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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148
Rev. Mal-Estar Subj vol.12 no.1-2 Fortaleza jun. 2012
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
Transferência, transmissão e subjetivação: Sobre a referência a Sócrates e Alcibíades em Lacan e Foucault1
Transfer, lransmission and subjectivation: About the reference to Socrates and Alcibiades in Lacan and Foucault
Transferencia, transmisión y subjetivación: Acerca de la referéncia a Socrates y Alcibiades en Lacan y Foucault
Chagement, transmission et subjectivation: Sur le reference à Socrates et Alcibiades dans Lacan et Foucault
Eduardo Leal CunhaI; Joel BirmanII
IDoutor em Saúde Coletiva (IMS/Uerj), Professor do Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social e do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). End.: Rua Riachuelo, 545, Ap.301 - CEP: 49015-160 - Aracaju SE. E-mail: dudalealc@uol.com.br
IIDoutor em Filosofia (USP), Professor Titular do Instituto de Psicologia da UFRJ e Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social da Uerj. End.: Rua Major Rubens Vaz, 426 - CEP: 22470-070 - Rio de Janeiro, RJ. E-mail: joelbirman@uol.com.br
RESUMO
Este artigo pretende discutir a relação transferencial a partir da sua dimensão ética, na qual se articulam a relação com o outro e os processos de subjetivação. Para isso, procura-se estabelecer um contraponto entre as leituras estabelecidas por Lacan e Foucault da relação entre Alcibíades e Sócrates, tomada por ambos os autores como referência de processo formativo. Desse modo, trabalha-se com as formulações de Lacan em torno da transmissão da psicanálise, nas quais ocupa lugar central a discussão sobre o laço transferencial, em especial na "Proposition du 9 octobre 1967", colocando-a em contraposição à leitura estabelecida por Foucault do cuidado de si e da relação mestre/discípulo no mundo helênico, em particular no curso proferido no Collège de France, que tem como título "L´hermeneutique du sujet". Considerando como em cada um desses autores as dimensões estrutural e política são apontadas como centrais ao laço formativo, em Lacan e Foucault, respectivamente, sinaliza-se a necessidade de articulação entre as mesmas com vistas a uma compreensão mais ampla da transferência, que dê conta precisamente de seu alcance ético. Para isso, procura-se inicialmente contextualizar a personagem socrática em cada um dos dois autores, articulando a referência ao mundo grego a seus respectivos projetos teóricos e destacando pontos de aproximação e de distanciamento.
Palavras-chave: Transferência, transmissão da psicanálise, ética, política, subjetivação.
ABSTRACT
This article discusses the transferential relationship from its ethical dimension, in which the relationship with the other and the processes of subjectivation articulate. In order to do that, it seeks to establish a counterpoint between the readings, by Lacan and Foucault, of the relationship between Socrates and Alcibiades, taken by both authors as a reference for the formative process. Thus, works with Lacan's formulations about the transmission of psychoanalysis, in which the discussion of the transference bond occupies a central place, especially in his "Proposition du 9 October 1967", placing it in opposition to the reading established by Foucault about the care of himself and the teacher/pupil relationship in the Hellenistic world, particularly in the course given at the Collège de France, entitled "L'hermeneutique du sujet". Considering how in each of these authors the structural and political dimensions are seen as central in the formative formation, in Lacan and Foucault, respectively, signals the need for an articulation between those dimensions, as seen in a broader understanding of the transference, which precisely account for their ethical reach. For this, firstly contextualizes the Socratic character in each of the two authors, linking the reference to the Greek world to their respective theoretical projects, thus highlighting points of closeness and distance.
Keywords: Transference, transmission of psychoanalysis, ethics, politics, subjectivation.
RESUMEN
El presente trabajo pretende debatir la relación de transferencia desde su dimensión ética, en la cual se articulan la relación con el otro y los procesos de subjetivación. Para eso, buscamos establecer un contrapunto entre las lecturas de Lacan y Foucault de la relación entre Alcibiades y Socrates, considerada por ambos autores como la referencia del proceso de formación. De esa manera, trabajamos con las formulaciones de Lacan en lo que dice respecto a la transmisión en psicoanálisis, en la cual ocupa el eje central, el debate acerca de la conexión transferencial, en especial en la Proposition du 9 octubre 1967, ubicándola en contraposición a la lectura establecida por Foucault acerca del cuidado de uno mismo y de la relación maestro/discípulo en el mundo helénico, en particular en el curso ministrado en el College de France que tiene como titulo L´hermeneutique du sujet. Al considerar la manera que cada uno de estos autores apuntan las conexiones formativas como centrales, las dimensiones estructural y política, en Lacan y Foucault, respectivamente, apuntadas para la necesidad de articulación entre las mismas, con el objetivo de comprender de manera más amplia de la transferencia, que logre su alcance ético. Para eso, buscamos inicialmente contextualizar el personaje socrático en cada uno de los dos autores, articulando la referencia al mundo griego a sus respectivos proyectos teóricos, con énfasis en los puntos que se acercan y que se distancian.
Palabras-clave: Transferencia, transmisión del psicoanálisis, ética, política, subjetivación.
RÉSUMÉ
Cet article traite de la relation de transfert construit sur sa dimension éthique, dans laquelle s'articulent le rapport avec l´autre et les processus de subjectivation. Visant ça, on essaye d´établir un contraste entre les lectures établies par Lacan et Foucault de la relation entre Socrate et Alcibiade, prises par les deux auteurs comme référence pour le processus de formation. Ainsi, nous travaillons avec les formulations de Lacan à propos de la transmission de la psychanalyse, dans lequelles occupe une place centrale le débat sur le transfert, en particulier dans la Proposition du 9 octobre 1967, en les plaçant en opposition à la lecture établie par Foucault du souci de soi et du rapport maître/élève dans le monde hellénistique, en particulier dans le cours donné au Collège de France, qui est intitulé L'Herméneutique du sujet. En considérant la manière dont les dimensions structurelle et politique sont considérés, chez Lacan et Foucault, respectivement, comme éléments centrales dans la formation, ont souligne la nécessité d'une articulation entre eux, pour une compréhension plus large du transfert, qui justement puisse rendre compte de sa portée éthique. Pour cela, on contextualise d'abord le caractère de Socrate dans chacun des deux auteurs, en reliant la référence au monde grec à leurs projets théoriques, en mettant ainsi en évidence des points de proximité et d'éloignement entre eux.
Mots-clés: Transfert, transmission de la psycahanlyse, étique, politique, subjectivation.
A Questão em Pauta
Grande parte da repercussão obtida pela obra de Michel Foucault no Brasil pode ser vinculada às críticas do filósofo francês à psicanálise, especialmente a partir do primeiro volume da sua história da sexualidade, no qual foi enunciado o vínculo entre o dispositivo analítico e o dispositivo da confissão (Foucault, 1984) e, ainda, em articulação com a obra de Gilles Deleuze e Felix Guattari, em especial "O Anti-Édipo" (Deleuze & Guattari, 2010). Foi nessa direção, como desenvolvimento de tal crítica e buscando seu entendimento, que foram feitos os esforços de articulação entre a obra foucaultiana e o pensamento psicanalítico (Chaves, 1988).
