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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj vol.12 no.1-2 Fortaleza jun. 2012

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O tempo livre com qualidade a partir de discursos coletivos

 

The quality free time from collective discourses

 

El tiempo libre con calidad desde discursos colectivos

 

Le temps libre avec qualité a partir de discours collectifs

 

 

José Clerton de Oliveira MartinsI; Fernando LefèvreII; Ana Maria Cavalcanti LefèvreIII; Gláucia Rebeca Teixeira OliveiraIV; Maria Gorety PereiraV

IProfessor Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (Unifor). End.: Av. Washington Soares, 1321. Edson Queiroz. CEP: 60811-905 - Fortaleza-CE. E-mail: jclertonmartins@gmail.com
IIProfessor Titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). End.: Rua Cristiano Viana, 93. Pinheiro. CEP: 05411-000 - São Paulo-SP. E-mail: flefevre@usp.br
IIIDoutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Pesquisadora do Institituto de Pesquisa do Discurso do Sujeito Coletivo (IPDSC). End.: Rua Cristiano Viana, 93. Pinheiro. CEP: 05411-000 - São Paulo-SP. E-mail: ana@ipdsc.com.br
IVMestra em Psicologia. Integrante do Grupo de Estudos Multidisciplinares sobre Ócio e Tempo Livre (Otium). End.: Av. Prudente Brasil, 180, casa 14. Passaré. CEP: 60743-760 - Fortaleza-CE. E-mail: rebecaoliv@yahoo.com.br
VPsicóloga e Assistente Social. Mestranda em Psicologia do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza. Integrante do Grupo de Estudos Multidisciplinares sobre Ócio e Tempo Livre (Otium). End: Rua dos Alcântaras, 75. Fátima. CEP: 60055-350 - Fortaleza-CE. E-mail: goretypereira@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

É crescente o número de estudos que se voltam para o tempo livre, nas mais diversas disciplinas. Vive-se na época das contradições e, nessa perspectiva, tem-se que se valer do trabalho para satisfazer necessidades de sobrevivência, ou, apenas, consumir o efêmero, que convoca símbolos para "ser", em tempos de hiperconsumo. Em contrapartida, anseia-se por um "tempo livre" para entrar em contato com outros âmbitos que conduzem a imersões, orientando os indivíduos a serem quem são. Assim, incentivados por questões que levam a refletir sobre o que seria um tempo livre com qualidade, decidiu-se pela realização do estudo que deu origem a este artigo. A metodologia para o alcance dos seus objetivos teve como escopo uma abordagem qualitativa, que se utilizou, para coleta de dados, do software qualiquantisoft (Qlqt) e, para suas análises, do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC). Os resultados encontrados levam a inferir que os sujeitos investigados, não obstante as influências do consumismo na contemporaneidade, que conduz à mercantilização das necessidades humanas, almejam encontrar qualidade no usufruto de seu tempo livre, na medida em que buscam alternativas em que possam vivenciar de forma autônoma o tempo social percebido como livre, com atividades capazes de lhes proporcionar o encontro com as legítimas necessidades humanas.

Palavras-chave: Contemporaneidade, tempo livre, trabalho, discurso do sujeito coletivo, consumo.


ABSTRACT

The number of studies approaching the "free time" question is increasing in various disciplines. People live in an epoch of contradictions, and, in this perspectives, they must avail themselves to work to satisfy their survival needs, or just consume the ephemeral, which summons symbols for "to be", in times of hyper consumerism. On the other hand, people wish for a free time to get in touch with other areas that could lead to immersions, guiding them to be whom they are. So, encouraged by questions that lead to reflections on what would be a quality free time, it was decided to conduct the study that originated this article. The methodology for achieving its objectives is based on a qualitative approach, in which was used, for data collection, the qualiquantisoft software (Qlqt) and, for its analyses, the collective subject discourse (DSC). The results lead to conclude that the investigated subjects, despite the influence of consumerism in the contemporary society, which leads to commodification of human needs, aim to find quality in the enjoyment of their free time, as they seek alternatives to live autonomously the social time perceived as free, with activities that meet legitimate human needs.

Keywords: Contemporaneity, free time, work, collective subject discourse, consumerism.


RESUMEN

Ha aumentado el número de estudios que se vuelven al tiempo libre en diversas asignaturas. Estamos en una época de contradicciones. Desde esas perspectivas utilizamos el trabajo para cumplir con nuestras necesidades de supervivencia o, simplemente, para consumir lo efímero, lo que requiere de símbolos para Ser en tiempos de hiperconsumo. Por otro lado, deseamos el Tiempo Libre para contactar otras esferas que permitan la experiencia de inmersión en el sentido de ser quienes somos. Así que, motivados por cuestiones que llevan a la reflexión sobre el sentido de tiempo libre con calidad, se ha decidido realizar el estudio que dio origen a este artículo. La metodología para el estudio se basó en el enfoque cualitativo, que se utilizó para la recopilación de datos de software qualiquentisoft (Qlqt) y, para el análisis de los datos, el uso del Discurso del Sujeto Colectivo - DSC. Los resultados encontrados nos llevan a inferir que los sujetos investigados, a pesar de la influencia del consumismo en la contemporaneidad, que fomenta la mercantilización de las necesidades humanas, aspiran a encontrar la calidad en el goce de su tiempo libre, al mismo tiempo en que buscan alternativas que les permitan vivir de manera autónoma el tiempo social percibido como libre, con actividades que les proporcionen satisfacción de las necesidades humanas legitimas.

Palabras-clave: Contemporaneidad, tiempo libre, trabajo, discurso del sujeto colectivo, consumo.


RÉSUMÉ

Le nombre d'études concernant le temps libre est croissant dans plusieurs disciplines. Selon Lipovestky (2007), nous sommes à l'époque des contradictions. Nous avons besoin du travail pour satisfaire les nécéssités pour survivre, ou tout simplement pour consommer l'éphémère, qui évoque des symboles pour être, à l'époque de l'hyperconsommation. Par contre, on aspire au Temps Libre pour joindre d'autres domaines qui nous emmènent à des immersions, nous orientant à être ceux que nous sommes. Motivés par des questions qui nous conduisent à réfléchir sur ce que serait le Temps Libre avec qualité, on a décidé de réaliser cette étude, origine de cet article. La méthodologie pour l'étude a adopté un abordage qualitatif, qui a utilisé le software qualiquantisoft (Qlqt) pour le recueil de données et le Discours du Sujet Collectif - DSC pour ses analyses. Les résultats obtenus nous font inférer que les sujets concernés, malgré l'influence du consommationisme contemporain, qui conduit à la mercantilisation des besoins humains, souhaitent avoir de la qualité dans l'usufruit de leur temps libre, à mesure qu'ils cherchent des possibilités de vivre, de façon autonome, le temps social perçu comme libre, avec des activités capables de leur apporter la rencontre avec les besoins humains les plus légitimes.

