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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.18 no.42 São Paulo maio/ago. 2018

 

ARTIGOS

 

Cidades neoliberais e direito à cidade: outra visão do urbano para a psicologia

 

Neoliberal cities and right to the city: another vision of the urban to psychology

 

Ciudades neoliberales y derecho a la ciudad: otra visión de lo urbano para la psicología

 

Les villes néolibérales et le droit à la ville: une autre vision de l'urbain pour la psychologie

 

 

Tadeu FariasI; Raquel DinizII

IDoutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pesquisador vinculado ao Grupo de Estudos Interações Pessoa-Ambiente (UFRN). tadeumattos@gmail.com
IIProfessora adjunta do Departamento de Psicologia e colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. raquelfdiniz@gmail.com

 

 


RESUMO

As cidades são parte do humano tanto quanto criações deste, o que torna esse binômio objeto de interesse para a psicologia. Este ensaio tem como objetivo analisar o papel da cidade na vida humana, aprofundando o entendimento a respeito da complexidade do fenômeno urbano no âmbito da psicologia. Traz abordagens mais recentes, considerado como lócus de tensões de forças, em que concorrem modos de subjetivação hegemônica e produção de outros modos de vida. Discute-se, também, a emergência do direito à cidade como enfrentamento das manifestações urbanas das contradições do capitalismo e da produção capitalista do espaço, intensificadas no estágio neoliberal, em que a mercantilização das cidades e da vida urbana atinge seu ápice. Enfrentamento especialmente pela via dos movimentos sociais urbanos e outros movimentos de ocupação e reivindicação, que colocam como possibilidade histórica uma outra cidade. Por fim, são feitas algumas considerações a respeito das articulações entre psicologia e direito à cidade, e sobre uma outra visão do urbano para a psicologia.

Palavras-chave: produção do espaço, direito à cidade, movimentos sociais, subjetividade, psicologia


ABSTRACT

Cities are part of humans as well as their creations, which makes this binomial an object of interest to psychology. This essay aims to analyze the role of the city in human life, deepening the understanding about the complexity of the urban phenomenon in the field of psychology. Brings recent approaches, which consider it as a locus of tensions of forces, in which hegemonic modes of subjectivation and production of other ways of life compete. It also discusses the emergence of the right to the city as a confrontation of urban manifestations of capitalism contradictions and of capitalist space production, intensified in the neoliberal stage, in which commoditization of cities and of urban life reaches its peak. Confrontation especially by urban social movements and other movements of occupation and claim, that put as a historical possibility another city. Finally, some considerations are made regarding the articulations between psychology and right to the city, and about another vision of the urban to psychology.

Keywords: space production, right to the city, social movements, subjectivity, psychology


RESUMEN

Las ciudades son parte del humano tanto como creaciones de éste, lo que le hace a ese binomio objeto de interés para la psicología. Este ensayo tiene como objetivo analizar el papel de la ciudad en la vida humana, profundizando el entendimiento acerca de la complejidad del fenómeno urbano en el ámbito de la psicología. Trae enfoques más recientes, considerado como locus de tensiones de fuerzas, en que concurren modos de subjetivación hegemónica y producción de otros modos de vida. Se discute, también, la emergencia del derecho a la ciudad como enfrentamiento de las manifestaciones urbanas de las contradicciones del capitalismo y de la producción capitalista del espacio, intensificadas en el estadio neoliberal, en que la mercantilización de las ciudades y de la vida urbana alcanza su ápice. Enfrentamiento especialmente por la vía de los movimientos sociales urbanos y otros movimientos de ocupación y reivindicación, que plantean como posibilidad histórica a otra ciudad. Por último, se hacen algunas consideraciones acerca de las articulaciones entre psicología y derecho a la ciudad, y sobre otra visión del urbano para la psicología.

Palabras-clave: producción del espacio, derecho a la ciudad, movimientos sociales, subjetividad, psicología


RÉSUMÉ

Les villes font partie de l'humain tout comme ses créations, ce qui fait de ce binôme un objet intéressant pour la psychologie. Cet essai vise à analyser le rôle de la ville dans la vie humaine afin d'approfondir la compréhension du phénomène urbain dans sa complexité, partant notamment du point de vue la psychologie. Adoptant les approches plus récentes, cette analyse considère le milieu urbain comme un lieu régi par des tensions de forces, mettant en concurrence des modes de subjectivation hégémonique et la production d'autres modes de vie. La discussion porte également sur l'émergence du droit à la ville conçu comme un affrontement des expressions urbaines issues des contradictions du capitalisme et de la production capitaliste de l'espace, intensifiées à cette phase néolibérale où la mercantilisation des villes et de la vie urbaine a atteint son sommet. Un tel affrontement se réalise particulièrement par la voie des mouvements sociaux urbains et d'autres mouvements d'occupation et de revendication, qui envisagent la possibilité historique d'une ville différente. Enfin, quelques considérations sur les rapports entre la psychologie et le droit à la ville sont développées, ainsi que des remarques à propos d'une autre vision de l'urbain pour la psychologie.

