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Avaliação Psicológica

versão impressa ISSN 1677-0471

Aval. psicol. vol.12 no.1 Itatiba abr. 2013

 

 

Características da personalidade e relacionamento interpessoal na adolescência

 

Personality traits and interpersonal relationships in adolescence

 

Rasgos de personalidad y relaciones interpersonales en la adolescencia

 

 

Renato Gil Carvalho; Rosa Ferreira Novo1

Universidade de Lisboa

 

 


RESUMO

Neste estudo, analisamos a relação entre as dificuldades interpessoais na adolescência e dimensões estruturais e clínicas da personalidade, avaliadas pela versão experimental portuguesa do Minnesota Multiphasic Personality Inventory – Adolescent (MMPI-A). Participaram neste estudo 351 estudantes do 9º ao 12º ano, com idades entre os 14 e os 18 anos. Os instrumentos utilizados foram a versão portuguesa do MMPI-A e o Questionário sobre o Percurso Escolar, construído para esta investigação. De acordo com a frequência reportada de dificuldades interpessoais, sobretudo em contexto escolar, constituíram-se dois grupos de estudantes, os quais foram comparados nos resultados do MMPI-A. As análises multivariadas (MANOVAs) revelaram diferenças significativas entre os grupos nas dimensões que sugerem perturbações de personalidade. Os resultados são analisados numa perspectiva que enfatiza a importância da personalidade na vida escolar na adolescência e na distinção de padrões mais ou menos adaptativos de comportamento.

Palavras-chave: dificuldades interpessoais; personalidade; percurso escolar; adolescentes; MMPI-A.


ABSTRACT

In this cross-sectional study we analyse the relationship between interpersonal difficulties in adolescence and personality clinical and structural dimensions, assessed through the Portuguese version of the Minnesota Multiphasic Personality Inventory – Adolescent (MMPI-A). Participants were 351 ninth to twelfth grade students (ages 14-18), who were distributed by two groups, according to their reported frequency of interpersonal problems, mostly in school context. Instruments were the Portuguese version of the MMPI-A and the School Path Questionnaire, which was created for this investigation. Multivariate statistical analysis (MANOVA) reveals significant differences between the groups of frequency of interpersonal difficulties in MMPI-A personality dimensions and in the clinical profile. Results are analyzed on a perspective that emphasizes the importance of personality in school life and in the distinction of more or less adaptive behavior patterns.

Keywords: interpersonal difficulties; personality; school pathway; adolescents; MMPI-A.


RESUMEN

En este estudio transversal se analiza la relación entre las dificultades interpersonales en la adolescencia y las dimensiones estructurales y clínicas de personalidad, evaluadas a través de la versión portuguesa del Inventario Multifásico de Personalidad de Minnesota – Adolescentes (MMPI-A). Los participantes fueron 351 estudiantes de noveno a duodécimo grado (edades 14-18), que fueron distribuidos en dos grupos, de acuerdo a su frecuencia de problemas interpersonales. Los instrumentos fueron la versión portuguesa del MMPI-A y el Cuestionario Sobre la Vida Escolar, el cual fue creado para esta investigación. El análisis estadístico multivariante (MANOVA) ha revelado diferencias significativas entre los grupos de frecuencia de dificultades interpersonales en las dimensiones de la personalidad y en el perfil clínico de MMPI-A. Los resultados se analizan desde una perspectiva que enfatiza la importancia de la personalidad en la vida escolar y en la distinción de los patrones de comportamiento más o menos adaptables.

Palabras-clave: dificultades interpersonales; personalidad; trayecto académico; adolescentes; MMPI-A.