Mots-clés: Contemporanéité, temps libre, travail, discours du sujet collectif, consommation.


 

 

Introdução

É crescente o número de escritos sobre o Tempo Livre, nos mais variados âmbitos, presentes na mídia, no meio científico e nas mais diversas disciplinas. Lipovetsky (2007) aponta que se está vivendo na época das contradições, e os paradoxos estão presentes nos diversos contextos contemporâneos. No âmbito desses paradoxos, podem-se citar as relações entre as categorias Trabalho - que se apresenta, em princípio, como central na contemporaneidade consumista - e Tempo Livre, vista como dependente da primeira, cuja utilização pelos sujeitos é convocada pelos anseios subjetivos de autonomia e as imposições da sociedade contemporânea.

Por que o tempo livre desperta tamanho interesse neste momento contemporâneo? Quais os problemas que circundam a denominação do que é Tempo Livre? É possível se falar de Tempo Livre desconectado do trabalho como uma categoria central? Essas são algumas questões que orientam este estudo.

O Trabalho, na concepção de autores como Codo, Sorato e Vasques-Menezes (2004), Nardi, Tittoni e Bernardes (1997), Lima (2002), dentre outros, é visto como primordial no desenvolvimento da subjetividade contemporânea. No sistema econômico no qual a sociedade contemporânea se insere, observa-se que quase tudo está voltado para a produtividade e para o consumo. Nesse contexto, o Trabalho pode ser transmutado, facilmente, para um lugar de exploração e, por conseguinte, determinar ou influenciar o sujeito a direcionar seu tempo, quase exclusivamente, para a atividade laboral ou outras definidas como produtivas.

O Tempo Livre, tão cobiçado pela sociedade de consumo, tende a se tornar cada vez mais reduzido, implicando ausência de liberdade de escolha e, consequentemente, a não realização desse homem contemporâneo em outras esferas - dimensões igualmente essenciais no desenvolvimento de subjetividades.

Assim, o presente estudo teve por objetivo conhecer as representações sociais sobre a Qualidade no uso do Tempo Livre na sociedade atual, que se mostra consumista e apressada, centralizando sua realização a partir do investimento no tempo produtivo do trabalho.

Ao se propor a ideia de Tempo Livre, faz-se interessante clarificar, mesmo que de modo sucinto, as nuances existentes na língua portuguesa do Brasil entre ócio, tempo livre e lazer, termos que demandam atenção, tanto em razão do que o senso comum imprime, quanto em virtude de produções que apresentam propostas generalizantes, superficiais e desconsideram as sutilezas entre o que o social impõe e o que o subjetivo revela, a partir de experiências no uso do tempo livre.

Ao se examinar o conceito de Tempo Livre, pode-se observar que a condição de Livre, atrelada ao substantivo Tempo, está diretamente relacionada à categoria Trabalho. Esse tempo chamado de livre deveria ser uma oposição ao tempo de obrigações e/ou do trabalho. Assim, a primeira ideia que se mostra é que esse tempo, de fato, teria uma conotação de liberdade. No entanto, observa-se que o tempo livre tende a ser coabitado pelas indústrias do consumo e do mercolazer. Esse consumo comumente está na ordem do excesso(na sua dimensão hiper), como coloca claramente Lipovetsky (2007), no qual, além de tantas outras consequências, o lazer e o ócio passam a ser âmbitos privilegiados para o consumo de mercadorias. Num movimento coordenado por um sistema comunicacional que dita as atividades a serem exercidas num tempo de não trabalho. Desse modo, fica a reflexão: será que esse tempo faz valer o adjetivo "Livre"?

 

Breve Percurso Histórico sobre o Tempo Livre

As transformações ocorridas nas últimas décadas no mundo do trabalho, sobretudo as inovações tecnológicas e organizacionais, produziram novas relações entre as categorias tempo e trabalho. Antes da Revolução Industrial, quando ainda era dominante a atividade agrícola, a temporalidade tinha um caráter cíclico, descontínuo e mais qualitativo que quantitativo, sendo reflexo de um tempo natural. Resultava daí, conforme Gasparini (1996), pouca diferenciação entre o tempo de vida e o tempo das obrigações sociais e do trabalho, uma vez que estes assumiam um contínuo, no quadro de ritmos habitualmente marcados pelo tempo natural. . O Trabalho e o tempo subjetivo eram partes de um todo inseparável, e, na atividade laboral, encontrava-se espaço para viver o lúdico e o criativo, conforme assinalam Aquino e Martins (2007).

A partir da industrialização, o trabalho passou a ser regulado pelo tempo mecânico do relógio, dos processos organizacionais industriais, afirmando-se como tempo central tanto para o sujeito quanto para o sistema socioeconômico. Fortalecia-se uma ética centrada no valor do trabalho e da produção, especialmente no Ocidente, nos países de tradição cristã. O tempo passa, então, a ser concebido como uma mercadoria, o que torna célebre a expressão "tempo é dinheiro". O paradigma temporal torna-se então linear-quantitativo.

A industrialização produziu profundas modificações nos tempos sociais, nos sujeitos trabalhadores e no sistema socioeconômico. A disciplina do trabalho industrial requeria a aprendizagem sobre novos espaços-tempos de trabalho e a definição de um novo quadro temporal para o trabalho, marcado então pelo ritmo das máquinas e pela delimitação da jornada de trabalho, que era fixada pelo empregador de forma rígida. Tratava-se de um tempo normatizado e rigidamente cronometrado. Gasparini (1996) observa, a partir de Marx (1970), que o tempo de trabalho passou a ser um dos núcleos centrais do modo de produção capitalista, por representar a base para a aferição do salário do operário.

Nas sociedades afetadas pelos valores da Revolução Industrial, o tempo de trabalho era objetivamente longo e, por conseguinte, não sobrava muito tempo livre para o trabalhador. As jornadas eram intensas, e o trabalho, extenuante, realizado com base em uma rígida divisão dos tempos e movimentos, que caracterizou a organização científica do trabalho. Esta teve como um dos pontos centrais a introdução do cronômetro no processo produtivo e a subdivisão do trabalho em etapas ou elementos a serem fragmentados em seus componentes elementares, havendo, segundo preconizava Taylor (1957), o estudo escrupuloso e científico dos tempos. Contudo, os trabalhadores se organizavam por meio do movimento sindical para lutarem pela redução da jornada de trabalho.