Mots-clés: production de l'espace; droit à la ville; mouvements sociaux; subjectivité; psychologie


 

 

A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer. Anastácia, cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como minerador de ágatas ônix crisóprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia quando não passa de seu escravo (Italo Calvino)

É possível apontar aproximações da ciência psicológica com temas relacionados ao ambiente desde o início do século XX. Num momento inicial seus interesses se voltaram tanto para o ambiente socio físico, numa interface com a geografia e com a sociologia, como para a adoção de perspectivas holísticas e ecológicas para explicar o comportamento humano, com as contribuições da Psicologia da Gestalt. Desse momento inicial, aos debates contemporâneos sobre os modos de vida no campo e na cidade, observam-se o desenvolvimento de diferentes matizes teórico-epistemológicas que convergem na espacialização dos fenômenos psicossocias.

Segundo Pol (2006), da interface inicial com a sociologia urbana norte-americana - marcadamente da Escola de Chicago -, emergiu uma visão psicossocial e interativa da dinâmica urbana, assim como o olhar para as distinções entre a vida no campo e na cidade. Colocou-se em questão a dualidade da vida urbana, tanto em termos das liberdades e oportunidades que oferece, quanto seus desdobramentos em termos de anonimato e isolamento. Desse modo, teve início um campo de estudos sobre os efeitos psicológicos do ambiente urbano.

A consolidação da interface entre psicologia e urbanismo, em fins dos anos de 1950, foi marcada pelas demandas por construções mais práticas e confortáveis. Com imperativos do contexto Pós-Guerra, a palavra ambiente evocava muito mais o cimento do que o verde, com foco nos ambientes construídos, principalmente nas grandes cidades, e seus efeitos sobre o comportamento humano. Surge assim um ramo da psicologia, essencialmente arquitetônica, focada no âmbito individual e na construção de conhecimento de base empírica. A partir do contato com as demandas do campo da arquitetura e das áreas de planejamento urbano se fortaleceu um diálogo interdisciplinar, e a psicologia passou a formar parte de campo de investigações mais amplo, que tem como foco as relações pessoa-ambiente (Bonnes & Bonaiuto, 2002; Pol, 2007).

Ao atentar para a trajetória de aproximação com os debates sobre a questão urbana, cabe ressaltar que a ciência psicológica tradicional tem lançado mão, de forma mais comum, de uma visão a-histórica, objetivista, cognitivista, pragmática e pretensamente neutra a respeito das relações que as pessoas estabelecem com seus ambientes. Sob esse enfoque, temas comumente investigados são as condições ambientais urbanas (e.g. ruído, poluição), estresse, comportamentos e atitudes pró-sociais e civilidade, assim como vandalismo, segurança e insegurança urbanas (Moser, 2018). Acreditamos que tal visão traz limitações importantes para a leitura crítica sobre a complexidade que envolve fenômeno psicossocioambiental do habitar a cidade, assim como sobre as implicações sociais, políticas, subjetivas dos modos de vida urbanos.

Para fazer frente a tais limitações, a partir de referenciais que visavam à confrontação da tradição psicológica normativa, adaptativa, destacamos contribuições teóricas contemporâneas que sinalizam o espaço urbano como lócus de tensões de forças, em que concorrem elementos de saber-poder com seus modos de subjetivação hegemônica e processos de ruptura e produção de outros modos de vida, que buscam escapar à subjetivação urbano-capitalista (Guattari, 1992). Nesse sentido, pela via dos processos de subjetivação, aponta-se para o caráter político do urbano.

Dentre os elementos analisados, estão os processos de homogeneização das subjetividades contra os processos de singularização (Guattari, 1992), as políticas que visam ao amortecimento das tensões urbanas provocadas pela irrupção das diferenças (Berino & Baptista, 2007), a modelização do modo de vida urbano pela atuação da mídia de massa, e a conformação de uma relação cidade-subjetividade em que a cidade deve ser vista e não vivida (Fontenelle, 2007), bem como a arte como atravessamento que rompe com o nexo normativo da cidade ao mesmo tempo em que se manifesta na textualidade urbana (Baptista, 2003; Nogueira, 2007). A cidade, enfim, é entendida como campo de forças que detém o privilégio na produção ou transformação de modos de ser e existir, tendo a psicologia tradicionalmente contribuído para o primeiro quadro, especialmente com sua trajetória de inserção em espaços de disciplina (fábrica, escola, hospitais).

Diante do exposto, o presente ensaio busca somar uma contribuição para repensar a cidade e os modos de vida urbanos como objetos de interesse e estudo para a ciência psicológica. Nosso objetivo é analisar o papel da cidade na vida humana, aprofundando o entendimento a respeito da complexidade do fenômeno urbano no âmbito da psicologia, incorporando as dimensões política, social, histórica e econômica nas relações humano-urbanas. Para tanto, recorremos ao direito à cidade, entendendo que - como fenômeno essencialmente humano, e como obra que sintetiza um processo histórico de maturação do capitalismo e de conformação da subjetividade moderna - a cidade contempla contradições, tensões e potencialidades fundamentais que nos ensinam sobre o que somos como humanidade, mas também o que poderemos ser.

Neste ensaio, defendemos que a temática do direito à cidade, por seu escopo, proporciona um amplo espaço para questões prenhes de aspectos psicossociológicos de interesse para a área. Lançamos um conjunto de reflexões sobre elementos que acreditamos serem centrais para o debate do direito à cidade, considerando o cenário urbano atual, tanto global como localmente, a fim a provocar a psicologia a pensar um outro urbano, outras formas de habitar a cidade, e suas próprias relações com a cidade e com as políticas urbanas.

