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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.15 no.33 São Paulo ago. 2015

 

RESENHA

 

Guattari e a ecosofia

 

Guattari and the ecosophy

 

Guattari y la ecosofía

 

Guattari et la écosophie

 

 

Domênico Uhng Hur

Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, Brasil. Atualmente é professor-adjunto no curso de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil. dutchwild@yahoo.com.br

 

 

Obra: ¿Qué es la Ecosofía?: textos presentados y agenciados por Stéphane Nadaud"
Autor: Félix Guattari
Organizador: Stéphane Nadaud
Buenos Aires: Cactus Editorial, 2015
447 páginas
ISBN: 978-987-3831-05-8

A Cactus editorial é uma editora argentina que vem publicando inúmeras obras da Esquizoanálise, seja dos seus criadores, o filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista-militante Félix Guattari, ou de comentadores, como François Zourabichvili (2014), David Lapoujade (2011), René Scherer (2012) e Franco Berardo "Bifo" (2013). Edita não apenas traduções dos livros, bem como transcrições das aulas de Deleuze na Universidade de Vincennes, como o curso que Deleuze dedicou à obra de Michel Foucault, publicado em três tomos, Saber (Deleuze, 1985/2013), Poder (Deleuze, 1986/2014) e Subjetivação (Deleuze, 1986/2015); as aulas sobre Capitalismo e esquizofrenia (Deleuze, 2005), sobre filósofos, como Leibniz (Deleuze, 2006), entre outros.

Félix Guattari foi um pensador e militante que congregava reflexão teórica, prática clínica e ativismo político. Com formação plural, Farmácia, Música, Filosofia, Psicanálise, mas sem ter concluído nenhum curso de graduação, foi um dos protagonistas do movimento internacional da Reforma Psiquiátrica, sendo um dos principais atores da Clínica La Borde, ao lado de Jean Oury. A partir de suas práticas clínicas e interventivas criou o termo análise institucional. Posteriormente se distanciou deste movimento, por considerar um reducionismo psicossociológico o que passou a ser praticado por algumas correntes. Nadaud (2015) categoriza a obra intelectual de Guattari em quatro principais períodos. O primeiro, de sua militância trotskista, experiência clínica em La Borde e na psicanálise. O segundo, na década de 1970, do período da revolução molecular, dos movimentos autogestionários e do encontro e trabalho com Deleuze. O terceiro, na primeira metade dos anos 1980, quando ocorre uma desilusão com a esquerda política que finalmente chegou ao poder na França, mas não trouxe as transformações almejadas; os anos de inverno. E finalmente, o quarto, quando constrói a Ecosofia.

Entretanto, da dupla fundadora do campo de saberes denominado Esquizoanálise, do Anti-Édipo (Deleuze & Guattari, 1972/1976) e dos Mil Platôs (Deleuze & Guattari, 1980/1995), Guattari geralmente é a parte olvidada e menos apreciada. Pesquisadores e acadêmicos da Universidade costumam valorizar e investigar mais a obra de Deleuze, deixando as elaborações de Guattari em segundo plano, como se fosse uma parte menor da dupla. Seja pelo brilhantismo e pluralidade de Deleuze, o "filósofo da diferença", que chegou a ser elogiado por Foucault (1995) com a frase "o século XX será deleuziano", ou pelo fato de que Guattari não tenha passado pelos ritos acadêmicos, de formar-se em um curso e titular-se como mestre e doutor na Universidade. Entretanto, não achamos que o encobrimento de Guattari seja resultado de um preconceito institucional, ou pelo fato de não escrever tão bem como Deleuze, mas sim pela complexidade e originalidade de suas ideias e conceitos, que transversalizam uma série de campos de conhecimento. Muitos dos conceitos da esquizoanálise foram criados por Guattari, como: máquinas desejantes, ritornelo, agenciamentos maquínicos, filum maquínico, micropolítica, molar e molecular, desterritorialização, e muitos outros, o que nos mostra que ele não pode ser considerado como um "anexo" da dupla, mas sim como grande protagonista. Até na biografia cruzada elaborada pelo historiador François Dosse (2010) sobre a trajetória de Deleuze e Guattari, há uma sobrevalorização do primeiro em detrimento do segundo. Dosse atribui à Guattari uma certa infertilidade criativa intelectual na segunda metade da década de 1980 e década de 1990, devido a alguns problemas pessoais que passou. Dosse inclusive afirma que na última obra conjunta da dupla, "O que é a filosofia?" (Deleuze & Guattari, 1991/1992), supostamente Guattari pouco ou nada a escreveu, permanecendo co-autor por insistência de amigos e pela amizade de Deleuze (Dosse, 2010:22). Versão refutada por Nadaud (2015), que afirma que não há evidências consolidadas de que essa elaboração tenha sido da forma como Dosse descreve. E reforçamos esse argumento, pois nesse período, após os "anos de inverno" (Guattari, 1985), Guattari passou por momento de extremas erupções intelectuais, quando escreveu suas principais e singulares produções, a saber: Cartografias esquizoanalíticas (1989/2000), As três ecologias (1989/1990) e Caosmose (1992). Então é de se estranhar tal afirmação de Dosse (2010). De qualquer forma, a colocação do historiador francês expressa esse movimento de certa "desvalorização" de Guattari. Algo que consideramos uma grande injustiça devido a sua importância na constituição da esquizoanálise. Para mitigar esse disparate, no Brasil, Gregorio Baremblitt (1998) batizou sua associação de Instituto Félix Guattari - IFG, como forma de diminuir tal injustiça. O IFG formou centenas de esquizoanalistas e esquizodramatistas no Brasil e na América do Sul, por meio de suas filiais.

