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Psic: revista da Vetor Editora

versão impressa ISSN 1676-7314

Psic v.9 n.1 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

O corpo no autismo

 

The Body in the Autism

 

Cuerpo en el Autismo

 

 

Fabiana. S. Fernandes *

Universidade Federal do Amazonas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo analisou como se encontra a noção de corpo no autismo, realizado por meio de pesquisa bibliográfica exploratória em livros e artigos científicos. Para isso, buscou-se primeiramente conhecer o autismo, suas características e as dificuldades apresentadas pelo autista. Em seguida, faz-se um breve estudo sobre o corpo e como esse é constituído. E é finalizado verificando como o corpo está constituído em um autista. Baseando-se nas informações coletadas foi possível perceber que o corpo no autismo não se constitui de maneira salutar. Essa pode ser, entre outras, uma das razões que dificulta e, em muitos casos inviabiliza, a relação do Autista com o mundo externo.

Palavras-chave: Autismo, Corpo, Esquema corporal, Imagem corporal.


ABSTRACT

This study analyzed how the notion of the body in the autism is, and it was done by means of a bibliographical research based on books and scientific articles. So, first of all the autistic person was investigated in relation to its characteristics and disabilities. In sequence, a short study about the constitution of the body was done. Finally, it was analyzed how the body is in autistic person. Based on this study it was possible to infer that the body in the autism is not healthy. This can be one of the reasons that make so difficult the relationships between the autistic person and the world.

Keywords: Autism, Body, Body outline.


RESUMEN

Este estudio buscó conocer como está la noción de Cuerpo en el Autismo. Para eso, primero se buscó conocer el autismo, sus características y las dificultades presentadas por el autista. En seguida se hizo un breve estudio sobre el cuerpo y sobre como se constituye. Termino verificando de qué forma está constituido el cuerpo en un autista. Este estudio fue realizado a través de investigación bibliográfica exploratoria en libros y artículos científicos. Con base en las informaciones cosechadas fue posible percibir que el cuerpo en el autismo no se constituye de manera saludable. Esa, además de otras, puede ser una de las razones que dificulta, y en muchos casos hace inviable, la relación del autista con el mundo externo.

Palabras clave: Autismo, Cuerpo, Esquema corporal, Imagen corporal.


 

 

O objetivo principal deste estudo é refletir sobre constituição do corpo em crianças autistas. Para que esse trabalho seja melhor compreendido, ele foi dividido em três partes principais. Num primeiro momento falarei sobre o autismo e suas características comportamentais tais com distúrbio do relacionamento; distúrbio da fala e da linguagem; distúrbio do ritmo de desenvolvimen-to; distúrbio da motilidade e distúrbio da percepção. Em O corpo exponho um breve estudo do corpo e, posteriormente, como esse corpo é constituido, percebido e vivido no autista, além de fazer uma referência às estruturas de esquema e imagem corporal, e sua importância no tratamento de autistas. Finalmente procurei entender qual a importância e/ou interferência da noção de Corpo no desenvolvimento de crianças autistas. A partir dessa compreensão será possível investigar novas formas de tratamento e/ou intervenção para essas crianças.

A metodologia utilizada na elaboração desse estudo foi a pesquisa bibliográfica exploratória em material já elaborado, constituído principalmente de livros. O critério para seleção do material na pesquisa bibliográfica objeto desse estudo, baseou-se na consulta de literatura especializada na área, selecionada por abordar a temática do Corpo no Autismo, fornecendo sustentação teórica suficiente para atender os objetivos desse estudo introdutório.

O autismo

De acordo com Gauderer (1993), o autismo manifesta-se por profundas alterações do comportamento, que instalam-se precocemente na infância. É uma síndrome formada por um conjunto de alterações do comportamento que, embora não sejam exclusivas do autismo, constituem uma constelação clínica, não integralmente reproduzida em nenhuma outra doença.

Para Mahler (1989), partindo das perspectivas de relação objetal e desenvolvimento do senso de realidade, pode-se descrever dois grupos, clínica e psiquicamente distintos, de psicose infantil precoce; num deles, a mãe parece jamais ter sido percebida emocionalmente pelo bebê como figura representativa do mundo externo; de outra forma, a primeira representação da realidade externa, a mãe como pessoa, como entidade separada, parece não ser catexizada. A mãe permanece um objeto parcial, aparentemente destituído de catexias específicas, que não é diferenciado dos objetos inanimados. A autora complementa essa descrição dizendo que:

O autismo infantil precoce desenvolve-se, acredito, porque a personalidade infantil, destituída de vínculos emocionais com a mãe, é incapaz de enfrentar os estímulos externos como uma entidade. O autismo constitui portanto, o mecanismo pelo qual tais pacientes tentam excluir, de maneira alucinada (alucinações negativas) as fontes potenciais da percepção sensorial, especialmente aquelas que exigem resposta afetiva (Mahler, 1989, p. 34).