 

Produção capitalista do espaço e cidade neoliberal

A cidade é produto da humanidade. Contudo, não é um produto qualquer, pois ao produzir as cidades, as sociedades também produzem suas relações sociais. É nesse sentido que Henri Lefebvre (2001) trata a cidade como obra, "uma obra de uma história, isto é, de pessoas e de grupos bem determinados que realizam essa obra nas condições históricas" (p. 52). Assim, também, é possível afirmar que a cidade é há algum tempo a mediação da constituição da própria humanidade como tal, ou seja, que "indiretamente, e sem qualquer percepção clara da natureza da sua tarefa, ao construir a cidade o homem reconstruiu a si mesmo" (Robert Park, 1967, citado por Harvey, 2012, p. 73).

As cidades são, assim, produto e condição das formas de reprodução social que lhe são imanentes. Isso significa que, ao mesmo tempo em que manifestam a potência humana de criar possibilidades para habitar e experimentar o mundo, carregam em si as contradições dessas sociedades. Dessa maneira, "a questão de que tipo de cidade queremos não pode ser divorciada do tipo de laços sociais, relação com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores estéticos que desejamos" (Harvey, 2012, p. 74).

Logo, a cidade traz consigo a memória das práticas passadas e as marcas das práticas presentes que lhe reafirmam e/ou lhe transformam. Ela é "o lugar por excelência onde as diferentes classes sociais convivem e se reproduzem" (Pustrelo, 2014, p. 59), e por isso passou a ser indispensável para dar sustento à estrutura que garante a existência e a constante expansão do próprio sistema. "Portanto, não é possível dissociarmos o caminho histórico do urbano capitalista do caminho histórico da própria sociedade capitalista como uma totalidade social" (Lorena, 2012, p. 95).

Nas sociedades capitalistas, a cidade como obra também se apresenta como mercadoria, e manifesta em seu solo e em suas relações o conjunto das contradições às quais subjaz a propriedade privada dos meios de produção. É característica desse modo de produção a produção de excedente e as trocas de produtos sob a forma de mercadoria como necessidade generalizada, além da exploração da classe trabalhadora para a produção do valor excedente, apropriado pela classe burguesa. Isso está relacionado a duas características fulcrais para pensar as cidades, a saber: a necessidade inalienável do capital se valorizar e a constante e expansiva produção de mercadorias. A questão que aqui se põe é como as cidades se articulam a essas características?

No processo de acumulação primitiva, conforme analisado por Marx (2013), deu-se progressivamente a separação entre cidade e campo, com subordinação deste último às demandas industriais e comerciais da primeira. Como marcos desse embrião do capitalismo estão a expropriação das terras dos camponeses e da igreja e a consequente liberação da mão-de-obra, além da concentração dos meios de produção nas mãos da burguesia.

Essa sujeição do campo à cidade traz para o primeiro um conjunto de consequências que não cabem no escopo deste trabalho. No caso das cidades, por seu turno, a migração da mão-de-obra "livre", a crescente industrialização, e a sua centralidade como lócus para a acumulação de capital e para a circulação de mercadorias, são basilares para toda uma estruturação urbana. "O problema urbano capitalista surge em meio a esse modo estrutural de funcionamento do capitalismo" (Lorena, 2012, p. 93).

Deriva daí o papel estrutural das cidades no capitalismo. Elas passam a concentrar atividades, força de trabalho e seu excedente (fundamentais para fazer operar o sistema produtivo), capital, meios de consumo e de reprodução do capital (Lorena, 2012) e, assim, prestam um papel fundamental na divisão social do trabalho, algo expresso explicitamente na organização do espaço urbano. Pode-se afirmar daí que são inerentes às cidades sob o capitalismo problemas como superpopulação, poluição, altas concentrações de renda e riqueza, desemprego etc., ainda que essas características possuam especificidades em distintas regiões e momentos históricos.

Nesse sentido, os países da periferia do capitalismo abarcam no desenvolvimento histórico de suas cidades os efeitos de tal condição periférica. A condição de dependência, entendida por Marini (1973) como "relação de subordinação entre nações formalmente independentes" (p.4) implica uma relação dialética entre desenvolvimento (nas economias centrais) e subdesenvolvimento (nas economias periféricas). Os condicionantes histórico-estruturais dessa relação provocam restrições estruturais nas economias dependentes, as quais, por sua vez, buscam compensar recorrendo à superexploração da força de trabalho. As consequências dessa condição são a crescente concentração de riqueza e renda, pauperização, aumento do fosso social entre ricos e pobres, e os impactos sociais desses processos (Carcanholo, 2008). As cidades dos países subdesenvolvidos possuem, então, algumas marcas resultantes dessas determinações, como a forte incidência da pobreza extrema, a ocupação ilegal e precária da terra urbana, altas taxas de violência, intensa periferização, permanente crescimento a partir do êxodo rural, permanente negação do acesso aos recursos urbanos para grandes contingentes populacionais e crescente concentração da propriedade do solo urbano.

O espaço urbano também é o ambiente imobilizado que garante localização e suporte das relações sociais de produção e, por conseguinte, para a acumulação de capital em um momento histórico determinado (Carlos, 2015). Essa infraestrutura para a acumulação é o "arranjo espacial" (Harvey, 1984), e porta em si a contradição de em dado momento se constituir como um entrave para o mesmo processo, devendo ser substituída. Donde as reconfigurações urbanas nos períodos de crise.

