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Psic: revista da Vetor Editora
versão impressa ISSN 1676-7314
Psic v.8 n.2 São Paulo dez. 2007
ARTIGOS
Complexidade fonológica e reconhecimento da relação morfológica entre as palavras: um estudo exploratório
Phonological complexity and the recognition of morphological relationships between words: an exploratory study
Complejidad fonológica y reconocimiento de la relación morfológica entre las palabras: un estudio exploratorio
Márcia Elia da Mota *
Universidade Federal de Juiz de Fora
RESUMO
Estudos sobre o desenvolvimento da consciência morfológica em crianças têm apresentado resultados que mostram que a estrutura fonológica das palavras parece ser um fator que influência o processamento morfológico das palavras. A relação morfêmica entre palavras derivadas ou flexionadas que mantém a transparência fonológica das palavras é mais facilmente percebida pelas crianças do que quando há mudanças na estrutura fonológica. Este estudo apresenta dados de 51 crianças de primeira e segunda série do Ensino Fundamental que corroboram a idéia de que a estrutura fonológica das palavras ajuda no reconhecimento da relação morfêmica entre elas. Uma possível explicação discutida para explicar esse fenômeno diz respeito ao modo de armazenamento desses morfemas no nosso léxico.
Palavras-chave: Morfologia, Linguagem, Consciência morfológica.
ABSTRACT
Studies about the development of morphological awareness in children have presented results that show that the phonological structure of the words seems to be a factor that influences the morphological processing of the words. The morphemic relationships of derived and inflected words that keep the phonological transparency of the words is more easily perceived by children then when there is phonological change. This study presents data on 51 subjects form first and second grade that support the idea that the phonological structure of words help children to understand the morphemic relationship between them. A possible explanation for this phenomenon may be related to the way morphemes are storage in our lexicon.
Keywords: Morphology, Language, Morphological awareness.
RESUMEN
Estudios sobre el desarrollo de la consciencia morfológica en niños han presentado resultados que muestran que la estructura fonológica de las palabras parece ser un factor que tiene influencia sobre el procesamiento morfológico de las palabras. La relación morfémica entre palabras derivadas o flexionadas que mantiene la transparencia fonológica de las palabras es más fácilmente percibida por los niños cuando comparado a cuando hay cambios en la estructura fonológica. Este estudio presenta datos de 51 niños de primero y segundo grado de la enseñanza primaria que confirman la idea de que la estructura fonológica de las palabras ayuda en el reconocimiento de la relación morfémica entre ellas. Una posible explicación discutida para explicar ese fenómeno se refiere al modo de almacenamiento de esos morfemas en nuestro léxico.
Palabras clave: Morfología, Lenguaje, Consciencia morfológica.
Introdução
A escrita combina dois princípios: o princípio fo-nográfico e o princípio semiográfico. O princípio fonográfico está relacionado a como as letras correspondem aos fonemas das palavras, e princípio semiográfico a como as palavras são constituídas a partir dos morfemas (Marec-Breton & Gombert, 2004).
Habilidade metalingüística é a habilidade de refletir sobre a língua como objeto do pensamento. Entre as habilidades metalingüísticas duas estão associadas aos princípios anteriormente descritos. A consciência fonológica (habilidade de refletir sobre os sons da fala) estaria associada à aquisição do princípio fonográfico, e a consciência morfológica (habilidade de refletir sobre a estrutura morfológica das palavras), à aquisição do princípio semiográfico.
Nas últimas duas décadas o estudo do processamento morfológico tem se constituído como uma área fértil de investigação, tanto para cientistas interessados na aquisição da linguagem oral quanto para cientistas interessados na linguagem escrita. No caso particular da língua escrita Mann (2000) aponta duas razões pela qual o processamento morfológico seria importante: a primeira diz respeito ao fato de que a escrita pode ser analisada em vários níveis. Um deles é o nível semiográfico, que como vimos envolve estabelecer como os grafemas representam significados das palavras (Marec-Breton & Gombert, 2004); a segunda razão seria mais específica à natureza da ortografia sendo estudada.
