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Avaliação Psicológica

versão impressa ISSN 1677-0471versão On-line ISSN 2175-3431

Aval. psicol. vol.21 no.4 Campinas out./dez. 2022

https://doi.org/10.15689/ap.2022.2104.24162.04 

ARTIGOS

 

Desafios da Avaliação Psicológica no Brasil: Nova Realidade, Velhas Questões

 

Challenges for Psychological Assessment in Brazil: New Reality, Old Issues

 

Desafíos de la Evaluación Psicológica en Brasil: Nueva Realidad, Viejos Interrogantes

 

 

Daniela Sacramento ZaninI; Karina da Silva OliveiraII; Katya Luciane de OliveiraIII; Marcelo Henrique Oliveira HenklainIV

IPontifícia Universidade Católica de Goiás https://orcid.org/0000-0003-2515-2820
IIUniversidade Federal de Minas Gerais - UFMG https://orcid.org/0000-0002-5301-7012
IIIUniversidade Estadual de Londrina - UEL https://orcid.org/0000-0002-2030-500X
IVUniversidade Federal de Roraima - UFRR https://orcid.org/0000-0001-9884-8592

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A avaliação psicológica (AP) constitui-se como uma um processo técnico-científico auxiliado por múltiplas ferramentas, que apresenta solidez no desenvolvimento de pesquisas que qualificam a prática e a formação em Psicologia. Sua relevância histórica e social é evidente, sendo que seus parâmetros estão em consonância com os mais rigorosos critérios praticados internacionalmente. Por essa via, considera-se que a AP constitui um importante recurso de proteção ao indivíduo e sociedade nos diferentes contextos de atuação. Ainda que apresente notório reconhecimento, há desafios que precisam ser enfrentados. Sob essa perspectiva, o presente trabalho teve como objetivo discutir os principais desafios presentes para uma AP mais qualificada, dentro dos elevados princípios éticos de nossa profissão. O trabalho está organizado de modo a traçar um panorama desses desafios, percorrendo tanto as esferas social, ética, de resoluções do Conselho Federal de Psicologia e de aspectos práticos, visando trazer contribuições que possam, por um lado, problematizar sobre a superação das dificuldades e, por outro, fortalecer ações que se revertam na superação dos desafios que hoje se apresentam.

Palavras-chave: ética profissional; responsabilidade social; competência profissional.


ABSTRACT

Psychological assessment (PA) is a well established area in the development of research that helps to improve the quality of practice and training in psychology. Its historical and social relevance is clear, and its parameters are in line with the most rigorous criteria practiced internationally. In this way, it is considered that the PA protects society in the different contexts of action. Although it is well known, there are challenges that need to be faced. From this perspective, the present work aimed to discuss the main challenges present for quality PA, considering the strict ethical principles of the profession. The work is structured to identify these challenges, covering social and ethical considerations, the resolutions of the Federal Council of Psychology, and practical aspects. The goal is to provide contributions that can both problematize overcoming difficulties and strengthen actions to overcome them in the current context.

Keyword: professional ethics; social responsibility; professional competence.


RESUMEN

La evaluación psicológica (EP) se constituye un proceso técnico-científico apoyado en múltiples herramientas, que presenta solidez en el desarrollo de investigaciones que cualifican la práctica y la formación en psicología. Su relevancia histórica y social es evidente, y sus parámetros se ajustan con los criterios más rigurosos practicados internacionalmente. De esta forma, se considera que la EP es un recurso fundamental para la protección del individuo y de la sociedad en diferentes contextos de actuación. Aunque presenta un reconocimiento notorio, hay retos por afrontar. En esa perspectiva, el presente trabajo tuvo como objetivo discutir los principales desafíos actuales para una EP más calificada, dentro de los altos principios éticos de nuestra profesión. El estudio está organizado para delinear estos desafíos, abarcando tanto la esfera social, ética, las resoluciones del Consejo Federal de Psicología y los aspectos prácticos. La finalidad es traer contribuciones que puedan no solo problematizar la superación de las dificultades, sino también, fortalecer las acciones que se revierten en la superación de los problemas que se presentan hoy.

Palabra clave: ética profesional; responsabilidad social; competencia profesional.


 

 

A Avaliação Psicológica é uma das áreas de especialidade profissional e um dos processos técnico-científicos mais antigos e fundamentais para a atuação em Psicologia (Noronha & Santos, 2021). De fato, o interesse pela avaliação de características das pessoas e sua comparação com o grupo está descrito na literatura antes mesmo do reconhecimento da Psicologia como ciência (Primi, 2010), e foi, precisamente, o interesse na observação sistemática e em experimentos de medição levados a cabo no laboratório de Wundt o que permitiu a diferenciação da Psicologia e da filosofia, favorecendo o reconhecimento da ciência psicológica (Hutz, 2015). Assim, pode-se dizer que a Avaliação Psicológica, desde o seu início, tem se caracterizado como uma área relevante para o avanço da Psicologia enquanto ciência e profissão, de modo que suas contribuições são observadas em processos de organização e de desenvolvimento de teorias psicológicas, assim como por propostas qualitativas e quantitativas de coleta, integração e interpretação de informações sobre o funcionamento de pessoas e de grupos de pessoas (Hasbun et al., 2021; Hutz, 2015).

Historicamente, a Avaliação Psicológica é associada ao emprego de métodos e de técnicas quantitativas. Quando se toma a realidade internacional, é possível observar que foi por meio do desenvolvimento dos testes psicológicos, associados à organização de laboratórios experimentais, que a Psicologia apresentou evidências de seu potencial científico. De modo que os testes psicológicos se tornaram métodos que, isoladamente, fundamentavam as decisões do psicólogo sobre como intervir (Bueno & Peixoto, 2018). Seguindo a tendência internacional, os profissionais brasileiros reproduziam a aplicação da técnica quantitativa como única estratégia para a tomada de decisão profissional. Essa postura, associada à banalização, às inúmeras queixas relacionadas à utilização inadequada e à má qualidade dos testes psicológicos, levou os profissionais da área a voltaram-se com maior intensidade para o estudo das qualidades psicométricas dos testes psicológicos, bem como para uma avaliação acerca de quais devem ser os critérios orientadores das decisões profissionais em Psicologia (Muniz et al., 2021).