É importante ressaltar que a necessidade de constante valorização do capital tende a acelerar a velocidade de sua rotação, desde a produção, consumo, até seu retorno para a produção como investimento. Isso faz concentrar ainda mais os meios de produção e consumo nos centros urbanos, mas também a intensificar a mundialização dos mercados, buscando novos espaços de valorização. Essa tendência urbana do desenvolvimento capitalista se fez presente nos processos de colonização durante a revolução comercial europeia, no neocolonialismo da corrida imperialista do século XIX e se acentua na expansão dos mercados via globalização, desde as últimas décadas do século passado, levando a novas formas de exploração dos países periféricos e acentuando a condição de dependência. No capitalismo globalizado, por exemplo, as cidades desempenham um importante papel na financeirização da economia e na expansão do capital sob essa forma (Carlos, 2015).

Assim, a urbanização é um processo que facilita a acumulação do capital, garantindo suas condições, mas igualmente um processo de produção e consumo em si mesmo, já que a construção dos espaços urbanos opera dentro dos moldes da produção de mercadorias urbanas (construção civil, estruturas e vias públicas, por exemplo). Uma vez que o capitalismo é cíclico e seus momentos de crise se dão por superprodução de capital, formas de absorver o excedente são sempre necessárias, e "a urbanização desempenhou um papel particularmente ativo, ao lado de fenômenos tais como gastos militares, na absorção do excedente que os capitalistas produzem perpetuamente em sua busca pelo lucro" (Harvey, 2012, p. 75).

Assim, ao mesmo tempo em que concentra as condições para sua reprodução e tende a totalizar sob sua égide os elementos heterogêneos do espaço urbano, o funcionamento do capital a partir de suas leis e necessidades imanentes estrutura um urbano fragmentado e desigual. Disso decorre que a dinâmica classista própria dessa sociedade está também na possibilidade de cada segmento social produzir e se apropriar das cidades (Junior, 2014). Da articulação entre espaço físico e modo de vida urbano procede o que Lefebvre (2000) denominou espaço abstrato, uma vez que as pessoas se relacionam com ele sob a forma de consumidor-mercadoria, e o valor de uso dos espaços é sujeitado pelo valor de troca. O espaço abstrato também mascara as contradições inerentes à apropriação do solo urbano, uma vez que a abstração faz parecer que basta uma ascensão de renda para que seja possível consumir os mesmos espaços. Essa lógica esconde as contradições de classes expressas na cidade. Assim sendo, é funcional para a reprodução das relações sociais no espaço urbano, o que implica na reprodução das próprias relações capitalistas.

A crise econômica instaurada a partir do fim da década de 1960 levou a uma reconfiguração da produção capitalista. Em busca de recuperação, entrou em cena um conjunto de práticas políticas e econômicas junto a um aparato ideológico conhecidos como neoliberalismo. As mudanças propaladas pelo neoliberalismo tiveram início nos países europeus e nos Estados Unidos, sendo posteriormente exportadas para os países do capitalismo periférico (com exceção do Chile, que colocou em prática a agenda neoliberal durante a ditadura de Augusto Pinochet). Do ponto de vista econômico, tratou-se especialmente de abertura comercial e financeira, desregulamentação dos mercados financeiro e de trabalho, privatização e liberalização dos preços. No âmbito ideológico, é marcante o discurso de valorização de "eficácia da livre concorrência" contra a "ineficiência do Estado" na garantia do acesso aos bens e serviços, além da ideia de uma "subjetividade humana empreendedora".

Como acontecera em crises anteriores, o espaço urbano e a vida nas cidades sofreu impacto dessa reestruturação (Harvey, 2012). Sob a direção das grandes agências financeiras, especialmente o Banco Mundial (BM) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), as metrópoles, incluindo as latinoamericanas, adotam uma agenda para as cidades articulada aos próprios projetos de reforma do Estado, que visavam diminuir o escopo de ações deste no que tange à administração da atividade econômica e gestão política. As cidades foram então transitando de modelo intervencionista da planificação tradicional para um modelo de mercado, a planificação estratégica (Corral, 2010), reformando seus sistemas habitacionais, descentralizando políticas, chegando até à adoção da lógica empresarial para a gestão urbana, cidades "geridas não apenas like business, mas for business" (Arantes, 2006). Vale o destaque do mercado imobiliário como um dos principais agentes contra a crise referida, que nas reconstruções de centros urbanos e financiamentos habitacionais, especialmente nos Estados Unidos, absorveu grande parte do excedente (Harvey, 2012). É importante salientar que, apesar de ser uma tendência generalizada no mundo ocidental, essa forma de urbanização se articula com traços característicos de cada região (Cobos, 2014), acentuando, por exemplo, as já profundas desigualdades fundadas na concentração de terras no caso da América Latina.