O livro "O que é a Ecosofia?", organizado por Nadaud, tem como função expressar a extrema fertilidade do pensamento de Guattari nos fins da década de 1980 e início da década de 1990. Nesta obra há uma coletânea de artigos, textos, entrevistas, publicados ou não em revistas (como Chimères, Multitudes e Terminal), jornais, cartas, capítulos de livros, etc. Muito do material é inédito, constando dos arquivos pessoais do amigo e colaborador de Guattari, Sacha Goldman, e dos arquivos do Instituto de memórias da edição contemporânea - Imec. Nadaud preocupou-se em agrupar produções desse período que se referem às reflexões "ecosóficas" de Guattari. Vale ressaltar que uma outra coletânea de entrevistas e textos "soltos" de Guattari foram publicados na década de 1980, no livro intitulado "Os anos de inverno" (Guattari, 1985), não traduzido ao português.

Consideramos que este livro é de suma importância para estudiosos de Psicologia Política, pois com a proposta da Ecosofia, Guattari almeja articular em suas reflexões e investigações um projeto ético-estético-político, no qual agencia os processos psíquicos, sociais e políticos, numa verdadeira apreensão psicopolítica. Portanto entende que para pensar a subjetividade relacionada à sua exterioridade, somada à preocupação da gestão política e ambiental do planeta, deve-se trabalhar de forma articulada os três registros ecológicos: do meio ambiente, das relações sociais e da subjetividade humana (Guattari, 1989/1990). A articulação dessas três ecologias é o que Guattari denomina como Ecosofia. O autor criou esse termo para diferenciá-lo do movimento ecológico, e trazer uma concepção mais ampla, como se fosse uma Filosofia do ambiente, Saberes do ambiente, ou Saberes da casa, visto que o prefixo "eco" vem do grego óikos, que significa casa. Nesses saberes, as dimensões ética e política são indissociáveis.

Nadaud agrupou os textos não pela sua cronologia, mas a partir de como entende que a obra "As três ecologias" (Guattari, 1989/1990) está organizada. Todavia, não a seguiu estritamente, pois criou dois tópicos a mais, "produções da subjetividade" e "meios de comunicação e era pós-meios", dividindo o livro em oito partes.

A primeira parte, "Escritos pela Ecosofia", tem como finalidade trazer as definições gerais de Guattari sobre este campo. O esquizoanalista entende a ecosofia como a articulação de diversos campos:

O enlace da ecologia ambiental, da ecologia científica, da ecologia econômica, da ecologia urbana e das ecologias social e mental, não para englobar todas essas abordagens ecológicas heterogêneas em uma mesma ideologia totalizante ou totalitária, senão para assinalar o contrário, a perspectiva de uma escolha ético-política da diversidade, do dissenso criador, da responsabilidade a respeito da diferença e da alteridade (Guattari, 2015:31)1.

Guattari busca apreender estas distintas instâncias não de forma homogênea, mas ressaltando suas diferenças, sua heterogeneidade, e o que resulta dela. Para ele, o dissenso e a multiplicidade são questões criadoras e produtoras de vida. Busca trabalhar o objeto ecosófico por meio de suas cartografias esquizoanalíticas (Guattari, 1989/2000), num diagrama separado em quatro dimensões analíticas: fluxos, filum maquínico, territórios existenciais e universos incorporais (Guattari, 2015:69). Vale ressaltar que as cartografias propostas por Guattari diferenciam-se do certo reducionismo que o termo "cartografia" tem sofrido na produção esquizoanalítica brasileira, que passa apenas a se referir a um método de mapeamento de processos de diversas espécies, a um "[...] desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem" (Rolnik, 1989:15). Portanto, cartografia no primeiro caso refere-se a um modelo analítico dividido em quatro dimensões, e no segundo a um método para mapear distintos movimentos.