Nos últimos anos, no entanto, com a publicação dos cursos no Collège de France e da coletânea "Ditos e Escritos", primeiro na França e em seguida neste País, uma nova frente de investigação se abriu no campo das relações entre Foucault e a psicanálise, procurando agora encontrar pontos de aproximação entre o filósofo francês e a clínica psicanalítica, em particular, por meio do diálogo com a obra de Jacques Lacan (Chaves, 2011; Birman, 2000).
Nesse contexto, o que se vê no Brasil se articula a esforços feitos no mesmo sentido na França por autores inseridos na tradição lacaniana, como Jean Allouch. Discute-se, em especial, a inserção, operada por Foucault, da psicanálise no que ele descrevia como estruturas da espiritualidade, no centro das quais estariam as práticas do cuidado de si. É nesse contexto que o curso de 1981-1982, "A hermenêutica do sujeito", ganha especial importância.
Em Allouch (2007), especificamente, encontra-se um esboço de articulação entre Lacan e Foucault que parte de uma reflexão sobre a transmissão da psicanálise. Tal esboço, no entanto, embora procure responder positivamente à provocação foucaultiana presente no referido curso - pode a psicanálise se constituir em uma prática do cuidado de si? - e explore certas proximidades do funcionamento das relações de mestria no mundo helênico com o modelo lacaniano de transmissão da psicanálise, deixa de lado precisamente o que se estabelece como foco desta discussão, a saber: a dimensão política de tais relações de mestria.
Desse modo, o presente estudo parte também do curso de 1981/1982 e trata do encontro entre analista e analisando, mas não com a intenção de oferecer uma resposta a tal provocação ou mesmo de estabelecer ainda em Foucault uma possibilidade de salvar a psicanálise da crítica enunciada anteriormente sobre os seus vínculos com o dispositivo da confissão. O interesse deste estudo é evidenciar de que modo a dimensão política das relações de mestria destacada por Foucault pode contribuir de modo significativo para a compreensão dos laços que se estabelecem entre analista e analisando, tomados aqui como referência primordial do encontro com a alteridade, que é central aos processos de subjetivação.
Para isso, toma-se como objeto o contraponto entre a leitura, presente na "A Hermenêutica do sujeito", da relação entre Sócrates e Alcibíades e a referência lacaniana ao par grego no contexto do embate com a Associação Internacional de Psicanálise (IPA) e de busca de um novo modelo de formação e transmissão da psicanálise. É em torno de tal contraponto que se procura desenhar algumas questões cruciais para uma reflexão ético-política sobre o encontro analítico.
O que se passa no encontro com o outro? Qual o efeito produzido no sujeito pelo confronto com a alteridade? Como tal confronto incide sobre as formas de subjetivação, inclusive quanto ao vínculo necessário entre estas e as relações de poder? Nas trilhas deixadas por uma série de perguntas como estas, Foucault coloca em questão a própria ideia de intersubjetividade, especialmente na medida em que a mesma possa apontar para a existência prévia de sujeitos. Tomando a relação com o outro enquanto relação de poder (Foucault, 2010) e procurando estabelecer modos pelos quais os sujeitos se produzem a partir daí, Foucault se vê confrontado com a dimensão propriamente ética dos processos de subjetivação, a serem estabelecidos em conexão com tecnologias específicas de construção de si a partir de formas particulares de relação com o outro. Foi ainda seguindo tais trilhas que, no final de seu percurso teórico, ele se voltou para o mundo helênico e, em particular, para as relações que se poderia estabelecer com o outro - principalmente sob a forma da mestria - de modo que o processo de construção de si como sujeito, de encontro com a verdade sobre si mesmo e com a possibilidade de enunciá-la, possa ter lugar.
A exploração das técnicas de subjetivação presentes na antiguidade clássica terá lugar, sobretudo, no curso de 1981/1982 e começará precisamente por uma discussão da relação entre Sócrates e Alcibíades, na qual se coloca em primeiro plano não o amor, mas sim a política. Com efeito, é para governar os outros que Alcibíades precisa cuidar de si e é para saber do cuidado de si que recorre a Sócrates. Colocando a política e o cuidado de si em primeiro plano, Foucault desloca para um lugar secundário os problemas do amor e do saber, justamente aqueles privilegiados na leitura estabelecida por Lacan.
Por outro lado, a indagação lacaniana do tipo de problema colocado à psicanálise pela figura da mestria - materializada na relação entre Sócrates e Alcibíades - tem um ponto de partida claro no enfrentamento das posições da IPA e do que ficou conhecido na história do movimento psicanalítico como "Psicologia do ego" e também do que se apresentava então, ou mesmo hoje, como "Psicanálise das relações de objeto". É na interlocução direta com essa tradição eminentemente anglo-americana que Lacan propõe o deslocamento radical de uma técnica para uma ética psicanalítica. Assim, os temas da transferência, sobretudo com a crítica à ideia de contratransferência, e do acesso à realidade pela via da compreensão adaptativa do eu, estão postos sobre a mesa.
Há que se considerar ainda a categoria de compreensão, também presente no embate lacaniano dos anos 1950 - para o qual se tomou como referência o texto sobre a situação da psicanálise, de 1956 (Lacan, 1988a), e o Seminário sobre a ética da psicanálise (Lacan, 1988c) - a qual parece produzir um território comum entre estes dois campos temáticos, da transferência e dos fins adaptativos do processo analítico, direcionando então o olhar do pesquisador diretamente para o que se passa na relação analisando/analista. Tal categoria, segundo Lacan, conduziria por um desfiladeiro de mal-entendidos para bem longe da invenção freudiana do inconsciente (Lacan, 1988b), em função de que nela se condensariam as figuras do entendimento e da empatia.
Pois, ao contrário, é no campo da linguagem e do simbólico que a transferência deve se inscrever. Essa proposição se articula à formulação presente no Seminário VIII, de 1960/61, de que não é de intersubjetividade que se trata na relação transferencial (Lacan, 1992), assertiva para cuja demonstração ele vai recorrer, como na fala de 1967, ao "Banquete", de Platão. Ali, o conceito chave será Agalma, retomado do seminário de 1960/1961 sobre a transferência, e articulado à leitura que Lacan fará da relação que se estabelece entre Sócrates e Alcibíades nas fronteiras entre o amor e o saber, isto é, entre Eros e Logos.
Tem-se, portanto, duas leituras possíveis das relações entre mestre e discípulo na antiguidade clássica, sendo que ambas tomam as figuras de Sócrates e Alcibíades como exemplares. Também em ambas a categoria de intersubjetividade parece posta em questão, junto com a própria ideia de sujeito, mas, ao lado de tais semelhanças, algumas diferenças parecem desenhar-se, especialmente no contraponto entre a insistência lacaniana no caráter estrutural e a afirmação foucaultiana de sua dimensão política, social e historicamente determinada. É em torno de tais aproximações e descontinuidades que o presente trabalho se constrói, procurando desdobrar, a partir dessas duas diferentes leituras, suas múltiplas possibilidades, especialmente numa perspectiva ética.
Lacan: Sócrates e Alcibíades, Amor e Saber
Em Lacan, o chamado à relação entre Sócrates e Alcibíades se dá em torno da noção de Agalma, a qual aparece com destaque no Seminário sobre a transferência, dos anos 1960-1961, e é retomada na "Proposição de 09 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola" que, por sua vez, conduz os seus leitores de volta à década de 1950 e ao texto sobre a "Situação da psicanálise e formação do analista em 1956". Não se pode esquecer de que esse período primeiro é marcado ainda pelo "Seminário sobre a ética da psicanálise". Como fio condutor desses diversos momentos é preciso destacar a inquietação de Lacan diante da questão da transmissão em psicanálise e seu enfrentamento com a IPA. Essa inquietação está presente em outros momentos, anteriores, como na introdução ao "Seminário sobre o eu", dos anos 1954-1955, na qual aparece também a referência a Sócrates, pondo em questão, nesse caso, o vínculo entre o saber e o modelo de ciência que a IPA pretendia seguir (Lacan, 1987).