A partir dos anos 1970, com a crise energética e do petróleo, novas relações se instauram entre a organização produtiva e o ambiente externo. A tendência da mundialização da economia e dos mercados exigia das empresas novos desafios de adaptação à realidade nascente, a de um modo de produção flexível que repercute no tempo de trabalho. Para alguns trabalhadores, ocorre o aumento do tempo livre sem que venha acompanhado de aumento de salários. Surge o trabalho em tempo parcial com horários flexíveis, para fazer face às demandas do mercado de trabalho.

Gasparini (1996) delimita duas transformações importantes que englobam, de forma sistemática e significativa, as mudanças concretas no quadro temporal dos trabalhadores: a redução e a flexibilização do tempo de trabalho. A redução atinge as diferentes categorias de unidade de tempo de trabalho produtivo: jornada diária e semanal, redução de idade para aposentadoria e aumento significativo da expectativa de vida.

A redução do tempo de trabalho gerou o aumento do tempo livre dos trabalhadores, com dois dias sucessivos de repouso (sábado e domingo). Observa-se que, em certos países europeus, o tempo livre ultrapassou a duração média do tempo de trabalho, vindo, então, a assumir não mais um papel marginal, como ocorria no início da industrialização, mas tornando-se potencialmente rico em significados para os atores do mundo do trabalho (Gasparini, 1996).

Quanto à flexibilização do tempo de trabalho, tornou-se importante estratégia de adaptar normas e práticas relativas à organização desse tempo com o intuito de enfrentar os obstáculos e as demandas das empresas, dos trabalhadores e do ambiente externo. A flexibilização concretizou-se mediante a oferta de novos modelos de gestão do trabalho caracterizados por contratos e horários atípicos, a exemplo do trabalho em tempo parcial, do trabalho em equipes, do trabalho concentrado em finais de semana, dos contratos de duração determinada, do trabalho sazonal e da aposentadoria antecipada ou flexível. Convém lembrar, ainda, que o trabalho nas sociedades industrializadas contemporâneas inclui uma parte do trabalho independente e autônomo, modalidade de atividade econômica em cuja prestação se inserem os profissionais liberais, empreendedores, pequenos comerciantes e artesãos.

A partir do exposto, ressalta-se a importância do estudo sobre a temática do tempo livre, haja vista as novas formas de organização do trabalho, que evidenciam uma tendência à diminuição das jornadas de trabalho e o consequente aumento do tempo livre, decorrente de alguns fatores socioculturais, como inserção tardia dos jovens no mercado de trabalho e ampliação de oportunidades de fruição de férias, além dos demais fatores já mencionados.

 

Trabalho e Tempo Livre na Sociedade Contemporânea

Os tempos atuais, denominados por Lipovetsky (2007) de tempos hipermodernos, assumem uma dimensão hiper, que se pauta na cultura do excesso e da urgência, sendo o consumismo uma de suas marcas fundamentais. O tempo social livre que deveria conter um máximo de liberdade subjetiva, é conduzido para o consumo, que acena com inúmeras promessas de satisfação e realização ao ser humano. O foco da existência no presente consumista acentua o culto às sensações imediatas e efêmeras.Diante desse contexto, indaga-se: de que modo é possível vivenciar o tempo livre como experiência subjetiva e dotado de qualidade, se cada vez mais o sujeito se expõe ao ao mundo do consumo e aos apelos do externo? Como o sujeito pode transformar o tempo livre em algo que tenha sentido, numa sociedade que tem como bússola o lucro privado em detrimento das legítimas necessidades humanas? Como se configura a experiência do tempo livre para os sujeitos desse momento atual?

Os estudos de Aquino e Martins (2007) aludem a que a primazia do trabalho na estruturação dos quadros temporais passa a ser questionada como atividade dominante e ao fato de que se convive com ideias que trazem à tona as temáticas de tempo livre, ócio e lazer como elementos importantes na produção do sujeito atual. Contudo, consideraram o papel relevante ocupado pelo trabalho na produção desse sujeito, conforme se pode visualizar a partir de suas próprias palavras:

No caos entre necessidades econômicas e existenciais, o homem contemporâneo se vê dividido entre as obrigações impostas por suas atividades laborais e o desejo de libertar-se dessas tarefas e, assim, poder usufruir um tempo para si. No entanto, todo o processo de educação/formação/orientação da sociedade moderna que gerou os valores da atual sociedade de consumo, não contempla a orientação para ser/existir num tempo de nada fazer (Aquino & Martins, 2007, p.481).

Os autores citados chamam a atenção para uma característica primordial da sociedade contemporânea: o consumo alienado como meio de satisfação, que se instaura como o grande balizador do modelo de acumulação do capital e o condutor dos modos de vida. O consumo produz um sujeito alienado, e apoia-se em uma cultura baseada nos prazeres imediatos, em que se valoriza o supérfluo, o frívolo e o descartável. O tempo compreendido como o de "nada fazer" significa, para os autores, o tempo verdadeiramente livre, o qual se pode usufruir sem que haja qualquer tipo de imposição externa, consistindo, então, em um tempo pleno de autocondicionamento.

Outro componente que deve ser ressaltado como influente na dificuldade de se lidar com o tempo na sociedade atual é o fenômeno da pressa. Beriaín (2008) assinala que, não obstante o incremento da tecnologia, dos transportes e das comunicações, que reduz o tempo necessário para a realização das atividades e que poderia gerar mais tempo livre, contribuindo, assim, para a desaceleração do ritmo de vida, o tempo é constantemente preenchido com novas atividades.

Conforme sinaliza Beriaín (2008), a aceleração social produz um novo tempo social, uma arritmia, que faz do presente o único tempo existente e penetra todos os usos do tempo atual. Mediante o viés da aceleração, procura-se viver o máximo de experiências em um mesmo espaço de tempo, de forma simultânea. Como consequência dos estilos contemporâneos de vida, tem-se o empobrecimento da experiência e o aumento da vida nervosa, que aporta como sintomas dela decorrentes a ansiedade, as síndromes de pânico, o estresse e a fadiga no trabalho.

Aquino e Martins (2007) fazem referência aos estudos de Munné (1982) ao apresentar uma tipologia do tempo social revelada por meio de quatro tipos essenciais: tempo psicobiológico, que é conduzido pelas necessidades psíquicas e biológicas básicas, como as de sono, de nutrição, de atividade sexual etc.; tempo socioeconômico, que se refere àquele utilizado para suprir as necessidades econômicas fundamentais, a exemplo da atividade laboral, da atividade doméstica, da atividade acadêmica, entre outras, representadas por demandas pessoais e coletivas; tempo sociocultural, contemplando aquele que é dedicado a atender às demandas de sociabilidade do sujeito, só para mencionar os três primeiros.