A argumentação principal para explicar a relação encontrada entre o processamento morfológico e a alfabetização vem de pesquisas realizadas em falantes do inglês, língua nativa de Mann. O inglês é uma língua alfabética, o princípio alfabético, também chamado por Marec-Breton e Gombert (2004) de princípio fonográfico, é o de que letras devem corresponder perfeitamente aos sons das palavras. No entanto, nem sempre ortografia das línguas alfabéticas obedece a esse princípio, e variam quanto ao grau de correspondência entre as letras e os sons da fala. Algumas ortografias são mais opacas, muitas palavras não obedecem às regras de correspondência entre letra e som. Outras são mais transparentes, as letras correspondem mais perfeitamente aos fonemas das palavras.
No inglês essas relações são mais opacas do que em ortografias como o finlandês, o português ou o espanhol. Muitas das irregularidades encontradas no inglês podem ser explicadas pela estrutura morfológica das palavras (Chomsky & Halle, 1968; Sterling, 1992). Por exemplo, no inglês a palavra heal que rima com il e a palavra health que rima com elf têm a mesma origem semântica por isso são escritas da mesma forma, embora sejam pronunciadas de forma diferente.
Nas línguas com ortografias mais regulares, o processamento morfológico pode não contribuir de forma significativa para aquisição e processamento da língua escrita, porque a maioria das palavras pode ser escrita aplicando-se o princípio alfabético. Mann (2000) supõe que as línguas alfabéticas mais regulares podem ser mais dependentes da estrutura fonológica das palavras do que da estrutura morfológica. Lehtonen e Bryant (2005) ressaltam que embora este seja um argumento válido, a hipótese de que a consciência morfológica contribui para alfabetização nestas ortografias regulares também é pertinente. Os autores argumentam que esta é uma questão teórica que precisa ser mais bem investigada.
A importância da consciência morfológica na aquisição da língua escrita no inglês tem sido bem demonstrada. Em uma série de estudos que visavam explorar a relação entre a consciência morfológica e a alfabetização, Joanne Carlisle mostrou que a habilidade de refletir sobre os morfemas das palavras estava associada ao desempenho na leitura de palavras isoladas e a compreensão de leitura (Carlisle, 1995, 2000; Carlisle & Fleming, 2003), e também ao desempenho da escrita (Carlisle, 1988; 1996).
O problema com os estudos de Carlisle é que a consciência fonológica não foi controlada. Já discutimos que a escrita combina dois tipos de princípio: o fonográfico e o semiográfico. Alguns autores argumentam que a consciência morfológica não contribui de forma independente para alfabetização (Fowler & Liberman, 1995; Bowey, 2005) e é um subproduto do processamento fonológico. A consciência morfológica, bem como a consciência fonológica, faz parte de uma habilidade metalingüística mais geral. As correlações encontradas entre a consciência morfológica e a escrita poderiam ser explicadas como parte da variância partilhada com a consciência fonológica.
Deacon e Kirby (2004) e Nagy, Berninger e Abbot (2006) investigaram a contribuição da consciência fonológica e morfológica para escrita e leitura. Esses autores acharam contribuições mais fortes da consciência fonológica para a língua escrita do que a da consciência morfológica. Porém, acharam também uma contribuição independente da consciência morfológica para língua escrita. Isto é, embora a consciência fonológica tenha contribuído com uma parcela maior da variância para a leitura e escrita, mesmo depois de controlarmos essa variância, a consciência morfológica continua contribuindo de forma significativa e positiva para leitura e escrita.
Embora esses estudos demonstrem a consciência morfológica contribui para língua escrita de forma independente, outros estudos demonstram que quando se trata do processamento dos morfemas, a estrutura fonológica da palavra tem um papel importante no reconhecimento desses. Para entendermos melhor essa questão é necessário conhecermos o que são morfemas e como as os crianças processam. Este assunto será tratado a seguir.
O que são morfemas? Como as crianças processam os morfemas?
Morfemas são as menores unidades lingüísticas que tem significado próprio. Existem duas grandes classes de morfemas: as raízes e os afixos. A raiz pode ser definida como núcleo mínimo de uma construção morfológica. Os afixos podem ser de dois tipos: prefixos, afixos adicionados antes da raiz, ou sufixos, afixos adicionados depois da raiz. Assim, a palavra "enraizamento" tem três morfemas "en", "raiz" "mento". Os morfemas também podem ser classificados como flexões ou derivações. As flexões são sufixos que determinam o gênero e o número nos substantivos e adjetivo, e nos verbos constituem os sufixos temáticos, modo-temporais e número-pessoais (Laroca, 2005).