É contra uma instituição e seus poderes que Lacan fala. É no contexto histórico desse desafio ao movimento psicanalítico hegemônico naquela época que Lacan articula, de um modo que não será mais possível separar em campos opostos, ética e transferência, recorrendo em seu percurso à relação - de amor e de mestria - entre Sócrates e Alcibíades. Retome-se o fio cronológico de tal articulação, atendendo, dessa forma, ao apelo do próprio Lacan, que pede que se leia a proposição de 1967 tendo em mente o texto da década de 1950.
Naquele texto, Lacan começa por interrogar dois temas caros ao movimento psicanalítico e que parecem colocar a questão da transmissão para além de qualquer processo meramente formativo ou pedagógico. São estes: 1) o tema da filiação à Freud, que deveria se deslocar do registro imaginário para o simbólico, e 2) o da "incomunicabilidade da nossa experiência" (Lacan 1956/1966, p. 462), a qual, precisamente, pode fazer os indivíduos prisioneiros de tal filiação imaginária. É a partir disso que o problema da transferência se coloca, tendo como referência necessária a dita análise didática, eixo central da experiência de formação do psicanalista no seio da IPA.
Ocupa lugar vital nessa retomada da problemática transferencial no quadro da transmissão em psicanálise a crítica incisiva à noção de contratransferência. Trata-se, para Lacan, ao criticar aí uma espécie de transferência invertida, da afirmação do caráter simbólico do laço transferencial. É no campo da linguagem e não no dos sentimentos e da empatia que uma análise deve se dar, ainda mais se, ao seu final, o analisando deverá se colocar em outro lugar, no de analista. A contratransferência faria, então, parte desse aprisionamento no imaginário, do qual a estrita referência à linguagem e à ordem simbólica, colocadas devidamente em destaque, deve retirá-lo.
Para se contrapor à prevalência dos sentimentos e de valores que ele qualifica como psicológicos, dentre os quais destaca-se o de intuição, Lacan reafirma, apoiando-se em Freud, o primado da ordem simbólica fundada no Édipo. Dessa forma, inscreve a problemática da transferência no registro edípico, submetendo-a a uma estrutura triangular na qual a figura do terceiro fará operar o ultrapassamento crucial da relação dual. Ou seja, a transferência, sob essa perspectiva, já não pode ser reduzida a uma constelação de sentimentos, o que conduzirá, entre o Seminário sobre a transferência e o texto de 1967, à releitura da experiência do amor, no centro da qual aparecerá como modelo a relação de mestria instalada entre Sócrates e Alcibíades.
Há, no entanto, outro elemento crucial na leitura lacaniana da relação transferencial, enquanto experiência central para uma ética da psicanálise, que se refere mais uma vez ao contexto de tal leitura, qual seja: o modelo consagrado da análise didática como elemento nuclear da formação analítica. Trata-se da ideia de gradus, que surge no texto de 1956 e é retomada onze anos depois. Como distinção entre gradus e hierarquia pretende definir, como grau, o reconhecimento do analisando como analista e a possibilidade de ocupar tal lugar, contrapondo-se ao modelo da IPA, no qual essa posição - que deveria ser alcançada ao fim da experiência singular da análise - é dependente ou mesmo reduzida à que o indivíduo ocupa na hierarquia institucional.
Desse modo, é o grau de analista que está posto em questão, segundo Lacan, em um modelo que, ao apoiar-se na identificação do candidato/analisando ao eu do mestre/analista e que se inscreve no registro psicológico dos sentimentos - ditos transferenciais e contratransferenciais -, acaba aprisionando referido grau em uma dimensão imaginária, submetida, para completar, a uma hierarquia institucional, e que se desdobra eventualmente em fascismo institucional, a partir da redução da experiência analítica ao plano do ritual (Lacan, 1966/1988a).
Essa é a situação da psicanálise cem anos depois do nascimento de Freud e é para fazê-la sair dessa situação impossível que Lacan lançará a sua proposição de 1967, cujo ponto de partida é a separação necessária entre o gradus e a hierarquia, assim como a construção correlata de um modelo de formação que a permita.
Chega-se, então, ao texto de 1967, o qual é orientado por dois eixos principais: em primeiro lugar, a separação entre a hierarquia e o gradus que daria conta - é o que parece implícito nas formulações de Lacan - da equação de poder implicada nas fórmulas da transmissão da psicanálise; em segundo lugar, como contrapartida, a afirmação do caráter simbólico e estrutural da transferência, ou seja, o deslocamento do campo transferencial dos domínios do imaginário - e da psicologia - para o campo simbólico.
O ponto de articulação desses dois eixos será a noção de sujeito suposto saber, enquanto constituinte da posição do analista na estrutura transferencial - capaz de apagar qualquer distinção entre análise didática e terapêutica ao colocar em cena a mesma estrutura, construída em torno da busca de um saber que revele a verdade sobre o sujeito e seu desejo -, e que aparece referida à ideia de Agalma. O que remete ao "Banquete" e, assim, a Sócrates e Alcibíades, como formula Lacan:
Isto é para salientar a identidade entre o algoritmo aqui precisado [do suposto saber] e o que é conotado em O Banquete como o Agalma. Onde se diz melhor do que ali faz Alcibíades? Que as emboscadas do amor transferencial não têm por fim senão obter aquilo de que ele pensa ser Sócrates o continente ingrato? Mas, quem sabe melhor do que Sócrates que ele só detém a significação que gera por reter esse nada, o que lhe permite remeter Alcibíades ao destinatário presente de seu discurso, Agatão (como que por acaso)? Isto é para lhes ensinar que, ao se obcecarem com o que lhes concerne no discurso do psicanalisante, vocês ainda não chegaram lá. Mas, será que isso é tudo, se aqui o psicanalisante é idêntico ao Agalma, a maravilha que nos deslumbra, a nós terceiros, como Alcibíades? Não será esta, para nós, uma oportunidade de vermos isolar-se o puro viés do sujeito como relação livre com o significante, aquela pela qual se isola o desejo do saber como desejo do Outro? Como todos os casos particulares que compõem o milagre grego, esse só nos apresenta fechada a caixa de Pandora. Aberta, ela é a psicanálise, da qual Alcibíades não tinha necessidade (Lacan, 2003, p. 256).
A transferência, então, já não será mais inscrita no registro do imaginário, mas deve ser pensada a partir do modelo estrutural, organizada que é em torno de um vazio que põe em movimento o significante, determinação última do sujeito que se verá, assim, ao fim do processo, destituído, capturado em sua divisão e em sua insignificância. A experiência transferencial será então uma experiência fundamentalmente ética, na qual o sujeito encontra seu limite ao abrir mão da fantasia para não renunciar ao movimento do desejo. Essa experiência é ordenada pela triangulação edípica na qual a lei da castração define o posicionamento do sujeito em face do desejo do Outro.