Paralelamente a esse processo, houve um movimento importante de aprofundamento dos princípios éticos profissionais em Psicologia, fortalecendo o compromisso da categoria com a promoção e a garantia de acesso à direitos humanos, à prestação de serviço técnico fundamentado em evidências empíricas, e exigência de níveis de excelência na atuação (Conselho Federal de Psicologia, 2007). Em parte, essa foi uma conquista decorrente de um exame mais cuidadoso, originado a partir de críticas da sociedade e de profissionais e pesquisadores de diversas áreas da Psicologia, sobre as consequências de uma avaliação psicológica - e dos recursos empregados para a coleta de informações - sobre a(s) pessoa(s) avaliada(s) (Muniz, 2018). É nesse contexto que surgem movimentos de refinamento e de reorganização da área da Avaliação Psicológica, tanto no Brasil, quanto em outros países. Tais movimentos, marcados pela criação de laboratórios especializados, institutos e associações científicas, resultaram no desenvolvimento contínuo de critérios de cientificidade, também chamados de qualidades psicométricas dos testes (American Educational Research Association [AERA], American Psychological Association [APA], & National Council on Measurement in Education [NCME], 2014; Bueno & Peixoto, 2018; Muniz et al., 2021; Oliveira et al., 2022), assim como no desenvolvimento de outras técnicas de obtenção de informações relevantes ao trabalho do psicólogo, tais como a entrevista e a observação (Hutz, 2015).

Como parte desse processo histórico, no qual, por exemplo, instrumentos psicológicos foram utilizados de forma questionável em termos éticos e científicos, é comum que a Avaliação Psicológica seja associada apenas ao desenvolvimento de testes (Primi, 2010), a despeito de todo o esforço empreendido e o avanço conquistado na superação de práticas dessa natureza. De um ponto de vista técnico-científico, hoje se conduz avaliações psicológicas que tornam essa associação demasiado simplista. Assim, quem sustenta que essa associação exista ou trabalha nessa perspectiva, acaba por trazer prejuízos tanto para a prática profissional, quanto para o avanço da ciência. Dentre os prejuízos decorrentes dessa visão reducionista, têm-se o emprego dos termos testagem e avaliação psicológica enquanto sinônimos (Oliveira et al., 2021). A distinção dos termos se faz necessária, pois, atualmente, entende-se que há um caráter processual na Avaliação Psicológica, uma vez que é entendida como um método estruturado e sistemático de levantamento e integração de informações para compreender o funcionamento de pessoas (ou grupo de pessoas) e subsidiar a tomada de decisão (Oliveira et al., 2022). Ao passo que a testagem se refere ao emprego de uma técnica específica, isto é, os testes psicológicos, ao longo do processo de avaliação, cuja finalidade é auxiliar o profissional no levantamento de informações que ajudarão a compreender a demanda psicológica (Primi, 2010, 2018).

Colaborando com essa reflexão, Bornstein (2016) defende que a Avaliação Psicológica, enquanto processo de integração de dados, deve estar alinhada às propostas da Psicologia Baseada em Evidências. Ou seja, segundo o autor, a área deve ter como pauta de investigação as qualidades das evidências empíricas decorrentes das ações integradoras das informações obtidas por meio das observações, entrevistas e dos resultados obtidos por meio dos testes psicológicos. Tal ponderação também é observada junto aos documentos oficiais do Conselho Federal de Psicologia, notadamente na Resolução nº 09 de 25 de abril de 2018, em que há a orientação explícita de que o profissional, ao conduzir processos de Avaliação Psicológica, seja capaz de realizar a integração de informações obtidas em fontes fundamentais e complementares com base na ciência Psicológica. Cabe destacar que são entendidas como fontes fundamentais a observação, a entrevista e os testes psicológicos, e são entendidas como fontes complementares a consulta de informações em relatórios multidisciplinares e testes não psicológicos, que apresentem devida comprovação de suas qualidades psicométricas (Oliveira et al., 2021).

Ainda, retomando as reflexões apresentadas por Bornstein (2016) sobre a importância da contínua avaliação das evidências empíricas dos processos avaliativos, o autor faz um convite à área. Ele propõe uma agenda de investigação que, concomitantemente à busca pelas evidências de qualidades psicométricas dos testes, os profissionais e pesquisadores busquem evidências da qualidade dos processos integrativos, ou seja dos processos de avaliação psicológica.

Essas ponderações adquirem valor quando se percebe que a área da Avaliação Psicológica possui um processo de refinamento histórico contínuo, buscando adequações em processos e procedimentos, estratégias metodológicas e conceituais, a fim de que as ações propostas sejam eficazes no atendimento das necessidades e das demandas da sociedade e de seus indivíduos (Bueno & Peixoto, 2018). No Brasil, tal processo é observado por meio do zelo das entidades da área, como é o exemplo da Associação Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos (ASBRo), o Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP) e outras que têm trabalhado incessantemente para que a área cumpra sua missão de auxiliar no desenvolvimento e no aprimoramento da ciência e da profissão.

Considerando o exposto, o presente artigo tem como objetivo discutir os principais desafios atuais para que a área de Avaliação Psicológica (AP), assim como as práticas e os profissionais, apresente qualificações compatíveis aos mais elevados princípios éticos esperados dos profissionais da Psicologia. De forma específica, o artigo aponta para as novas realidades vivenciadas na atualidade e as velhas questões da AP que essa realidade põe a prova. Para isso, este trabalho está organizado a partir de tópicos, percorrendo aspectos das esferas sociais, ética, de resoluções do Conselho Federal de Psicologia e de práticas. Espera-se que as reflexões e proposições apresentadas possam fomentar o diálogo, o debate e o avanço da área nestes temas emergentes e urgentes.