 

 

Enquanto etapa fundamental do desenvolvimento humano, a adolescência é marcada por um amplo conjunto de mudanças físicas e psicossociais, sendo a esfera interpessoal uma das áreas em que tais alterações são expressivas e significativas. Na adolescência, verifica-se uma transição progressiva da esfera de proteção dos pais e da família para uma integração em grupos de pares e na sociedade (Nurmi, 2004), o que faz com que cada adolescente passe a interagir em contextos mais variados que o/a influenciam e fornecem oportunidades de desenvolvimento. A aceitação dos pares, o estabelecimento e aprofundamento das amizades e os novos formatos nas relações (exemplo: namoro) correspondem a diferentes vertentes das relações interpessoais com que os/as adolescentes deverão lidar (Caspi, Roberts, & Shiner, 2005).

Com a entrada na adolescência, as amizades tornam- se mais profundas, com mais apoio e comunicação, pelo que competências sociais como o iniciar e manter interações, a autorrevelação e o providenciar apoio aos outros aumentam à medida que os adolescentes amadurecem (Steinberg & Scott, 2003). Alguns dados de investigação sugerem que no sexo feminino a intimidade na amizade é potencializada pela conversação, ao passo que no masculino é ganha pela partilha de atividades (Steinberg & Morris, 2001). Para além das amizades, têm recebido também atenção a formação de pequenos grupos (cliques) que interagem regularmente entre si e que envolvem um entrelaçado de amizades que variam na proximidade, duração e afeto; e ainda grupos mais alargados, que providenciam aos adolescentes uma rede social e contribuem para o desenvolvimento da sua identidade, influenciando o modo como se veem a si e aos outros (Brown, 2004).

A atração interpessoal e as relações românticas correspondem também a uma parte significativa do mundo social dos adolescentes. Vários estudos têm vindo a evidenciar que os adolescentes passam uma quantidade apreciável de tempo a pensar em parceiros românticos e que as primeiras interações com o sexo oposto ocorrem tipicamente em contextos mistos e frequentemente associadas à qualidade das amizades já existentes (Smetana, Campione-Barr, & Metzger, 2006).

Essas novas modalidades de relacionamento não impedem, contudo, que continuem a ter grande relevância as relações entre os adolescentes e os seus pais, que constituem importantes fatores de bem-estar e influenciam o relacionamento dos adolescentes com os seus pares (Steinberg & Morris, 2001). Para além disso, um conjunto de mudanças estruturais nas organizações familiares, tais como o divórcio e os segundos casamentos, têm tornado essa tarefa ainda mais desafiante (Smetana e cols., 2006).

A existência de redes sociais de apoio, expressas em interações entre escola e família, bem como as competências interpessoais dos jovens e o modo como se relacionam com os colegas correspondem a fatores protetores relevantes em face de potenciais trajetórias inadaptativas de desenvolvimento na adolescência (Spera, 2005). De fato, as relações interpessoais têm sido uma unidade significativa de análise na investigação sobre o desenvolvimento humano (Collins & Gunnar, 1990; Hartup & van Lieshout, 1995) e a sua qualidade associada ao sucesso acadêmico e bem-estar psicológico, traduzido na ausência ou frequência reduzida de indicadores de psicopatologia (exemplo: depressão, perturbações do comportamento alimentar) e sentimento de valor pessoal (Blandon, Calkins, Grimm, Keane, & O'Brien, 2010; Bukowski, Laursen, & Hoza, 2010; Canevello & Crocker, 2010; Card, 2010; Corsano, Majorano, & Champretavy, 2006; Diez, Pacheco, & García, 2010; Jensen-Campbell, Gleason, Adams, & Malcolm, 2003; Laursen & Mooney, 2008).

Um estudo longitudinal recente (Bornstein, Hahn, & Haynes, 2010) coloca ainda em evidência a relação entre dificuldades nas relações com os pares e problemas de internalização e de externalização na infância e na adolescência, com efeitos a manifestarem-se independentemente da inteligência, habilitações dos pais e desejabilidade social. No âmbito das relações familiares, tem-se também verificado uma associação entre a qualidade das relações com os pais e capacidade de integração em diferentes ambientes por parte dos jovens (Dessen & Polonia, 2007; Hartup & van Lieshout, 1995). Comportamentos parentais negativos, inapropriados ou incompetentes têm um papel decisivo no desenvolvimento de problemas de externalização, ao passo que comportamentos parentais de apoio atuam como fatores protetores (South, Krueger, Johnson, & Iacono, 2008).

