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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.10 no.20 São Paulo dez. 2010

 

ARTIGOS

 

A cultura como dispositivo de governo da população pela UNICEF e UNESCO: apontamentos genealógicos

 

Culture as a device of government population by UNICEF and UNESCO: genealogical notes

 

La cultura como un dispositivo de población de gobierno por el UNICEF y la UNESCO: apuntes genealógicos

 

 

Flávia Cristina Silveira Lemos*

Universidade Federal do Pará – Belém, PA – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo discute como o governo da população é realizado por uma instrumentalização da cultura pelas práticas da UNESCO e do UNICEF, no Brasil. Utilizamos as contribuições teórico-metodológicas de Michel Foucault, para efetuar a problematização dos documentos selecionados. Esses organismos multilaterais têm-se posicionado no jogo de forças da cena política atual, como responsáveis pela produção da paz mundial. A presente análise pauta-se em uma das séries temáticas abordadas nos relatórios estudados: a de governo da cultura como mecanismo de redução de conflitos, com o objetivo de produzir consensos e promover uma justiça equitativa, ancorando-se na preocupação em difundir discursos de economia política sobre o objeto desenvolvimento sustentável para o Brasil. Conclui-se que a gestão da cultura pelos organismos multilaterais busca forjar um consenso mundializado, em nome da democracia e fomento aos direitos humanos, como estratégia de segurança da população.

Palavras-chave: UNICEF, UNESCO, Governo da população, Mecanismos de controle, Cultura.


ABSTRACT

This article discusses how the governenment’s population is accomplished by a manipulation of the culture by the practices of UNESCO and of UNICEF, in Brazil. We use the theoretical and methodological contributions of Michel Foucault to make the questioning of the selected documents. These multilateral agencies have been positioned in the power game of politics today as responsible for the production of world peace. This analysis is in a series of issues addressed in the reports studied: the governance of culture as a mechanism to reduce conflict in order to produce consensus and promote a fair justice, anchoring on the concern of broadcasting the speeches of political economy on the object development for Brazil. Concluded that the management of culture by multilateral organizations seeking to forge a consensus in the name of globalization, democracy and promoting human rights and security strategy of the population.

Keywords: UNICEF, UNESCO, The government of the population, Mechanisms of control, Culture.


RESUMEN

Este artículo describe cómo la población del gobierno se lleva a cabo mediante una manipulación de las prácticas de la cultura de la UNESCO y el UNICEF en el Brasil. Nosotros utilizamos los aportes teóricos y metodológicos de Michel Foucault para hacer el interrogatorio de los documentos seleccionados. Estos organismos multilaterales han sido posicionados en el juego de poder de la política actual como responsable de la producción de la paz mundial. Este análisis figura en una serie de cuestiones abordadas en los informes estudiados: la gobernanza de la cultura como un mecanismo para reducir los conflictos a fin de producir un consenso y promover una justicia imparcial, el anclaje en la preocupación de la difusión de los discursos de la economía política en el desarrollo de objetos para el Brasil. Llegó a la conclusión de que la gestión de la cultura de las organizaciones multilaterales como objetivo crear un consenso en el nombre de la globalización, la democracia y la promoción de los derechos humanos y la estrategia de seguridad de la población.

Palabras clave: UNICEF, La UNESCO, El gobierno de la población, Los mecanismos de control, Cultura.


 

 

Introdução

A produção da governamentalidade por agências multilaterais, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), possibilitou um processo de instrumentalização da cultura como tática de governo das populações. Em nome da paz, passou-se a incitar práticas de assessorias aos diversos países considerados pobres ou em desenvolvimento, para que implantassem programas dirigidos à construção de consensos e redução de conflitos pela via da modulação da cultura. Michel Foucault (1979) definirá governamentalidade como um conjunto de estabelecimentos, de ações, de estratégias, de estatísticas e de cálculos de probabilidades, com o foco da produção da segurança.

Para o autor, o governo dos outros emerge como gerência da população e não do território, no século XIX, ligado à defesa da sociedade e de uma política de expansão da vida. A conduta da população se torna alvo de múltiplos governos, com o objetivo de produzir segurança. Com essa preocupação de controlar condutas, utiliza-se a estratégia da gestão da cultura, que implica organizar e modular os modos de vida, os processos de valoração de determinadas ações e as formas de pensar e sentir dos diferentes segmentos da população, no âmbito das probabilidades no campo do aleatório, com base em estimativas estatísticas (Foucault, 2008).