As derivações, por sua vez, podem ser prefixos (ex., "refazer") ou sufixos (ex., "leiteiro"). As flexões têm um caráter morfossintático e possuem uma estabilidade semântica, ao passo que as derivações tratam da estrutura das palavras, nesse caso pode haver extensões do sentido destas palavras (Laroca, 2005).
Pesquisas têm demonstrado que as crianças reagem de forma diferente à morfologia derivacional e a flexional (Deacon & Bryant, 2005). Deacon e Bryant deram a crianças de cinco a oito anos de idade um teste de escrita, no qual as crianças tinham que escrever palavras com um morfema e palavras com dois morfemas. Metade das palavras de dois morfemas era de palavras derivadas e a outra metade eram palavras flexionadas. As palavras tinham o mesmo som final, por exemplo, a palavra notion (com um morfema) e a palavra connection (com dois morfemas). Os autores predisseram que se as crianças processam a morfologia da língua, elas teriam uma facilidade maior em escrever o som final das palavras quando eles eram morfemas, do que quando não eram. Na medida em que o som final das palavras era o mesmo, qualquer diferença nos resultados só poderia ser atribuída ao processamento morfológico da palavra.
Os resultados deste estudo mostraram que as crianças escreviam mais corretamente os sons finais das palavras quando eram morfemas do que quando não eram, mas a análise do tipo de morfema escrito mostrou que este resultado era verdadeiro apenas para as flexões.
Os autores concluíram que a diferença encontrada na escrita dos dois tipos de morfemas possivelmente ocorria porque na morfologia derivacional há uma mudança na classe gramatical das palavras morfologicamente complexas, o que não ocorre com a morfologia flexional. Assim, seria mais fácil para as crianças entender as relações morfêmicas nas flexões do que nas derivações.
No caso da morfologia derivacional não há regras claras de como formar as palavras. No entanto, conhecer a relação entre a raiz e a palavra derivada pode ajudar o leitor a compreender o significado da palavra e saber como pronunciá-la, e ao escritor decidir sobre grafias ambíguas. Desta forma, a palavra "laranjeira" é escrita com "j" e não "g" porque vem da palavra "laranja", informação que o escritor pode utilizar. O leitor pode se beneficiar também, pois pode inferir que a palavra significa a "árvore que dá a laranja" (Luft, 1999).
Casalis e Louis-Alexander (2000) e Deacon e Braynt, (2005) consideram a distinção entre morfemas derivacionais e flexionais importante porque nas derivações as palavras muitas vezes mudam de classe gramatical. Por exemplo, a palavra "magro", que é um adjetivo, se torna "magreza" que é um substantivo abstrato. No caso das flexões, as palavras não mudam de classe gramatical. Além disso, há regras de formação de palavras flexionadas, o que nem sempre acontece com as derivações. Por fim, um mesmo morfema pode ter significado ligeiramente diferente dependendo da palavra que se encontra. Por exemplo, o "eiro" em "açucareiro" e em "leiteiro". Em "açucareiro" o "eiro" é usado para indicar o lugar em que se guarda o açúcar, em "leiteiro" forma uma palavra que indica profissão.
Em conclusão, o desenvolvimento do processamento da morfologia derivacional pode ser diferente do desenvolvimento do processamento da morfologia flexional. De fato, estudos que exploram a relação entre a consciência morfológica e a escrita sugerem que a consciência morfológica não é um conceito unitário. Diferentes morfemas podem ser processados de diferentes formas pelas crianças. Além da distinção entre morfologia derivacional e flexional, uma outra característica dos morfemas que pode afetar o resultado de estudos que investigam o processamento morfológico diz respeito à relação fonológica entre os morfemas. Alguns morfemas têm relações fonologicamente transparentes "feliz" e "felizmente", e outros têm relações fonologicamente opacas "razão" e "racional". Pesquisas que observaram a relação entre o processamento de morfemas que tem relações fonológicas opacas e transparentes mostram que neste caso também as crianças reagem de forma diferente ao tipo de morfema.
Fowler e Liberman (1995) demonstraram que tarefas que envolvem a relação opaca entre os morfemas correlacionam mais fortemente com a leitura do que aqueles com relações transparentes. Porém, as crianças acharam mais fácil julgar a relação morfêmica entre as palavras quando essa relação não modificava a raiz das palavras. Uma possível explicação para esse resultado é a de que julgamentos de relações opacas requerem um conhecimento maior da relação morfêmica entre as palavras. Esse conhecimento mais profundo da morfologia da língua atua facilitando a leitura. O julgamento de palavras que mantém a raiz preservada pode ter sido feito com base na semelhança fonológica entre as palavras.