É importante perceber como a problemática transferencial e, mais especificamente, sua dimensão ética, embora surja principalmente a partir de um tema aparentemente interno ao movimento psicanalítico - problemas da análise didática, da formação de analistas e da transmissão da análise -, acaba por remeter ao tema dos limites postos aos sujeitos pelos modos de operação dos laços sociais. Não é acidental, de modo algum, que a proposição do passe se encerre com a referência aos campos de concentração e a referência à citação do psicanalista que diz que seu conformismo diante das formas instituídas se dá porque "elas me asseguram sem problemas uma rotina que gera minha comodidade." (Lacan, 2003, p. 264)
No Seminário sobre a transferência, encontra-se uma discussão mais aprofundada da noção de Agalma e uma leitura relativamente extensa do "Banquete", de Platão, a partir da qual, tendo como referência Sócrates e Alcibíades, Lacan expõe a sua compreensão da relação transferencial como núcleo da experiência ética tornada possível pelo pensamento freudiano.
Há na referência ao vínculo transferencial, baseada na ideia de Agalma e na intervenção de Alcibíades no Banquete, dois elementos fundamentais: o primeiro se refere à exploração por Lacan do próprio sentido de Agalma, na qual se sobrepõem os significados de ornamento e de joia, bem, valor; o segundo se refere ao fato de que Sócrates introduz, entre ele e Alcibíades, Agatão, o que, segundo Lacan, conduz à figura do terceiro e ao modelo estrutural do triângulo edípico.
No cruzamento desses dois eixos, mais uma vez o problema que se revelava a Lacan era a trama da transmissão na situação da psicanálise em 1956: como deslocar-se, na relação a dois que se encontra no setting, do registro imaginário para o do simbólico? A cena entre Sócrates e Alcibíades e, a partir dela, a transferência, são reduzidas à dimensão estrutural, e é assim que a transferência se torna o campo próprio de emergência do significante e do inconsciente, no qual o sexual, referido ao desejo e objeto, assume posição dominante.
Enquanto Diotima-filósofa faz da beleza que provoca o amor, e do próprio amor ao belo corpo, uma ilusão com função de meio a um fim mais alto; enquanto, também, os pós-freudianos viam no amor de transferência a mise-en-scène de uma ilusão a serviço da análise curativa, Alcibíades nos mostra porque a transferência é a atualização (mise-en-acte) da realidade sexual do inconsciente (Sbano, 1998, p.68).
Agalma coloca em cena o desejo de Alcibíades fazendo de Sócrates o objeto. Mas tais agalmata dizem ainda do saber de Sócrates do mesmo modo como aparece na busca de Alcibíades, e, mais importante, em seu desejo. É em torno do saber que se configuram tanto os agalmata de Sócrates, quanto o amor de Alcibíades, amor que Lacan aproxima de modo radical daquilo que Freud chamou amor de transferência. Com certa sutileza, Lacan opera ao mesmo tempo alguns movimentos importantes: retira o amor do campo dos sentimentos e o instala no registro das trocas simbólicas; funda a transmissão do saber da psicanálise na experiência transferencial; vincula ainda tal saber - formativo - à verdade do desejo inconsciente; perturba a relação intersubjetiva ressaltando, por fim, o lugar de objeto que Sócrates acabará por ocupar, já que o discurso de Alcibíades "fala de um objeto que o faz sujeito" (Sbano, 1998, p. 70), pois Sócrates aí não aparece como sujeito, e sim como o objeto (parcial) por meio do qual Alcibíades se afirma como sujeito ao ser confrontado com seu desejo. Trata-se aí, portanto, não apenas de transmissão de saber, ou de amor, mas de subjetivação.
Por outro lado, voltando ao texto de Platão, ao introduzir o terceiro, Sócrates introduz na relação, aparentemente dual, entre mestre e discípulo, a referência ao Édipo.
Em outras palavras, no mínimo eles são três. Esse fato notável, Sócrates não deixa escapar em sua resposta a Alcibíades, quando, depois daquela extraordinária confissão, aquela confissão pública, aquela tirada que está entre a declaração de amor e quase, poderíamos dizer, a difamação de Sócrates, este lhe responde: não foi para mim que você falou, mas para Agatão. (Lacan, 1992, p.140).
Com isso, vinculam-se Édipo e transferência, agora em função não da reativação das imagos parentais ou do reaparecimento de sentimentos proibidos em relação ao pai e que podem ser vividos na relação com a figura desse pai ideal que é o analista. É o Édipo que possibilita e instala a transferência, ou ao menos sua colocação em primeiro plano, já que, pela via da linguagem, o elemento terceiro e a interdição, portanto, a prevalência da dimensão simbólica, já estariam presentes desde o início. Como se a marca distintiva da relação transferencial fosse uma espécie de exigência de recurso ao Édipo, ao terceiro. Estaria aí em jogo, no que Lacan define como topologia, o "essencial da descoberta analítica (...) a relação do sujeito com o simbólico, na medida em que ele é essencialmente distinto do imaginário e de sua captura" (Lacan, 1992, p.140).
Lacan evidencia a dimensão estrutural do que se passa na relação aparentemente dual estabelecida na transferência, invocando a figura do terceiro, dando novo sentido à experiência do amor e fazendo com que a transmissão de saber ali operada seja vinculada ao registro simbólico e não referida ao plano imaginário da identificação com o analista. Mais ainda, retoma Sócrates em relação a Alcibíades não como sujeito, mas como objeto, parcial, causa de desejo (Sbano, 1998), já que mais do que tudo, Sócrates, tanto quanto o analista, não importa ali enquanto individualidade personalizada, mas pela função que desempenha. É assim que o Agalma passa ao primeiro plano do Diálogo que é tomado como modelo do embate transferencial. Com isso, Lacan despersonaliza a relação transferencial e se livra de categorias psicologizantes como intuição e empatia.
Mas, em contrapartida, arrisca-se a pagar o preço de retirar as relações concretas do seu contexto sócio-histórico. Desse modo, transforma Sócrates e Alcibíades em referências de lugar ou função e negligencia a dimensão política do que se passa entre eles, precisamente aquilo para o que Foucault convocará a atenção das pessoas. Sócrates, na leitura lacaniana do diálogo com Alcibíades, é marcado por "uma profunda indiferença a tudo que se passa em torno dele, ainda que seja o mais dramático" (Lacan, 1992 p.160). Sócrates, em Foucault, é uma espécie de herói disposto a sacrificar a própria vida em nome da transformação do outro, necessária à vida na Cidade.
Foucault: Sócrates e Alcibíades, Subjetivação e Poder
Como contraposição à leitura lacaniana da relação entre Sócrates e Alcibíades, tomar-se-á como referência primordial em Foucault as primeiras aulas do curso "A hermenêutica do sujeito", proferido no Collège de France em 1981-1982. Nesse contexto, a figura de Sócrates aparece no ponto inicial de produção do que Foucault descreve como as tecnologias de si e marca de modo particular a diferença entre os modos de relação do sujeito com a verdade na antiguidade clássica e na tradição cristã, focalizada a partir do modelo da confissão no primeiro volume de sua "História da sexualidade" (Foucault, 1984).
Um dos argumentos centrais das formulações de Foucault a respeito de tal distinção é a prevalência nos gregos do cuidado de si, o que instala um modo de relação com a verdade na construção de si radicalmente diferente daquele que estará presente na pastoral cristã, quando é o saber sobre si, buscado por meio da introspecção e de técnicas de deciframento, que passará a ser o foco principal da relação consigo mesmo, vinculando-se ainda a formas de obediência, o que se materializa no dispositivo da confissão.