Avaliação Psicológica e as Novas Tecnologias

O rápido desenvolvimento tecnológico experimentado em todo o mundo nos últimos anos, certamente tem afetado e afetará ainda mais o trabalho da Psicologia na dimensão da AP ao longo do século XXI (Primi, 2018). No campo do fazer psicológico, o uso das novas tecnologias foi ainda mais potencializado com o advento da pandemia de Covid-19, em que o profissional de Psicologia se viu extremamente demandado sob o regime de distanciamento social. Contudo, a maneira como os psicólogos enfrentaram e enfrentarão o impacto das novas tecnologias dependerá, ao menos em parte, do grau e do tipo de preparo que terão para lidar com ela.

Os profissionais podem, por exemplo, lidar com a tecnologia sob a ótica do medo e do distanciamento ou, ainda, apenas como usuários que não compreendem o seu funcionamento e as suas implicações. Outra forma de lidar, considerada mais promissora, envolve uma aproximação em relação à tecnologia, no sentido de compreendê-la para que se possa criticar, utilizar, adaptar e, se possível, até criar inovações, sempre observando os compromissos éticos e sociais da ciência Psicológica. Nessa perspectiva, Cardoso et al. (2018) sugerem, por exemplo, que psicólogos deveriam começar a aprender programação como parte das disciplinas obrigatórias do curso, pois consideram que o letramento básico nessa área é necessário e bastante útil ao trabalho do pesquisador e do profissional da Psicologia.

Deixando de lado a questão da discussão do mérito sobre em que medida a incorporação do ensino de programação nos cursos de Psicologia é viável ou necessária, o fato é que as tecnologias existem e afetam a vida das pessoas e, necessariamente, o trabalho do psicólogo. Por isso, é fundamental pensar sobre como capacitar esses profissionais para que lidem de modo efetivo com a realidade atual marcada pelo uso de tecnologias. Alguns exemplos de como algumas tecnologias impactam na vida humana e no trabalho em Psicologia podem ser úteis para ilustrar os desafios que a Psicologia em geral e a AP em particular precisam enfrentar.

Sabe-se que o computador pessoal e a internet são dois exemplos de tecnologias amplamente utilizadas e que afetam profundamente hábitos de consumo, de relacionamento humano e, no limite, a forma de vida de uma sociedade (Carvalho & Lorena, 2017). Associado a essas tecnologias, tem crescido a disponibilidade e o uso de dispositivos, conectados à rede e com múltiplos sensores, que acompanham as pessoas em todas as suas atividades diárias (e.g., smartwatch, smartphone). Com isso, quantidades enormes de dados sobre o comportamento humano estão disponíveis para análise de modo fácil e com baixos custos (Yarkoni, 2012).

Diante desse volume de informações, técnicas matemáticas e estatísticas incorporadas por algoritmos, que vêm sendo aperfeiçoados há décadas, permitiram o florescimento da subárea da Inteligência Artificial conhecida como Aprendizado de Máquina (Luger, 2013). Ela tem sido usada com sucesso em diversas tarefas de classificação, predição e agrupamento de fenômenos, incluindo, aqueles de natureza psicológica (Primi, 2018) e, por isso, tem sido tão comentada pela mídia.

Kosinski et al. (2013), por exemplo, mostraram como classificar pessoas em um dos cinco grandes fatores de personalidade, além de outras características pessoais como opção sexual e preferência política, tendo por base os seus likes no Facebook. Campion et al. (2016), por sua vez, mostraram como o computador poderia fornecer escores automáticos para textos produzidos por candidatos em situação de processo seletivo que se assemelhavam à avaliação cuidadosa conduzida por um avaliador humano.

Nota-se, portanto, que as tecnologias têm hoje o potencial, por exemplo, para identificar características de personalidade de um modo que pode superar - em termos de menores custos, maior rapidez e até mesmo melhor acurácia - a avaliação conduzida por um psicólogo. Conforme sinalizado anteriormente, o desafio que se apresenta para a Avaliação Psicológica parece ser menos o de como lutar contra o avanço dessas tecnologias, e sim como capacitar psicólogos para que possam usá-las como recursos auxiliares da sua prática profissional. Assim, esse desafio se relaciona ao da formação de psicólogos, que também será abordado neste trabalho.

Nessa mesma linha de reflexões sobre a relação entre Psicologia e Tecnologias, Yarkoni (2012) e Cardoso et al. (2018) sugerem que a melhor alternativa para lidar com a tecnologia passa por compreendê-la e incorporá-la. Por isso, eles apresentam diversas ideias sobre como psicólogos podem se beneficiar das tecnologias no sentido de promover o avanço da ciência e da profissão. Algumas dessas ideias, que foram complementadas pelos autores desse texto, envolvem: o uso de apps em smartphones para coleta de dados em pesquisas e para realizar intervenções psicológicas; o desenvolvimento de aplicações que auxiliem na organização do psicólogo e no gerenciamento dos dados relativos aos seus clientes; o uso do aprendizado de máquina para prever comportamentos de risco à saúde, e a identificação de sentimentos a partir de publicações em redes sociais; o uso de jogos para avaliar características psicológicas ou para o ensino de comportamentos acadêmicos; a predição de abandono do processo terapêutico permitindo uma intervenção precoce; a testagem adaptativa computadorizada como meio de lidar com o falseamento de respostas; entre outros (para uma introdução ao tema do aprendizado de máquina no contexto da Psicologia, consulte Stachl et al., 2020).

Diante dessas questões, têm-se hoje observado um maior investimento de pesquisadores e de editoras em apresentar versões informatizadas da aplicação e de correção dos testes psicológicos. Como resultado, há disponível, junto ao Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (Satepsi), diversos testes com correções informatizadas, alguns testes de aplicação remota ou on-line, e inúmeros estudos sendo conduzidos para buscar a equivalência de formatos, tanto para instrumentos chamados de objetivos, quanto para projetivos (Jiménez et al., 2021). Nesse sentido, nota-se que há espaço importante para crescimento da área no que tange aos formatos propostos e, tradicionalmente, utilizados dos testes e instrumentos psicológicos.

