentes" ou "normais". Nesse sentido, várias distinções clínicas e conceituais são propostas por Freud: "masoquismo Erógeno, Masoquismo Feminino e Masoquismo Moral", entre outras6.
É no texto "As pulsões e suas Vicissitudes", de 1915, onde Freud solidifica uma noção que já aparecia de modo embrionário no texto "Os três ensaios", de 1905, que surge o posicionamento reflexivo o qual postula que, em algum momento, ou em alguma das configurações do aparato psíquico, um sádico é sempre, e ao mesmo tempo, um masoquista, e vice-versa, não importando para a eficácia deste postulado se o individuo é majoritariamente sádico ou masoquista7. A reunião dialética, se nos for permitida essa nomenclatura, entre sadismo e masoquismo em uma unidade superadora, o sadomasoquismo, possui efeitos profundos na consistência do corpus argumentativo da psicanálise. A questão é clara: a literatura dos literatos, de Sade e Masoch, que nomeiam e definem essas condições psíquicas, permite sustentar essa unidade?
Deleuze nota que uma observação preliminar poderia avalizar essa posição, porém uma leitura mais atenta aos horizontes literários de ambos os autores não permitiria sustentar uma unidade de fundo entre sadismo e masoquismo. Isso aparece de modo evidente na longa citação a seguir:
E bem mais: o "encontro" do sadismo com o masoquismo, o apelo que eles fazem um ao outro parece claramente inscrito na obra de Sade tanto quanto na de Masoch. Há uma espécie de masoquismo nos personagens de Sade [...]. De maneira inversa, há uma espécie de sadismo no masoquismo [...]. Mas já é possível notar que, em ambos os casos, a transformação se dá no fim da experiência. [...] O "masoquismo" do herói sádico, por su vez, surge no final dos exercícios sádicos, como limite extremo e sanção de infâmia gloriosa vem coroálos. [...] Sob injurias e humilhações, em plena dor, o libertino não expia, mas, diz Sade, "goza em seu interior por ter ido longe o bastante, a ponto de merecer ser assim tratado". [...]
Parece então difícil falar, em geral, da transformação do sadismo em masoquismo, e vice-versa. Nota-se, sobretudo, uma dupla produção paradoxal: produção humorística de um certo sadismo, no final do masoquismo, e produção irônica de um certo masoquismo no final do sadismo. Mas é improvável que o sadismo do masoquista seja o de Sade, e o masoquismo do sádico, o de Masoch. O sadismo do masoquismo impõe-se de tanto expiar; o masoquismo do sadismo, apenas sob a condição de não expiar. Precipitadamente afirmada, a unidade sadomasoquista corre o risco de ser uma síndrome grosseira, não respondendo às exigências de uma verdadeira sintomatologia (Deleuze, 2009, p. 39-41).
Nem Sade nem Sacher-Masoch pediram para Krafft-Ebing ou para Freud que utilizassem seus universos literários para definir fenômenos psíquicos. Os médicos o fizeram por sua própria conta e risco. Escolheram a literatura, mas, a questão é: estiveram atentos à literatura que utilizavam?
Uma questão se impõe, e se impõe com mais força para a psicanálise do que para a psiquiatria, dado que aquela visa superar, dando as categorias em querela um alcance mais vasto. Enfim, Sade e Masoch, por todos utilizados, como foram lidos?
Se Freud aceita utilizar a estratégia catalogadora da psiquiatria da época, embora ampliando seu horizonte de aplicabilidade e sua eficácia teórica e clínica para outros registros, é porque reconhece que certas condições não podem ser pensadas a partir da epistemologia médico-biológica e, por esse motivo, solicita a ajuda da literatura. Entretanto, foram lidos os livros que foram invocados? Os paradigmáticos personagens que sintetizam as condições analisadas são, sem dúvida, reconhecíveis, mas os projetos literários onde habitam, e que definem seu campo de sentido, permanecem polissêmicos e, por tanto, menos delimitados. "Pois basta ler Masoch para sentir que seu universo nada tem a ver com o de Sade. Não são apenas técnicas diferentes, mas também problemas e preocupações, projetos absolutamente diversos" (Deleuze, 2009, p. 13).
Embora altamente relevante, a tópica aqui apontada parece esconder outra questão polêmica que sustentaria a adoção da noção de unidade sadomasoquista.