Verificamos, portanto, que tanto nos contextos de interação com os pares como no familiar, a qualidade das relações interpessoais potencia o desenvolvimento de trajetórias mais ou menos bem sucedidas. A qualidade das relações interpessoais corresponde, deste modo, a uma dimensão a que os modelos teóricos e as investigações que se concentram sobre os percursos efetuados pelos jovens deverão atentar quando consideram a adaptação dos indivíduos (Laursen & Mooney, 2008). Nesse âmbito, consideramos importante a análise das variáveis que contribuem especificamente para a qualidade do relacionamento interpessoal dos jovens e que, neste sentido, são essenciais para o desenvolvimento de padrões mais ou menos bem conseguidos de adaptação.

Características da personalidade e relacionamento interpessoal

Alguns estudos revelam que crianças e jovens que evidenciam características de Amabilidade e Extroversão mostram maior competência social (Caspi & Shiner, 2006), com a Amabilidade a estar também associada a uma resolução de conflitos construtiva (Jensen-Campbell e cols., 2003). No entanto, a elevada emocionalidade negativa e/ou baixa Conscienciosidade estão associadas a maiores dificuldades ao longo do tempo (Caspi & Shiner, 2006), já que remetem precisamente para níveis menores de estabilidade emocional, para fraca automonitorização e reduzido sentido de dever e compromisso. A esse propósito, Bartholomeu, Nunes e Machado (2008) verificaram uma associação entre características como a emocionalidade positiva e o autocontrole, e maiores competências sociais em estudantes universitários, por exemplo, expressas em pró-sociabilidade, confiança nos outros e sociabilidade em geral. A capacidade para expressar as próprias emoções por parte dos jovens, um aspeto central da competência emocional, tem também sido associada a bons resultados na relação com os professores e colegas (Fraire, Prino, & Sclavo, 2010).

Van Aken e Dubas (2004) apontam uma relação entre padrões distintos de funcionamento psicossocial e relacional, e tipos de personalidade, os quais identificam com base na combinação de traços. Assim, constatam que os jovens que designam de resilientes (com pontuações nos cinco fatores da personalidade num sentido considerado favorável, que inclui maior estabilidade emocional e emocionalidade positiva) apresentam melhores resultados na escola, menos problemas emocionais e comportamentais, e relações interpessoais mais satisfatórias com pais e colegas. Pelo contrário, os "sobrecontroladores" (resultados baixos na Extroversão e estabilidade emocional; elevados na Amabilidade e Conscienciosidade; e moderados na Abertura à experiência) apresentam maior isolamento social e baixa autoestima, e reportam baixos níveis de apoio parental e dos pares. Por fim, os subcontroladores (elevados níveis de Extroversão e resultados baixos nos restantes traços) apresentam mais problemas de externalização, níveis mais elevados de agressão e reportam menos níveis de apoio parental e dos pares (van Aken & Dubas, 2004). Independentemente dos aspetos mais particulares, relativos a cada um daqueles tipos de personalidade identificados, os resultados evidenciam diferenças significativas ao nível do comportamento interpessoal entre indivíduos com características de personalidade diferentes, o que corrobora a perspectiva da importância desta variável para o modo como os adolescentes se relacionam com os outros.

Para além desses exemplos relacionados com o modelo dos cinco fatores, a empatia, por oposição ao egocentrismo, tem também sido considerada uma característica central no desenvolvimento de comportamento pró-social na adolescência (Del Barrio, Aluja, & García, 2004; García-Martinez, Orellana, & Ruiz- García, 2010). Entretanto, a timidez está também relacionada com problemas de internalização na adolescência e relacionada fortemente, de forma negativa, com a impulsividade, procura de sensações associadas ao perigo, agressão e sentimento de eficácia social (Hartup & van Lieshout, 1995).