As referidas categorias de tempo social podem ser tanto heterocondicionadas como autocondicionadas, havendo condições de existência de um equilíbrio entre os dois polos. Essa categorização, na realidade, tem como objetivo a compreensão das possibilidades, mas, em se tratando de pensamento acerca da liberdade que envolve cada uma delas, se convocam níveis de mais ou menos autonomia segundo as possibilidades subjetivas ali investidas. Em assim sendo, por exemplo, na categoria de tempo sociocultural, algumas atividades de grupo, como ir ao clube, envolvem demandas do grupo e do sujeito que convocam condicionamentos externos e, ao mesmo tempo, autonomia subjetiva.

A quarta e última categoria apresentada pelo autor é o tempo livre. Este se refere às ações humanas que são realizadas sem que ocorra uma necessidade externa. Desse modo, o sujeito atua com a percepção de fazer uso desse tempo com total liberdade e de maneira criativa, dependendo de sua consciência de valor sobre ele.

Assim, o tempo livre deveria ser autocondicionado ao máximo e heterocondicionado ao mínimo, conferindo ao sujeito liberdade para conduzir sua vida pessoal ou social. Esse tempo poderia ser destinado à prática de atividades livremente escolhidas, prazerosas, criativas e com real percepção de liberdade (Aquino & Martins, 2007).

Entretanto, a sociedade mercantil oferece todas as formas de sedução para que o tempo livre seja, ao máximo, heterocondicionado, colocando o sujeito numa condição de passividade de forma que pode tornar sua vida pobre de significado. O tempo acaba sendo conduzido para a aquisição de bens e estilos de vida estranhos ao próprio sujeito, que os assimila como se fossem suas verdadeiras necessidades.

Ocorre também o risco de o sujeito vir a preencher esse tempo com mais atividades produtivas, seja por necessidades de sobrevivência, seja para aumentar as possibilidades de consumo. Tem-se, assim, um sujeito facilmente capturado pelo consumo de massa, por experiências de diversão e distração pré-fabricadas, programadas na lógica que mercantiliza as necessidades humanas, anunciadas nas vitrines dos shoppings e da indústria do lazer.

Pinheiro, Rhoden e Martins (2010), com base em De Grazia (1966), enumeram algumas atividades praticadas em tempo livre que podem ser classificadas de formativas, de descanso, de diversão, de aborrecimento e de consumo. As formativas favorecem a liberação, o relaxamento, o autodesenvolvimento e o enriquecimento cultural; as de descanso colaboram com a reposição das forças físicas ou mentais e restauram o equilíbrio psicofísico; as de diversão favorecem os aspectos lúdicos e interativos; as de aborrecimento ocasionam tédio e evasão e dispensam compromisso e esforço; as de consumo estimulam relações de dependência e passividade.

A fim de esclarecer o sentido do termo tempo livre, Aquino e Martins (2007) realizam uma discussão acerca de termos que são, na realidade brasileira, confundidos e tidos como sinônimos: ócio, lazer e tempo livre. Conforme os autores afirmam, no Brasil, as palavras ócio e lazer aparecem no senso comum como sinônimas, e o termo tempo livre figura como condição para o ócio e para o lazer, por ser um tempo liberado ou livre das obrigações.

É interessante se considerar que se traduz efetivamente o termo "ócio" do Espanhol para o Português como sendo "lazer", e que na língua espanhola moderna não existe o termo "lazer". Já a palavra "ócio", na Espanha e na América hispanohablante, apresenta os significados do que em português do Brasil o termo "lazer" convoca. É válido lembrar que existem, no rico idioma português, o termo "ócio" e o termo "lazer". Assim, os hispanohablantes podem dizer que o que é "lazer" no Brasil é ócio em sua tradução, pois sua condição linguística revela tal possibilidade. Já no Brasil, o idioma revela os dois termos, "ócio" e "lazer". Desse modo, para os brasileiros, a tradução de um termo pelo outro sugere cuidados para se evitar generalizações supérfluas que podem comprometer os significados revelados no cotidiano. Em língua espanhola, apresenta-se "ócio" em muitas categorias: ócio consumista, ócio comercial, ócio autotélico etc. Aí estão contidos, além dos ócios deles, todos os lazeres dos brasileiros.

O termo Lazer, no idioma pátrio, convoca todos os significados já estudados por várias correntes de pensadores, os quais revelam suas tendências ao longo do tempo. O termo "Ócio", por sua vez, que desde os anos 80 vem sendo aqui estudado, revela as dimensões mais subjetivas do uso do tempo livre no que se refere à motivação intrínseca, autonomia, percepção de liberdade etc.

Para concluir, ousa-se inferir, pensando de uma forma complexa, não necessariamente excludente, mas talvez em perspectivas distintas, que os sujeitos de língua espanhola podem dizer que "ócio" é "lazer", mas uma vez que em língua portuguesa tem-se o termo "lazer" e o termo "ócio", deve existir uma competência linguística que antecede a toda essa discussão, que leva a crer que "lazer" convoca umas possibilidades, enquanto "ócio", outras. Fica a provocação para aprofundamento.

Lazer é uma palavra corriqueira na realidade brasileira e, em geral associa-se ao entretenimento, turismo, diversão e recreação. Em Dumazedier (1973, 1979) guarda o sentido de diversão, descanso e desenvolvimento, que ficou conhecido como a teoria dos três "D"s. Convém assinalar, entretanto, que o fenômeno do lazer foi construído no Brasil como resultado de uma elaboração social, orientado para a dominação e alienação produzida na relação capital-trabalho, incitada pelo frenesi consumista.

Com relação ao conceito de ócio, apenas para fazer uma distinção entre tempo livre e lazer, opta-se pela sua vertente contemporânea, cunhada por Cuenca (2008) que o concebe como uma experiência humana percebida pelo sujeito de modo satisfatório, prazeroso, não obrigada e não necessária. Constitui-se numa experiência livre, gratuita e com um fim em sim mesma. Não é guiada por metas ou finalidades úteis, mas apresenta-se repleta de sentido, uma vivência integral, relacionada com o sentido da vida e com os valores de cada um, principalmente, com o significado a ela atribuído por quem a vive.

Não obstante as questões que limitam a liberdade no usufruto do tempo livre pelo sujeito e comprometem o equilíbrio entre tempo livre e trabalho, pode-se refletir, como alerta Lipovetsky (2004), que o ser humano ainda aspira a conciliar a vida profissional com a particular, o trabalho com o tempo livre para o ócio e o lazer. A publicidade pode até enaltecer as fruições comerciais, mas a relação com o outro constituirá sempre um anseio do ser humano. Como defende Lipovetsky (2004), os exageros hipermodernos são atenuados pela busca da melhoria da qualidade de vida e pela valorização do aspecto emocional nas relações humanas.