3. A Lei
Deleuze objeta em "Apresentação" a ideia de uma unidade sadomasoquista desde a ordem da literatura, e não da clínica, porque considera que esta última poderia ser mais bem-sucedida se os traços literários fossem experimentados de maneira mais cuidadosa8. Curiosamente, o texto sobre Masoch pertence à fase da filosofia deleuziana onde o autor ainda dialogava positivamente, em termos filosóficos, com a psicanálise. É publicado apenas alguns anos depois de"Anti-Édipo" (1973), primeiro texto do projeto "Capitalismo e Esquizofrenia" em coautoria com Felix Guattari. Nele, as críticas mais importantes e densas viriam à tona. Mas, observando retrospectivamente, é possível encontrar um ponto de atrito com a psicanálise que no futuro se tornaria central já na obra sobre Masoch.
Analisemos isso de maneira mais próxima, colocando em jogo de modo operacional alguns dos postulados posteriores do programa de "Capitalismo e Esquizofrenia" na própria escrita de "Apresentação". Para o autor francês, no texto sobre Masoch, a questão central que deve ser pensada é a necessária afirmação de uma unidade sadomasoquista por três das práticas sádicas e masoquistas singulares; para ele, é como se também na psicanálise uma Lei organizasse a compreensão dos sempre variáveis fenômenos particulares. Uma unidade organiza aquilo que só pode ser nomeado com um signo oriundo da linguagem onde as leis são testadas em seu limite e, quase sempre, apagadas: a literatura. Isso é nevrálgico. Já no ano de 1966 o problema da lei na psicanálise aparece quase inadvertidamente na filosofia de Deleuze, problemática que, como dissemos, aparecerá com toda sua verticalidade anos depois.
Com efeito, um dos tópicos centrais em pauta nos dois volumes de "Capitalismo e Esquizofrenia" é a figura da Lei, seu estatuto ontológico e suas consequências mais expressivas para a construção desse ente que nós mesmos somos. Ora, não se trata, para Deleuze, de pensar a Lei enquanto abstração geral, de modo universal e perene, pelo contrário; é necessário pensar a Lei de modo imanente em um determinado campo de aparecimento e de operatividade. A psicanálise seria, nesse sentido, um teatro privilegiado, não de modo aleatório nem por uma escolha arbitrária, mas porque, para Deleuze, a psicanálise ainda é uma das formas principais do aparecimento da Lei.
Isso aconteceria por dois motivos centrais. Primeiramente, porque a psicanálise talvez seja o öltimo grande "metarrelato" da origem da Lei, no sentido moderno da expressão, enquanto expõe a forma como a "marca" da Lei se instaura na psique em geral. O segundo motivo, mais originário e mais importante, se revela no fato de que a psicanálise, através de sua derivação lacaniana, carrega estruturalmente, como sendo seu centro inevitável, a noção de "falta" vinculada â noção e à lógica da Lei.
Ora, a questão de falta é muito mais que uma discussão em torno das bases epistemológicas ou estruturalistas da psicanálise. De modo mais substancial, a falta é o vetor que nos conduz a outro registro, ao plano estritamente ontológico, dado que o mobilizado por ela è aquilo que Deleuze definiu como "a negatividade". E, para o filosofo francês, a negatividade se constituiria como ponto central no ocultamento, em nome do fundamento transcendente, do pensamento desse existente fenomênico que nós somos; da Lei à falta e desta à transcendência. Assim, organizado em torno do norte que a falta oferece, o ponto nevrálgico que deveria ser pensado permanece inacessível; ou melhor, accessível somente atravès de seus sintomas e "trapaças semãnticas": o que deve ser interrogado aparece pelas suas "representações". Dessa maneira, só a representação nos permite pensar o imanente ao próprio aparecimento.
Para completar este quadro conceitual, é preciso localizar o terceiro conceito em jogo. Referimo-nos à noção de desejo. Segundo a leitura deleuziana proposta a partir do "Anti-Édipo", na psicanálise não há pensamento do desejo sem pensamento da falta e vice-versa. De fato, o que preocupa em maior medida a Deleuze, é que a reflexão psicanalítica acaba limitando as forças próprias do desejo, sua positividade, em nome das forças da negatividade articuladas em torno da centralidade da Lei-falta9. Assim, para Deleuze trata-se, de algum modo, de salvar o desejo das mãos da psicanálise, isto é, paradoxalmente, proteger a maior conquista da psicanálise da própria herança freudiana nas mãos de Lacan. Se esse programa é justo ou feliz não é um problema para nós neste momento; do mesmo modo, não cabe aqui a questão de se ainda é viável ou se já é demasiado tarde.