A tendência global expressa na investigação é, assim, para uma associação entre características da personalidade e comportamento interpessoal. Podemos classificar essa relação como bidirecional, já que a personalidade não só afeta o comportamento na escola, mas também é influenciada pelas experiências sociais. Isso quer dizer que o comportamento social dos indivíduos é favorecido ou dificultado em função da personalidade e, do mesmo modo, a qualidade das relações interpessoais pode afetar a organização da personalidade (Bartholomeu e cols., 2008). Tratar-se-á assim de uma interação, já que o efeito muito provável de experiências interpessoais no desenvolvimento da personalidade é o de aprofundar características que inicialmente levaram os indivíduos a participar nestas mesmas experiências (Caspi & Shiner, 2006).

Neste estudo procuramos verificar se as dificuldades de relacionamento interpessoal dos adolescentes encontram uma expressão diferenciada ao nível das dimensões estruturais e clínicas da personalidade, expressas nas dimensões PSY-5 e no perfil clínico de MMPI-A. Pretendemos, por meio dessa estratégia, distinguir o que são situações de dificuldade relacional pontual (pouco frequentes) do que são dificuldades reportadas como frequentes pelos adolescentes, isto é, diferenciar as dificuldades interpessoais que se inserem provavelmente no processo de desenvolvimento daquelas que se inscrevem num quadro das dimensões inadaptativas da personalidade. Partimos da hipótese de que a variação na frequência de dificuldades interpessoais no percurso escolar se associa a diferenças no nível da personalidade, sendo que os jovens com maiores dificuldades interpessoais em contexto escolar têm resultados mais elevados em dimensões da personalidade que remetem para sintomatologia com significado clínico, tal como expressas em perfis de MMPI-A significativamente mais elevados.

 

Método

Participantes

A amostra foi constituída por 351 estudantes portugueses (212 do sexo feminino, o que corresponde a cerca de 60%), a frequentarem o ensino básico (9º ano; n = 123), secundário (10º ao 12º ano; n = 202) e profissional (n = 26). A maioria dos estudantes residia em áreas rurais (n = 223, cerca de 64%) e as suas idades encontravam- se compreendidas entre os 14 e os 18 anos (MIdade = 16 anos; DP = 1,43). Verifica-se uma interação Idade x Nível de Escolaridade, χ2(20, N=351) = 223,27, p < 0,001, com um número superior ao esperado de estudantes com idade elevada para o nível de escolaridade em que se encontravam. Isso se encontra associado ao fato de cerca de metade da amostra apresentar pelo menos uma retenção no percurso escolar. Numa análise preliminar, não encontramos efeitos de interação Idade x Sexo, χ2(4, N=351) = 7,17, p = 0,127, Idade x Área de Residência, χ2(4, N=351) = 0,81, p = 0,127, nem Sexo x Área de Residência, χ2(1, N=351) = 0,09, p = 0,766.

Instrumentos

Questionário sobre o Percurso Escolar (QPE; Carvalho & Novo, 2010). Esse questionário de autorrelato recolheu dados acerca de diversas dimensões da vida escolar, sendo uma delas a prevalência de dificuldades interpessoais, que é constituída por 11 itens (α de Cronbach = 0,73), relativos à frequência de conflitos com pais, colegas e professores, bem como a sentimentos de inadequação e ao conforto e satisfação com a interação social na escola. Numa escala de tipo Likert, existiam cinco alternativas de resposta, desde "Totalmente Falso" até "Totalmente Verdadeiro". A variável "Dificuldades Interpessoais" correspondeu à média daqueles itens e, assim, quanto mais elevada a média, mais dificuldades interpessoais na vida escolar foram reportadas. Com base na distribuição dos resultados dessa variável, foram criados dois grupos: o grupo designado "Com Dificuldades Interpessoais" inclui os jovens com resultados acima do percentil 90 da distribuição, isto é, aqueles que reportaram uma frequência mais elevada daquelas dificuldades; o grupo "Sem Dificuldades Interpessoais" inclui os restantes jovens da amostra. A adoção dessa estratégia de diferenciação dos jovens com base no percentil 90 deveu-se ao fato de os resultados médios na variável serem baixos e a sua distribuição não normal, D = 1,98, p < 0,01 (teste K-S).