Carlisle, Stone e Katz (2001) deram a crianças de dez a quinze anos de idade duas tarefas de leitura que envolviam dois grupos de palavras derivadas. O primeiro grupo eram palavras derivadas nas quais não havia mudanças na pronuncia da palavra base e da palavra derivada (cultural e culture), o segundo grupo envolvia palavras nas quais havia diferenças na pronuncia (natural e nature). Os pares de palavras eram comparáveis quanto: à freqüência de ocorrência, número de letras e ao padrão ortográficos. Dessa forma, os autores argumentam que qualquer diferença na leitura destes dois grupos de palavras só poderia ser atribuída ao processamento morfológico. As palavras que não tem mudanças fonológicas na leitura seriam mais fáceis de reconhecer, pois a relação entre a base da palavra e a palavra morfologicamente complexa é direta, sem transformação. No caso das palavras em que há mudanças na pronúncia, só conhecer a base não garante a pronúncia correta, a criança precisa entender que tipo de mudança fonológica ocorreu.
As crianças, no estudo de Carlisle, Stone e Katz (2001), foram divididas em dois grupos: bons e maus leitores. Os resultados mostraram como esperado, que as palavras sem alteração fonológica foram mais fáceis de ler e reconhecer do que as palavras com mudanças. No entanto, a diferença entre a leitura dos dois grupos de palavras foi mais marcada para os maus leitores.
Carlisle e col. (2001) concluíram que a dificuldade dos maus leitores em ler as palavras com mudanças fonológicas está relacionada a uma dificuldade no processamento fonológico complexo das palavras formadas por mais de um morfema. Essa complexidade morfológica mascara a relação morfêmica entre as palavras. Assim, os autores sugerem que parte dessa dificuldade está no entendimento das relações morfológicas entre as palavras. Tornando explícitas as relações entre a raiz e seus derivados, e as mudanças que certos derivados sofrem, pode ajudar as crianças a mais rapidamente decidir a pronuncia correta das palavras e fazer decisões a respeito da grafia destas palavras também.
Uma possível explicação, para os resultados de estudos que mostram que há diferenças no processamento de palavras com relações morfológicas opacas e transparentes, é a de que os morfemas são armazenados como unidades independentes, e são acoplados quando do processamento da palavra. Por exemplo, "livro" + "s" = "livros". Nesse caso, as palavras em que não há alteração da base são mais facilmente reconhecidas. De fato, estudos investigando a língua escrita mostram que os morfemas que correspondem a letras são omitidos com mais freqüência do que a mesma seqüência de letras em palavras monomorfêmicas. Em um estudo investigando os erros de escrita que ocorreram em redações de crianças de 12 anos de idade, Smith (1980) demonstrou que as crianças tendiam a omitir mais facilmente os morfemas quando do que uma letra igual que era parte da palavra. Por exemplo, o "s" em books era omitido com mais freqüência do que o "s" em bus. Resultados semelhantes foram encontrados no português por Mota, Moussatché, Castro, Moura e Ribeiro (2000).
Se os morfemas são armazenados como unidades independentes, então palavras morfologicamente complexas, que não alteram a raiz, serão mais facilmente reconhecidas do que palavras que alteram a raiz quando flexionadas ou derivadas. Para explorar essa hipótese os dados de uma tarefa criada por Besse, Vidigal de Paula e Gombert (em comunicação particular, 2005) aplicada em um estudo realizado por Mota, Annibal e Lima (2006) foram reanalisados considerando as diferenças na estrutura fonológica das palavras. Nessa tarefa as crianças tinham que decidir se uma entre duas palavras tinha sido formada da mesma maneira que uma palavra alvo. Por exemplo, "descolorir" é formada da mesma forma que "deslizar" ou "destorcer" ou "chaveiro" é formada da mesma maneira que "cinzeiro" ou "pandeiro". Metade das palavras era prefixada e a outra metade era sufixada. Nos prefixos os morfemas são acoplados nas palavras sem alterar a raiz, nos sufixos utilizados houve alteração da raiz das palavras. Assim, se os morfemas são armazenados como unidades independentes das palavras, eles serão mais facilmente reconhecidos nos prefixos do que nos sufixos.