De acordo com Gauderer (1993), esse tipo de psicose infantil foi descrito pela primeira vez por Kanner em 1942 e recebeu o nome de autismo infantil precoce. Nessa psicose a criança não apresenta sinais de perceber afetivamente os outros seres humanos. Acha-se ausente o comportamento que indica a percepção afetiva das provisões maternas vindas do mundo externo.

Ainda conforme Gauderer (1993), os sintomas do autismo podem ser divididos em cinco grupos gerais: Distúrbios do Relacionamento: tanto o relacionamento com pessoas quanto com objetos inanimados estão alterados no autismo. Esta deficiência precoce inclui a falta do desenvolvimento de uma relação interpessoal e de contato visual. Distúrbios da Fala e da Linguagem: o autor mostra que o desenvolvimento da fala é caracterizado por um enorme atraso, com fixações e paradas ou total mutismo. É comum a ecolalia (ou seja, a repetição automática de sons ou palavras ouvidas) associada ao uso inadequado ou reversão do pronome pessoal. Quando a fala comunicativa se desenvolve é atonal, arrítimica, sem inflexão e incapaz de comunicar apropriadamente as emoções. Distúrbios do Ritmo de Desenvolvimento: as crianças autistas mostram grande irregularidade na idade em que desenvolvem as seqüências motoras ou de linguagem. O ritmo mais comum é uma descontinuidade na seqüência normal do desenvolvimento, por exemplo, a criança pode sentar-se precocemente sem ajuda e depois mostrar um atraso significativo para se colocar em pé. Distúrbios da Motilidade: o maneirismo e os padrões peculiares de motilidade nessas crianças são os traços que lhes conferem em grande parte sua aparência estranha e bizarra. Moraes (2002) cita que os movimentos corporais estereotipados são comuns e apresentam-se sob a forma de balanceio da cabeça, movimentos com os dedos, saltos e rodopios. Esses movimentos costumam ocorrer, principalmente, entre os mais jovens e os que têm um funcionamento global mais baixo. Distúrbios da Percepção: há uma incapacidade na criança de fixar ou dedicar sua atenção a certos estímulos visuais, voltando-se quase que exclusivamente a outros. A criança é incapaz de usar estímulos sensoriais para discriminar o que é importante ou não. Em outras palavras, ocorre um erro de seletividade. A criança autista pode ignorar estímulos visuais, até mesmo pessoas e paredes, a ponto de chocar-se com estas como se o obstáculo não existisse.

Classificação do autismo

Baptista e Bosa (2002) afirmam que se verifica na história uma grande controvérsia com relação ao conceito do autismo, a distinção entre autismo, psicose e esquizofrenia. As primeiras edições da CID (Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento, da Organização Mundial da Saúde) não fazem qualquer menção ao autismo. A oitava edição o traz como uma forma de esquizofrenia, e a nona agrupa-o como psicose infantil. A partir da década de 1980, assiste-se a uma verdadeira revolução paradigmática no conceito, sendo o autismo retirado da categoria de psicose no DSM-III (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria) e no DSM-III-R, bem como na CID-10, passando a fazer parte dos transtornos globais do desenvolvimento, como segue: na CID-10 (1993) encontra-se a definição dessa síndrome dentro dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, como Autismo Infantil - F84.0 e Autismo atípico - F84.1 e, no DSM IV (2000), também dentro dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, encontra-se o Transtorno Autista - 299.

Conforme Baptista e Bosa (2002), durante muito tempo prevaleceu a noção de pessoas com autismo como sendo alheias ao mundo ao redor, não tolerando o contato físico, não fixando o olhar nas pessoas e interessando-se mais por objetos do que por outras pessoas ou, ainda, nem mesmo discriminando seus pais de um estranho na rua. A mídia e a literatura debruçaram-se sobre a imagem do "gênio" disfarçado, engajado em balanços do corpo e agitação repetitiva dos braços. "Estudos recentes têm comprovado o que os profissionais envolvidos com a criança já sabem: nem todos os autistas mostram aversão ao toque ou isolamento" (Trevarthen citado por Baptista & Bosa, 2002, p. 34).