Segundo Zaratini e Padilha(2010), apesar de o trabalho ser ainda o tempo social dominante na sociedade atual e, dessa forma, ocupar a centralidade na vida cotidiana das pessoas, o tema do tempo livre traz o seguinte paradoxo: se, por um lado, é facilmente manipulado em função do mercado, distanciando o indivíduo de seu papel social a partir da disseminação de valores hedonistas e individualistas, por outro, pode tornar-se uma oportunidade de esse mesmo indivíduo viver experiências com significado subjetivo, colaborando para a construção de sua identidade.

 

Método

O estudo se orientou por um desenho qualiquantitativo. Isso se deveu ao fato de que o método qualitativo é capaz de incorporar os aspectos do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais, sendo estas últimas tomadas, tanto no seu advento quanto na sua transformação, como construções humanas significativas, conforme Minayo (1994). Ao mesmo tempo, ressaltou-se a importância de se conhecer a distribuição das representações sociais entre os pesquisados, identificando-se as mais e as menos compartilhadas entre o grupo que participou da presente investigação.

Tendo em vista a dupla abordagem - qualitativa (significado) e quantitativa (grau de compartilhamento) - utilizou-se a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) (Lefevre & Lefevre, 2010), que representa um recurso metodológico destinado a tornar mais claras e expressivas as Representações Sociais, permitindo que um determinado grupo social possa ser visto como autor e emissor de discursos compartilhados entre os membros do grupo.

Como forma de apreensão prática da ferramenta "Discurso do Sujeito Coletivo" foi sugerida uma pesquisa real em sala, tendo como sujeitos os participantes de um curso/treinamento (ver sujeitos da pesquisa). Sugeriu-se a escolha de um tema para pesquisa, chegando-se ao tema "qualidade e usufruto do tempo livre na sociedade que centraliza o trabalho."

Em seguida, após discussões, foi sugerida a pergunta que direcionou os estudos, por conter, em si, o objetivo do estudo, e resultou em discursos coletivos para análises: "se você fosse criar um manual sobre como usufruir bem o tempo livre, o que você recomendaria?". A partir desse momento, cada sujeito da pesquisa acessou o formulário de perguntas na forma do software qualiquantisoft (Qlqt), disponível no endereço: http:qlqt.ipdsc.com.br, que pode ser visualizado na Figura 1:

 

 

Sujeitos da Pesquisa

Os sujeitos desta pesquisa totalizaram um número de 29 pessoas, assim distribuídos: 22 mestrandos em Psicologia, 2 alunos de graduação em Psicologia e 5 professores do ensino superior. A idade dos sujeitos manteve-se no intervalo entre 22 e 65 anos. Quanto à escolaridade, 5 possuíam nível superior, 18 tinham nível de mestrado e 6 tinham nível de doutorado. No tocante ao gênero, 22 eram do sexo feminino e 7, do sexo masculino. Todos integravam um grupo de interessados em utilizar a ferramenta DSC (Discurso do Sujeito Coletivo) a partir do uso do software qualiquantisoft (Olqt), num treinamento de 20 horas oferecido na cidade de Fortaleza.

 

Coleta de dados

A coleta de dados ocorreu a partir do preenchimento individual do formulário on line supracitado, o qual foi respondido livremente. Em seguida, as respostas foram compartilhadas via software quanliquantisoft. Após a visualização em conjunto, prosseguiu-se com a escolha das ideias centrais de cada discurso, para posterior tabulação.

De posse desses dados, o grupo foi novamente subdividido e foi-lhes atribuída a tarefa de definir as categorias encontradas. A tarefa foi finalizada com o consenso dos participantes, e, em seguida, realizou-se a tabulação dos dados por meio da utilização da ferramenta qualiquantisoft.

 

Processamento da Técnica do DSC

A técnica implica selecionar, de cada resposta individual, as Expressões-Chave (ECH), assim considerados os trechos mais significativos das respostas. A essas Expressões-Chave correspondem Ideias Centrais (IC), que são sínteses do conteúdo discursivo manifestas nas Expressões-Chave. As Ideias Centrais de sentido semelhante foram agrupadas em Categorias. Com as Expressões-Chave das Ideias Centrais reunidas nas Categorias, constroem-se discursos-síntese ou DSCs, na primeira pessoa do singular, com um número variado de participantes, que corresponde ao número de indivíduos que, na pesquisa, apresentam representações de sentido semelhante. Assim, "qualificada" pelo DSC, ela pode ser quantificada utilizando-se os recursos habituais de quantificação, como gráficos, tabelas etc.

Enquanto variável quantificável, cada DSC possui dois atributos: intensidade e amplitude. Intensidade refere-se ao número ou percentual de indivíduos que contribuíram, com suas ECH relativas a ICs semelhantes ou complementares, para a confecção dos DSCs; ela permite saber, portanto, quais os DSCs dominantes, isto é, aqueles mais frequentes, mais compartilhados; já amplitude se refere à medida da presença do DSC considerando-se o campo ou universo pesquisado. Na presente pesquisa trabalhou-se com o atributo intensidade, uma vez que se restringiu a um universo restrito de sujeitos investigados.

 

Apresentação e Análise de dados

Após a aplicação da técnica, da forma exposta no item anterior, chegou-se a sete categorias que são descritas na Figura 2:

 

 

Resultados e Discussões

Apresentam-se, a seguir, os resultados quantitativos e qualitativos da pesquisa realizada. No item dos resultados quantitativos apresentam-se a Tabela das Ideias Centrais (Tabela 1) e seus referidos percentuais. No item dos resultados qualitativos, por sua vez, descrevem-se as categorias encontradas, assim como os discursos que as possibilitaram, tomando-se o cuidado de informar a totalidade de termos que as gerou. Os dados foram orientados por uma discussão à luz do referencial teórico deste estudo a partir das sete categorias identificadas.

 

 

a) Resultados Quantitativos

A Tabela 1 apresenta a frequência e o percentual das ideias centrais mencionadas pelos participantes.

 

b) Resultados Qualitativos

 

 

CATEGORIA A - Refletir, planejar e implementar autonomamente o que fazer de prazeroso

Critério de inclusão: foram incluídas nessa categoria todas as Expressões-Chave que continham ideias sobre reflexão e/ou atividade planejada sobre o tempo livre que estavam sempre associadas ao fazer prazeroso

Ideias Centrais associadas a essa Categoria:

QT03 - A pessoa deve planejar o que dá prazer, como e com quem usufruir este tempo livre

QT14 - Planejar e implementar atividades que dessem prazer, satisfação e alegria

QT16 - Decidir sobre como utilizar o tempo

QT25 - Refletir, pensar sobre o que lhe faz bem e decidir sobre como exercitar sua liberdade

DSC A

Primeiro, as pessoas deveriam refletir sobre a liberdade de um modo geral e sobre sua liberdade para escolher antes de decidir como usar o tempo livre. Depois, pensar no que sua experiência de vida lhes demonstrou que lhes faz bem em todas as dimensões: física, psicológica, mental e espiritual, consultando sua consciência quanto a sua possibilidade autônoma na decisão de como utilizar o tempo. Lembrar que dinheiro não é 100% necessário para tudo na vida e que há coisas gratuitas que são excelentes. Só depois disso decidir, procurando exercitar sua liberdade diante dos seus condicionamentos culturais (hábitos, modismos) do tempo em que vivem.