A hipótese desenvolvida neste artigo é de que os organismos multilaterais, ligados às Nações Unidas, como o UNICEF e a UNESCO, exerceriam estratégias de controle sobre os países-membros, entre os quais o Brasil. Considerando essa afirmativa, pretende-se descrever e analisar como a população é governada a partir da materialização das práticas dessas agências, sobretudo se apoiando na gestão da cultura. A opção pela analítica dos documentos das duas agências multilaterais relatadas justifica-se pelo fato de estar sendo desenvolvida uma ampla e detalhada pesquisa, a respeito dos relatórios e livros publicados pela UNICEF e pela UNESCO, no presente. Entende-se que é relevante estudar as práticas desses organismos e seus efeitos, na realização das políticas públicas brasileiras.

Este trabalho ancora-se em estudos iniciados no Doutorado em História e perpetuados como docente e pesquisadora em universidade pública, baseando-nos na análise histórica, pelo viés das contribuições de Michel Foucault, dos documentos de agências multilaterais, publicados em português, e disponíveis no formato de livro, de cartilha e de relatórios. De acordo com Foucault (1979), a genealogia é um modo de análise histórica de práticas concretas no plano das relações de saber-poder, problematizando-as.

Entre as diversas séries de práticas que compõem os documentos estudados, recortou-se a gestão da cultura como forma de governo dos outros, em sua ligação com o conceito de “equidade”, pelo UNICEF e pela UNESCO. No entanto, há várias outras séries, que não serão tratadas neste artigo, especificamente.

 

Problematizando a mundialização e o governo das populações por estratégias de assessorias de organismos internacionais, no Brasil

A busca desenfreada por segurança, em nossa sociedade, tem sido traduzida por demandas de mais vigilância e controle, conforme Deleuze (1992) e Foucault (2008a). Uma internacionalização do governo, em prol da segurança, tece-se e se expande sob a forma de administra ção da paz mundial, gerenciada por peritos das Organizações das Nações Unidas, conectados a uma rede de outras instituições, em escala planetária, em nome da proteção e garantia dos direitos humanos.

No entanto, são os detentores da exploração exponencial do capitalismo mundial integrado que financiam grande parte das ações organizadas e gerenciadas pelas Nações Unidas. Os filantropos mundiais, em uma compaixão piedosa, esperam gratidão eterna dos pobres, os quais devem responder, aceitando a moralização, a normalização e a tutela, em troca de benefícios internacionais. Mas, fora os filantropos que apenas desejam o bem dos famigerados e desamparados, são acionados os saberes dos especialistas, que legitimam as propostas das Nações Unidas.

Desse modo, conforme Passetti (2007) solicita-se sem cessar uma lógica da perícia, ampliada através de intervenções de organismos internacionais bilaterais e multilaterais. As práticas multilaterais ocorrem pela via de parcerias com instituições designadas como públicas não estatais, como as Ongs, Oscips e fundações de empresas privadas, que disparam ações técnicas e políticas dirigidas à atenuação de conflitos e produção de consensos, voltados ao desenvolvimento econômico e social que conduziria à paz mundial e a uma harmonia entre todos os indivíduos e povos. Disciplinam-se indivíduos e governam-se populações, em nome da inclusão por intermédio do paradigma nomeado de desenvolvimento sustentável.

Esses diversos organismos internacionais interferem nas políticas intituladas de proteção às crianças e jovens, no Brasil, com vistas a diminuir o que consideram conflitualidade. Contudo, as transformações no cotidiano desse segmento da população resultam em pouco impacto na quebra de desigualdades sociais, não acarretando alterações substantivas, nas realidades de grupos sobre os quais exercem diferentes estratégias de controle.

Fonseca (1998) destaca que há uma chantagem contínua, por meio dos sistemas de adesão dos Estados às cartilhas políticas da Organização das Nações Unidas (ONU). Os benefícios oferecidos como produtores de equidade são atrelados à implantação das diretrizes ratificadas em declarações assinadas pelos países-membros ONU, entre os quais o Brasil. A não adesão a tais documentos pressupõe o corte de vantagens comerciais, tecnológicas e financeiras. Assim, a agenda de cooperação técnica de organismos bilaterais e multilaterais está associada à observação criteriosa de uma série de condições estabelecidas para a inclusão social e econômica das populações e países considerados pobres e não desenvolvidos.