Embora Deleuze recolha sua materialidade reflexiva na psicanálise e sua clínica para poder libertar todas as potencialidades de um dos conceitos centrais daquela, como é a noção de desejo, para ele é também preciso abandonar a esfera da própria psicanálise, dado que, para Deleuze, as restrições que a psicanálise opera sobre o desejo não são somente de ordem psicanalítica, mas também ontológicas.
No entanto, não foi o próprio Lacan quem insistiu que a Lei é imanente ao desejo, repetindo, de algum modo, a afirmação freudiana a qual declara que a Lei "diz o que proíbe"? Evidentemente a resposta é sim. Portanto, para melhor compreender a denúncia de Deleuze sobre esse ponto, devemos partir das seguintes questões: onde se manifesta a Lei? Qual é seu modo próprio de aparecimento? Podemos responder utilizando uma fórmula simplificadora, porém eficaz, dizendo que, "a sociedade reprime o desejo"10. O social, o cultural e o coletivo reprimem o desejo. Para o pensador do "Anti-Édipo", e ainda que possamos especificar mais o que queremos dizer com "o social", expondo seus casos e modalidades, este permanece ou como uma abstração, genérico e não singularizado em cada acontecimento, ou como uma transcendência, enquanto opera sobre o desejo, mas não vice-versa. Por "caráter transitivo", a Lei só pode ser definida ou como forma vazia ou como força efetiva. Para Deleuze, a armadilha se constitui da seguinte maneira: a Lei não é de fato simplesmente abstrata, oca, dado que é eficaz; ela organiza a circulação do desejo, mas também não é um fenômeno no sentido posto, afirmado como elemento simplesmente exterior ao desejo; ela não é substância e é por esse motivo que poderia ser imanente ao desejo. Mas uma questão conspira contra essa afirmação de imanência: o desejo não determina a Lei. Pelo contrário, é a Lei que "sempre" interdita o desejo. Assim, a dinâmica tem uma só via. Dessa maneira, ainda que sutilmente, uma transcendência é instaurada. Nesse mapa conceitual, a Lei aparece como interdição concreta, mas sem ser algo de concreto. Para Deleuze, isso só é possível porque o papel da falta na psicanálise já está garantido no próprio desejo e, assim, naquilo que o interrompe. A Lei, pelo caminho da falta, torna-se uma das formas da negatividade e, assim, da transcendência. Apesar das declarações em contrário, Deleuze ainda encontrou na psicanálise a preeminência de um modo de ser sobre outro, enfim, uma clássica dualidade hierárquica.
Esse é o problema geral, para Deleuze em 1973, da Lei na psicanálise. Voltemos no tempo, pois, para ver como ele já se constituiu de outro lugar na "Apresentação" e como esse conjunto de reflexões ilumina retrospectivamente o que se insinuava no livro sobre Masoch.
4. A unidade no divã e a diferença na literatura
A literatura e sua leitura implicam o aberto, o polissêmico; a Lei fecha e organiza. Como advertimos, se foi escolhida a literatura é porque o diagnóstico não é preciso, porque um âmbito interpretativo não exato se impõe como modo de abordagem de certo tipo de condição clínica. As caraterísticas das classes patológicas apontadas pelos nomes sádico e masoquista não podem ser caraterizadas pela utilização de uma razoavelmente clara e eficaz organização de sintomas e caraterísticas. Assim, figuras menos delineadas das produções literárias parecem ser mais férteis. Isso acontece porque
[...] a literatura segue a via inversa, e só se instala descobrindo sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau (Deleuze, 1997, p. 12).
Mas, então, por que uma lei? Nos encontramos perante uma aporia entre o âmbito da estratégia metodológica escolhida e os pressupostos conceituais que deveriam dar rigidez e coesão a essa estratégia. Eis um problema habitual, segundo Deleuze, da psicanálise. Dito de modo mais explícito, para Deleuze, esta tensão interna da psicanálise não é uma excepcionalidade dentro da sua reflexão, nem um elemento tópico, pelo contrário, se repete como uma forma consolidada de construir a própria prática da psicanálise e seus fundamentos. O que assoma como questionamento tópico e isolado na "Apresentação" é explicitado de modo direto no "Anti-Édipo".
[...] se a psicanálise procede assim, é porque ela dispõe de uma máquina automática de interpretação. A máquina de interpretação pode ser resumida da seguinte maneira: o que quer que se diga, o que se diz quer dizer outra coisa. Não é possível denunciar suficientemente os danos produzidos por essas máquinas. Quando me explicam que o que eu digo quer dizer coisa distinta do que digo, produz-se graças a isso uma clivagem do eu como sujeito. Esta clivagem é bem conhecida: o que digo remete a mim como sujeito de enunciado, o que quero dizer remete a mim (em minhas relações com o analista) como sujeito de enunciação. Esta clivagem é concebida pela própria psicanálise como base da castração, e impede toda produção de enunciados (Deleuze, 1973, p. 3-4).