Orientada pelo marco ideológico neoliberal, a política urbana passa a ser um "problema de mercado", e a condição de mercadoria da cidade tende a se generalizar. O acesso à cidade é cada vez mais mediado pelo poder de compra e a possibilidade de participação de cada citadino na cidade é por meio da relação de cliente/consumidor (Junior, 2014). A cidade-mercadoria se torna um balcão de negócios submetido às estratégias de marketing urbano. A formatação do espaço vai se acentuando na direção de uma segregação baseada na condominização, verticalização e fortificação urbanas, além dos grandes projetos urbanos, como os megaeventos esportivos (Corral, 2010). O próprio modo de vida urbano se torna intensamente mercantilizado, uma vez que a sociabilidade, o lazer, o prazer estético, cada vez mais se voltam para os espaços intramuros, ou são definidos nos balcões de agências culturais e de turismo. A privatização dos bens e serviços como segurança e transporte, além da negligência com os espaços públicos comuns são também marcas desse modelo. Como grande mercadoria, a produção da cidade é mediada pela criação de espaços de consumo, especialmente para as classes mais abastadas. Crescem os projetos de urbanização das orlas e de zonas centrais, criando grandes infraestruturas comerciais e promovendo a imagem da cidade globalmente.

Nesse processo, a qualidade de vida torna-se fundamentalmente um produto (Harvey, 2012). As relações com os diversos aspectos da vida urbana, das relações sociais à mobilidade são mediadas pelo mercado, acentuando o caráter fetichista da vida urbana: a cidade e suas relações, produtos da atividade humana, aparecem como uma relação entre coisas. Assim, deve-se comprar a tranquilidade e a possibilidade de isolamento entre muros e cercas elétricas, relegando as ruas a espaços de passagem. Além disso, os espaços do dia a dia, "selecionadores" pelo poder aquisitivo, garantem um controle sobre a surpresa, a diferença, e a relação com o outro. Trata-se da constituição do modo de vida urbano que passa a "encorajar a formação de nichos de mercado - tanto hábitos de consumo quanto formas culturais - envolve a experiência urbana contemporânea com uma aura de liberdade de escolha, desde que se tenha dinheiro" (Harvey, 2012, p. 81). Junte-se a isso o crescimento do individualismo, do medo, da solidão e do ritmo de vida que marcam o cenário urbano.

Incapaz de confrontar a reprodução da desigualdade sob seu teto, uma vez que os mecanismos de reprodução das cidades capitalistas são desdobramentos da contradição capital-trabalho inerente à reprodução do próprio capital, a história do desenvolvimento do urbano moderno também envolve a busca por estratégias para administrar as consequências sociais de tal desenvolvimento. Nas cidades contemporâneas é possível identificar o crescimento da política de "criminalização das consequências da miséria de Estado" (Wacquant, 2003, p. 27). Isso leva à conformação do que Wacquant (2003) chamou de "Estado penal", tendo como uma de suas características centrais o encarceramento maciço e sistemático da população mais pobre. Ainda que a criminalização da pobreza urbana não seja fato recente na história das cidades modernas, especialmente como estratégia para conter manifestações das classes menos abastadas, isso tem sido levado a um novo patamar, especialmente ao se valer do recurso da "guerra às drogas", veículo basilar dos altos índices de morte e encarceramento da população pobre e negra em diversos países. No Brasil, por exemplo, segundo os dados do Atlas da Violência de 2017, a cada 100 pessoas que sofrem homicídio, 71 são negras. O país possui a terceira maior população carcerária do mundo, sendo 64% dessa população negra, segundo dados de 2017 do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias.

Outra característica do desenvolvimento do neoliberalismo é a "destruição criativa" como forma de desenvolvimento econômico. Trata-se da necessidade de destruição do que já está construído, para que se possa reconstruir como algo novo, garantindo a reprodução do capital. Essa destruição do "velho" para a criação do "novo", mediada pela mercantilização dos espaços físicos urbanos, dá-se com a aliança entre Estado e capital especialmente na liberação dos espaços de interesse deste último. Populações tradicionalmente vinculadas a um lugar de interesse imobiliário são retiradas, muitas vezes por meio de violência, para que esses lugares sejam cedidos à iniciativa privada. "O poder financeiro apoiado pelo Estado força a desobstrução dos bairros pobres, em alguns casos, tomando posse violentamente da terra ocupada por toda uma geração" (Harvey, 2012, p. 83).

Assim, a urbanização neoliberal implica um custo altíssimo para as populações mais pobres, acentuando a segregação urbana, a concentração imobiliária, e a periferização. A diminuição da participação do Estado na política urbana, aliada a seu afastamento de outras formas de garantia de direito, relegam aos bairros mais pobres a completa ausência de infraestrutura, um crescimento da violência, as ações militarizadas e a negação de sua inserção na cidade, por meio de políticas excludentes e higienistas. Além disso, corresponde a certo tipo de cidade, certa forma de existir, de viver, certo modo de vida hegemônico. A estrutura segregatória em termos de cor, de sexo, gênero, manifesta-se nas cidades de variadas formas e por diferentes mediações. A constituição racista das classes sociais no Brasil, por exemplo, periferiza o negro e o coloca como alvo preferencial da repressão policial urbana. A violência urbana atinge de maneira massiva a população LGBT, com agressões e assassinatos cotidianos, tornando o corpo que não corresponde ao modelo familiar hegemônico um corpo negado pelo espaço público. Da mesma maneira, a violência e o machismo estruturais fazem do espaço urbano um espaço de medo e violência para as mulheres.