Um exemplo são as práticas de assessores do UNICEF, no Brasil, que se iniciam logo após a II Guerra Mundial, dirigidas às crianças e jovens. Esse organismo constitui uma intensa cruzada de articulações com diversas instituições brasileiras governamentais e não governamentais, compondo um dispositivo assistencial pautado em um Complexo Tutelar, formado por um híbrido de caridade, filantropia e assistência médico-higienista (Donzelot, 1986).

Como supostamente desinteressados beneficentes, os especialistas do UNICEF acionam uma rede capilar de ações voltadas para crianças e jovens, no Brasil, através da construção de alianças locais, regionais, nacionais e internacionais.

Essas práticas se fortalecem e ganham uma visibilidade na realidade brasileira, pois se ancoram em um conjunto de projetos; eventos acadêmicos; publicações; pesquisas desenvolvidas por Ongs e universidades públicas e privadas; produção de indicadores estatísticos e fóruns de discussão. Também realizam a liberação de verbas para a execução de programas que funcionem a partir de suas cartilhas; buscam alianças com lideranças comunitárias e com os diversos níveis de governo; incentivam parcerias com empresas e fundações, sob o signo de “responsabilidade social” e de assessoria direta aos peritos e gestores de políticas públicas estatais, ligadas à questão de direitos de crianças e jovens.

As práticas do UNICEF se efetuam por intermédio de uma biopolítica, em que fazer viver, observando um determinado modo, é o objetivo dos representantes da UNICEF e da UNESCO. Para tanto, é difundido um discurso de corresponsabilidade da população nas políticas públicas, através de enunciados afirmativos da importância do desenvolvimento das comunidades com fins utilitários de resolução de problemas locais e de defesa de políticas compensatórias, como forma de aplacar os conflitos sociais e defender a democracia mundial.

Segundo Castel (1981), a busca desenfreada por segurança e proteção social produziria a insegurança. A vulnerabilidade seria um efeito de práticas políticas, econômicas, culturais e sociais, na sociedade contemporânea. A demanda por proteção máxima implica a expansão de estratégias de controle social, provocando como efeito a inflação de um Estado inclusivo de controle guiado por organismos internacionais.

Nessa obsessão pela gerência da minúcia, amplia-se o controle, por meio da construção contínua da categoria perigo. O medo frente aos perigos virtuais instala um terror em uma escala potencializada, sendo projetado nos grupos classificados como classes perigosas ou sobre aqueles que poderão sê-lo futuramente, caso não sejam incluídos por políticas compensatórias de normalização (Foucault, 2008b). Dessa maneira, tanto o jovem tido como perigoso, como crianças consideradas em risco serão objeto de práticas de controle e disciplina, sob o signo da paz e da segurança.

Deleuze (1992) afirma que, na vigência da crise das disciplinas, após a II Guerra Mundial, passamos a viver sob o imperativo das reformas realizadas por ministros competentes do exército, das escolas, das famílias, das indústrias, das prisões e dos hospitais. A prevenção se torna a tecnologia principal de governo, em uma sociedade de riscos que deseja reduzir os perigos ou até mesmo eliminá-los.

Nesse afã securitário, emerge a série ética utilitarista apropriada de Aristóteles, na Grécia Antiga, sob novas roupagens para alcançar um fim, um telos fundado em virtudes humanistas; buscando a felicidade com a promoção da qualidade de vida, medida em índices de desenvolvimento humano, em uma retórica de desenvolvimento sustentável includente, continuamente propalada pelos assessores da ONU e pelo Banco Mundial, de acordo com Fonseca (1998).

O conceito de justiça da ONU estaria sustentado pelas concepções aristotélicas, em que a justiça é uma prática avaliativa e uma moral da virtude. Na recuperação da série “justiça aristotélica”, atualmente, pelas agências multilaterais, a justiça não é vista como uma virtude da alma, mas como resultado de uma configuração da sociedade, a qual vai se alterando ao sabor dos velozes fluxos do capital.