Nesse sentido, o recurso ao mundo helênico se dará enquanto tentativa de contrapor, ao modelo da obediência e da confissão, um modo de relação com a verdade no centro da qual esteja não a sujeição, mas a subjetivação (Gros, 2006). Trata-se, portanto, de uma reflexão ética que se vincula diretamente a um problema político, que é o problema do governo, governo de si e dos outros, pois "Foucault não abandona o político para se dedicar à ética, mas complica o estudo das governamentalidades com a exploração do cuidado de si" (Gros, 2006, p. 620).
É importante ter em mente que interessa a Foucault não apenas a distinção entre os mandamentos cuida de si e conhece-te a ti mesmo, enquanto imperativos centrais a diferentes modos de emergência do sujeito, mas sobretudo o deslocamento que se dá na história do Ocidente, de modo que no início o segundo estava submetido ao primeiro e progressivamente tal hierarquia se inverteu. Desse modo, Sócrates interessa a Foucault porque, ao mesmo tempo em que é tido na filosofia como autor primordial do mandamento de conhecer-se a si mesmo (Foucault, 2006), nele esse mandamento se inseria, segundo Foucault, num quadro geral dominado pela injunção a cuidar de si que, além disso, voltava-se mais para a presença do sujeito no mundo, enquanto cidadão da polis, do que para seu interior.
Assim, ao se referir à relação entre sujeito e verdade na tradição inicial do cuidado de si, Foucault destaca:
Temos, portanto, todo um conjunto de técnicas cuja finalidade é vincular a verdade e o sujeito. Mas é preciso bem compreender: não se trata de descobrir uma verdade no sujeito nem de fazer da alma o lugar em que, por um parentesco de essência ou por um direito de origem, reside a verdade; tampouco trata-se de fazer da alma o objeto de um discurso verdadeiro (Foucault, 2006, p.608).
Sócrates e Alcibíades são, portanto, considerados por Foucault no quadro de uma discussão mais ampla sobre as tecnologias de si e os processos de subjetivação, a qual incluirá, no que se refere à investigação do mundo helênico, a consideração das relações de mestria, pensadas como recurso ao outro enquanto mediador da relação consigo mesmo.
A relação de Alcibíades com Sócrates recebe, assim, na perspectiva foucaultiana, ao menos três dimensões: uma primeira, política, pois Alcibíades é um cidadão que deve se preparar para o governo dos outros; uma segunda, que se denominará ético/subjetiva, em razão de que, para isso, deve governar a si mesmo e modificar-se de modo a alcançar tal objetivo; e uma última, formativa, afinal, o cuidado de si do qual deve se ocupar o discípulo envolve uma série de exercícios e implica não apenas a aquisição de certo conhecimento, mas também a presença necessária de alguém que o dirija durante o processo.
O modelo socrático-platônico de mestria será ainda aquele em que, pela primeira vez de modo claro, o conhecimento de si assume o primeiro plano, momento crucial, portanto, em referência à inversão definitiva que se dará no cristianismo, e que, no campo da filosofia, a distinguirá daquilo que Foucault descreve como estruturas da espiritualidade. Referindo-se ao diálogo platônico "Alcibíades", observa Foucault:
De fato, recuperando e reintegrando algumas daquelas técnicas anteriores, arcaicas, preexistentes, todo o movimento do pensamento platônico a propósito do cuidado de si consistirá, precisamente, em dispô-las e subordiná-las ao grande princípio do conhece-te a ti mesmo. (...) Pode-se dizer que, uma vez aberto o espaço do cuidado de si e uma vez definido o eu como sendo a alma, todo o espaço assim aberto é coberto pelo princípio do conhece-te a ti mesmo (Foucault, 2006, p.86).
Mas, nessa sua condução ao primeiro plano, o conhecimento de si ainda carrega consigo o cuidado. Há, como destaca Foucault logo em seguida, uma sobreposição, um "apelo recíproco" (Foucault, 2006), o que será progressivamente perdido e, em tal perda, nesse longo processo, encontrar-se-á, também, parece importante registrar, um apagamento da dimensão política, o esquecimento dos outros em uma técnica que se voltará cada vez mais para si.
A afirmação do valor do conhecimento não produz em Sócrates, como produzirá no cristianismo tardio, o apagamento do cuidado, o qual, como afirmado acima, se apoiará no encontro de três registros: o da política, o da pedagogia, o do conhecimento de si (Foucault, 2006). Sendo que parece razoável destacar certa primazia do primeiro registro: "O cuidado de si que Sócrates espera de Alcibíades tem finalidade prioritariamente política" (Muchail, 2009, p.351). É a primazia do político que faz com que a relação consigo passe pela "mediação da cidade" (Muchail, 2009, p.351).
A mestria de tipo socrático-platônico estava vinculada diretamente à sua finalidade última: o cuidado dos outros, o bom governo da cidade. Era-se mestre para possibilitar ao discípulo que este desse uma bela forma à sua própria vida de tal modo que pudesse, ao olhar para si mesmo, reconhecer-se no elemento divino, alcançando a sabedoria (discernimento) e, por conseqüência, governando a cidade com justiça (Francisco, 2010, p.36).
Pode-se afirmar, então, que a mestria de tipo socrático-platônico, ao incitar o outro - o jovem - a cuidar de si mesmo, busca fundamentalmente, por meio do conhecimento/reconhecimento do si mesmo do discípulo no elemento divino de sua própria alma, prepará-lo para governar a cidade (cuidado dos outros). Trata-se de induzir o outro a um processo de conversão a si, no qual, pelo reconhecimento de si no elemento divino que lhe constitui, adquire-se a virtude (a sabedoria, o discernimento). Trata-se, enfim, de formá-lo, primordialmente - ressaltamos -, um sujeito político (Francisco, 2010, p.38).
Dessa forma, emergem os elementos centrais da mestria socrática, cuja matriz é a relação entre Sócrates e Alcibíades. Em primeiro lugar, é preciso consentir em "se colocar sob a autoridade de um outro" (Foucault, 2006, p.603). Lembrando que essa autoridade se instala com a direção da alma e não é efeito necessário direto da hierarquia social, pois o discípulo e mestre podem ser efetivamente pessoas da mesma idade ou de importância social equivalente, embora especificamente no quadro em que se insere Alcibíades, a relação com o mestre seja marcada por diferenças de idade e de experiência que justificam a hierarquia. Para aprender a governar, é preciso antes, na juventude, ser governado (Foucault, 2006), pois "o cuidado de si é, com efeito, algo que tem sempre necessidade de passar pela relação com um outro que é o mestre" (Foucault, 2006, p.73).
Retoma-se aqui, de certo modo, uma consideração presente no texto "O sujeito e o poder", com a qual Foucault enunciava que em toda relação intersubjetiva existe uma relação de poder (Foucault, 2010).
Em Sócrates, na relação com seu discípulo, trata-se de exercer um poder, mas de uma forma particular, um "modo específico de exercer o poder pedagógico" (Kohan, 2009, p.417). Dessa forma, o que o texto de Foucault destaca por intermédio da personagem que ele descreve na figura de Sócrates é o mestre que não recusa a sua posição de poder, mas precisa ocupá-la de um modo singular para que, por meio dela, o outro seja convocado a encontrar, a gestar sua própria potência, como bem observa Walter Kohan ao comentar a leitura estabelecida por Foucault desse momento socrático-platônico do cuidado de si:
Sócrates quer estabelecer com Alcibíades uma relação diferente da que esse jovem teve com todos os seus amantes anteriores: quer mostrar-se não só como superior a ele, mas como o único capaz de dar-lhe a potência, dýnamis, que Alcibíades deseja para sua vida política (Kohan, 2009, p.418).