É essa máquina a que lê a literatura da qual toma seus significantes. Estamos perante o problema da organização do aberto pela função de uma clivagem interpretativa organizada em torno da Lei, isso permite tomar situações clínicas singulares e torná-las exemplos provatórios de uma estrutura anterior, tanto em termos lógicos quanto fenomênicos. Estamos, por esta via, no seio da epistemologia moderna. "Não serve como argumento o fato de que a psicanálise há muito tempo já demonstrou a possibilidade e a realidade das transformações sadismo/masoquismo. O que está em questão é a própria unidade do chamado sadomasoquismo" (Deleuze, 2009, p. 13).
Por que a psicanálise parece organizar o que a literatura, e sua necessária ars interpretativa-, aponta e dá nome?
A sintomatologia diz sempre respeito à arte. As especificidades clínicas do sadismo e do masoquismo não são separáveis dos valores literários próprios de Sade e de Masoch. E, em vez de uma dialética que apressadamente reúne contrários, deve-se buscar uma crítica e uma clínica capazes de resgatar os mecanismos realmente diferenciais, assim como as originalidades artísticas (Deleuze, 2009, p. 14).
Mais uma vez, o problema gira em torno do estatuto da Lei. Agora, dado que insistimos na figura da Lei, por um lado, e na importância que deve ser dada à literatura, uma vez que esta é a doadora de nomes, por outro, o mais pertinente é procurar o estatuto da Lei na própria obra de Sade e Masoch.
Em última instância, segundo a catalogação clássica, o que faz um perverso senão estabelecer uma relação com a Lei? Ela é sua razão de existir, sua condição de possibilidade, para dizê-lo de modo rudimentar. No sentido tradicional, só existe perversão poá em relação afirmativa com o próprio campo onde se dá.
Há uma imagem clássica da lei. Platão deu-lhe uma expressão perfeita, que se impôs no mundo cristão. [...] Quanto ao princípio, a lei não é primeira. É apenas um poder segundo e delegado, depende de um princípio mais elevado que é o Bem. [...] Se nos perguntarmos sob quais influências a imagem clássica da lei foi subvertida e destruída, podemos ter certeza de que não foi pela descoberta de qualquer relatividade, de qualquer variabilidade das leis. Pois tal relatividade era plenamente conhecida e compreendida na imagem clássica, sendo necessariamente parte dela. [...] A verdadeira razão é outra. Podemos encontrar seu enunciado mais rigoroso na Crítica da razão prática, de Kant. O próprio Kant diz que a novidade de seu método é que nele a lei não depende mais do Bem; pelo contrário, o Bem depende da lei. [...] No entanto, mais ainda coube a Freud dar a explicação analítica ao paradoxo: não é a renúncia ás pulsões que deriva da consciência moral, pelo contrário, é a consciência moral que se origina da renúncia (Deleuze, 2009, p. 81-85).
Sade e Masoch e suas galerias de perversos dão um passo a mais nessa destituição da Lei pela operação de uma relação determinada que o perverso organiza com a própria Lei. Por esse motivo, a questão é como trabalham com a Lei as figuras do sádico e do masoquista na sua forma literata original? Sabemos que a figura predominante de Lei para Sade e Masoch é instaurada por Kant, não por Platão. Mas o que cada um deles fez com essa forma da normatividade de forma completamente diversa; ambos precisam da Lei, mas por motivos totalmente diferentes. É na literatura, naquela que nomeia as perversões, que o diálogo com a Lei se distancia entre eles e, desse modo, inviabiliza qualquer intento de reunião das literaturas em uma síntese unificadora.
Numa primeira observação, o que se manifesta é o fato transparente de que, para Sade, a Lei tem que ser transgredida e essa transgressão engendra, ou deixa aparecer, necessariamente, uma outra forma de Lei, mais ampla e mais abrangente que a anterior, a qual, por sua vez, também deverá ser ultrapassada. Isto é, superada uma interdição social ou moral pela obra individual ou coletiva, uma outra forma da proibição se consolidará perante o libertino e será sua tarefa quebrá-la uma vez mais e assim sucessivamente, dando lugar ao aparecimento operacional e pedagógico das formas fáticas de perversão, suas práticas efetivas. É essa a teatralidade de Sade, o jogo de suas personagens, seus cenários e figurinos e, certamente, um dos motivos de sua clausura forçada e quiçá o motivo de permanência no tempo.