Os assessores da ONU também lançam mão da série justiça equitativa de Aristóteles, pressupondo um princípio de justiça particularista, que enseja um processo de correção comutativa amparado na distribuição de variados bens entre a comunidade política. Promove-se a igualdade, de modo abstrato, articulada com a desigualdade como mais importante que a obediência a uma justiça assentada apenas na legalidade (Lemos, 2007).

A proposta seria criar uma equivalência entre situações desiguais e combinar duas lógicas: igualdade e desigualdade mais conhecidas como igualdade na diferença ou ainda pelo tema diversidade entre iguais. A desigualdade, para Aristóteles, seria natural e deveria ser respeitada através da criação de regras que lhes garantisse a expressão. Porém, na sociedade contemporânea, não concebemos as desigualdades como naturais, pois elas são remetidas às identi dades culturais, sendo, portanto, construídas. Todavia, tais identidades gravitam em torno da norma, que define as condições para a produção do consenso.

No direito moderno, há também uma apropriação pelos organismos multilaterais da série justiça, em Platão, operada pelo dispositivo “República” como um tipo de Estado ou regime político que está legitimado como distribuidor da justiça para a promoção de uma ordem ideal: boa, perfeita e estável. Essa ordem seria construída a partir da criação de uma definição do que é justo, por intermédio da lei. Dessa forma, Platão postularia uma relação entre política, direito e moral, na perspectiva de Ewald (1993).

As democracias atuais estariam sustentadas em uma visão platônica de política, fundada no consenso e na inflação jurídica (Rancière, 1996). Trata-se de uma justiça corretiva construída pela solidariedade entre os homens, em relações de reciprocidade, vivendo em uma comunidade, em estado de paz negociada. Na gestão de conflitos, a pluralidade cultural é vista como um dispositivo a ser acionado, em nome do governo, para a segurança.

Nessa perspectiva de gerência da cultura, cada comunidade agiria corrigindo suas distorções e compensando aqueles grupos excluídos das oportunidades de consumo e de bem-estar pela promoção de uma justiça corretiva, pautada em normas negociadas continuamente, denominada de produção da equidade ou de políticas afirmativas, conforme Bauman (2005).

Essa modulação flexível das identidades e das práticas é analisada por Deleuze (1992) como um efeito das Sociedades de Controle. O homem dessa sociedade é modulado por mecanismos de controle em meio-aberto, constantemente, na velocidade de acelerados fluxos. Nessa rede de permanente mobilidade, as discussões sobre a justiça passam a ser ancoradas no reconhecimento de diversos diferencialismos culturais, expressos em identidades fluidas e recompostas a todo instante. Porém, é importante lembrar que Foucault (1999) ressaltou que a norma possibilita criar tentativas de tornar os indivíduos iguais e, ao mesmo tempo, diferenciá-los, fornecendo uma medida de comparação entre eles.

As práticas de proteção das crianças e dos jovens e de fomento aos direitos humanos do UNICEF e da UNESCO estão embasadas no paradigma da inclusão, enfocando a defesa de identidades culturais como modo de produção de coesão social, de forma funcionalista. A associação indissolúvel da igualdade com a diferença é uma estratégia utilizada pelas duas agências, de sorte a justificar políticas compensatórias de correção das desigualdades para promover o desenvolvimento de um país.

Tratar todas as crianças e adolescentes de forma igual, sem considerar suas diferenças ou suas desigualdades, pode estar reforçando ou mesmo gerando ainda mais iniqüidades, mais discriminação negativa, mais problemas do que soluções. (Unicef, 2003:10)

Há a necessidade, ao lado do direito à igualdade, de se afirmar o direito à diferença, o respeito à diversidade. [...] Qual a importância e os impactos positivos de se construir novos arranjos para as políticas para a infância, considerando a diversidade, a diferença, o outro? (Unicef, 2003:13)

O pluralismo não é apenas um fim em si mesmo. O reconhecimento das diferenças é, acima de tudo, uma condição para o diálogo, e, portanto, para a construção de uma união mais ampla de pessoas diferentes. A despeito das dificuldades, temos uma obrigação inevitável: conciliar o novo pluralismo com a cidadania comum. O objetivo deve ser não apenas uma sociedade multicultural, mas um Estado constituído de forma multicultural, um Estado que reconheça o pluralismo sem renunciar à sua integridade. (Unesco, 1997:97)

Para tanto, uma ética utilitarista fundamentada na busca de liberdade sem riscos é materializada pela via da educação escolarizada, que se torna um dispositivo de normalização produtor do “dever ser”, de acordo com Amartya Sen, economista e assessor da ONU, que também esteve na direção do Banco Mundial. Para Sen, os mínimos sociais devem ser ofertados e os direitos cedem lugar aos deveres, a fim de que se efetue um projeto de construção da chamada comunidade global rumo à paz (Sachs, 2004).