Em segundo lugar, deve-se considerar que Sócrates ocupa uma posição não apenas ética, mas sobretudo política, de responsabilidade frente aos outros cidadãos; e não apenas diante de Alcibíades, mas diante de todo aquele que cruza o seu caminho. Posição ou função na qual desafia o outro como sujeito - pergunta como governa as suas ações, como se ocupa da verdade e da razão - com uma finalidade última, o bem da cidade, pelo que os atenienses lhe devem agradecimento (Foucault, 2006). Posição que, inclusive, desafia os modos estabelecidos e os espaços previamente definidos para exercer a ação política por meio do bem dizer, da palavra verdadeira, da parrêsia, pois Sócrates prefere a rua à assembleia e é fora da arena oficial que ele corre os riscos da ação política, vinculando referida ação a seu ethos (Foucault, 2009).
Cabe-nos ressaltar que as relações de mestria que Foucault identifica, no geral, se restringem, em certa medida, à relação mestre-discípulo, mas não da maneira como entendemos o mestre e o discípulo na contemporaneidade. O mestre não exercerá papel de professor, e tampouco o discípulo de apenas aluno. Trata-se de alguém que exercerá uma função - a função de mestre -, alguém que, mais precisamente, manterá com o jovem uma relação indispensável à formação deste (Francisco, 2010, p.30).
Duas importantes considerações aproximam e afastam a leitura foucaultiana da relação entre Sócrates e Alcibíades daquela empreendida por Lacan. A primeira delas é um ponto de aproximação e se refere à inserção da leitura em comento no quadro de uma problemática geral, a da relação entre subjetividade e verdade. Ou ainda, ao modo como se dá a "emergência de uma subjetividade" (Gros, 2006, p.635). A segunda implica distanciamento e diz respeito ao fato de que agora a hierarquia não é apenas reconhecida, mas posta em primeiro plano, já que a mesma relação é tomada no âmbito de uma investigação das relações de mestria no mundo clássico2.
Foucault toma como ponto de partida, especificamente em relação à posição de Sócrates dentre os grandes mestres gregos, a vinculação entre o cuidado de si e o governo da polis. Pois na figura socrática, como destaca a partir do texto da "Apologia a Sócrates", a dimensão subjetiva da experiência do cuidado de si terá fundamentalmente uma função política, ou, nas palavras de Foucault: "a necessidade de cuidar de si está vinculada ao exercício do poder" (Foucault, 2006, p.47).
Tal experiência será, portanto:
Uma função útil para a cidade, mais útil até que a vitória de um atleta em Olímpia, pois ensinando os cidadãos a ocuparem-se consigo mesmos (mais do que com seus bens), ensina-se-lhes também a ocuparem-se com a própria cidade (mais do que com seus negócios materiais) (Foucault, 2006, p.598).
Marcava ainda este "ocupar-se comigo mesmo" o fato de que se tratava de um conjunto de práticas inacessível a todos. Ou seja, não apenas uma tarefa, mas um direito a ser conquistado e, por outro lado, um privilégio que não podia ser desprezado, e isso, mesmo antes de Sócrates, desde os espartanos, "um privilégio político" (Foucault, 2006, p.42). Ou ainda, especificamente com Sócrates e a incorporação necessária do cuidado de si à filosofia, mais do que um privilégio, uma obrigação, tanto ética, quanto política, pois é importante lembrar que um dos temas de base dos diálogos platônicos da juventude, nos quais aparece o tema da formação do jovem para o governo da cidade, é o da legitimação de sua posição, e do poder que teriam recebido simplesmente pelo nascimento (Foucault, 2006).
Essa questão da legitimidade, ao se desdobrar em um dever de formação que, ao mesmo tempo fará de tal formação condição para a ocupação de certo lugar e para a posse de determinado poder, aparece também em relação à figura do mestre. É cumprindo um dever, ou, mais do que isso, um desígnio dos deuses, que Sócrates se coloca na posição de mestre, interpela os jovens e responde - ou não - às demandas de Alcibíades.
Ainda em relação ao Alcibíades e à sua contextualização, tanto na obra de Platão, quanto na tradição do cuidado de si, foco da sua leitura, Foucault vai destacar três temas centrais, três questões - "relação com a ação política, relação com a pedagogia, relação com a erótica dos rapazes" (Foucault, 2006, p.93) -, o que aponta não apenas para a complexidade do que se passaria entre Sócrates e Alcibíades, mas, o que parece mais importante, para as três dimensões da relação de mestria e, nesse sentido, talvez a contribuição da leitura de Foucault para a psicanálise seja a de atrair o olhar para aquela dimensão política que, curiosamente, em Lacan, parece colocada em segundo plano, apesar do contexto de disputa no movimento psicanalítico em que a referência aos gregos aparece em sua obra.
Evidentemente, se está ciente da afirmação lacaniana de que a relação transferencial não é uma relação intersubjetiva, à qual inclusive já aqui se referiu, mas se a toma de modo crítico, colocando a questão de que talvez seja precisamente esse o problema: desconsiderar a dimensão política do que se passa na transferência, em especial quando nela se encerram ainda os fantasmas da dinâmica institucional que disparam as engrenagens de transmissão da psicanálise. Pois para além da dimensão estrutural, destacada de modo preciso por Lacan, se fazem presentes ali, também, as dimensões social e política do encontro entre analista e analisando.
É no registro especificamente da dimensão política que se insere o problema da hierarquia em sua dupla face. Em primeiro lugar, o cuidado de si e o saber necessário a esse cuidado se orientam em última instância para o exercício de um poder, o cuidado dos outros na polis. Em segundo lugar, para ocupar-se de si e conhecer a si mesmo é preciso submeter-se à autoridade de outro. A mestria seria, desse modo, indissociável da gestão da hierarquia e não haveria, portanto, como isolá-la na transmissão do gradus.
A hierarquia é necessária porque a ela está vinculada a posição da mestria e não necessariamente uma posição social. Ao lado disso, a figura do mestre é indispensável ao cuidado de si mesmo na medida em que seu foco é menos a transmissão de um saber do que a constituição do sujeito. "O mestre é um operador na reforma do indivíduo e na formação do indivíduo como sujeito. É o mediador na relação do indivíduo com sua constituição de sujeito" (Foucault, 2006, p.160).
Transferência: Entre o Simbólico e o Político
Como aponta de modo bastante preciso Rajchman (1993), as perspectivas éticas de Foucault e Lacan são marcadas por dificuldade semelhante: a busca de uma ética que seja sem Bem. Ou seja, ambos os autores recusam o conforto de um código moral ou mesmo de um sentimento moral e localizam devidamente a tarefa ética no encontro com a alteridade, sem garantias ou álibis.
Vale lembrar que a própria psicanálise, na leitura que dela tem Foucault, tanto a partir de Freud, quanto de Lacan, pode ser incluída no registro do cuidado de si em função de sua vinculação às ditas estruturas de espiritualidade, nas quais a possibilidade do conhecimento está vinculada à transformação do sujeito, ou seja, nas quais saber e subjetivação são indissociáveis (Foucault, 2006).