Importa destacar, ainda, que a relação entre tecnologias e Psicologia não é de mão única, no sentido de que a Psicologia apenas recebe benefícios e precisa se adaptar. Na realidade, os avanços científicos e éticos conquistados pela Psicologia ao longo de sua história têm muito a contribuir com o avanço tecnológico, por exemplo, (a) mostrando como evitar o uso de bases de dados marcadas por preconceitos como fundamento para o treinamento de algoritmos de aprendizado de máquina, (b) auxiliando a discutir as implicações da tecnologia para a segurança pessoal em contextos nos quais as pesquisas feitas em buscadores, os filmes assistidos em plataformas de streaming ou os likes registrados em uma rede social podem revelar mais do que a pessoa gostaria de informar sobre si mesma e (c) avaliando os impactos das interações nas redes sociais sobre a saúde mental. Além disso, muitos psicólogos têm integrado equipes multiprofissionais, nas quais contribuem com o planejamento de pesquisas com seres humanos e, ainda, atuam ativamente na proposição das melhores técnicas e abordagens para análise e interpretação de dados (Primi, 2018).

Outro aspecto a ser pensado em relação a avaliação psicológica e o uso de novas tecnologias diz respeito aos desafios de acesso e o acirramento das diferenças sociais já existentes no Brasil que esse processo possa gerar. A Resolução 11/2018 do CFP regulamentou a prestação de serviços psicológicos realizados por meio das tecnologias da informação e da comunicação. Assim sendo, a AP também é uma prática que pode ser realizada mediada pela tecnologia. Contudo, como pensar no manejo avaliativo nesse contexto, especialmente, considerando contextos graves de saúde pública como o da pandemia da Covid-19, se uma parcela significativa da população brasileira sequer tem acesso à internet ou a elementos mais básicos de subsistência como saneamento básico, por exemplo, ou até um espaço seguro dentro de casa para que possa se comunicar com o psicólogo. Esse aspecto foi apontado tanto em documentos orientativos da atuação profissional (ver, por exemplo, Conselho Federal de Psicologia, 2020), como em textos científicos que descreveram o acirramento das distâncias sociais produzido pela pandemia e o viés de amostra em trabalhos que envolveram o uso de internet e tecnologias (ex., Zanini et al., 2021). Por isso, ainda há que se caminhar no sentido de que quesitos básicos de acesso às tecnologias de comunicação e informação sejam asseguradas para uma parcela maior da população, de modo que se possa de fato garantir que, em um manejo no qual o processo de AP será realizado mediado por essas tecnologias, a pessoa a ser avaliada reúne os recursos e as condições necessárias para que consiga obter o seu melhor durante o processo. Esses aspectos abordados conduzem para um exame do compromisso social da AP.

Avaliação Psicológica e Compromisso Social

Autores como Muniz et al. (2021) abordam que a AP tem um papel de relevância social, à medida que, por meio dela, é possível promover qualidade de vida das pessoas, assim como cuidado com os indivíduos e sociedade. Ao se considerar que diferentes processos avaliativos (subsídios judiciais em processos de guarda, queixas de abuso, avaliação de pessoas em privação de liberdade, concursos públicos, porte de armas, trânsito, riscos psicossociais no trabalho, dentre outros) impactam tanto de um ponto de vista da experiência individual, quanto do funcionamento de grandes estruturas sociais, é que se pode vislumbrar o quanto a avaliação ao longo dos anos tem tido um papel protetivo para a sociedade brasileira.

Nessa mesma perspectiva, Bueno e Peixoto (2018) argumentam que a AP reafirma o compromisso com a sociedade à medida que desenvolve práticas e técnicas avaliativas adequadas para a realidade brasileira, bem como busca implementar e desenvolver novos estudos a partir dos avanços tecnológicos ou sociais emergentes na área em contextos estrangeiros. Por essa via, a Resolução 09/2018 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) preconiza em seus artigos 31, 32 e 33 aspectos que convergem para a ideia de que a AP e a tecnologia profissional empregada em seu processo, isto é, as fontes fundamentais e as complementares, sobretudo os testes psicológicos, não podem servir como ferramenta de agravamento das desigualdades sociais, conforme apontam Bicalho e Vieira (2018).

Esses avanços na discussão da defesa dos direitos humanos e da justiça social são visíveis no artigo 31 que especifica que "Art. 31 - À psicóloga ou ao psicólogo, na produção, validação, tradução, adaptação, normatização, comercialização e aplicação de testes psicológicos, é vedado: a) realizar atividades que caracterizem negligência, preconceito, exploração, violência, crueldade ou opressão; b) induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, raciais, de orientação sexual e identidade de gênero; c) favorecer o uso de conhecimento da ciência psicológica e normatizar a utilização de práticas psicológicas como instrumentos de castigo, tortura ou qualquer forma de violência". Por sua vez, o artigo 32 orienta que "Art. 32 - As psicólogas e os psicólogos não poderão elaborar, validar, traduzir, adaptar, normatizar, comercializar e fomentar instrumentos ou técnicas psicológicas, para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas ou estereótipos". Por fim, o artigo 33 arremata que "Art. 33 - A psicóloga e o psicólogo, na realização de estudos, pesquisas e atividades voltadas para a produção de conhecimento e desenvolvimento de tecnologias, atuarão considerando os processos de desenvolvimento humano, configurações familiares, conjugalidade, sexualidade, orientação sexual, identidade de gênero, identidade étnico-racial, características das pessoas com deficiência, classe social, e intimidade como construções sociais, históricas e culturais".

Embora a Resolução 09/2018 do CFP expresse o compromisso da AP com os direitos humanos (Bicalho & Vieira, 2018), ainda há que se ponderar que essa é uma questão a ser consolidada na área de avaliação psicológica. Por isso, há desafios que ainda precisam ser superados para que a AP avance mais em seu compromisso social. Um desses desafios está relacionado com o atendimento de demandas de populações em situação de vulnerabilidade.

Historicamente observa-se que desde a década de 1950 a American Psychologial Association (APA) expressa preocupação com o rigor nos parâmetros éticos para a avaliação psicológica. Por isso, a APA tem uma ampla gama de orientações baseadas em pesquisas que norteam tanto os estudos quanto a prática avaliativa. Assim sendo, entidades como a International Test Commission, a International Association of Applied Psychology a American Educational Reserarch Association, o National Council on Measurement an Education, a International Union of Psychological Science e a International Test Commission também têm demonstrado coesão ao defender os parâmetros éticos da AP (Wechsler, 2019).