A segunda, "Práxis ecosóficas", busca articular a temática da ecosofia em campos como a comunicação, a arte e a cultura. Salienta a importância da criação estética, da arte como algo que consiste em "[...] produzir máquinas de sensação, ou de composição, em criar perceptos arrancados das percepções, afetos distintos do sentimento, sensações fora do senso comum" (Guattari, 2015:79). Também ressalta o lugar da tecnologia e de seus desenvolvimentos maquínicos e autopoiéticos, que proporcionam novas modalidades de existência, valores e territórios existenciais, que obviamente devem ser levados em consideração nas discussões ecosóficas.

A terceira, "Fragmento(s) de Ecologia mental", refere-se às suas incursões na Clínica La Borde, reflexões sobre a cultura japonesa e a arte transgressora. Portanto há discussões sobre a reforma psiquiátrica, sobre a subjetividade no Japão e debates sobre cinema, arquitetura e artes plásticas. Traz uma definição peculiar dos objetivos da esquizoanálise:

A esquizoanálise, repito, não é uma modelização alternativa. É uma busca de metamodelização. Esforça-se por compreender como você chegou até aqui. "Como é teu próprio modelo? Não funciona? Então não sei, vamos tentar trabalhar juntos. Vamos ver se você pode fazer um enxerto de outros modelos. Quem sabe pode ser pior ou melhor. Veremos!" Não se trata de impor um modelo padrão. E o critério de verdade, ali dentro, é justamente quando a metamodelização se transforma em automodelização, ou se prefere, autogestão do modelo (Guattari, 2015:170)

Nesta proposição, trata por diferenciar dos modelos codificados da psicanálise,compreendendo que a esquizoanálise não tem compromisso com Édipo, a castração, ou o modelo da família nuclear como padrões codificados instituídos. Mas sim com uma desconstrução dos modelos pressupostos que despotencializam a vida, para a constituição de outros, ainda desconhecidos, que podem traçar novos caminhos, possibilidades existenciais e outros mundos.

Na quarta, "produções da subjetividade", aborda e discute diretamente o que entende como processos de subjetivação, não restringindo a subjetividade a uma questão individual, mas como a resultante de um intrincamento de diversas instâncias. Para Guattari, a subjetividade não é apenas humana, é sobretudo maquínica, pois é produzida "pelos meios de comunicação, pelos computadores, os sistemas de linguagem" (2015:253). Portanto, com a intensificação do capitalismo, há a produção majoritária de uma subjetividade capitalística, homogeneizadora, aplainada e fundamentalmente infantilizada, avessa à diferença (Guattari, 2015:262). O esquizoanalista também ressalta que mesmo com o discurso supostamente "progressista" do capitalismo, observa-se o fortalecimento dos neoarcaísmos subjetivos (Guattari, 2015:214), como a ascensão de discursos totalitários, nacionalistas, xenófobos, neonazistas, fundamentalismos religiosos, etc.

A quinta, "Ecologia Social e Capitalismo Mundial Integrado", busca discutir temáticas referentes aos cenários micro e macropolíticos, enfatizando o papel que o capitalismo transnacional ocupa nos processos sociais e subjetivos. Deleuze e Guattari (1972/1976) foram visionários ao compreender que o capitalismo não se restringia aos processos de produção, econômicos e políticos, mas que opera também sobre os processos de subjetivação e de pensamento. Há uma axiomática do capital que incide sobre estas diferentes instâncias (Hur, 2015) e a subjetividade será uma resultante deste agenciamento psicopolítico. A operação de tal axiomática ultrapassa as fronteiras dos Estados-Nação e constitui uma rede descentralizada, denominada como Capitalismo Mundial Integrado, que foi rebatizada quase trinta anos depois por Toni Negri e Michael Hardt como Império (2004). Então nessa parte há entrevistas e textos em que Guattari versa sobre o cenário geopolítico, a modelização propagada pelo capitalismo e alternativas frente a esta axiomática, como a experiência da Autonomia italiana e o movimento operário. Vale ressaltar a frequente crítica que Guattari faz aos movimentos sociais, sindicais e partidários quando estes se burocratizam, criam estruturas centralizadas e fechadas sobre si-próprios.