Minnesota Multiphasic Personality Inventory-Adolescent (MMPI-A; Butcher e cols., 1992). De forma a avaliarmos as dimensões da personalidade, utilizamos a versão portuguesa do MMPI-A (Silva, Novo, Prazeres, & Pires, 2006), um inventário de autorrelato constituído por 478 itens. Neste estudo, os resultados do MMPI-A são considerados em dois níveis de análise. O primeiro corresponde às dimensões PSY-5 (McNulty, Harkness, Ben-Porath, & Williams, 1997), um modelo descritivo e dimensional da personalidade, baseado num sistema conceitual de cinco fatores principais (Archer, 2005). Um dos aspectos mais característicos do PSY-5 é a sua ênfase em traços da personalidade ou diferenças disposicionais específicas, em vez de dimensões da psicopatologia clínica ou das perturbações clínicas (McNulty e cols., 1997). Essas cinco dimensões, constituídas por conjuntos de itens do MMPI-A, são mencionadas na Tabela 1, bem como o seu número de itens e os alfas obtidos com esta amostra. A acentuação das características associadas a cada uma daquelas dimensões é considerada relevante do ponto de vista clínico, na medida em que poderá sinalizar potenciais alterações ao nível da personalidade.

 

 

O segundo nível de análise dos resultados do MMPI-A envolve as escalas básicas (perfil clínico), descritas na Tabela 2.

 

 

Procedimento

A aplicação dos questionários ocorreu em duas sessões e em contexto de turma, nos meses de maio e junho de 2010. O QPE foi aplicado na primeira sessão e o MMPI-A na segunda sessão. Relativamente ao MMPI-A, o procedimento de cotação e de transferência dos resultados brutos e de notas-T para a base de dados no SPSS foi efetuado mediante leitura ótica das folhas de resposta. Os dados do QPE foram, depois de categorizados e cotados, também lançados na mesma base de dados.

Neste estudo, foram atendidos os aspetos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, em que destacamos o consentimento informado dos estudantes e respectivos encarregados de educação, a confidencialidade no tratamento dos dados e ainda uma análise prévia do estudo, em que foram ponderados os seus potenciais riscos e benefícios. É de acrescentar que este estudo se inseriu numa investigação mais alargada sobre o papel da personalidade no desenvolvimento e adaptação na adolescência, a qual foi aprovada pelo Conselho Científico da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.

Delineamento da investigação e análise de dados

O estudo, realizado com uma amostra transversal, é de natureza quantitativa e inscreve-se numa metodologia diferencial, em que utilizamos a análise multivariada de variância (MANOVA), para distinguir os grupos de frequência de dificuldades interpessoais nas dimensões PSY-5 e nos resultados brutos das escalas básicas do MMPI-A. Efetuamos uma verificação preliminar das assunções da MANOVA, nomeadamente normalidade, linearidade, ausência de outliers univariados e multivariados, homogeneidade de matrizes de variânciacovariância e ausência de multicolinariedade (Maroco, 2007).

 

Resultados

Os resultados da MANOVA não identificam efeitos de interação Sexo x Dificuldades interpessoais, F(5,343) = 2,09, p = 0,306, Λ de Wilks = 0,98, o que sugere a inexistência de efeitos de moderação (vide Frazier, Tix, & Baron, 2004) daquela variável sociodemográfica na relação entre dimensões da personalidade e as dificuldades interpessoais. Em relação às dificuldades interpessoais, os resultados são significativos e indicam uma relação com a personalidade, F(5,343) = 5,67, p < 0,001, Λ de Wilks = 0,92, ηp2 = 0,08. As diferenças significativas ocorrem na maioria das dimensões da personalidade, como se pode observar na Tabela 3.