A busca do desenvolvimento puramente econômico ignora o desenvolvimento da identidade pessoal, que se encontra no cerne de todo projeto educacional viável. (Unesco, 1997:216)

Investir na valorização da diversidade como justiça social é conferir uma face humana ao desenvolvimento que, sem igualdade de oportunidades, não consegue sair dos patamares atuais também no campo econômico. [...] Não investir no desenvolvimento do potencial dos talentos de todas as pessoas, nas suas capacidades e habilidades coloca os países em risco nessa atual fase de interdependência global. (Unicef, 2003:33)

Nosso propósito é mostrar a todos como a cultura forja todo nosso pensamento, nossa imaginação e nosso comportamento. Ela é, ao mesmo tempo, o veículo da transmissão do comportamento social. (Unesco, 1997:16)

O objetivo é maximizar as potencialidades de cada indivíduo, na busca da realização do que os adeptos desta ética nomeiam como projeto, apropriando-se do conceito sartreano da vida enquanto um projeto existencial que se define e se redefine a todo instante. Sachs (2004) afirma que o crescimento de um país se dá através de uma política de promoção de um desenvolvimento sustentável includente. Nesse modo de conceber o desenvolvimento, o Estado deve possibilitar a articulação entre o local e o transnacional, promovendo parcerias por meio de uma suposta harmonia entre objetivos sociais, ambientais e econômicos, concretizados por um planejamento estratégico e pelo gerenciamento cotidiano dos fluxos culturais, econômicos e sociais.

Segundo Sachs (2004), a equidade resulta do tratamento desigual dispensado aos desiguais. Nessa visão, as regras acordadas devem favorecer os mais fracos, incluindo ações afirmativas que os apoiem. Trata-se de uma concepção neoliberal de Estado, enredada em um humanismo utilitarista divulgado pelas Nações Unidas como proposta política e social de desenvolvimento aos países denominados periféricos. Assim, é explícita a retórica de desenvolvimento como eixo de um suposto progresso.

O desenvolvimento divorciado de seu contexto humano e cultural não é mais do que um crescimento sem alma. O desenvolvimento econômico, em sua plena realização, constitui parte da cultura de um povo. (Unesco, 1997:21)

A emergência da cultura cívica global parece suscitar novos elementos normativos. Em particular, a Comissão chama a atenção para o princípio da legitimidade democrática. A escolha do método de governo já não é vista como uma preocupação puramente nacional, impermeável à consideração internacional. Como têm mostrado vários casos de eleições sob monitoramento internacional, a comunidade mundial admite cada vez mais que a participação democrática represente uma grande preocupação internacional (Unesco, 1997:49).

O PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) é outro organismo multilateral ligado à ONU que atua sistematicamente nos países considerados periféricos, entre os quais o Brasil. Desde a década de 1990, o PNUD tem produzido relatórios sobre os processos de desenvolvimento social e econômico, embasados em índices estatísticos que associam o crescimento econômico à ampliação de qualidade de vida, através dos nomeados índices de desenvolvimento humano.

Veiga (2005) ressalta os argumentos de Celso Furtado − um dos principais representantes da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), no Brasil, bem como difusor das ideias cepalinas sobre desenvolvimento. Esse economista brasileiro foi assessor da CEPAL, organismo também ligado à ONU que atua no Brasil, desde a década de 40 do século XX, atingindo um ápice nos anos 50 e 60, quando as ideias e os técnicos da CEPAL estiveram no centro dos debates e, muitas vezes, das decisões econômicas brasileiras. Mesmo nas décadas posteriores, a CEPAL continua intervindo no país, segundo historiadores da economia, conforme relata Colistete (2001).

Podemos notar a ampla intervenção das Nações Unidas, no Brasil, desde a sua fundação, após a II Guerra Mundial. De modo análogo, podemos destacar que os discursos da ONU sustentam o paradigma de um capitalismo reformado, instrumentalizando o conceito de cultura e articulando-o a uma lógica racional e utilitarista, pautada em uma concepção de progresso e evolução linear das sociedades rumo à civilização.