A subsunção dos processos próprios da cidade e de seus bairros, ou seja, do caráter de produção apontado por Lefebvre (2001), à lógica de mercado, pode ser considerada uma negação do caráter político da cidade (Arantes, 2006). É próprio da modelização empresarial da cidade a negação da polis, a tentativa de suprimir o campo de relações de classes na produção e apropriação do urbano e os embates que lhe são próprios em nome de um suposto consenso acerca dos mecanismos de mercado como garantidores da boa gestão urbana.

 

Movimentos urbanos e direito à cidade

Ainda vão me matar numa rua.
Quando descobrirem,
principalmente,
que faço parte dessa gente
que pensa que a rua
é a parte principal da cidade.
(Paulo Leminski)

Podemos afirmar que o direito à cidade é a negação da negação. É o enfrentamento à condição urbana tal qual a produção capitalista do espaço, especialmente sob o neoliberalismo, desenha. A direção, o conteúdo, e a forma da produção e apropriação das cidades está alicerçada pela forma como se dão as lutas de classes no próprio interior desta sociedade. O avanço do modelo de mercado sobre as cidades certamente se abasteceu da queda da União Soviética, da hegemonia em torno da agenda neoliberal, e do ataque às conquistas históricas da classe trabalhadora. De tal forma que é possível dizer que há uma oposição entre a uma cidade neoliberal e um direito à cidade (Junior, 2014).

Na concepção de Lefebvre (2001), o direito à cidade diz respeito a uma estratégia de conhecimento tanto quanto uma estratégia política. Isso, pois, não se pode falar em um direito como objeto dado, "fato social", mas sim considerá-lo em seu caráter processual dentro da dinâmica histórica e política. Assim, como objeto de investigação, deve ser apreendido tanto em sua negação (a própria produção capitalista do espaço), como em seus processos reivindicatórios e nas lutas por reapropriação do espaço urbano.

Ao tomar a cidade a partir dos diferentes interesses que se expressam em seu solo, torna-se evidente que pensar esse objeto é indagar sobre a participação concreta dos diversos agentes na construção desse espaço fundamental da sociabilidade humana. Tal participação não se limita a um suposto livre acesso aos lugares construídos, "o direito à cidade está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade" (Harvey, 2012, p. 74).

Dado tal caráter histórico-processual, podemos pensá-lo a partir de duas dimensões: por um lado, uma demanda para que a cidade abasteça seus viventes das condições materiais e espirituais necessárias à reprodução social dentro do recorte histórico em questão e, por outro, "uma demanda coletiva por uma nova cidade que expresse o direito a clamar por algo que ainda não existe, o direito a outra cidade" (Junior, 2014, p. 152).

Não se pode dizer, então, que o direito à cidade pertença a qualquer classe, pois isso eliminaria a processualidade e a dimensão política. O que se pode afirmar é que um grupo muito limitado de agentes econômicos, de acordo com seus interesses privados e de acumulação de capital, podem reconstruir as cidades em favor de seu próprio lugar de classe, e que há outros grupos aos quais sequer o acesso ao espaço público é realmente garantido. O direito à cidade como objeto emerge justamente no momento em que a classe trabalhadora, junto aos grupos que reivindicam uma cidade que não as reprima, afrontam tal realidade, a tensionam, e colocam como possibilidade histórica a um outro urbano, outra cidade. Nessa direção, é importante destacar que a classe trabalhadora não é homogênea e não é o único grupo social ao qual o direito à cidade é negado. É sobre os segmentos mais pauperizados, em condição de extrema pobreza - majoritariamente pertencentes à tal classe - que recai o peso maior de tal negação. Contudo, a contradição capital-trabalho, que dinamiza as demais contradições do modo de produção capitalista, coloca sobre a consciência e ação de tal classe um papel fundamental na fratura das estruturas fundantes dessa sociabilidade e sua consequente superação. Assim, ela também tem um papel fundamental no enfrentamento da estrutura de reprodução capitalista do espaço e na possibilidade histórica do direito à cidade.

É possível apreender essa dimensão histórico-processual tomando a disputa pelo urbano brasileiro como ilustração. Se por um lado a conformação das cidades brasileiras tem historicamente favorecido as elites, por outro lado observa-se a mobilização e participação de diferentes segmentos da sociedade civil na problematização e redefinição dos rumos para sua irrefreável urbanização. Processos reivindicatórios e de lutas por reapropriação do espaço urbano têm resultado em marcos e instrumentos legais importantes para negação da negação histórica do solo urbano, expressa na luta pelo direito à cidade.

Até meados do século XIX as terras no Brasil não tinham valor comercial, sendo cedidas pela Coroa Portuguesa - as sesmarias - ou simplesmente ocupadas, com a expulsão de pequenos posseiros por grandes donatários rurais. Com a Lei de Terras, promulgada em 1850, se deu a implantação da propriedade privada do solo brasileiro, beneficiando tanto quem já detinha terras, como a própria Coroa, que passou a comercializar terras em leilões. O processo político associado à essa mudança mantém relação direta com o fim do tráfico de escravos e com a substituição da mão-de-obra escrava pela imigrante, alinhado aos interesses comerciais ingleses. Segundo Ferreira (2005), com a privatização do solo urbano, o poder das elites passou do número de escravos, para a porção de terra que possuía, convertida então em mercadoria. Consolidou-se a divisão da sociedade entre os proprietários fundiários, e aqueles sem nenhuma possibilidade de comprar terras, os escravos libertos (após 1888) e os imigrantes, endividados com seus patrões.