Na sexta, "meios de comunicação e era pós-meios", Guattari discute distintos meios de comunicação e suas incursões nas Rádios livres, como a que criou, a Rádio Tomate, e também sua participação em peças publicitárias. Faz intensa crítica sobre o caráter massificante e hipnótico dos programas de televisão. Considera que funcionam como uma "droga hipnótica", que corta o sujeito de seu entorno, dissolve relações sociais e familiares, bem como diminui o papel da leitura para a aquisição de bens culturais, trabalhando assim mais a "memória curta" (Guattari, 2015:330), produzindo uma "espécie de robotização dos indivíduos em relação sistema de valores dominantes" (Guattari, 2015:350). Por outro lado, enaltece a emergência de novos meios de comunicação, que podem descentralizar o controle da informação, tradicionalmente nas mãos de poucos. Prevê a transição do período midiático de massa, de uma unidimensionalidade subjetiva, para um denominado como pós-meios, que está sendo acelerado pelo desenvolvimento tecnológico, por uma redefinição da relação entre produtores e criadores, a instauração de novas práticas sociais e a evolução da informação (Guattari, 2015:331). As práticas alternativas de comunicação, como as rádios livres, constituem-se como zonas potenciais de resistência que podem gerar processos de heterogênese da subjetividade. Os três últimos textos dessa parte tratam das incursões de Guattari na publicidade, em que ele opina sobre suas impressões e vivência, tal como um tema que lhe chama atenção: a questão do limpo e do sujo nas peças publicitárias.

A sétima, "Ecologia meio-ambiental e máquinas de guerra", discute o eixo ecosófico da ecologia ambiental, com reflexões sobre a necessidade de reordenação na gestão dos aspectos políticos e ambientais do planeta. Nesta parte há muitas referências sobre a relação de Guattari com os partidos políticos ecológicos, tanto sua aproximação, bem como seus distanciamentos, quando estes tornam-se "uma organização partidária, sectária, fechada sobre si mesma, muito mais preocupada por sua atividade burocrática interna, do que aberta sobre a vida social e sobre a reinvenção de novas formas de militância" (Guattari, 2015:424-425). Como vetor de ação política, Guattari não busca um acordo programático entre os distintos grupos políticos que cubra as diferenças, mas sim "um diagrama coletivo que permita articular as práticas em benefício de cada uma delas, sem que uma se imponha sobre a outra [...] fazendo-as convergir em certos objetivos contingentes de lutas emancipatórias e de modificação das relações de forças referentes às formações conservadoras" (Guattari, 2015:437-438).

E finalmente, a última parte, refere-se a um "Glossário ecosófico", no qual Nadaud recorta trechos deste próprio livro, nas palavras de Guattari, para definir conceitos fundamentais para o entendimento da Ecosofia, como: autopoiésis, caosmose, filum maquínico, hecceidade, metamodelização, ritornelo, etc. Consideramos importante a presença de um glossário em livros de esquizoanálise para o público leigo, devido a presença de conceitos de difícil entendimento.

Obviamente o livro não está tão recortado como descrevemos, pois na mesma entrevista/texto temas das diferentes partes aparecem. Chama-nos a atenção também nesta obra posicionamentos de Guattari referentes a uma luta contra a pós-modernidade, a luta contra os centralismos e contra tudo o que pode despotencializar e empobrecer a vida, a subjetividade e o planeta. O grande número de entrevistas é formidável, pois percebe-se diferentes tipos de entrevistadores, como aqueles que têm interesse maior de ouvir o esquizoanalista, mas também aqueles que querem provocá-lo e atacá-lo. Ressaltamos o rico diálogo que Guattari entabula com Toni Negri, em que lhe são questionadas temáticas referentes ao lançamento de seu livro mais complexo, Cartografias esquizoanalíticas (Guattari, 1989/2000).

Entendemos que este livro é leitura obrigatória para estudiosos de esquizoanálise e da obra de Deleuze e Guattari. Também sugerimos a leitura desta coletânea para os psicólogos políticos, pois Guattari com sua ecosofia propõe a relação entre subjetividade e política de forma original e instigante. Ressalta-se também que está crescendo nos últimos anos o número de artigos publicados na Revista Psicologia Política que utilizam o referencial teórico da esquizoanálise (cf. Zamboni & Barros, 2014; Peres & Toledo, 2011), bem como o número de trabalhos submetidos aos Simpósios Brasileiros de Psicologia Política (cf. Hur, Lacerda Junior & Palla, 2014). Consideramos que a Cactus editorial acertou na tradução e publicação desse livro e agora nos resta aguardar se alguma editora brasileira o traduzirá e o publicará em português.

 

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Recebido em 12/07/2015.
Aceito em 30/08/2015.

 

 

1 Todas as citações desta obra (Guattari, 2015) foram traduzidas por nós do castelhano ao português.

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