 

 

A maior dimensão do efeito é moderada (Cohen, 1988) e ocorre na dimensão Psicoticismo, corroborando a perspetiva de que o desligamento e a alienação da realidade, a suspeição em relação aos outros e a tendência para bizarria no pensamento e para exibição de comportamentos de natureza psicótica se encontra associada a comportamentos que indiciam dificuldades no relacionamento interpessoal. Verificamos também que os jovens mais introvertidos, neuróticos, agressivos têm também maiores dificuldades interpessoais, isto é, sentem problemas no relacionamento com colegas e professores, quer ao nível do isolamento quer da conflituosidade.

No que respeita aos resultados nas escalas clínicas do MMPI-A, novamente não são identificados efeitos Sexo x Dificuldades Interpessoais, F(15,333) = 1,14, p = 0,315, Λ de Wilks = 0,95. Considerando as variáveis independentes de forma separada, identificamos diferenças significativas entre os grupos de dificuldades interpessoais, F(15,333) = 3,69, p < 0,001, Λ de Wilks = 0,86, ηp2 = 0,14, com efeitos aplicáveis à generalidade das escalas, como apresentado na Tabela 4.

 

 

Num padrão que podemos considerar semelhante ao observado nas dimensões de personalidade, é na escala Sc- Esquizofrenia que a dimensão do efeito é superior, o que sugere uma relação entre dificuldades de relacionamento interpessoal e comportamentos infrequentes e eventualmente bizarros. Para além disso, verifica-se que os jovens com maiores dificuldades interpessoais na vida escolar revelam mais frequentemente sentimentos de desconfiança interpessoal, ansiedade, rigidez no pensamento e um quadro tendencialmente mais associado a neuroticismo e menor estabilidade emocional (van Aken & Dubas, 2004). Esses elementos podem ser identificados por meio dos resultados mais elevados em escalas como a Pt-Psicastenia, Pa-Paranoia e F-Infrequency. São de assinalar as diferenças significativas na D-Depressão, que indica insatisfação global com a vida e ao sofrimento psicológico. Os resultados na escala Pd estão também associados ao componente de conflituosidade que muitas dificuldades interpessoais envolvem, bem como zanga e revolta face aos outros.

Em síntese, podemos afirmar que as diferenças significativas são transversais às diversas escalas cujas variações nos resultados e nas características que refletem se relaciona com uma frequência distinta de dificuldades interpessoais em contexto escolar. Para além disso, essa abrangência dos efeitos observados enfatiza a relação entre a qualidade das relações interpessoais e a harmonia do funcionamento psicológico.

Nas Figuras 1 e 2, apresentamos os perfis clínicos médios de MMPI-A de cada grupo de dificuldades interpessoais, por sexo. Na sequência de uma nova análise one way às notas-T são também assinaladas as escalas nas quais se verificam diferenças significativas. Essa nova análise separada por sexo deveu-se à existência, no MMPI-A, de normas distintas para cada sexo, de conversão de resultados brutos em notas-T, o que significa que não é possível realizar análises conjuntas com notas-T. Apesar de se tratar de perfis médios e, neste sentido, ser importante considerar que há variabilidade interindividual dentro de cada grupo, para a qual remete o desvio-padrão, os traçados obtidos evidenciam uma distinção entre os grupos: o grupo com dificuldades interpessoais apresenta elevações significativas na generalidade das escalas clínicas.

 

 

 

Discussão

Neste estudo analisamos a relação entre a personalidade e as dificuldades interpessoais, consubstanciadas não só em conflituosidade (com colegas, professores e pais), mas também em isolamento, desconforto social e perceção de falta de suporte social. Os resultados expressam um padrão em que os adolescentes que reportam mais dificuldades interpessoais têm resultados no MMPI-A significativamente distintos daqueles que não as reportam, veiculando, deste modo, importantes diferenças no nível da personalidade e do bem-estar psicológico.