Por trás dessa construção evidente, Deleuze observa uma outra forma de relação com a Lei, mais complexa e com consequências mais perduráveis. Com efeito, Sade se ergue contra a Lei não apenas porque seus personagens a transgridem permanentemente em virtude de sua natureza diferencial, ao mesmo tempo em que instrui pedagogicamente o seu leitor sobre como se tornar um perverso, mas fundamentalmente porque denuncia nela a condição de possibilidade da tirania e da opressão. Sade denuncia o regime da Lei como regime tanto dos tiranizados quanto dos tiranos. "De fato, não se é tiranizado senão pela lei"11 (Deleuze, 2009, p. 87). A ausência de simpatia ou pena caridosa pelo escravizado pela Lei através do seu operador mais conhecido, o tirano, decorre do fato de que, para Sade, tanto o tirano quanto o escravo são na verdade funcionários da Lei; tanto um quanto outro se reconhecem no regime da Lei e apenas nele podem existir.
Pois tanto senhores quanto escravos, tanto os fortes quanto os fracos pertencem inteiramente à natureza segunda; é a união dos fracos que favorece e faz surgir o tirano, que precisa dessa união para existir. De qualquer maneira, a lei é a mistificação e não o poder delegado, é o poder usurpado, com a abominável cumplicidade dos escravos e dos senhores de escravos. Observe-se o quanto Sade denunciou o regime da lei como sendo ao mesmo tempo o regime dos tiranizados e dos tiranos (Deleuze, 2009, p. 86-87).
É nesse registro que a forma da transgressão encontra sua mais alta potência para além da prática da perversão efetiva e da famosa pedagogia sadeana. É necessário transgredir toda e qualquer lei, mas, sobretudo, sua forma canônica inscrita no próprio corpo, na sexualidade, porque somente desse modo outro regime de signos e de sentido existencial poderá ser instaurado; passamos, assim, da pedagogia sexual para à expressão literária de uma ontologia de nós mesmo, para dizê-lo com a bela fórmula de Foucault.
O regime de signo instaurado por Sade constrói uma outra fala e justamente essa outra fala é a que a literatura possibilita: "O tirano fala a linguagem das leis e não tem outra linguagem. Ele precisa da 'sombra das leis'; e os personagens de Sade são imbuídos de estranha antitiranía, falando como tirano algum poderia falar, como tirano algum jamais falou, instituindo uma contralinguagem" (Deleuze, 2009, p. 87). Esse é o ponto central de toda transgressão perversa: formular uma nova relação com a Lei a partir da linguagem, de uma outra forma de linguagem que a literatura expressa. Trata-se de superar a Lei em direção a um horizonte onde o tirano ou o tiranizado já não podem mais existir. Nos enganamos quando vemos no perverso sadeano um tirano e na sua vítima um escravo; o ato e os efeitos semânticos das transgressões e práticas do universo de Sade estão urdindo a própria destituição da Lei como fundamento12.
Sade com frequência relembra: a lei só pode ser ultrapassada para se chegar à anarquia como instituição. E o fato de a anarquia não poder ser instituída senão entre dois regimes de leis, um antigo regime que ela abole e um novo regime que ela engendra, não impede que esse curto momento divino, quase reduzido a zero, comprove a sua diferença de natureza com relação a todas as leis (Deleuze, 2009, p. 88).
Destituir e superar a forma da Lei implica, de modo radical, uma permanente transgressão que constitui a verdadeira aventura sadeana. Transgredir é necessário: diz a literatura de Sade.
Também o masoquista se relaciona com a Lei e ele também a destitui de sua transcendência e do seu lugar de fundamento, mas de um modo completamente diferente. "O masoquista, [...] não deixa de subverter a lei - tanto quanto o sádico, só que de outro modo" (Deleuze, 2009, p. 90). O masoquista se aproxima da Lei o mais possível; a utiliza quase como se ela estivesse a serviço de sua perversão. Ele afirma a potência e a eficácia de sua perversão na radicalização do uso da Lei. Levar a Lei até seu paroxismo, até seu exagero na aplicação em primeira instância a ridiculiza, expõe seus próprios delírios internos.
Conhecemos todas as maneiras de infringir a lei por excesso de zelo: por uma escrupulosa aplicação pretende-se mostrar seu absurdo e alcançar, precisamente, a desordem que ela deveria proibir e coibir. Toma-se a lei ao pé da letra; não se contesta o seu caráter último ou primeiro; faz-se como se, em virtude de tal caráter, a lei reservasse para si os prazeres que ela nos proíbe (Deleuze, 2009, p. 88).