Posto isso, é possível observar que em âmbito internacional o Guidelines do International Test Commission e os Standards for Educational and Psychological Testing da AERA et al. (2014) trazem dados que demonstram que, apesar da avaliação psicológica estar em franco avanço em diversas áreas, inclusive em termos do desenvolvimento de novas tecnologias avaliativas, ainda há contextos de aplicação pouco explorados. Quando se observa o cenário nacional brasileiro, no qual apresenta contornos continentais e realidades sociais e culturais distintas, pode-se afirmar que ainda há o que caminhar para o desenvolvimento de estudos que colaborem com a criação de estratégias e de medidas psicológicas que possam atender as especificidades contextuais. Com isso espera-se, não somente o cuidado na construção dos grupos normativos, mas também no manejo adequado do processo avaliativo como um todo em populações vulnerabilizadas (ex. populações de rua, populações ribeirinhas, dentre outros).

Ademais, de acordo com o documento "Relações Raciais: Referências Técnicas para a Atuação dos Psicólogos" (CFP, 2017), persiste no ensino superior o paradoxo de que o número de pessoas negras é menor do que aquele existente na população brasileira, o que revela a marginalização de acesso às universidades sofrida por negras(os). Face a essa consideração se faz importante problematizar que a área de AP brasileira, assim como outras áreas da psicologia, também reflete essa desigualdade. Pode-se dizer que durante muito tempo a AP foi uma área onde transitavam exclusivamente pessoas brancas. Poucos são os docentes e pesquisadores negros da área de avaliação psicológica. Esse é um desafio a ser superado e, é compreensível que um reconhecimento sobre esse aspecto, apesar de ser algo duro de se trazer à baila, já é um começo para que se leve outras pessoas também a pensarem e problematizarem essa questão, de tal modo que se caminhe para um futuro no qual quiçá essa seja uma questão superada para a área.

Ainda pensando essa questão das desigualdades sociais, um dos desafios que precisam ser considerados para a Psicologia consiste no exame crítico sobre em que medida o processo de AP favorece decisões justas, especialmente, em contextos envolvendo decisões, como o acesso a emprego e direitos, bem como a definição de cursos de tratamento de saúde. Isso envolve, por exemplo, um debate sobre a construção de normas para testes psicológicos.

Os Desafios na Construção de Normas

Dentre as diferentes qualidades psicométricas requeridas de um teste psicológico, as normas, ou os estudos normativos, têm sido de grande relevância. Isso porque, as normas são indicadas nos instrumentos a fim de que os dados obtidos por meio da medida empregada sejam interpretáveis dentro de um contexto de justa comparação e de justa conclusão dos dados (Oliveira et al., 2022). Tal princípio é defendido em função da representatividade e da diversidade presente em nosso país (Resolução CFP nº 09/2018).

O processo intuitivo pode indicar que, quanto mais especificidade das comparações, mais justiça no processo de testagem e, consequentemente, mais adequadas serão as interpretações a partir dos dados obtidos. E, de fato, é possível observar que, em função das características de alguns construtos psicológicos, como a criatividade (Nakano et al., 2021) e a inteligência (Alves, 1998; Grégoire, 2020), por exemplo, são notadas diferenças de desempenho que são justificadas por meio das características sociodemográficas, como: sexo, idade, escolaridade, dentre outras possibilidades. Tais aspectos são observados tanto pela presença de diferenças significativas entre as médias para determinados grupos (ex. grupo masculino em comparação ao grupo feminino), ou ainda, pelo funcionamento diferencial de itens (DIF) que indicam problemas de invariância.

Assim, embora o uso de tabelas normativas não resolva o problema da falta de invariância das medidas psicológicas, a comparação dos resultados do avaliando junto às pessoas que minimamente lhe representam, favorece a compreensão mais justa sobre o potencial avaliado (Pasquali, 2011). Entretanto, Andrade e Valentini (2018) argumentam que, para se garantir a justiça produzida com os escores de um teste e oriundas do processo de interpretação dos dados do avaliando, há que se considerar que, a depender de como se organizou a definição dos grupos de referência, isso pode gerar interpretações que levem a resultados injustos ou que produzam desigualdades.

Dessa forma, um desafio no qual a área deve se debruçar é a discussão sobre o quanto a criação de normas que atendam as especificidades de grupos de fato é algo suficiente para atender ao princípio ético da beneficência (ex. quando há preocupação em oferecer dados normativos mais precisos para o contexto do trânsito como tabelas normativas por estados) e o quanto o desenvolvimento de estudos normativos para certos grupos se caracteriza como algo que produz um contexto maleficente (ex. quando se cria tabelas normativas considerando algum critério, como cor da pele, gênero, dentre outros que possam favorecer a discriminação de pessoas com base em uma característica). Tais ponderações adquirem valor, sobretudo ao se tomar em consideração os artigos 31, 32 e 33 da Resolução CFP nº 09/2018, que afirmam o compromisso ético em não justificar, promover e ser conivente com injustiças de quaisquer naturezas.

Todo esse conjunto de preocupações e de exames críticos que foram apresentados neste texto e as práticas profissionais de cuidado que decorrem dessas discussões, refletem um processo longo de amadurecimento da área de Avaliação Psicológica e da Psicologia de um modo geral, tanto do ponto de vista científico quanto ético. Esse amadurecimento se concretiza, principalmente, na forma de resoluções do Conselho Federal de Psicologia e de competências profissionais ensinadas na formação de psicólogos, mas não produz, necessariamente, mudança de práticas em outros conselhos profissionais ou em outros cursos. Isso significa que o uso dos conhecimentos da Psicologia por não psicólogos pode não ser o mais promissor. Assim, um desafio adicional da Avaliação Psicológica consiste em como auxiliar a sociedade a lidar adequadamente com o uso de conhecimentos e tecnologias da ciência psicológica a partir do novo cenário criado pela possibilidade de acesso às informações técnicas que constituem os testes psicológicos e aos próprios instrumentos.