A partir de tal embate comum, no entanto, estratégias teóricas diferentes são postas em jogo e parece importante destacar como, a partir do mesmo modelo, a relação entre Sócrates e Alcibíades, duas ênfases distintas se evidenciam, embora, como se pretende demonstrar, ambas devam ser articuladas à dimensão ética da relação transferencial.
Na perspectiva foucaultiana destaca-se o modo de transformação de si por intermédio de certas práticas, mediadas pelo outro, como condição de acesso à verdade, verdade que tanto é condição da afirmação do sujeito quanto fundamento de sua inscrição no campo da polis, da política. Em contrapartida, na perspectiva lacaniana, evidencia-se como esse outro importa menos em si mesmo, isto é, como pessoa, e sim como posição ou função em certa ordem estrutural.
Ambos os autores referem-se à ascese socrática e a seu mandamento fundamental - "Ocupe-se de sua alma, busque sua perfeição" (Lacan, 1992 p.159) - mas o que em Foucault é ponto de partida, torna-se, em Lacan, ponto de chegada. Este se ocupa do que deve ter acontecido antes para que a fala de Sócrates tenha efeito sobre Alcibíades. Aquele se interessa pelos desdobramentos dessa fala, o que, a partir daí, se poderá produzir. E a insere num circuito de reflexões sobre o agir no qual a ética é indissociável da política, e em que o trabalho sobre si e as técnicas de subjetivação não se referem ao isolamento do indivíduo em relação ao outro ou aos laços sociais.
Não devemos crer que, pelo cuidado de si, Foucault procurava a fórmula luzente e maquiada de um descomprometimento político. Procurava formular, ao contrário, sobretudo pelo estudo do estoicismo imperial, os princípios de uma articulação entre o ético e o político (Gros, 2006, p.656).
Alcibíades é, em Foucault, a figura exemplar do cidadão da polis, um homem fundamentalmente político, e a tarefa assumida por Sócrates, de convocar seus concidadãos a ocupar-se de si, é "uma função útil para a cidade" (Foucault, 2006, p.598). Mais do que isso, Sócrates será, ainda em Foucault, o contraponto ao ascetismo cristão, na medida em que em sua figura encontra-se um cuidar de si que se desdobra em ação política e não um cuidado que, submetido ao esquadrinhamento da própria interioridade, converte-se em um saber sobre um si mesmo individualizado, reflexivo e desvinculado da polis. Pois a partir do cristianismo, o exercício ascético ganha, segundo Foucault, um sentido particular, com o qual o cuidado de si sofre um deslocamento de modo que se busca, por seu intermédio, "a efígie que Deus imprimiu em nossa alma" (Foucault, 2006, p.598). Em Lacan, por outro lado, "Alcibíades é o homem do desejo" (Lacan, 1992, p.161).
Serão as duas posições inconciliáveis? Será a posição lacaniana o sinal maior do fracasso da posição tomada por Foucault? Será a afirmação do desejo necessariamente a negação da política? Uma leitura apressada de Lacan poderia fazer assim parecer, especialmente se se restringisse às críticas de Foucault à tradição cristã e ao processo gradual de individualização, interiorização e abandono do cuidado de si em prol do saber sobre si.
A aposta que aqui se faz é outra: articular essas duas perspectivas de modo a fazer implicarem-se mutuamente, de um lado, a dimensão política, a preparação para o governo dos outros e inserção na vida da polis, e, do outro, a dimensão subjetiva, o encontro com os mistérios do desejo posto em jogo pela presença desse outro que detém o acesso à verdade do próprio sujeito.
O que implica considerar, reciprocamente, o analista em sua inserção na cidade, inclusive na medida em que ocupa uma posição de poder, como o próprio Lacan ocupou de modo decisivo no combate pela ampliação da potência da herança freudiana. Pois o analista implicado na transmissão da psicanálise é também o mestre e, nas palavras de Simoney, enunciadas a propósito do próprio Lacan, ocupa a posição de um grande homem e, ainda que essa seja uma fantasia dos seus analisandos, tem "efeitos sobre aquele que se vê vestindo esse traje" (Simoney, 2009, p.103), especialmente na medida em que se instala o risco de que tal fantasia, ou a posição de mestria a ela vinculada, com a hierarquia que lhe acompanha, parasite o lugar de analista, o que pode levar a uma paralisia da sua palavra, da ordem da "fetichização do significante, mera resistência" (p.110).
O fundamento da investigação lacaniana da mestria - seu enfrentamento do modelo formativo da IPA - é claramente político (Miller, 1997) e isso não deve ser desconsiderado ainda que se possa reconhecer que a ênfase no modelo estrutural desloca momentaneamente o registro da política, bem como as determinações sócio-históricas da clínica e da teoria, para o segundo plano.
Em Lacan, o que importa no par Sócrates e Alcibíades é o desejo e o modo como a relação do sujeito com seu próprio desejo é mediada pela presença do outro - tomado como objeto - e regulada pela ordem simbólica. Em Foucault, em contrapartida, a questão do poder assume o primeiro plano e lhe importa refletir sobre uma relação com o semelhante, por meio da qual o sujeito opera sua própria construção, ou seja, aquela que lhe permite afirmar-se como sujeito e enunciar a verdade sobre si.
Por outro lado, Lacan pretende colocar a questão da mestria e da transmissão no plano simbólico, deslocando-a ou liberando-a do registro imaginário e esperando com isso separar a hierarquia do gradus. No entanto, para Foucault, o gradus é inseparável da hierarquia e a questão do poder não pode ser deslocada para segundo plano, pois é indissociável do gradus e da sua transmissão, como é indissociável também de qualquer encontro intersubjetivo e de todo processo de subjetivação.
Toda a operação lacaniana de referência à ordem simbólica, para dizer o mínimo, já revela que esse desejo não traz nada de essencial ou de interior. Não é essa a crítica a Lacan que interessa a este estudo. O que importa ressaltar é certo rebaixamento, mesmo que momentâneo, da dimensão política da relação do cuidado de si que deve ser empreendido por Alcibíades e que se vincula ao seu amor - transferencial, se quiserem - por Sócrates.
Isso porque se entende que é essa dimensão - a qual, como mostra Foucault, é inseparável da transmissão de saber operada entre os dois personagens gregos - que se insinua no processo formativo da psicanálise e acaba por sabotar o objetivo lacaniano de separar o gradus da hierarquia. A demonstração de Foucault é exatamente essa: gradus e hierarquia são inseparáveis; tanto quanto os processos de subjetivação são indissociáveis do posicionamento frente ao outro em uma relação de poder.
O risco de se ignorar isso é equivalente ao perigo de se contribuir para a produção de um "sujeito que não tem história" (Gros, 2006, p.636), o qual seria, segundo Foucault, o preferido dos filósofos, numa crítica à tradição filosófica que parece muito próxima ao que Freud visa quando se refere à filosofia como visão de mundo, uma totalização que ignora os acidentes da experiência e tem como alvo, em última instância, o reconhecimento de uma essência e de valores absolutos (Freud, 2010).
É preciso considerar ainda a dimensão política do próprio diálogo tomado por Lacan - O Banquete - e o fato de que nele se trata de uma reabilitação de Sócrates em face daqueles responsáveis pelo processo que o levou à morte, em especial Aristófanes e o próprio Alcibíades, que, por não ter seguido os conselhos do mestre, não ter se submetido à sua autoridade, contribui para os infortúnios vividos por Atenas (Battistini, 1992).