"Alguns, ao contrário, podem buscar o contato físico, inclusive de uma forma intensa, quando não "pegajosa", segundo pais e professores. Também existem evidências de que crianças com autismo desenvolvem comportamentos de apego em relação aos pais (mostrando-se angustiados quando separados deles, buscam sua atenção quando machucados, aproximam-se deles em situação de perigo), de uma forma diferenciada" (Capps, Sigman & Mundy citado por Baptista & Bosa, 2002, p. 34).

Na opinião de Baptista e Bosa (2002), a forma como os autistas comunicam suas necessidades e desejos não é imediatamente compreendida, se adotarmos um sistema de comunicação convencional. Um olhar mais cuidadoso e uma escuta atenta permitem-nos descobrir o grande esforço que essas crianças parecem desprender para lançar mão de ferramentas que as ajudem a ser compreendidas.

Ainda de acordo com Baptista e Bosa (2002), os estudos de observação minunciosas de crianças autistas (utilizando filmagens) mostram que os olhares são mais freqüentes do que se imagina. O que ocorre é que são breves e, por isso, muitas vezes imperceptíveis. Na verdade, a freqüência do olhar muda com o contexto, e esse é mais comum, e tende a ser mais longo naquelas situações em que a criança necessita da assistência do adulto do que naquelas em que está, por exemplo, brincando com o adulto. Nesse caso, as teorias sociocognitivas ajudam a compreender a pouca freqüência do olhar: não olham porque não sabem a função comunicativa do olhar para compartilhar experiências com as pessoas - uma habilidade que se desenvolve ao longo do primeiro ano de vida do bebê. Essa suposição parece trivial, mas faz uma diferença quando aplicada em um contexto de intervenção com os pais: não olhar porque não compreende a extensão das propriedades comunicativas do afeto e do olhar é diferente de não querer olhar.

Para esses autores, existem várias teorias, desde a psicanálise, ocupando-se do mundo interno da criança, passando pelas teorias da linguagem, sociocognitivas (explicando a dificuldade em colocar-se no ponto de vista do outro, em refletir sobre estados mentais) até as teorias neuropsicológicas (dando conta das dificuldades de dividir a atenção entre os eventos sociais e não sociais, habilidade de extrair significado de um contexto perceptivo, capacidade de organização, flexibilidade e planejamento, enquanto função dos lobos frontais). Nenhum modelo teórico, sozinho, explica de forma abrangente e satisfatória a complexidade dessa síndrome - eis, a razão pela qual há a necessidade do trabalho em equipe e o respaldo da pesquisa. A experiência clínica, segregada da pesquisa, corre o risco de gerar mitos, pois tende a cristalizar preconceitos. Da mesma forma, a pesquisa, desvinculada da clínica, aprisiona o conhecimento cuja produção pode e deve trazer benefício à comunidade.

O corpo

Os seres humanos, ao serem captados pela linguagem diferenciam-se do reino animal, deixam de ser puro corpo e, pelo ingresso ao universo simbólico, podem tê-lo e, portanto, ser sujeito com um corpo.

Segundo Ferreira (2000), as experiências motoras da criança são decisivas na elaboração progressiva das estruturas que aos poucos dão origem às formas superiores de raciocínio, isto é, em cada fase do desenvolvimento, ela consegue uma determinada organização mental que lhe permite lidar com o ambiente. Pode-se assim dizer que, em termos de evolução, a motricidade é uma condição de adaptação vital. Sua essência reside no fato de nela o pensamento poder manifestar-se. A pobreza de seu campo de exploração irá retardar e limitar a capacidade perceptiva do indivíduo.

O autor explica que o equilíbrio ou desequilíbrio do tônus muscular, suas variações ou seus bloqueios irão traduzir a maneira de ser da criança, suas emoções, suas vivências psíquicas, além de participar também como elemento na comunicação não-verbal. A atitude da mãe pesa muito no desenvolvimento da criança, desde o período gestacional, quando há um aumento considerável de medos, muitas vezes sem motivo aparente, de ansiedades, depressões, enfim, uma gama de sentimentos que irão repercutir, mais tarde, no desenvolvimento psicológico, intelectual, afetivo e psicomotor da criança. Existe, portanto, uma comunicação constante, um diá-logo corporal entre mãe e filho, na esfera do qual as modificações tônicas: acompanham não apenas cada afeto, mas também cada fato da consciência

Seguindo na abordagem de Ferreira (2000), ele visualiza, então, que as capacidades motoras, intelectuais e afetivas que facultam à criança estabelecer relação com o mundo, estão sujeitas à sua carga tônica pessoal, a qual é, por sua vez, construída a partir das estimulações que o meio e as pessoas lhes impõem. Será pela percepção das diferentes experiências que a criança terá possibilidade de criar a base para o desenvolvimento de sua independência e autonomia corporal e sua maturidade socioemocional.