Na passagem do século XIX para o XX, as cidades reforçaram sua relevância por serem os centros de controle e comercialização da produção do campo. Nesse momento já se evidenciavam as marcas da segregação socioespacial, posto que o poder público beneficiava as elites destinando intervenções urbanas exclusivamente a melhorias nos bairros das classes dominantes, ao passo que se registram os primeiros cortiços e ocupações dos morros com moradias populares, constituindo a parte da cidade marcada pela insalubridade e epidemias resultantes da falta de infra-estrutura (ex. Saneamento básico), assim como pela violência e alta densidade urbana (Ferreira, 2005).

A intensificação da industrialização e, consequentemente, o fortalecimento do capital industrial reforçam tanto a divisão social do trabalho e a luta de classes, quanto a divisão social do espaço. A cidade, nesse momento como lócus de produção, passou a concentrar tanto as classes dominantes quanto o operariado urbano, exacerbando o processo de segregação espacial e a diferenciação no habitar a cidade. De acordo com Maricato (1996), há uma relação histórica entre a produção ilegal de moradias e o urbanismo, uma vez que o salário do operário industrial não lhe possibilitava acesso à moradia via mercado imobiliário legal, e os investimentos públicos favoreciam a infraestrutura industrial e um mercado concentrado e restrito.

A provisão habitacional para as classes populares no período populista da Era Vargas, tem como características a insuficiente intervenção estatal e a dominância de iniciativas privadas, seja via moradias de aluguel, seja pela construção de vilas de baixo padrão, acessadas pelos operários qualificados, funcionários públicos, comerciantes; ou cortiços, habitados pela população mais pobre. Uma mudança nesse cenário ocorreu durante o regime militar, com a instauração de um planejamento urbano centralizador e tecnocrático que, para além da promoção de políticas públicas de universalização do direito à moradia, fomentou o enriquecimento de setores da economia que atuavam na produção habitacional, como grandes empreiteiras, contribuindo para alavancar o milagre brasileiro (Ferreira, 2005). Contudo, tais iniciativas além de não alcançarem a população realmente pobre, tornaram-se instrumentos do clientelismo.

Desse processo histórico resulta que a cidade brasileira contemporânea se constitui por dois mecanismos: a liberdade de tratamento e negociação (especialmente moradia e solo urbano) como mercadoria por parte dos agentes capitalistas, e a política de tolerância com todas as formas de apropriação e uso do solo urbano, tanto por parte das camadas mais pobres da população (favelas, loteamentos irregulares), quanto pela ocupação de áreas nobres pelas classes médias e elites. Ribeiro e Santos Junior (2011, p. 11) afirmam que o Brasil urbano resulta de uma "coalizão mercantilizadora da cidade", tendo como principal maestro o Estado, que atua protegendo os interesses da acumulação urbana, promovendo vultuosas obras urbanísticas e ainda pelo papel omisso no planejamento urbano.

Contudo, a ocupação do solo urbano no Brasil tem sido tensionada porprocessos de resistência e mobilizações da sociedade civil, especialmente das camadas excluídas nas definições da pauta urbana. As reivindicações buscam a regularização dos loteamentos ilegais, a instalação de infra-estrutura nas periferias das cidades, a construção de equipamentos de saúde, educação, etc. (Ferreira, 2005).

As pressões sociais ganharam espaço e visibilidade a partir dos anos de 1970, com o Movimento pela Reforma Urbana, composto por agentes da sociedade civil em articulação com setores da igreja católica e outras entidades e associações. Com a Emenda Constitucional de Iniciativa Popular pela Reforma Urbana, foram inseridos na Constituição de 1988 os artigos 182 e 183, referentes a instrumentos que dão suporte ao controle público sobre as definições a respeito do uso do solo urbano; e foi introduzida a "função social da propriedade urbana", que busca atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano urbanístico. Apenas em meados do ano de 2001 se daria a efetivação desses instrumentos, com a aprovação do Estatuto da Cidade, que visa dar suporte legal à reforma urbana em muitos de seus objetivos (Bassul, 2002).

Os marcos e instrumentos legais resultaram do apelo popular, e representam importantes avanços na direção da melhoria da qualidade de vida urbana no Brasil, fazendo frente à herança colonial de desigualdade na ocupação do solo urbano. Apresentam, também, diversas limitações e entraves que seguem dificultando sua efetivação, o que vem sendo discutido por diversos especialistas (Bassul, 2002; Ferreira, 2005; Maricato, 1996).

Nos interessa destacar a participação social na proposição dessas mudanças. Tem-se, como exemplo, o protagonismo de movimentos urbanos organizados como o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), do Movimentos das/os Trabalhadoras/es Sem Teto (MTST) e do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), que vêm produzindo tensões e rupturas nas políticas de habitar a cidade, na medida em que reivindicam a participação nas definições da ocupação do solo urbano. O MNPR, por exemplo, que se organizou para a reivindicação de uma série de direitos para a população em situação de rua, teve como evento disparador a chacina da Praça da Sé, ocorrida em São Paulo (Almeida, 2015). A contradição entre viver da/na rua e ser negado pela própria cidade é marca desse segmento social e do que viemos argumentando sobre o urbano capitalista. Por via dos dispositivos legais e de controle social, providos pelo Estatuto da Cidade, os movimentos citados reúnem reivindicações comuns, quanto à democratização do acesso e da melhoria das condições de vida urbana.