A dimensão política se desdobra, então, entre o texto platônico e o personagem socrático, consistindo naquela a que parece inevitável se recorrer se se interessa em compreender todo o alcance da proposição lacaniana sobre a transferência quando faz de Sócrates sua figura exemplar, mais especificamente o Sócrates engajado no diálogo e na formação, na Paideia, de Alcibíades, na qual ocupa uma "posição singular que se trata de encontrar para definir o estatuto do analista" (Baas, 1992, p.18).
Enquanto prática, ou conjunto de práticas (Foucault, 2006), a perspectiva socrática do cuidado de si lembra que a psicanálise não se esgota como prática da razão ou exercício da consciência, ainda mais quando se considera em primeiro plano a própria formação do analista. Por outro lado, essa lembrança também é reforçada pela própria contextualização histórica da problematização lacaniana da transferência a partir da questão da transmissão e da crítica à chamada análise didática,
Desse modo, ganha expressão, por exemplo, o problema das fronteiras e sobreposições, especificamente no caso de Lacan, entre as posições de mestre e de analista, sujeito suposto saber. Ou o fato de que, a despeito de seu posicionamento ético e de suas formulações teóricas, muitos dos discípulos de Lacan, também seus analisandos, se viram capturados pela armadilha da "identificação imaginária à sua pessoa" (Simoney, 2009, p.99).
Segue-se aqui Bernard Baas, quando afirma que Sócrates é não apenas presença constante na fala de Lacan, mas que "se trata sobretudo, para Lacan, de verdadeiramente construir um certo modelo do analista a partir deste modelo, desta figura socrática" (Baas, 1992, p.15), pois habitaria na figura de Sócrates em seu embate com o problema da verdade, "o enigma intacto do psicanalista" (Lacan, 1998b, p.294). Tendo em mente essa posição privilegiada, trata-se, aqui, de apontar para a sua dimensão política, especialmente no modo como se vincula à posição que ocupa diante daqueles que o procuram e o interrogam.
Reler o problema da transmissão da psicanálise, ou a relação de mestria grega, tal como figurada de modo exemplar pelas figuras de Sócrates e Alcibíades, considerando a leitura foucaultiana, é ter em mente a inserção do processo de formação do analista em um contexto sócio-histórico cujo horizonte é, em última instância, político. Ou seja, é reconhecer não apenas que o gradus não se descolará de uma hierarquia, ainda que seja uma nova hierarquia; mas também que a relação entre analista e analisando encerra uma relação de poder que não pode ser desconsiderada, pois, ao contrário, é o enfrentamento de tal dimensão política do encontro transferencial que poderá fazê-lo escapar a qualquer tentação totalizante ou fascista - os mesmos velhos perigos que Lacan percebeu de modo preciso na figura da identificação ao analista e no dispositivo da análise didática.
Tal releitura destaca ainda o fato que uma análise não se dá fora do tempo e do espaço e que em especial no caso da formação do analista, a intervenção do analista no cotidiano do seu analisando pode ser inevitável e não deve, quando ocorrer, ser desmentida. É em tal intervenção que na figura do mestre se desdobra a do superior hierárquico e as atitudes do analista podem se distanciar radicalmente do ato analítico, com efeitos nocivos sobre a análise.
Uma intervenção na realidade decerto não está proibida pela análise, desde que possa constituir uma interpretação. Mas ela deve ser cuidadosamente distinguida do que pode ser conotado como passagem ao ato do analista, que se coloca no papel do demiurgo e dita ao sujeito a conduta que deve adotar (Simoney, 2009, p.107).
Reconhecer a relação de poder que se desenha numa hierarquia imanente à situação analítica, especialmente quando ela se configura em transmissão, voltada para a conquista do gradus, não significa, ainda, de modo algum tomá-la como experiência de dominação. Ao contrário, o que diz Foucault é que tal reconhecimento da autoridade do outro na mediação da relação consigo pode ser pensado como condição necessária para a mestria em si e, portanto, para a "prática refletida da liberdade" (Foucault, 1994, p. 711)
Além disso, o reconhecimento, tanto teórico quanto ético, da implicação do analista em tal relação de poder, não lhe permite proteger-se, por meio da hierarquia, do efeito do outro sobre sua própria subjetividade.
A mestria, principalmente, como se apresenta no momento helenístico, mas também como aparece vinculada à figura de Sócrates nos diálogos platônicos, constitui uma relação de poder em que não somente o discípulo modifica-se com o ensinamento do mestre, uma vez que assimila ou acumula as verdades ensinadas, mas ambos, mestre e discípulo, transformam-se pelo discurso verdadeiro enunciado e memorizado. Ressalte-se, não somente o discípulo, mas também o mestre é transformado (Francisco, 2010, p.111).
Pois se é preciso deixar "cair a função do mestre" (Didier-Weil, 2009, p.147), como articular essa queda a uma hierarquia que se sustenta em um quadro institucional indissociável da vida do analista na cidade? Se é preciso "prescindir da autoridade do significante do Nome-do-Pai com a condição de saber fazer uso dele" (p.147), não será o reconhecimento de uma política, pensada aqui como enfrentamento das relações de poder que se desenham no encontro dos sujeitos, a base necessária para uma ética?
É, enfim, o reconhecimento da dimensão política da transmissão, destacada pelo fato de que a hierarquia, se não o subjuga, ao menos, com a força de um fantasma, assombra o gradus, que permitirá aos futuros analistas instalar-se no campo da fala, fazendo prevalecer na transferência a dimensão simbólica que a identificação imaginária buscada no didatismo do modelo formativo da IPA fazia, ao contrário, como bem percebeu Lacan, esvaziar-se.
O próprio Lacan, ao manifestar em sua prática um incrível respeito pela existência do sujeito falante que a ele se dirigia, deixou para seus analisandos o peso desta questão: o que prevalecerá no teu destino de analista, tua inserção institucional ou tua inserção na fala? (Didier-Weil, 2009, p.154)
Nesse sentido, destacar a dimensão política do laço transferencial deve não apenas evidenciar as relações de poder que se desdobram entre uma análise e suas instituições, as quais podem, ao contrário do que pretendia Lacan, tecer uma complicada costura entre o grau de analista, seu reconhecimento e autorização, e a hierarquia institucional, mas deve, ainda, religar o analista ao seu lugar entre os cidadãos, responsável que também é pelo destino da cidade, retirando-o assim do isolamento do consultório e da solidão de uma função que, de modo inacreditável, muitos ainda supõem estar aquém ou além de qualquer embate social.
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Recebido em 12 de dezembro de 2011
Aceito em 11 janeiro de 2012
Revisado em 18 de janeiro de 2012
1 Este trabalho é fruto de pesquisa desenvolvida em estágio pós-doutoral junto ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ como parte do projeto Procad/Novas Fronteiras "A dimensão ética do pensamento psicanalítico e seu impacto no estudo de fenômenos sócio-culturais", o qual reúne as universidades federais de Sergipe, Rio de Janeiro e Pará e conta com apoio financeiro da Capes.
2 Uma consideração relevante é que enquanto Lacan trabalha primordialmente com "O Banquete", Foucault utilizará sobretudo "Apologia a Sócrates" e "Alcibíades".