Método
Participantes
A amostra do estudo foi constituída por 51 crianças, sendo 27 alunas da 1ª série e 24 da 2ª série, ambas do ensino fundamental de uma escola pública, situada na região urbana de Juiz de Fora. A média de idade das crianças de 1ª série foi de 91,1 meses (dp=4.8) e a da segunda série 103,9 meses (dp=5,53). A participação no estudo dependeu da autorização do responsável através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Instrumentos
Tarefas de consciência morfológica
A) Tarefa de Decisão Morfo-semântica (Besse, Vidigal de Paula & Gombert, em comunicação pessoal, 2005).
Nesta tarefa a criança tinha que decidir se uma palavra era construída da mesma forma que as outras. A explicação dada à criança era a seguinte: "Em português há palavras que são da mesma família, como, por exemplo, 'descobrir' e 'cobrir', ou seja, 'descobrir' vem de 'cobrir'. Acrescenta-se uma pequena coisa no início para fazer uma outra palavra. Outro exemplo é o caso de 'desfazer' e 'fazer', em que se acrescenta o 'des' no início de 'fazer'. Porém, há palavras que também se iniciam por 'des', mas não vem de outra palavra como é o caso de 'deslizar' que não vem de 'lizar'''. Após a explicação fazia-se um exemplo com a criança: "Qual a palavrinha que é feita da mesma maneira que 'descobrir' é 'deslizar' ou 'desfazer?'". Havendo a criança respondido corretamente, iniciava-se a tarefa; do contrário, dava-se a forma correta explicando a razão.
A lista de palavras consistia de 12 grupos de três palavras envolvendo prefixos e 12 grupos de palavra envolvendo sufixos (Anexo A).
Procedimento
As crianças foram avaliadas individualmente em três sessões de 20 a 30 minutos. Na primeira foram realizados os testes de consciência morfológica e os testes de consciência fonológica. Os testes foram aplicados oralmente por duas experimentadoras treinadas. Na segunda sessão foram aplicados testes de avaliação cognitiva e de desempenho escolar. Esses testes, por serem padronizados, foram aplicados de acordo com as normas estabelecidas em seus manuais.
Resultados
Com base nos objetivos propostos foi realizada uma análise comparativa da performance das crianças na tarefa de decisão morfológica foi feita. O número de julgamentos realizados corretamente para os prefixos e para os sufixos foi computado. A tabela 1 mostra a porcentagem, média e desvio-padrão de acertos na tarefa.
De um modo geral as crianças acharam mais fácil julgar os pares de palavras prefixadas do que sufixadas. O Nível de acerto foi 54% para primeira série (M = 6,5; dp=1,5), e 58% para segunda série para os prefixos (M=7,0; dp=1,4); e 49% para primeira série (M = 5,9; dp=1,2) e 50% de acertos para segunda série no caso dos sufixos (M=6,0; dp=2,4).
A comparação das médias de acertos por meio de análises paramétricas não foi possível devido à natureza dos dados. Testes não paramétricos Mann-Whitney foram realizados nos dados sobre o número de acerto em cada tarefa para cada série. As crianças de primeira série não tiveram desempenhos estatisticamente diferentes das crianças de segunda-série (Z = -1,21; p = 0,12 para os prefixos e para os sufixos Z = -7,4; p = 0,46). Os dados foram então colapsados formando um único grupo. O resultado análise paramétrica Wilcoxon, para pares relacionados mostrou um resultado estatisticamente significativo para tipo de morfema (Z = -2,32; p = 0,02), indicando que as crianças acharam mais difícil julgar os pares com sufixos do que os pares com prefixos.
Discussão
Estudos interessados em investigar o desenvolvimento da consciência morfológica em crianças e sua relação com alfabetização, têm apresentado resultados que mostram que a consciência morfológica pode não ser um conceito unitário. Diferentes morfemas podem ser adquiridos em diferentes momentos do desenvolvimento. Por exemplo, a morfologia derivacional parece ser desenvolvida mais tardiamente do que morfemas flexionais (Casalis & Louis-Alexander, 2000; Deacon & Bryant, 2005). A estrutura fonológica das palavras também parece ser outro fator que determina o processamento dos morfemas. A relação morfêmica entre palavras derivadas ou flexionadas que mantém a transparência fonológica das palavras é mais facilmente percebida pelas crianças do que quando há mudanças na estrutura fonológica (Fowler & Liberman, 2005; Carlisle, Katz & Stone, 2001).