Esse autor mostra ainda que a criança desenvolve-se e matura-se no contato com o mundo vivenciando e experimentando as relações, isso, a princípio, via corpo, que é no início o seu único meio de comunicação. Todas as suas inaugurações são corporais e estão intimamente ligadas à emoção e ao prazer. A corporeidade é a linguagem mais primitiva desse indivíduo desde a sua fase uterina. Assim, o movimento está em ligação direta com a criança, pois é parte dela que se comunica com o mundo, e também é a partir dele que irá organizar-se enquanto sujeito pensante e atuante para dar conta da sua participação na sociedade.

Quando se fala em corpo, segundo Ferreira (2000), tem-se que pensar que ele é um organismo vivo, um ser desejante, atuante, emocional, inteligente, enfim, não se pode esconder ou apenas renegar a história que ele carrega. É preciso entender que o corpo muda com o passar do tempo dependendo dos valores e das necessidades do local, da situação e, é necessário aceitar as suas diferenças.

O corpo no autismo

Levin (2000) afirma que no autismo, o corpo da criança não tem outra referência do que a de estar à margem. Diferentemente da psicose, não tem uma relação de univocidade à linguagem (modelo materno), e sim de exclusão. O corpo é pura carne sem ligação representacional, é puro real.

Para esse autor o corpo no autismo permanece mudo, silencioso, carente de qualquer gestualidade, mantém-se encapsulado e coisificado nessa única posição do mutismo. Mutismo que não se produz por ter um problema na audição, mas porque o que olha e escuta é o seu não lugar. Posição mortífera em que nenhum significado remete a outro, nem ordena a linguagem. Tanto o corpo quanto as posturas, o tônus muscular, os movimentos, o silêncio, o espaço e o tempo, estão numa relação de exclusão à linguagem. Não fazem superfície, não fazem borda. Desse modo, o corpo da criança autista movimenta-se num tempo eterno, infinitamente, sem pausa, num espaço sem limites, sem um lugar no qual possa orientar, navegando no vazio próprio da coisa inerte.

Ferreira e Thompson (2002) mostram que as noções de tempo e espaço são as principais bases do desenvolvimento motor, cognitivo e social da criança. Mas para que a organização espaço/tempo se desenvolva, é necessário, antes de tudo, que as noções de esquema corporal e imagem do corpo estejam integradas. Essa percepção do espaço depende de dados sensoriais e de atitudes motoras. As alterações da percepção de espaço são, em primeiro lugar, causadas pela dificuldade de compreender o espaço corporal e suas fronteiras. A gestualidade e os movimentos pouco adaptados, assim como a postura, perturbam frequentemente a linguagem não-verbal da criança autista.

Levin (2000) informa que os movimentos estereo-tipados apresentados pelas crianças autistas podem ser chamados de movimentos autísticos, uma vez que não se dirigem a ninguém. O movimento, ao não passar por um registro outro, não se separou. Ele sugere que uma das possíveis vias de entrada no tratamento dessas crianças é por meio desses movimentos estereotipados (auto-eróticos). Por essa via procura-se escindir, separar, esse corpo do gozo: tenta-se fazer com que o movimento comece a funcionar, desse modo, no registro do desejo, situando-o em outra posição separada do gozo.

Ferreira e Thompson (2002) informam que o autista apresenta dificuldade de compreender seu corpo em sua globalidade, em segmentos, assim como seu corpo em movimento. Quando partes do corpo não são percebidas e as funções de cada uma são ignoradas, pode-se observar movimentos, ações e gestos pouco adaptados. O distúrbio na estruturação do esquema corporal prejudica também o desenvolvimento do equilíbrio estático, da lateralidade, da noção de reversibilidade; funções de base necessárias à aquisição da autonomia e aprendizagens cognitivas.