Avaliação Psicológica e a ADI

Em 2004 o Ministério Público protocolou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) relativa ao artigo 18 da Resolução CFP no 002/2003 (vigente a época, atualmente substituído pelo art. 16 da Resolução CFP no 009/2018). De acordo com esse artigo, a venda de testes psicológicos estaria restrita a profissionais de psicologia. Essa ação (ADI 3481) ficou arquivada durante muitos anos, sendo julgada no dia 6 de março de 2021 e, por sete votos a quatro, foi deferida a inconstitucionalidade da restrição da venda de testes psicológicos apenas para psicólogos. Embora o Conselho Federal de Psicologia tenha recorrido de tal decisão por meio de embargos declaratórios, em agosto de 2022 o STF faz seu pronunciamento final mantendo a decisão de inconstitucionalidade da restrição da comercialização dos testes. O conjunto dos documentos produzidos para o enfrentamento dessa ação assim como as decisões podem ser acessadas por meio da página de internet do Conselho Federal de Psicologia (www.cfp.org.br).

Em que pese as reações acirradas dos psicólogos em relação a decisão do STF e as consequências da venda irrestrita dos testes psicológicos para a prática profissional da psicologia, e mais especificamente da avaliação psicológica, a ADI 3481 trouxe aprendizados importantes (ver por exemplo Cardoso & Zanini, 2021; Zanini et al., 2021) e apontou para novos desafios da área.

Entre os aprendizados obtidos, a ADI 3481 permitiu a reflexão da categoria da importância dos testes psicológicos em sua prática profissional. Conforme apontado por Cardoso e Zanini (2021), houve uma reação visceral da categoria à decisão do STF. Mesmo psicólogos que não trabalhavam com testes psicológicos se sentiram usurpados por essa decisão. Contudo, as justificativas apontadas para a necessidade de restrição dos testes psicológicos a psicólogos se baseavam muito mais em uma reserva de mercado do que em justificativas científicas ou de consequências sociais. De fato, ao mergulharmos no impacto que essa decisão tem sobre a atuação do psicólogo e a prática da avaliação psicológica, esta se deve muito mais ao desafio de manter a qualidade do serviço prestado do que a garantia de que somente nós, psicólogos, prestaremos esse serviço.

Nesse sentido, o desafio interposto por essa decisão refere-se à necessidade de proteção dos instrumentos que utilizamos para aferição de diagnósticos ou de avaliações que podem ter consequências significativas para a vida das pessoas e da sociedade (Zanini et al., 2021). A ampla comercialização dos testes psicológicos não é um problema porque as pessoas poderão usar profissionalmente esse recurso. O uso profissional dos testes psicológicos para os fins que constam na lei que regulamenta a profissão de psicólogo continua garantido. O problema que aqui se coloca é o efeito de aprendizagem que se pode produzir quando o avaliando já tiver acesso e conhecimento do instrumento que o irá avaliar. Em casos específicos, pode ser do interesse do avaliando treinar respostas e falsear os resultados da avaliação psicológica. O que veremos nos próximos anos é um acirramento do acesso das pessoas às respostas dos testes, que já vinha ocorrendo de forma ilegal em sites que disponibilizam os manuais de testes psicológicos, principalmente, aqueles adotados em concursos públicos.

À luz dessa discussão se vislumbra ao menos dois desafios imediatos para a área de avaliação psicológica. O primeiro diz respeito a prática profissional e refere-se ao fato de que, como psicólogos, seremos demandados a conduzir avaliações psicológicas mais técnicas e competentes, que envolvam multimétodos e que sejam capazes de superar interesses de falseamento de dados (Oliveira et al., 2021). Esse aspecto envolve maior treino de competências e conhecimento aprofundado da área e do contexto específico de seu trabalho. Em última instância, estamos tratando aqui de um desafio em termos de capacitação de profissionais da psicologia.

O segundo desafio diz respeito ao desenvolvimento de instrumentos que minimizem os efeitos da aprendizagem ou treino em sua aplicação. Isso demandaria o uso de conhecimentos e técnicas mais sofisticadas que as praticadas na atualidade como a avaliação adaptada, a informatização dos processos de correção, entre outras. Esse desafio, contudo, esbarra em outros já apontados anteriormente, como o da desigualdade social vivenciada no Brasil que impacta no acesso a tecnologias e seu uso, tanto por parte dos avaliandos, como por parte dos próprios profissionais da psicologia e, ainda, dos pesquisadores, tipicamente responsáveis pelo desenvolvimento de instrumentos psicológicos.

Além desses desafios imediatos, a decisão do STF também reavivou outra discussão presente na área de AP há alguns anos (ver por exemplo Primi, 2018), a saber, a do compartilhamento do uso profissional dos testes psicológicos por outras categorias profissionais. Essa discussão foi tema de mesas e debates polêmicos em diferentes congressos do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (Ibap) sem que, contudo, se chegasse a um consenso na área. Algumas questões devem ser consideradas nessa reflexão. Segundo Primi (2018) há de se considerar os diferentes propósitos do uso dos instrumentos psicológicos realizados por diferentes profissionais. Por exemplo, um psicólogo pode usar um instrumento de avaliação de atenção para uma avaliação psicológica, enquanto um médico o utiliza para uma avaliação médica, cabendo aí as especificidades garantidas por lei a cada profissão.

Por outro lado, a construção de uma resolução conjunta entre o Conselho Federal de Psicologia e o Conselho Federal de Fonoaudiologia para uso compartilhado do Neupsilin (https://www.sbfa.org.br/portal2017/themes/2017/departamentos/artigos/resolucoes_81.pdf) também pôs em evidência outros três aspectos a se considerar para o compartilhamento de instrumentos. São eles: qual o construto avaliado, trata-se de um fenômeno exclusivamente psicológico? Quais os conhecimentos necessários para uso desse instrumento específico ou qual a formação necessária para uso ético e adequado desse instrumento e em que medida a profissão específica oferece a formação nessa competência? E, por fim, qual o envolvimento daquela categoria profissional para assumir os cuidados desse instrumento?