Nesse sentido, Masoch e seus masoquistas se apresentam quase como antecessores de Kafka. Expor a Lei ao ridículo pela sua utilização extrema a torna, em certo sentido, menos eficaz, menos opressora. Ora, mais uma vez, esse primeiro e verdadeiro movimento deixa em reserva outro ataque à figura da Lei que, do mesmo modo que Sade, é mais importante e duradouro.
O masoquista não incorpora a Lei na perversão como elemento de transgressão, como aquilo que determina a possibilidade real da transgressão, como em Sade. Pelo contrário, incorpora a Lei no âmbito da perversão fazendo dela o elemento central que organiza a produção de prazer. O masoquista coloca a Lei a serviço do prazer perverso, servindo-se dela como instrumento que instaura um regime de atividades cuja consequência é produzir o prazer perverso, justamente aquilo que a Lei deveria abortar. É o fato de seguir uma regra legal previamente combinada que realmente produz o prazer perverso e não sua transgressão; como lembraria Deleuze, tantas chicotadas, em certo período de tempo e sob certas formalidades. "[...] a mais estrita aplicação da lei tem o efeito oposto ao que normalmente se espera (por exemplo, as chicotadas, em vez de punir ou de prevenir uma ereção provocam-na, asseguram-na)" (Deleuze, 2009, p. 89). O masoquista quer contratos, não por ser precavido, mas por ser perverso. "Observe-se que o masoquista, ao fazer derivar a lei do próprio contrato, não intenta suavizar a extrema severidade da primeira, mas, pelo contrário, a acentua" (Deleuze, 2009, p. 88).
Levar a Lei ao ridículo, promovendo sua aplicação até o extremo doentio, é apenas um primeiro momento ainda superficial na dinâmica de sua destituição. Sua verdadeira derrocada se dá quando toma parte de forma positiva no jogo da perversão não como seu polo negativo, o que se transgrede, mas como uma aliada que deve ser abrasada, dado que já é a punição.
Encarando a lei como processo punitivo, o masoquista começa provocando em si mesmo a punição; nessa punição sofrida, ele paradoxalmente encontra uma razão que o autoriza e até lhe ordena sentir o prazer que a lei deveria proibir. O humor masoquista é o seguinte: a mesma lei que me proíbe de realizar um desejo, sob pena de uma punição, torna-se uma lei que coloca já de início e, consequentemente, me ordena satisfazer o desejo (Deleuze, 2009, p. 89).
Não é a dor física e moral da chicotada que produz o prazer, mas a condição legal, previamente acordada, segundo a qual ela é aplicada. Essa distância com relação à lógica do prazer sadeana é fundamental. Não é necessário ultrapassar a Lei; é necessário respeitá-la até o absurdo. A própria Lei faz parte da produção do prazer e a ela devemos nos apegar. É necessário ser submisso e estar de joelhos perante a Lei, para gozar e ao mesmo tempo para destituí-la. Assim o diz Deleuze glosando a Theodor Reik:
[...] o masoquismo não significa prazer na dor, nem mesmo na punição; no máximo, o masoquista encontra na punição ou na dor um prazer preliminar; mas em seguida ele encontra o seu verdadeiro prazer naquilo que a aplicação da punição torna possível. O masoquista deve sofrer a punição antes de sentir o prazer. Não se deve confundir essa sucessão temporal com uma causalidade lógica: o sofrimento não é causa do prazer, mas condição previa indispensável para a vinda do prazer (Deleuze, 2009, p. 89).
A maior consequência dessa apropriação da Lei por parte do masoquista é que este não se preocupa explicitamente com o tirano ou com o escravo, nem em como superar a condição constituída entre ambos. Também não procura uma anarquia que o redima, individual e politicamente. Para ele, em sua mais íntima verdade, a verdade do prazer, não há outra coisa a não ser a Lei. Ele é, ele precisa ser, um escravo. "Se a lei tem como resultado nossa escravidão, não deveria situar-se a escravidão no começo, como sendo o objeto terrível do contrato?"13 (Deleuze, 2009, p. 91).
Partindo de outra descoberta moderna, - de que a lei nutre a culpabilidade daquele que a obedece-, o herói masoquista inventa um novo modo de descer da lei às consequências: ele "subverte" a culpabilidade, tornando o castigo uma condição que possibilita o prazer proibido (Deleuze, 2009, p. 90).
Obedecer a Lei, aceitá-la, assinar contratos para que se torne outra coisa, uma perversão dela mesma. Isso diz a literatura de Sacher-Masoch.