Seria também importante que listassem as primeiras coisas que lhes viessem à cabeça quando pensam em prazer, satisfação, alegria, para que depois tentassem associar essas coisas listadas a atividades e ocupações concretas que elas normalmente não fazem em decorrência das ocupações do dia-a-dia. Por fim, solicitaria que elas estabelecessem metas para começar a viver com mais prazer e qualidade incluindo essas atividades e ocupações à rotina. (Sujeitos 3, 14, 16 e 25)

Os discursos dos sujeitos demonstram um pensamento assentado na premissa da autonomia e da liberdade como ponto de partida da reflexão sobre a forma de utilizar o tempo livre e fazer escolhas autênticas. Ocorre o reconhecimento dos condicionantes culturais que afetam a qualidade do tempo livre. Contudo, é o sujeito, com sua liberdade, que decide como utilizar esse tempo livre. Autonomia, prazer, liberdade, gratuidade aproximam o conceito de tempo livre ao de ócio.

Cuenca (2008) concebe a experiência de ócio como aquela que é percebida de forma satisfatória, prazerosa, não obrigada e não necessária, sendo livre, gratuita, e com um fim em si mesma. Aquino e Martins (2007) defendem o tempo livre de modo ao máximo autocondicionado. Os discursos desses sujeitos caminham na direção de um tempo sem imposições externas que possibilita o exercício pleno de sua autonomia.

CATEGORIA B - Fazer aquilo de que gosta e o que dá prazer

Critério de inclusão: foram incluídas nessa categoria todas as Expressões-Chave que continham ideias que ligassem o tempo livre a atividades prazerosas, mas não estavam associadas ao planejamento

Ideias Centrais associadas a essa Categoria:

QT04 - Atividades de prazer

QT07 - Viajar e não programar o dia

QT09 - Atividades prazerosas

QT10 - Autonomia sobre o tempo livre

QT11 - Fazer o que gosta

QT12 - Atividades que dessem prazer

QT16 - Fazer o que gosta e dá prazer

QT17 - Fazer o que gosta com liberdade e sem cronômetro

QT18 - Fazer o que gosta sem preocupações, sem esperar recompensa

QT19 - Fazer coisas que a deixem feliz

QT20 - Fazer o que gosta

QT21 - Escolher atividades que queira fazer

QT22 - Atividades que dessem prazer

QT24 - Ter experiências significativas

QT26 - Fazer o que gosta

QT29 - Fazer o que gosta

DSC B

Tente descobrir o que gosta de fazer; faça o que deseja, e não o que os outros dizem ou indicam que é bom fazer. Então, primeiro recomendaria que a pessoa fizesse antes uma reflexão do que a faria mais feliz. Recomendaria atividades que proporcionassem prazer, autoconhecimento e realização pessoal. Atividades que fossem voltadas para ela, para o seu bem estar físico, mental e espiritual. Atividades livres que tragam prazer, satisfação pessoal, autorrealização. Atividades que a deixassem à vontade, de bem com a vida, relaxada e saudável. Recomendaria não programar o dia, deixar as coisas acontecerem, não contaminar esse tempo com preocupações. Saber equilibrar as atividades, dispondo tempo para o autoconhecimento, vida social, lazer, espiritualidade, etc.

Precisa-se usufruir de pequenas coisas que fazem sentir bem. Fazer o que se tiver que fazer com presença de corpo, mente, espírito, e levando em conta o tempo, o espaço e o contexto (atores e fatores),sem outras preocupações que não tenham a ver com o que tiver que fazer.

Estabelecer o seu propósito e fazer a coisa com amor e com qualidade, sem preocupação com recompensa. Entrar, realmente, no fluxo do que estiver fazendo. Descobrir o valor das pequenas coisas do tempo liberado, como observar o cotidiano. Para isso, é preciso ter autonomia sobre esse tempo, ou seja, fazer somente aquilo que se quer fazer de fato. Respeitar esse tempo livre, não permitir interrupções. Enfim, vivenciar algumas experiências livremente eleitas, satisfatórias e prazerosas que possam ir ao encontro do maior e melhor significado que dá para sua vida, desaprisionando-se das obrigações e imposições que o tempo e o espaço exigem das pessoas nesse mundo moderno. Conectar-se com seu interior e perceber o que de fato o faz sentir-se pleno a partir de você mesmo. Descobrir que tudo é passível de liberdade se assim você o decidir. (Sujeitos: 4, 7, 9, 10, 11, 12, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 26, 29)

Esse é um discurso dominante, compartilhado por 16 entrevistados. O mesmo acena no sentido de utilização do tempo livre de forma autocondicionada, como define Munné (1982) e como resultado de um voltar-se para si, para encontrar o que faz sentido, numa concepção integral do ser. Busca o equilíbrio entre as várias instâncias da vida: autoconhecimento, vida social e espiritual, lazer. Os sujeitos apresentam possibilidades de fruição do tempo livre associando-o à contemplação do cotidiano.

Esse discurso contém uma síntese de diversos conceitos que apontam que o tempo livre pode ser uma experiência de ócio, possuindo um caráter formativo, ao ser utilizado para se buscar o autodesenvolvimento e ser pleno de possibilidades, no qual o sujeito possui total autonomia e liberdade em suas ações.

CATEGORIA C - Visitar, estar e curtir pessoas queridas (família e amigos)

Critério de inclusão: foram incluídas nessa categoria todas as Expressões-Chave que continham ideias que ligassem o tempo livre a atividades prazerosas relacionadas à presença de entes queridos: amigos e parentes.