Em relação a este último aspecto, cabe destacar que o CFP e as associações científicas da área de AP realizam esforços significativos para a manutenção do Satepsi e para garantir uma avaliação da qualidade dos instrumentos psicológicos disponíveis para uso profissional no Brasil. Os psicólogos estão submetidos a regras que auxiliam no controle de qualidade desses instrumentos e no exame ético de sua atuação profissional. Nesse sentido, cabe perguntar se as diferentes categorias profissionais também iriam dispor de recursos e esforços compatíveis com aqueles praticados pela Psicologia para garantir a qualidade ética e técnica dos instrumentos, à luz do que o Conselho Federal de Fonoaudiologia fez por meio da Resolução compartilhada.

Para todos os desafios já apontados neste trabalho, parece ser relevante discutir a formação de psicólogos em relação à condução de processos de avaliação psicológica. Essa questão é crucial para que se possa garantir que os profissionais que estão atuando e aqueles que irão entrar no mercado de trabalho consigam manejar a realidade no grau de complexidade que ela se apresenta.

Avaliação Psicológica e a Formação

Conforme apontado por Noronha e Santos (2021), o zelo com o aprimoramento contínuo da área é notado em diferentes instâncias e momentos da história da AP no país, o que pode ser ilustrado pelas produções científicas (artigos, capítulos e livros), pautas em grupos de trabalho e em eventos da área. Tais ações tornam-se ainda mais relevantes quando tomamos o atual cenário de desafios e de transformações já citadas. Assim, é necessário ponderar a importância de que a formação dos profissionais na graduação contemple elementos que apontem para o comprometimento da área com os aspectos éticos defendidos pela Psicologia, assim como apontem para o aprofundamento da compreensão processual da AP, ressaltando o raciocínio integrativo de técnicas qualitativas e quantitativas na prática profissional (Oliveira et al., 2021).

É preciso também que mais estudos, a exemplo de Noronha et al. (2010), Nunes et al. (2012) e Oliveira et al. (2021), ajudem a explicitar quais são os (1) objetivos de aprendizagem que devem ser alcançados nas disciplinas de avaliação psicológica e (2) quais condições de ensino e de avaliação de desempenho acadêmico são as mais promissoras para, respectivamente, favorecer o aprendizado e evidenciar que ele de fato ocorreu no sentido dos objetivos inicialmente propostos. Segundo Henklain e Muniz (2022), existe na literatura sobre formação em AP pouca clareza e precisão em relação ao que se espera que o(a) psicólogo(a) aprenda na graduação e quais capacidades profissionais de atuação na realidade ele/ela deve estar apto a apresentar. De modo análogo, poucos são os instrumentos com evidências psicométricas favoráveis para auxiliar professores de avaliação psicológica no processo de avaliação do repertório dos alunos no início de uma disciplina, ao longo dela e ao final. Assim, a proposição de objetivos de aprendizagem e o desenvolvimento de recursos para o ensino são aspectos cruciais para ao avanço da formação na área de AP.

Ademais, é preciso considerar que, mesmo sabendo o que deve ser ensinado, a Avaliação Psicológica ainda carece de mais estudos científicos e avanço tecnológico em relação a técnicas de coleta e integração de dados para o entendimento do funcionamento de sujeitos e grupos. Ou seja, existem processos de trabalho, como a observação e a condução de entrevistas, em relação aos quais ainda não dispomos da mesma base científica que temos, por exemplo, no caso dos testes, o que torna mais complexo o ensino dessas competências. Assim, embora esforços tenham sido empreendidos para a qualificação dos instrumentos psicológicos brasileiros; embora a entrevista e observação comportamental tenham sido destacadas nos processos avaliativos; embora muito se tenha evoluído na diferenciação entre AP e testagem psicológica, inclusive produzindo regulamentações para a atuação profissional que explicitam o caráter processual e integrativo do processo de avaliação psicológica (Resolução CFP no 09 de 2018), ainda são escassos os estudos que avaliam a eficácia das demais fontes fundamentais de informação que não os testes psicológicos (Bornstein, 2016). Consequentemente, seu ensino carece de bases explícitas que possibilitem a avaliação da competência do avaliador em seu emprego.

Cabe, ainda, destacar que a formação em avaliação psicológica tem como desafio abrigar todos os demais desafios apontados anteriormente. É na formação do profissional psicólogo que as questões apontadas aqui neste trabalho devem ser consideradas e as competências para seus enfretamentos trabalhadas. Contudo, diferentes estudos já apontaram o baixo número de disciplinas dedicadas a AP nos currículos dos cursos de psicologia e a necessidade de formação continuada na área (Ambiel et al., 2019). Essa necessidade de formação continuada recentemente foi posta em destaque por meio do reconhecimento da AP como área de especialidade da Psicologia (Reppold & Noronha, 2021). Dessa forma, o estudo contínuo possibilitaria o melhor desenvolvimento da diversidade de competências demandadas para o trabalho ético e competente na área.

Por fim, para que seja realmente possível garantir uma formação adequada em Avaliação Psicológica, faz-se necessário enfrentar o desafio do preconceito que essa área da Psicologia sofre dentro da própria academia e em diversos espaços profissionais, e que impacta negativamente na formação de psicólogos (Henklain & Muniz, 2022). Em função de práticas já superadas, persistem noções equivocadas, como o entendimento de que AP é o mesmo que teste e que testes servem apenas ao propósito de estigmatizar pessoas, reduzindo-as a números. Essas noções motivam o afastamento de pesquisadores, professores e profissionais da Psicologia em relação à AP, deixando-a, muitas vezes, isolada no processo de formação profissional, tendo três a quatro disciplinas (Ambiel et al., 2019) para dar conta do desenvolvimento de objetivos de aprendizagem de alta complexidade.