As sanções, as medidas de segurança e as recomendações, no âmbito dos direitos humanos, nesse fórum internacional, estiveram marcadas pelas lutas de uma infinidade de interesses dos países-membros e dos blocos de alianças que eram organizados pelos Estados. De acordo com Belli (2009), as disputas e competições entre países, no interior das Nações Unidas, foi um fato constante, atravessado pelos efeitos da Guerra Fria e, depois, pelos ataques terroristas aos Estados Unidos e a outros países, já no século XXI. Dessa maneira, apesar de a ONU se declarar apolítica e imparcial, esse discurso constituiu uma falácia, já que as decisões do organismo sempre foram resultado de coalizões, principalmente, entre os países da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, contra aqueles países vistos como entraves aos seus interesses econômicos e aos seus ideários proclamados como democráticos.

Conforme Lopes e Casarões (2009), a ONU completou 60 anos, caracterizados por uma tentativa de converter-se em polícia do mundo. As Nações Unidas se tornaram uma autoridade política, no sistema internacional de direitos humanos, realizando recomendações e intervenções, criando pactos, conferências e declarações, de modo que se configurou um intricado panorama de instrumentos jurídicos.

Rancière (1996) critica essa transformação da cena democrática em cena humanitária, em que a política se resumiu a um consenso identitário único – a humanidade. A democracia pautada no consenso é o desejo de inclusão de tudo e de todos, substituindo o dissenso. Um Estado do consenso é um Estado policial, de administração de peritos, de cálculos baseados em pesquisas de opinião, de um povo étnico, em que as partes não entram em litígio, pois estão unidas ao mesmo tempo por uma comunidade de identidades particulares, em consonância com uma comunidade maior – a humanidade.

Uma ética universal revela a unidade subjacente à diversidade de culturas, pois define os padrões mínimos que toda comunidade deveria observar. Um exemplo do imperativo ético universal é o impulso que leva, sempre que possível, à busca do alívio do sofrimento humano, suprimindo suas causas. [...] A democracia e a proteção de minorias são princípios importantes da ética universal, e são também condição necessária para a eficiência das instituições, a estabilidade social e a paz. (Unesco, 1997:23)

Somos iguais, porque somos diferentes. Porque somos membros de uma mesma família, com uma diversidade que é nossa característica e nossa riqueza. Somos iguais e diferentes. [...] A afirmação de que somos iguais é a base sobre a qual podemos também afirmar que somos todos diferentes, com expressões plurais e interdependentes em nossas formas biológica e culturalmente diversas. (Unicef, 2003:17)

A identidade pressupõe o estabelecimento de limites ─ e limites sempre geram tensões. Mas é assim mesmo. Embora partilhemos da mesma natureza humana, nunca seremos membros de uma única tribo universal. É precisamente a esplêndida e às vezes estonteante diversidade da raça humana que está na raiz da humanidade que nos une a todos. Hoje, com o fim dos regimes imperialistas e totalitários, podemos reconhecer nossa natureza comum e começar a difícil negociação que ela nos exige. (Unesco, 1997:95)

Conforme Pareschi (2002), o ideal de progresso fundado em etapas sucessivas de uma história linear intensifica-se a partir do aparecimento da noção de desenvolvimento, formulada depois da II Guerra Mundial. As práticas das agências multilaterais se efetivam por meio de um elenco de hierarquizações entre os países, que são classificados em: atrasados ou avançados; desenvolvidos ou subdesenvolvidos ou em desenvolvimento; países pertencentes ao Primeiro ou ao Terceiro Mundo.

O discurso de desenvolvimento e progresso se baseia em uma ética utilitarista e expressa o ideal de melhorar as condições de vida das populações, a maximização da felicidade e o aumento da justiça, através do auxílio da ciência e de suas tecnologias. O princípio do desenvolvimento é reafirmado pela economia capitalista, com objetivos de acumulação, crescimento econômico e combate à pobreza.