As dificuldades interpessoais, apresentadas pelos jovens ao longo do percurso escolar, encontram-se expressas em diferenças significativas na generalidade das dimensões de personalidade PSY-5 e escalas básicas do MMPI-A, sendo por isto transversais a dimensões relacionadas com a externalização e com a internalização. Esses resultados vêm assim confirmar a nossa hipótese e evidenciar que as dificuldades interpessoais, quando atingem certa frequência, não devem ser consideradas como meramente circunstanciais ou típicas do processo normal de desenvolvimento na adolescência, mas antes remetem para comportamentos com potencial significado clínico. Com efeito, os resultados indicam, não obstante, em termos médios, não haver características claramente patológicas, o que está em causa é a natureza das dificuldades e a possibilidade de o instrumento se revelar capaz de diferenciar as situações de vulnerabilidade e de risco.

Tendo em conta os resultados obtidos, podemos considerar que as dificuldades interpessoais se podem associar a diversas características, em que se incluem: padrões de pensamento e comportamentos mais bizarros e pouco frequentes (evidenciados, nas escalas Sc e F, e na dimensão Psicoticismo); desconforto na interação e suspeição em relação aos outros e à bondade das suas ações (exemplo: escalas Si e Pa, e Introversão); hostilidade, revolta, impulsividade e menor conscienciosidade (exemplo: escala Pd e dimensões Agressividade e Desinibição); emocionalidade negativa e sentimentos substanciais de insatisfação geral (exemplo: escalas como a D, Hy, Hs, Pt e Neuroticismo).

Embora as dificuldades interpessoais não tenham necessariamente de subentender todas essas características em simultâneo, os resultados deste estudo corroboram a importância que a investigação tem atribuído à capacidade de gestão dos impulsos, às competências de interação com os outros e à emocionalidade predominante no surgimento de problemas de relacionamento interpessoal (Bartholomeu e cols., 2008; Caspi & Shiner, 2006; van Aken & Dubas, 2004). A diversidade de características apontadas sugere, nesse sentido, a heterogeneidade das situações em causa, isto é, diferentes tipos de dificuldades relacionais terão diferentes causas e estarão diversamente associadas a determinadas características de personalidade.

Os resultados deste estudo, realizado com adolescentes portugueses, vão no mesmo sentido do que a literatura internacional refere a propósito não só da importância da qualidade das relações interpessoais para o bem-estar psicológico, como também da sua relação com a personalidade. Assim, é de assinalar, em primeiro lugar, a relevância que a interação social, em geral, e as relações com pares, professores e familiares, em particular, têm para o ajustamento e bem-estar psicológico dos estudantes (Canevello & Crocker, 2010; Card, 2010; Corsano, Majorano, & Champretavy, 2006; Jensen-Campbell e cols., 2003; Jou, 2009; Laursen & Mooney, 2008). Face ao impacto que os problemas interpessoais podem ter na construção da personalidade e no bem-estar psicológico, esses dados sustentam ainda a importância de se considerarem as relações interpessoais como um elemento importante no sucesso e adaptação ao longo da escolaridade. Em contexto escolar, tal preocupação poder-se-á traduzir pela promoção de competências sociais e de gestão de conflitos, pela promoção de ambientes relacionais saudáveis, pela valorização da assertividade e da competência social, e ainda pela atenção a potenciais sinais comportamentais problemáticos, quer por meio de estilos interpessoais conflituosos, quer por meio da timidez excessiva e isolamento por parte de estudantes. É de referir que, frequentemente, uma vez que esses alunos com problemas de internalização não exibem disrupções no comportamento, visíveis para os outros, nem criam situações problemáticas na sala de aula e no exterior, poderão passar "despercebidos" e não receber a necessária atenção.