Ideias Centrais associadas a essa Categoria:

QT02 - Dedicar mais tempo para a família

QT03 - Com quem gostaria de estar nesses momentos

QT07 - Visitar pessoas queridas e brincar com os filhos

QT08 - Sair com a família

QT09 - Estar com quem gosta

QT10 - Compartilhar o tempo com quem se gosta

QT13 - Encontrar amigos

QT19 - Estar na companhia de pessoas queridas

QT21 - Fazer atividades com outras pessoas

QT27 - Curtir a vida com as pessoas de quem você gosta

DSC C

Escolher atividades que possa fazer na companhia de outras pessoas (família, amigos) e estar na companhia de pessoas queridas, que você ama e com quem se sente à vontade, que gostaria de ter ao seu lado nesses momentos. Compartilhar esse tempo somente com as pessoas de quem você verdadeiramente gosta. Visitar as pessoas queridas, como familiares e amigos que há muito tempo não vê. Brincar com os filhos. Encontrar amigos. Então, se recomendaria sair com a família, caminhar na praia, treinar caratê, sair com a ficante ou namorada, ir ao cinema, jogar pôker com os amigos, viajar, fazer um churrasco com os amigos, ler um bom livro. Também se recomendaria comprar um bom vinho ou cerveja para conversar com seus melhores amigos, escutar boas histórias de seu avô, meditar na varanda ou na praia ou simplesmente parar para pensar o que você fez de bem para outras pessoas no dia ou ainda se concentrar em não pensar apenas em coisas boas. (Sujeitos 2, 3, 7, 8, 9, 10, 13, 19, 21, 27)

Pode ser apontado aqui mais um dos paradoxos da contemporaneidade. Segundo Bauman (2001), atualmente as pessoas tendem a apresentar-se de forma cada vez mais independentes, ou se poderia melhor dizer, isoladas. Porém, quando surge a oportunidade, por menor que seja, de expressarem o que gostariam de fazer no seu tempo livre, vem à tona a necessidade de contato e de interação tanto com as pessoas, como consigo mesmas, num mundo onde não se permite ser, pois é exigido, a todo instante, o cultivo do ter. Dentro dessas condições aparentemente adequadas e conectadas com os valores da contemporaneidade, fica esse sujeito cada vez mais isolado, individualizado, disperso, solto e, como coloca Bauman (2001), desenvolvendo relações cada vez mais superficiais, com vínculos fluídos.

Nesse discurso, compartilhado por um terço dos entrevistados, os sujeitos trazem o componente relacional e afetivo do tempo livre, evidenciado pela busca de contato com as pessoas queridas. Aproxima-se da experiência de ócio por sua potencialidade de promover encontros criativos que originam desenvolvimento pessoal. Os sujeitos incluem um conjunto de atividades a serem feitas com outras pessoas, inclusive atividades de lazer, privilegiando também o lúdico, por meio do jogo e do brincar.

Para Cuenca (2008), a experiência de ócio permite promover encontros criativos que geram desenvolvimento pessoal. Vivida como encontro, produz o entrelaçamento com o outro, abrindo horizontes de compreensão e conhecimento.

CATEGORIA D - Viver intensamente e/ou usufruir o tempo

Critério de inclusão: foram incluídas nessa categoria todas as Expressões-Chave que continham ideias que ligassem o tempo livre ao viver intensamente e/ou estivessem associadas a usufruir bem o tempo e o momento de vida.

Ideias Centrais associadas a essa Categoria:

QT01 - Viver intensamente com poucas preocupações

QT10- Viver intensamente

QT15- Viver o momento

QT21- Usufruir do tempo

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Viver intensamente, buscando dar qualidade a cada dia, a cada momento, a cada experiência, preocupando-se menos com as pressões do dia a dia. Não pensar no que você precisará fazer depois. Viver o aqui e agora e usufruir do tempo de forma plena. (Sujeitos: 1, 10, 15, 21)

Esse discurso pode ser remetido ao que Csikszentmihalyi (2005) define como conceito de experiência ótima, colocando que um elemento chave para a sua vivência é a existência de um fim em si mesma, e que depende da capacidade de cada um de manter o controle consciente momento a momento, estar verdadeiramente presente, podendo cada pessoa conseguir, com seu esforço e criatividade, a satisfação, dentro de uma percepção de desafio, no qual a pessoa tem recursos para isso.

Pode-se fazer uma aproximação da experiência ótima com a experiência de ócio, porquanto esta precisa ter um fim em si mesmo, gerar desafios, motivação e ser percebida subjetivamente como forma de proporcionar prazer, realização e desenvolvimento. Isso significa que a sua qualificação como ótima não depende da atividade em si, mas da percepção que se tem da experiência.

CATEGORIA E - Não fazer nada e renovar-se

Critério de inclusão: foram incluídas nessa categoria todas as Expressões-Chave que continham ideias que ligassem o tempo livre ao ócio e ou estivessem associadas ao sentido de renovação.

Ideias Centrais associadas a essa Categoria:

QT11 - Não fazer nada, para se renovar

QT13 - Não fazer nada

QT16 - O ócio é uma recomendação que deve constar

QT20 - Não fazer nada

QT29 - Curtir o ócio

DSC E

Saber o que é ócio seria uma recomendação importante para este manual. Então reservar um tempo para fazer nada. Se permitir não fazer nada, quando assim achar que será bom, podendo vivenciar esse momento como uma experiência de puro ócio, pois o não fazer nada pode levar a uma renovação da pessoa, a um sentir-se melhor e diferente. (Sujeitos: 11, 13, 16, 20, 29)

Esse discurso torna explícita a relação do tempo livre com o ócio, entendido como um tempo de nada fazer, de orientação subjetiva, que representa, conforme Aquino e Martins (2007), o tempo verdadeiramente livre de que se pode dispor, vivenciado sem qualquer tipo de pressão ou compromisso com produtividade. Traz, ainda, a concepção do tempo livre enquanto tempo para o descanso e a reposição das energias, permitindo às pessoas que se renovem física e mentalmente.

CATEGORIA F - Descansar, desligar, relaxar, viver sem estresse

Critério de inclusão: foram incluídas nessa categoria todas as Expressões-Chave que continham ideias que ligassem o tempo livre ao descanso, relaxamento, alívio do estresse.

Ideias Centrais associadas a essa Categoria:

QT04 - Descanso

QT07 - Comer calmamente, sentar e observar a natureza

QT11 - Atividades relaxantes (artesanato e esporte) e fazer o que tem vontade

QT12 - Atividades tranquilizadoras e prazerosas

QT15 - Desligar-se de tudo

QT19 - Viver tranquilamente, sem estresse

QT23 - Escolher atividades relaxantes e longe do barulho

DSC F

Se fosse daqueles manuais de receitas prontas e com base nas minhas crenças, aconselharia para a pessoa viver de forma tranquila, sem estresse, desenvolvendo atividades que relaxam um pouco a mente, dando ênfase às artesanais e às práticas esportivas, que dão prazer e podem convocar a natureza como campo para as suas práticas.

Sugeriria então atividades que deixassem a pessoa tranquila (mente e corpo), objetivando bem- estar, sem se preocupar com o modismo. Aconselharia também a desligar-se de tudo que possa ser rotineiro, do cotidiano para sair do "piloto automático". Esquecer relógio, computador, email, ipod, celular, etc.