Portanto, diversas práticas são acionadas e, ao se conectarem, criam e atualizam os discursos sobre desenvolvimento, sustentando que a ação de organismos multilaterais é benéfica para todos, à medida que objetiva promover o bem-estar e o desenvolvimento dos países “pobres”, gerindo a vida de crianças e jovens, preventivamente. Amplia-se todo um campo discursivo, mesmo de caráter contraditório, de acordo com Pareschi (2002), o qual mobiliza mecanismos de subjetivação e poder, em nome do combate à fome, do desenvolvimento da agricultura e dos modos de viabilizá-lo, do desenvolvimento tecnológico, de prioridades de investimentos, da gestão sanitária e alimentar, voltados para as políticas de educação e de assistência social; enfim, uma rede ampla de estratégias reunidas em um dispositivo político justificado por um humanismo voluntarista.

A mola mestra do desenvolvimento seria a razão articulada à vontade e à necessidade (Veiga, 2005). A educação e a cultura seriam as vias de promoção do desenvolvimento das comunidades, com o objetivo de resolução de conflitos em nível local, ou seja, o que os economistas cepalinos, atualmente, vêm definindo como desenvolvimento de dentro, interno.

Os aparatos institucionais que movimentam essas táticas, basicamente, são os organismos de cooperação internacional, instalados nos países considerados periféricos, por intermédio de escritórios, munidos de assessores peritos, liberando empréstimos e fornecendo programas de desenvolvimento e espaços de debates sobre temáticas relacionadas ao desenvolvimento social e econômico. Ribeiro (2005) destaca, no entanto, que a ONU e suas agências, apesar de divergirem do modelo econômico de um capitalismo voraz, reafirmam a lógica neoliberal individualista, em suas propostas desenvolvimentistas.

Há na retórica dessas agências uma vontade messiânica, em que os países tidos como periféricos seriam dependentes das práticas salvadoras das nações civilizadas, sendo infantilizados nos pareceres e relatórios dos técnicos das instituições de cooperação internacional. As práticas de poder, de subjetivação e de discurso disparadas por esses organismos se sustentam nos discursos da ciência e de seus representantes, nos moldes positivistas e funcionalistas, com pinceladas de humanismo, objetivando ajustes estruturais e reformas sociais compensatórias, segundo Pareschi (2002).

Para Sardenberg (2005), a ONU assumiu, não só no Brasil, mas em sua missão internacional, a preocupação com a promoção da segurança e da paz, através de três vetores: o desenvolvimento socioeconômico, os direitos humanos e a preservação do meio ambiente. Já Koerner (2003) salienta que, desde 1990, as mudanças em escala internacional favoreceram tanto a institucionalização da ONU como instância supranacional mediadora, como a ampliação das ações de cooperação técnica de Ongs internacionais e nacionais e do financiamento de projetos e programas governamentais, por meio de empréstimos de agências financeiras, como as< concedidas pelo Banco Mundial.

O caso do Brasil é paradigmático, pois a ampla ação do UNICEF, entre nós, demonstra a abertura para as propostas dessa agência, porém, nos seus relatórios, os brasileiros estariam ainda descumprindo os princípios das cartas de direitos humanos das crianças e dos jovens, bem como os pactos assinados pelo país, nas Nações Unidas. O UNICEF impõe diretrizes de um modelo econômico e desenvolvimento social ao Brasil e alarga o espectro de proteção das crianças e dos jovens brasileiros, operando intensa pressão/chantagem, para que o país garanta a implementação de políticas de atendimento a essa clientela, priorizando-a.

Apesar do grande alcance das ações da ONU, em esfera mundial, é importante observar que outras forças se entrecruzam com as diretrizes de apoio multilateral, como as dos Bancos Internacionais; as das Ongs internacionais e nacionais; as do mercado especulativo e seus investimentos e desinvestimentos financeiros; as das políticas econômicas de grandes oligopólios concentradores de renda, no denominado mercado global; as do aparecimento de novos movimentos sociais, em especial, os que buscam reconhecimento identitário; as de ações de grupos terroristas; as ligadas às práticas racistas e de retornos de fundamentalismos religiosos; as de criminalização da pobreza; as de recrudescimento penal; as de precarização do trabalho; as de expansão do mercado ilegal; as de militarização dos Estados-nações; as de intensificação de processos de burocratização e de ampliação da perícia de controle dos riscos, entre outras forças compondo o cenário mundial, nas últimas décadas.