Na opinião desses autores, não deve ser esquecido que os autistas possuem seus próprios desejos, preferências e personalidade, nem ignorar os outros aspectos do desenvolvimento. A linguagem, sobretudo, é constituinte do sujeito, sendo base para a estruturação psíquica, cognitiva e também psicomotora. Ao falar de corpo, o objetivo é ajudar a pessoa autista a superar algumas de suas dificuldades, permitindo seu desenvolvimento em outros planos, oferecendo novos meios de expressão, favorecendo a conscientização, possibilitando o acesso a funções importantes como o olhar e o tocar, buscando melhorar sua qualidade de vida.

Esquema corporal e imagem corporal

Segundo Levin (2000), o esquema corporal é o que se pode dizer ou representar acerca do próprio corpo. A representação que temos do mesmo é da ordem do evolutivo, do temporal. Dentro do esquema corporal encontram-se as noções de proprioceptividade, interoceptividade e exteroceptividade. Na evolução psicomotora da criança, o esquema corporal irá se construindo, ele é suscetível à mensuração e à comparação com outro; por exemplo, nas medidas padronizadas em que a criança corresponde a cada idade, um peso, uma altura, etc.

Para Ferreira e colaboradores (2002), o esquema corporal é elemento básico indispensável para a formação da personalidade da criança. É a representação relativamente global, científica e diferenciada que a criança tem de seu próprio corpo. A estruturação espaço-temporal, fundamenta-se nas bases do esquema corporal sem o qual a criança, não se reconhecendo em si mesma, só muito dificilmente poderia aprender o espaço que a rodeia. Torna-se necessário que a criança adquira o domínio corporal, o reconhecimento corporal e a passagem para a ação. Sem essas habilidades, uma criança, por exemplo poderá chocar-se constantemente com os amigos durante brincadeiras que envolvam corrida, machucar-se ao passar por espaços limitados e sentir dificuldades em transferir líquidos de um recipiente para outro ou entornar os líquidos ao bebê-los. As etapas do desenvolvimento do esquema corporal abrangem o corpo vivido, o conhecimento das partes do corpo, a orientação-espaço-corporal e a organização espaço-corporal.

De acordo com Levin (2001), o estágio do espelho tem um papel essencial na constituição da imagem corporal da criança. O gesto dela diante do espelho convoca ao olhar do outro que confirma essa imagem própria. Esse gesto implica um movimento postural que, por um instante, a descentra do espelho e a aliena mais uma vez enlaçando-a ao outro. A transformação implícita, via identificação, o fascínio pela imagem especular determina mudanças posturais e corporais que organizam a construção corporal a partir do espelho virtual da criança.

Estudando essas reações da criança diante do espelho, Wallon (citado por Ferreira & Thompson, 2002) destaca dois tempos importantes em sua psicogênese: a capacidade de perceber a imagem e de relacioná-la a si próprio:

. O primeiro diz respeito à constatação de que, inicialmente, a criança aprende a relacionar imagem especular com a pessoa real, por meio da atitude de um outro que, com ela, divide o reflexo no plano de espelho. Por exemplo, a descoberta da relação entre imagem e pessoa real não se constitui por intermédio da imagem propriamente dita, mas do fato de estar a criança acompanhada de alguém que, falando ao seu lado, possa criar uma transferência entre pessoa real e imagem e, paradoxalmente, estabelecer, ao mesmo tempo, um vínculo entre imagem e pessoa real. O caminho percorrido para a associação vai do gesto à imagem.

. O segundo tempo inaugura a construção de imagem de si, propriamente dita. A criança passa a reconhecer a sua própria imagem refletida no espelho, buscando estabelecer um contato corporal com ela. Nesse momento de captura da imagem de seu próprio corpo, a criança passa a referir-se a ela (a imagem), quando a chamam pelo seu próprio nome. Durante boa parte dos primeiros anos, ainda assistimos às crianças chamarem-se na terceira pessoa, como um processo de referência a si mesma, projetadas na imagem que construíram para si, especular e exteroceptiva.

Ferreira e Thompson (2002) falam que a imagem corporal é um conjunto de informações que constituem um sujeito diante de si, do outro e do mundo. A construção da imagem passa necessariamente pelo outro e pela cultura. O sujeito aprende a ver com os olhos dos outros. Mas, para além do olhar, há muito mais. Há a linguagem inscrita na forma desses que olham e que reconhecem o sujeito, lhe dão um rosto, um semblante, uma expressão. A imagem passa pelos cuidados recebidos, pelo amor e desamor, pelas frustrações, privações e castrações simbólicas.