Recomendaria dispor de um tempo longe do ambiente natural de trabalho e rotina de casa. Permitir-se ficar só, ou, no máximo, com uma pessoa de acompanhante e fazer escolhas daquilo que somente possa proporcionar relaxamento. Evitar barulho de qualquer espécie (buzinas, som alto, eletrônico etc.).

Aconselharia também a viajar para uma serra, sentar em um lugar tranquilo, ou a se balançar em uma rede e contemplar a natureza. Tomar um vinho tinto e se alguém chegar perto, conversar coisas amenas. Dar atenção a sua respiração e fazer meditação. Descansar, comer calmamente e dormir muito.

Finalmente, feita a escolha do que fazer no tempo livre, esforçar-se para cumprir, não deixando que outras situações interfiram. Não deixar que ninguém interfira na sua escolha do uso desse tempo livre. (Sujeitos 2, 4, 7, 11,12, 15, 19)

Os benefícios advindos da prática de atividades que possam proporcionar relaxamento vêm sendo apontados desde a Antiguidade. Nesse discurso fazem-se presentes o descanso, a diversão, a ruptura com a rotina de trabalho, podendo proporcionar, segundo Prat (2008), um ócio entendido como diversão e descanso, trazendo uma condição de ruptura com a fadiga e o tédio.

Esse discurso propõe um contraponto ao que Beriaín (2008) analisa como fenômeno da pressa na contemporaneidade. Os sujeitos, que em suas rotinas executam várias ações simultâneas em ritmo acelerado e, mesmo assim, reclamam da falta de tempo querem, nesse tempo livre idealizado, prescrever ações simples do dia a dia como o relaxamento, o descanso, o desacelerar e desligar-se dos estímulos que os tornam ansiosos e apressados. Propõem ainda o tempo livre como repositor da energia física e mental.

CATEGORIA G - Realizar outras atividades específicas

Critério de inclusão: foram incluídas nessa categoria todas as Expressões-Chave que continham ideias que ligassem o tempo livre a certas atividades, mas não as relacionassem ao prazer, ao descanso ou ao relaxamento.

Ideias Centrais associadas a essa Categoria:

QT05 - Sugestões de roteiros de viagem

QT06 - Atividades não ligadas ao próprio trabalho

QT08 - Filmes e livros e ir à praia

QT13 - Acordar cedo, meditar, fazer exercício, escutar música, ler, fazer sexo, vida ao ar livre

QT20 - Cita algumas atividades específicas (conhecer lugares; mudar rotinas, seguir ritmo próprio)

QT21 - Cita atividades específicas

QT28 - Cita várias atividades

DSC G

Escolha atividades que possa fazer sozinho, que aconteçam a partir do contato com a natureza. Faça atividades que não estejam absolutamente ligadas ao trabalho, como por exemplo, para os não músicos e não escritores, ouvir música, ler um romance.

Durma cedo, acorde cedo, medite todos os dias, faça um exercício físico, escute música, assista a bons filmes, leia bons livros e escreva poesia, contemple a natureza; desfrute da vida ao ar livre, estabeleça novos roteiros de viagens; vá para lugares não conhecidos; escolha situações novas; faça uma ruptura da rotina.

Leia, dance, faça sexo. Enfim, siga e sinta o seu ritmo. (Sujeitos 5, 6, 8, 20, 21, 28)

Nesse discurso são apontadas atividades diversas, tornando possível convocar a dimensão subjetiva da experiência de ócio, pois, como coloca Rhoden (2008), as experiências de ócio como fenômeno psicossocial podem ser pensadas como oportunidades subjetivas de autodesenvolvimento, partindo de um conhecer a si por meio de atividades diversas, de intimidade e introspecção (parar e pensar sobre si, orar, meditar, contemplar).

Os sujeitos desse discurso privilegiam atividades diversificadas, incluindo lazer e diversão, sendo incluídas ações simples do cotidiano, como ouvir música, assistir a filmes, ler um livro, meditar, dentre outras citadas. Fica explícita a concepção de tempo livre como oposta ao trabalho, visando ao contato e ao cuidado consigo, assim como a ruptura com a rotina, por meio da busca do novo.

 

Considerações Finais

A partir das considerações acerca do significado do tempo livre na sociedade contemporânea, pode-se refletir a respeito das possibilidades de se fazer do tempo livre uma experiência plena de liberdade e autonomia, muito mais autocondicionada que heterocondicionada e menos à mercê das pressões consumistas.

Os sujeitos dos discursos, ao pensarem em uma situação ideal de tempo livre, imaginada a partir da criação hipotética de um manual sobre o tempo livre, sinalizam para atividades que possam ir ao encontro das legítimas necessidades humanas: autodesenvolvimento, encontro com o outro, vivência do lúdico, lazer com autonomia, reflexões pessoais, leveza, desaceleração, contemplação da natureza e meditação. Desse modo, apontam para a existência de um tempo livre cujo usufruto transcende o objetivo da mera reposição das energias para o trabalho, ou para um tempo menos heterocondicionado pelas pressões consumistas do mercado. Ao expressarem a vivência do lazer, significam-no como ação autônoma do sujeito, e não o lazer capturado pela indústria do consumo.

`Acredita-se que, se não ocorrer uma reflexão crítica do ser humano acerca do significado do tempo livre em sua vida e do que fazer com ele, corre-se o risco de que ele venha a ser uma mera extensão da vida laboral e uma presa fácil do sistema mercantil, que o destine para o consumo. Além de que, de acordo com Russel (2002), quando a atividade consciente da pessoa fica inteiramente voltada a um único propósito, o resultado, em muitos dos casos, tende a ocasionar uma perda de equilíbrio, seguida de algum tipo de distúrbio nervoso.

Os estudos sobre o tempo livre convocaram a repensar o significado dos termos comumente tidos como sinônimos na sociedade brasileira: o ócio e o lazer. Percebeu-se que nem todo tempo livre é vivido com liberdade, enquanto o ócio em seu potencial, orienta para esta possibilidade, no entanto o sujeito deve estar sensibilizado para este valor.

Assim, foi possível constatar, no presente estudo, que ao mesmo tempo em que os participantes da pesquisa estão inseridos nos ditames da contemporaneidade, na qual suas subjetividades são constituídas, apresentam, de forma notória, anseios por espaços/tempos que convoquem o contato consigo e com o outro numa condição de liberdade e autonomia, condições essenciais e atemporais para o desenvolvimento de qualquer ser humano.

 

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Recebido em 15 de dezembro de 2011
Aceito em 17 de agosto de 2012
Revisado em 21 de dezembro de 2012

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