 

Identidade e Diferença: interrogações

Grande parte dos estudos atuais sobre diferença realiza a apologia da identidade como coisa em si, como fato em si, via proposição de uma política de tolerância à diversidade que não altera as disputas, mas apenas promove um conservadorismo e o desejo de não romper efetivamente com um modelo identitário padronizado (Silva, 2007). O multiculturalismo, em função da política da tolerância, postula a defesa da diversidade enquanto identidade cultural homogênea. Nessa linha de pensamento, Guattari e Rolnik (2005) enfatizam que a identidade cultural supõe uma reificação da subjetividade – uma referência pretensamente universal – que acaba conduzindo ao etnocentrismo.

Ainda nessa perspectiva crítica do conceito de identidades culturais, Ewald (1993) sublinha como as propostas evocadas atualmente, em nome da defesa do multiculturalismo, apontam para um modelo de justiça corretiva de promoção da equidade, almejando traçar equivalências entre identidades construídas como entidades/substâncias desiguais, em um jogo ininterrupto de negociação, apresentado como revolucionário e pretensamente produtor de harmonia social e estabilidade político-econômica. Nessa disputa política, o governo das condutas se daria pela produção e redefinição de normas de referência e reconhecimento identitário.

Desse modo, se a identidade é definida como o conjunto de normas pelas quais alguém se subjetiva como indivíduo particular e pertencente a um grupo/comunidade específico, a diferença seria a identidade-outro, acionada no bojo de uma comunidade/grupo-outro, a qual se definiria por um conjunto diferenciado de normas (Silva, 2007). Em função desse debate, Guattari e Rolnik (2005) colocam em xeque o conceito de cultura como unidade e vetor de produção de subjetividades homogeneizadas, explicitando o engodo do conceito de identidades culturais e da singularidade como diferença/entidade reificada em uma essência.

Rolnik (1997) designou esse processo como toxicomania de identidades, afirmando que a globalização engendra mecanismos de fomento às misturas e hibridismos, fragmentados em identidades moldadas pelo mercado. Em concordância com a autora supracitada, Lyotard (1996) realiza igualmente uma crítica das sociedades capitalistas e seus modos de subjetivação homogeneizantes, que teriam feito da cultura um instrumento de afirmação das diferenças moduladas por categorias identitárias, em um mercado da singularidade. Guattari e Rolnik (2005:16) nos alertam para o processo de produção de subjetividades homogeneizadas, a partir do equivalente cultural. “O capital funciona de modo complementar à cultura enquanto conceito de equivalência: o capital ocupa-se da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva”.

A cultura parece ganhar um papel redentor da humanidade, sendo acrescida de um retorno a uma comunidade idealizada (Bauman, 2003). Dessa forma, a comunidade seria vista como um correlato de um paraíso perdido, mas sempre desejado. Por isto, Pierucci (1990) afirma que, curiosamente, os conservadores da direita passaram a lutar pelo direito às diferenças, sob a bandeira da defesa de desigualdades de fato, reclamadas em desigualdades de direito. Esta lógica das políticas compensatórias e afirmativas, que sustenta as práticas de fabricação de identidades culturais, opera por meio de uma política da guerra civil, que se expande em nome da pureza de grupos específicos e da defesa contra o perigo encarnado naqueles que seriam impuros, na visão etnocêntrica das sociedades contemporâneas (Bauman, 2005).

Concluindo, a noção de política, na atualidade, foi reduzida ao governo de identidades culturais. A reivindicação de particularismos culturais promoveu uma disputa de identidades nacionais, sexuais, étnicas, regionais, religiosas (Cevasco, 2003). A democracia teria se transformado em defesa de um povo étnico, aprisionado nos consensos comunitários de grupos sectaristas ou em uma comunidade maior, também unificada por uma identidade global, denominada humanidade, e os organismos internacionais disputariam a governamentalidade com as nações, gerindo identidades culturais por meio do governo das condutas em nome da paz e da segurança (Rancière, 1996).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Flávia Cristina Silveira Lemos
E-mail: flavazevedo@hotmail.com

Recebido em: 19/08/2009
Revisado em: 23/12/2009
Aceito em: 18/03/2010

 

 

* Possui graduação em Psicologia, Mestrado e Doutorado em História e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Brasil. Atualmente, é Professora adjunta no curso de psicologia da Universidade Federal do Pará – Belém, PA – Brasil.