5. Epílogo: gostamos de ler literatura?
Como vimos, é a relação não natural com a Lei, visando promover o prazer perverso, que se instaura e se expressa na literatura, o que define a relação de Sade e Sacher-Masoch com os sádicos e os masoquistas apontados por psiquiatras e psicanalistas. Aqui estão resumidos os três elementos que se reúnem no uso médico e depois psicanalítico dos universos literários de Sade e Masoch: um deslocamento com relação ao padrão normativo o qual produz prazer e que, pela sua irregularidade sintomática, só pode ser apontado por tipos literários. Caso retiremos um desses elementos da fórmula, toda sua estrutura semântica desmoronará.
A questão é que, após dois literatos terem destituído a Lei, por vias radicalmente diversas e com motivos ainda mais díspares, parece que ela reaparece operando agora uma espécie de metaliteratura. A Lei se vinga organizando, na medicina e na psicanálise, aquilo que a literatura entrega como diferença. A diferença entre as literaturas de Sade e de Masoch é irreconciliável, não por estilo, tema ou interesse estético, mas pelo fato de que vêm da relação central com a Lei, com a dinâmica da perversão e com as estratégias de destituição da própria Lei que cada autor estabelece. Afirmar, como fizeram psiquiatras e psicanalistas, baseando-se em análises de casos e não na literatura, que há sempre presente uma unidade sadomasoquista implica restaurar uma Lei que organize, para melhor compreensão, as singularidades tanto dos fenômenos psíquicos pontuais quanto dos horizontes de sentido abertos pela literatura.
Se o médico e o psicanalista não conseguiram dar nome a algumas coisas que observavam e convocaram em seu auxílio a literatura, então talvez seja prudente, por parte deles, estarem mais atentos aos tipos literários. Deixar claro que eles, os médicos, também gostam de ler literatura.
Referências bibliográficas
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Deleuze, G. (1973). Cinco proposições sobre a Psicanálise. In: Verdiglione, A. (Org.). Tradução: Cíntia Vieira da Silva. Psicanalisi e Política: Atti del Convegno di studi. Milão: Feltrinelli, 1973. [ Links ]
Deleuze, G.; Guattari, F. (1997). Crítica e clínica. Tradução: Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34 S/C Ltda., 1997. [ Links ]
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Rolnik, S. (1996). Deleuze, esquizoanalista. Cadernos de Subjetividade, jun, 1996. [ Links ]
1Naturalmente, Sade não teve como avalizar ou censurar esse uso do seu nome, mas Sacher-Masoch sim o fez e, segundo mostram seus biógrafos, deplorou o ato de o mesmo ser usado desse modo, inclusive a partir de observações teóricas e não apenas egocêntricas.
2 O lugar deste texto deleuziano é singular e central já que nele é possível encontrar uma camada sutil, porem efetiva, de reflexões que, de algum modo, já antecipam certos desdobramentos críticos que posteriormente apareceram nos textos que conformam "Capitalismo e esquizofrenia". Esses rápidos momentos deixam entrever que a "cartelização" (em todos os sentidos da expressão) da psicanálise ou, talvez, do lacanismo na França dos anos 1970, não é o único motivo do deslocamento de perspectiva de Deleuze com relação à psicanálise, e que este movimento esconde (e protege) um problema maior para a filosofia deleuziana. Trata-se da relação entre literatura e patologia, entre linguagem e sintoma, enfim, entre a crítica e a clínica. Deixamos o desenvolvimento mais completo e demorado dessa rica questão para outro momento, reconhecendo, no entanto, que ela faz parte, de fato e de direito, da problemática geral abordada no presente ensaio.
3 Todo um conjunto de consequências moralizantes e normalizadoras se seguem dessa premissa epistêmica. Para uma aproximação mais detalhada e menos simplificadora das posições de Kraftt-Ebing, ver o texto Diego Nin, "El masoquista de Krafft-Ebing... y después", publicado na Revista Ñacate Revista de Psicoanálisis de la École Lacanienne de Psychanalyse, nº 04, 2013.
4 A paulatina substituição da figura do clínico, o leitor de sintomas por antonomásia, pela do "especialista em diagnóstico por imagem", aquele mèdico que opera e observa o corpo do doente atravès do universo de ferramentas tecnológicas à disposição da medicina contemporânea, constitui um fenômeno singular de nossa época que deve, com urgência, ser pensado, reconhecendo-se que se trata de um momento ulterior a este no qual nos movimentamos no presente artigo. Não mais mobiliza conceitos da epistemologia e a ontologia do corpo, da psique e da doença, mas da ontologia da técnica e da epistemologia dos artefatos; no entanto, um ponto deve ser ressaltado: não se trata de abandonar o campo da leitura, senão de ler outras formas de textualidade, ler o corpo e os sintomas através da gramática do artefato e não sob o prisma da experimentação científica moderna. Esse novo recorte demandaria uma abordagem completamente diferente da aqui utilizada; em virtude disso, permanecemos em dívida com relação a esse tema e o deixamos, contando com a boa fortuna, para futuras pesquisas.