O esquema corporal de uma criança autista certamente se encontra perturbado, informa Levin (2000), mas não por uma falha no esquema corporal, mas pela ausência, pela carência do outro que não fez a inscrição, que não fez os contornos desse corpo, que não gerou desejo, imagem, que para serem geradas irão necessitar de um outro que imagine que ali há um sujeito e não uma "coisa" (objeto). Desse modo, a criança poderá espelhar-se nessas imagens (no olhar desejante), no outro que assim outorga a possibilidade de construir um esquema e uma imagem corporal.

 

Considerações finais

É essencial ficar entendido que intervir num processo vivencial é intervir na totalidade humana, seja essa intervenção através do olhar, do escutar, do tocar ou do falar. Provocar alguma variação numa experiência é alterar a vivência global do indivíduo em sua forma de ser e estar no mundo.

Pode-se dizer que uma das primeiras intervenções a que somos submetidos se dá através do olhar. Alguém nos olha quando nascemos e nos diz quem somos. A partir desse momento começamos a delinear nosso lugar no mundo, nossa identidade. O toque, o sorriso, o falar, o olhar dos pais são de vital importância para o desenvolvimento emocional e intelectual da criança. O desejo do outro vai marcar e influenciar seu próprio desejo.

É papel do profissional compreender e viver em profundidade o fato de que a criança necessita de alguém que se encante com seu mundo e o compreenda como essencial ao ato de viver; alguém que sonha, fantasia, deseja, sorri, dá gargalhadas, se alegra, busca realizar, alguém que conscientemente constrói a existência para si e para o outro; um profissional que lança mão do arcabouço de seu conhecimento para o exercício de seu trabalho, ao mesmo tempo que é repleto de sensibilidade e sutileza relacional. Utilizando o pensamento de Ferreira e colaboradores (2002), o profissional que decide lidar com a criança autista, deve considerar tudo o que se sabe sobre o processo de desenvolvimento normal e os fatores que otimizam o desenvolvimento; como também, tem de considerar o que se sabe sobre os aspectos anormais que interferem no desenvolvimento das crianças autistas.

Foi possível perceber que a criança autista não possui um corpo vivenciado. A sensação que se tem é que o corpo é um objeto a parte, sem significação, sem importância. Existe uma grande dificuldade por parte da criança em compreender seu corpo como um todo. Ela não desenvolve de maneira adequada as noções de Esquema Corporal, o que tem diversas implicações, como foi possível observar ao longo desse artigo. Para uma criança autista, o corpo pode ser um objeto de angústia e de pânico, sobretudo se ele não é bem estimulado e compreendido. Por isso, é necessário que ele se torne um pólo de segurança e estabilidade.

Posso inicialmente concluir, que umas das maneiras de auxiliar no tratamento do autismo é por meio do corpo, tentando estabelecer uma relação entre o psíquico e o orgânico. A partir de experiências sensório-motoras, ele poderá aumentar sua relação com o mundo, inicialmente impossível pela dificuldade de entrar em contato com os outros, seja por meio do toque ou por meio do olhar. Fica a proposta para num próximo estudo, buscar terapias que utilizem o Corpo nessa intermediação corpo-mente, e verificar de que forma elas podem contribuir para o tratamento de crianças autistas.

 

Referências

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Baptista, C. R. & Bosa, C. (Orgs.). (2002). Autismo e educação: reflexões e propostas de intervenção. Porto Alegre: Artmed.        [ Links ]

Ferreira, C. A. de M. (2000). Psicomotricidade, da educação infantil à gerontologia. Teoria e prática. São Paulo: Lovise.        [ Links ]

Ferreira, C. A. M. & Cols. (2002). Psicomotricidade Clínica. São Paulo: Lovise.        [ Links ]

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Mahler, M. (1989). As psicoses infantis e outros estudos. (H. M. Souza, trad.) (3ª ed.) Porto Alegre: Artes Médicas.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
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E-mail: fabby_fer@hotmail.com e/ou fabbyfer@ufam.edu.br

Recebido em: fevereiro/2008
Revisado em: maio/2008
Aprovado em: junho/2008

 

 

Sobre a autora:

* Fabiana Soares Fernandes é psicóloga e especialista em Educação Infantil e Especial, pela Universidade Cândido Mendes. Atualmente, docente da Universidade Federal do Amazonas, no Campus Vale do Rio Madeira, em Humaitá (AM).