No entanto, o direito à cidade não diz respeito unicamente à dimensão de uma democratização no sentido formal, liberal, do termo, algo como a possibilidade do acesso de todas as pessoas aos espaços da cidade. Quanto a isso, por um lado é importante salientar que a desigualdade (o que inclui a desigualdade no acesso ao urbano em todas as suas dimensões), sob o capitalismo, não é um problema de ajuste, mas lhe é inerente. Por outro lado, o direito à cidade abarca uma dimensão de possibilidade de criar (necessariamente outro) urbano.

Com as especificidades que lhes cabem, o que esses movimentos possuem em comum é o fato de se negarem a aceitar a negação da cidade que lhes é imposta dentro do modo capitalista de produzir o espaço urbano. Ao passo que o fazem, criam a possibilidade histórica de produzir outra cidade, cuja constituição deve ser mediada por outros processos que não aqueles que alienam a cidade de seus viventes. Os movimentos sociais urbanos são manifestações que carregam as marcas das contradições urbanas destacadas até aqui, tanto no que diz respeito às determinações mais gerais da produção capitalista do espaço, como no que se refere ao histórico das políticas urbanas no Brasil.

Todavia, junto a movimentos desse tipo, outras irrupções têm tomado o solo urbano como tentativas de reapropriá-lo, transformá-lo, seja por meio de intervenções artísticas, ecológicas, manifestações em massa (progressistas ou conservadoras), ou mesmo ocupações levadas por alguma comoção específica. Até mesmo movimentos que não carregam no nome os signos indicativos da urbanidade, como os coletivos LGBT e coletivos feministas, trazem a ocupação do espaço urbano e a transformação da cidade consigo. Por mais diversas que sejam essas formas de ocupar o espaço das cidades, tratam de colocar o espaço urbano no cenário das forças políticas em disputa, alimentando esse espaço dos conteúdos e tensões históricas. É diante da invisibilidade intensificada pela produção das cidades neoliberais, no sentido de tentar mascarar tais tensões, tentar negar e "pacificar" as contradições urbanas e de tentar silenciar as vozes divergentes, que cresce também a busca pela rua como espaço da visibilidade. Não visibilidade do poder, como requerem as práticas disciplinares e de controle, mas a visibilidade de reivindicar a cidade negada como pólis, como criação humana que diz respeito aos próprios humanos no seu fazer, que é político.

 

Por outra visão do urbano para a psicologia

As cidades fazem parte do humano tanto quanto são criações deste. O interesse da psicologia pelo tema das cidades nasceu da descoberta dos sintomas da vida urbana nos sujeitos, atentando para os efeitos psicológicos (cognitivos e comportamentais) do modo de vida urbano. Em seu enfoque tradicional tem orientado sua produção de conhecimento e suas propostas de intervenção às possibilidades de "ajustes" destes sujeitos ao seu meio, ou a mudanças estruturais no espaço geofísico.

Ao reduzir o ambiente urbano a uma das variáveis a serem consideradas na explicação do comportamento humano, ou relegá-lo à plano de fundo para os fenômenos psicológicos, a psicologia tradicional esbarra em limites para a compreensão de seu objeto em sua totalidade. Ainda que se empenhe no esforço de especializar seu objeto, perde de vista a complexidade dos atravessamentos e determinações sociais, históricas, políticas, econômicas. O que não deixa de ser paradoxal, se levarmos em consideração que a psicologia é uma ciência que nasce e é cultivada em sociedades urbanas, baseada em investigações e experimentos que contam quase que exclusivamente com participantes que vivem em grandes cidades (Landini, 2015).

Ao pretender-se neutra, alheia às reivindicações e lutas sociais, não estabelecendo diálogo com os movimentos sociais urbanos, a psicologia deixa de conhecer e aprender sobre/com seu objeto, a respeito dos processos de transformação da realidade social, limitando-se a intervenções pontuais, localizadas e, por vezes, irrelevantes. Deixa, também, de contribuir para o enfrentamento da segregação socioespacial, e para a luta pela garantia do direito à moradia e à cidade.

Com o reconhecimento da qualidade política do urbano, como espaço de subjetivação e de relações de poder, a própria psicologia passa a questionada sobre suas contribuições para essas relações. Concordamos com Soares (2017, p. 320-321), ao afirmar que "assumir a produção de sub-jetividades entrelaçada aos modos de produção de espaço compromete a psicologia com a visibilidade de sujeitos localizados e a concretude de suas vidas, de seus modos de sentir, pensar e agir".

A partir das reflexões em torno do direito à cidade, em nossa análise defendemos que, se as vidas dos sujeitos são impregnadas do próprio "viver a/na cidade", essa cidade como profundamente desigual e como campo de tensões não pode ser ignorada pela psicologia em seus múltiplos atravessamentos e determinações. Mais do que isso, é preciso atentar para o fato de que as formas de manifestações dessas tensões, nas disputas pelo urbano, expressam justamente as relações de classe e os diversos processos de dominação arraigados no tecido social da produção capitalista, o que implica que a reflexão e a ação sobre as relações humano-urbanas são posicionadas, seja ao conservar e adaptar o sujeito a tais relações, seja ao atuar junto àqueles que buscam transformar e afirmar outra cidade.

 

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Submetido em: 05/09/2018
Aceito em: 22/11/2018

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