Pelas implicações nas trajetórias de desenvolvimento que esses padrões podem assumir, consideramos essencial a sua sinalização, de forma a serem implementadas estratégias e programas de prevenção primária e secundária. Essas preocupações são, a nosso ver, extensíveis à família, enquanto contexto de suporte ao jovem e fulcral para o seu desenvolvimento (Spera, 2005).

Os resultados que obtivemos contribuem, do mesmo modo, para confirmar a tendência dos vários estudos que têm associado a personalidade a diferentes padrões de comportamento interpessoal (Caspi & Shiner, 2006; Del Barrio e cols., 2004; Hartup & van Lieshout, 1995; van Aken & Dubas, 2004). Embora muitos deles se concentrem na análise de características específicas (timidez, empatia, raciocínio moral), foram recolhidos neste estudo dados significativos que mostram, quer do ponto de vista da normalidade, quer do ponto de vista da psicopatologia, que há dimensões distintivas, em nível da personalidade, entre vários padrões relacionais.

Pela amplitude dos resultados, podemos mesmo afirmar que uma das áreas da vivência em que a personalidade encontra uma expressão mais relevante é as relações interpessoais, isto é, ao modo como nos relacionamos com os outros estarão certamente subjacentes características de personalidade. Como alguns autores defendem (Bueno, Oliveira, & Oliveira, 2001; Caspi & Shiner, 2006), este processo será bidirecional, na medida em que, por um lado, as características da personalidade contribuirão para expressões diferenciadas ao nível interpessoal e, por outro, as relações com os outros contribuirão para o desenvolvimento da personalidade e ajustamento psicológico.

Por fim, verificamos novamente que o MMPI-A se configura como um instrumento de avaliação útil na análise de características da personalidade e sinais de psicopatologia associados a padrões de dificuldades interpessoais. Ainda que não estejamos perante uma amostra clínica, ao constatarmos que cada grupo produziu um perfil clínico específico e nas dimensões PSY-5, corroboramos a perspectiva de que o MMPI-A pode ajudar a diferenciar situações em que as dificuldades relacionais são episódicas e conjunturais, das situações que se inscrevem em quadros com potencial valor clínico e que requerem, portanto, uma atenção e vigilância particular.

 

Limitações e perspetivas de futuro

Este estudo não deixa de apresentar limitações, que deverão ser tidas em conta para futuro. De entre essas limitações, fazemos referência a que todos os instrumentos utilizados foram de autorrelato, pelo que consideramos útil realizar futuramente análises mais abrangentes sobre a relação entre personalidade e o relacionamento interpessoal, recorrendo ao cruzamento de informação proveniente de diferentes fontes. Além disso, esta investigação foi realizada com uma amostra com corte transversal, sendo que a nosso ver será importante realizar também estudos longitudinais, que nos possam melhor elucidar sobre a natureza da interação entre personalidade e relacionamento interpessoal ao longo do tempo.

 

Referências

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Recebido em junho de 2011
1ª Reformulação em janeiro de 2012
2ª Reformulação em junho de 2012
Aceito em setembro de 2012

 

 

Sobre os autores

Renato Gil Carvalho: é doutorado em Psicologia (Avaliação Psicológica) pela Universidade de Lisboa. É professor convidado na Universidade da Madeira, psicólogo na Secretaria Regional de Educação e Recursos Humanos da Madeira, Portugal, e Presidente da Associação Educação & Psicologia.
Rosa Ferreira Novo: é Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Lisboa. Professora Associada na Faculdade de Psicologia da mesma Universidade. Professora das unidades curriculares ligadas à Avaliação Psicológica.


1Endereço para correspondência:
Centro de Investigação em Psicologia, Faculdade de Psicologia, Alameda da Universidade, CEP: 1649-013, Lisboa, Portugal. Tel.: 217 943 655, Fax: 217 933 408. E-mails: renatoggc@gmail.com / rfnovo@fp.ul.pt