Uma possível explicação para esse fenômeno diz respeito ao modo de armazenamento desses morfemas no nosso léxico. Sterling (1983) trabalhando numa abordagem da Teoria do Processamento de Informação argumenta que os morfemas são armazenados como unidades independentes, no momento que uma palavra morfologicamente complexa é processada essas unidades são acopladas para formar novas palavras.
Os resultados de Smith (1980) sugerem que o armazenamento dos morfemas ocorre como proposto por Sterling (1983). Demonstram que a omissão de letras que correspondem aos morfemas é mais freqüente do que a omissão da mesma letra quando é parte integrante da palavra. Smith baseia suas conclusões em estudos que investigaram o processamento dos morfemas em situações de escrita espontânea. Para explorar esse fenômeno, no presente estudo, controlamos experimentalmente a relação morfêmica entre as palavras. Nossa hipótese é a de que quando as raízes das palavras não sofrem transformações é mais fácil "contruir" as palavras morfologicamente complexas. Se este é o caso é, as crianças terão mais facilidade de julgar as palavras quando as raízes das mesmas estão intactas.
Os resultados que obtivemos confirmam essa hipótese, mostram que as crianças acharam mais fácil reconhecer a relação morfêmica das palavras quando a raiz estava intacta do que quando ela sofria transformações. Esses resultados sugerem que os morfemas são armazenados como unidades independentes, e estão em consonância com os resultados de estudos já citados realizados no inglês.
Porém, os resultados desse estudo devem ser analisados com cautela. Dez dos 12 pares de prefixos os morfemas eram também parte da sílaba. Seria interessante investigar se os morfemas são melhor reconhecidos quando eles são unidades destacáveis das palavras, ou seja, quando eles forem uma sílaba independente ("desfazer") ou quando forem parte da sílaba ("desatar"). Se a característica que permite a identificação do morfema é manter intacta a raiz das palavras não deveria haver diferenças na identificação da relação morfêmica nesses dois pares de palavras. Por outro lado, se características fonológicas das palavras forem a razão principal para identificação da relação morfêmica, as crianças deveriam achar mais fácil julgar palavras como "fazer" e "desfazer" do que "desatar" e "atar".
Em termos do desenvolvimento das habilidades metalingüísticas, se o processamento morfológico for mediado pelo processamento fonológico, pode-se corroborar a hipótese de Nunes, Bryant e Bradley (1997) de que a consciência morfológica é um constructo que se desenvolve mais tardiamente, depois que as habilidades fonológicas estão consolidadas. É possível que a habilidade de reconhecer os morfemas se desenvolva a partir da habilidade de se refletir sobre os sons que compõem a fala. Estudos futuros precisam demonstrar se a habilidade de se refletir sobre os sons da fala (consciência fonológica) contribui para o conhecimento morfológico, ou se essas duas habilidades se desenvolvem de forma independente.
Nunes e Braynt (2006) relatam o resultado de dez anos de pesquisa sobre a relação entre a consciência morfológica e a escrita no inglês. Os autores argumentam que o ensino das relações morfêmicas entre as palavras ajuda a criança no desenvolvimento da escrita. Contudo, diferentes ortografias podem requerer diferentes estratégias de escrita (Lehtonen & Bryant, 2005). O português é uma língua com correspondências letra-som mais regulares que o inglês. Antes de discutirmos as implicações das pesquisas sobre o processamento morfológico para o português, precisamos conhecer mais sobre o seu desenvolvimento no contexto educacional brasileiro. Em particular, a questão levantada nesse estudo sobre a independência desta contribuição da consciência fonológica.
Os resultados dessa pesquisa levantam assim várias questões que precisam ser respondidas, entre elas: a idade de aquisição da consciência morfológica, a contribuição da consciência morfológica para diferentes ortografias, a relação entre processamento fonológico e morfológico, e as implicações educacionais dos resultados de pesquisas.
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Endereço para correspondência
Universidade Federal de Juiz de Fora - ICH - Departamento de Psicologia - Campus Universitário Martelos - 36036900
Recebido em: março/2007
Revisado em: julho/2007
Aprovado em: agosto/2007
Sobre a autora:
* Márcia Elia da Mota é doutora em Psicologia pela Universidade de Oxford, Inglaterra, docente do Departamento de Psicologia Universidade Federal de Juiz de Fora.