5 Assim como a violência e a crueldade do Estado será melhor falada, e dissimulada, por expressões derivadas de nomes de homens singulares, com história própria e endereço postal determinado, plausíveis de culpa e responsabilidade, pelo menos histórica. Como exemplo, tomemos os nomes sempre lembrados de Charles Lynch, que, segundo consta, inventou o linchamento, e o Dr. Joseph-Ignace Guillotin e sua célebre guilhotina. Note-se o paralelismo nesta observação de Deleuze: "É verdade que a violência é aquilo que não fala, que pouco fala, e a sexualidade, aquilo de que, em princípio, pouco se fala. O pudor não está ligado a nenhum pavor biológico. Se estivesse, não se formularia como se formula: receio menos ser tocada do que vista, e vista do que comentada". (Deleuze, 2009, p. 18-19).
6 Freud aborda, de modo mais explícito, as problemáticas do sadismo e do masoquismo nos seguintes textos: "Três Ensaios sobre a Sexualidade" (1905); "As pulsões e suas Vicissitudes", (1915); "Uma Criança è Espancada" (1919); e "O Problema Econômico do Masoquismo" (1924). Evidentemente, são estes apenas alguns dos textos mais pontuais sobre o tema, mas não os únicos. De qualquer sorte, é necessário destacar o notável esforço de Freud para superar a formulação moralizante sobre as perversões em geral e sobre o sadismo e o masoquismo em particular, sobretudo nos "Três ensaios".
7 Evidentemente, Freud não é o único autor que fala nesses termos. O apontamos aqui com mais força porque è no marco categorial da psicanálise que operamos nossa análise: "A entidade sadomasoquista não foi inventada por Freud, podemos encontrá-la em Krafft-Ebing, em Havelock Ellis, em Féré. O fato mde haver uma estranha relação entre o prazer em fazer o mal e o prazer em sofrê-lo, os memorialistas e os médicos já o haviam pressentido" (Deleuze, 2009, p. 38).
8 Freud faz notar que se trata apenas de um "uso" dessas categorias, sem maiores problematizações, no entanto, nunca explicou o limite desse uso nem seus pressupostos exegéticos. Levando em consideração a importância dos termos, isso não parece suficiente.
9 Entendamo-nos sobre a palavra "desejo": atração que nos leva em direção a certos universos e repulsa que nos afasta de outros, sem que saibamos exatamente por quê; formas de expressão que criamos para dar corpo aos estados sensíveis que tais conexões e desconexões vão produzindo na subjetividade. Pois bem, regimes totalitários não incidem apensa no concreto, mas também nessa invisível realidade do desejo: seus movimentos tendem a bloquear-se; proliferam políticas microfascistas (Rolnik, 1996, p. 84).
10 Um importante conjunto de conotações sobre esta sumária afirmação deveria ser feito. Mas a intenção é a de apontar para o campo de aparecimento da Lei, de modo geral, metafórico e com fins argumentativos.
11 "Sade nos ensina. A lei, sob todas a suas formas (natural, moral, política), é a regra de uma natureza segunda sempre ligada às exigências da conservação e usurpando a verdadeira soberania. Pouco importa se, segundo uma alternativa bem conhecida, a lei é concebida como expressão da força imponente do mais forte ou, pelo contrário, a união protetora dos fracos [...]" (Deleuze, 2009, p. 86).
12 Nessas páginas do seu texto, Deleuze propõe um trabalho conceitual sobre o conceito de natureza segunda com relação ao campo aberto por Kant sobre o estatuto da Lei. Não sendo central para nossa apresentação, apenas como indicação trazemos a seguinte citação: "Assim sendo, a lei é superada em direção a um princípio mais alto, mas, este princípio não é mais um Bem que a funda; é, pelo contrário, a Ideia de um Mal, Ser supremo em maldade, que a destitui. Destituição do platonismo e destituição da própria lei" (Deleuze, 2009, p. 87).
13 Podem existir heróis revolucionários tradicionais, aqueles da política explícita, sadeanos, e até sádicos, mas dificilmente haverá revolucionários masoquistas, a não ser que a revolução passe por outras formas de imanência.