É necessário, portanto, trabalhar no sentido de que a AP receba na academia o mesmo status que lhe é conferido pelo Conselho Federal de Psicologia (ver Resolução do CFP n. 009/2018), a saber: de processo técnico e científico que subsidia a atuação profissional de qualquer psicólogo, independentemente de abordagem teórica, em todos os campos profissionais de atuação. Naturalmente que, a depender do campo de atuação e da abordagem do psicólogo, o modo de realizar avaliação psicológica será diferente, desde que não desrespeite o código de ética profissional e o que estabelece a Resolução CFP no 009/2018. Assim, conforme ponderam Henklain e Muniz (2022, p. 219), "se a AP é inerente à atuação profissional do psicólogo, é esperado que o seu ensino ocorra de modo transversal, e não só nas disciplinas específicas". Disciplinas como História da Psicologia, por exemplo, podem desenvolver aprendizagens sobre a história da AP, não precisando, portanto, que esse tópico seja trabalhado apenas nas disciplinas da área como é usual ocorrer. A disciplina de Ética em Psicologia, por sua vez, também pode abranger aprendizagens pertinentes para a AP, inclusive, trabalhando com as resoluções do CFP que foram citadas neste trabalho. Os estágios nos diferentes campos de atuação podem, igualmente, contemplar aprendizagens relacionadas à realização de AP como ponto de partida para o planejamento de uma intervenção profissional. Esses são apenas alguns exemplos, sendo possível identificar mais aprendizagens importantes para a formação em AP que poderiam ser desenvolvidas em outras disciplinas do curso de Psicologia, que não apenas as específicas da área de avaliação.

 

Considerações Finais

O presente artigo buscou discutir alguns dos principais desafios vivenciados pela área de avaliação psicológica na atualidade. Importantes questões foram apontadas em relação ao uso de tecnologia na AP, seu compromisso social, a justiça na produção e uso dos grupos normativos, as recentes regulamentações dos testes psicológicos e seus impactos na prática profissional e, por fim, a importância do ensino da AP, tanto em nível de graduação quanto em nível de formação continuada. Em conjunto, essas discussões apontam para o impacto de vivências atuais como a pandemia de Covid-19, a ADI 3481, o acirramento das desigualdades sociais ou o desenvolvimento tecnológico, da ciência e da psicometria sobre o campo da AP. Apesar disso, e da nova realidade que essas vivências proporcionaram, problematiza-se em que medida elas nos trazem novos desafios ou reavivam e lançam luz em velhas questões já existentes na área de AP, ainda não superadas. Nesse sentido, o presente artigo aponta para a necessidade de ampliação do debate e construção de caminhos que possibilitem a superação dessas questões e desenvolvimento de uma área ainda mais fortalecida, comprometida e com papel de destaque na construção e desenvolvimento da ciência psicológica.

Alguns caminhos podem ser vislumbrados para isso. O primeiro, já classicamente apontado na literatura científica da área anteriormente, diz respeito ao papel fundamental da formação ou ensino de AP. É a formação que desenvolve as competências básicas para a realização de uma AP ética, competente e comprometida socialmente. É por meio da formação que se poderia implementar a construção de uma identidade profissional mais aderente aos preceitos éticos da profissão e mais preparada para um futuro que convoca às tecnologias. Ao olhar de modo crítico para a realidade dos cursos de formação em psicologia, observa-se o quanto ainda é necessário desde a base dessa formação trabalhar com noções dos ideais maiores da profissão que conjugam com o potencial humano de resguardar o direito a dignidade e a individualidade, especialmente quando em um processo de AP.

O segundo caminho, diz respeito aos profissionais que já estão no mercado de trabalho e a necessidade de realização de discussões que os envolvam e os comprometam com a construção de uma ciência psicológica que busque o bem comum e a qualidade de seu serviço. Nesse sentido, há a necessidade de que mobilizemos cada vez mais discussões que versem sobre a implicação ética na prática profissional dos psicólogos que realizam processos de AP, bem como discussões que nos levem a refletir o quanto a formação em psicologia ainda merece ser reavaliada, de modo a dar melhores subsídios éticos, normativos e tecnológicos ao estudante e profissional de psicologia. Do ponto de vista prático, é necessária a implementação de ações que, por um lado possam orientar os profissionais que estão na ponta da prática profissional em AP e, por outro, possam com isso aprimorar as condutas éticas desse fazer.

 

Agradecimentos

Não há menções.

Financiamento

Esta pesquisa não recebeu nenhuma fonte de financiamento, sendo financiada com recursos dos próprios autores.

Contribuições dos autores

Declaramos que todos os autores participaram da elaboração do manuscrito. Especificamente, os autores Daniela Sacramento Zanini, Karina da Silva Oliveira, Katya Luciane de Oliveira e Marcelo Henrique Oliveira Henklain participaram da escrita inicial do estudo - conceituação, investigação, visualização, análise de dados, escrita final do trabalho - revisão e edição.

Disponibilidade de dados e materiais

Todos os dados e sintaxe gerados e analisados durante esta pesquisa serão tratados com completa confidencialidade devido aos requisitos do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos. No entanto, o conjunto de dados e sintaxe que suportam as conclusões deste artigo estão disponíveis mediante solicitação razoável ao autor principal do estudo.

Conflito de interesses

Os autores declaram que não há conflitos de interesse.

 

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Endereço para correspondência:
Daniela Sacramento Zanini
Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Av, Universitária 1.440 - Setor Universitário
Goiânia - GO, 74175-120
E-mail: dazanini@yahoo.com

Recebido em Julho de 2022
Aceito em Outubro de 2022

 

 

Nota sobre os autores
Daniela Sacramento Zanini é doutora em Psicologia, professora na Pontifícia Universidade Católica de Goiás, membro do Comitê Consultivo de Avaliação Psicológica (CCAP/SATEPSI), presidente do Ibap e pesquisadora de produtividade do CNPq.
Karina da Silva Oliveira é professora no Departamento de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia: Cognição e Comportamento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Katya Luciane de Oliveira é professora associada do Programa de Mestrado em Psicologia e do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação na Universidade Estadual de Londrina. Nível de produtividade 2/CNPq.
Marcelo Henrique Oliveira Henklain é mestre e doutor em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e professor na Universidade Federal de Roraima.

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